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DA HOSPITALIDADE À INTOLERÂNCIA AO MIGRANTE ÁRABE: CONSTRUÇÕES DISCURSIVAS SOBRE UM MESMO BRASIL

FROM HOSPITALITY TO INTOLERANCE TOWARDS THE ARAB MIGRANT: DISCOURSIVE CONSTRUCTIONS ON THE SAME BRAZIL

RESUMO

Este artigo propõe analisar a reportagem "Cariocas fazem 'esfihaço' para apoiar refugiado sírio agredido em Copacabana", veiculada em 12 de agosto de 2017, pelo portal G1, que alude à acolhida e à intolerância a um refugiado sírio no Brasil. Entende-se que tal reportagem apresenta um mesmo Brasil construído discursivamente de modos diferentes: o país da hospitalidade e o país da intolerância. A análise é amparada em conceitos como orientalismo (SAID, 2016SAID, E. W. (2016). Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. Trad. Rosaura Eichenberg. 6a. reimp. São Paulo: Editora Companhia das Letras.) e migração (árabe) (OLIVEIRA, 2002OLIVEIRA, L. L. (2002). O Brasil dos imigrantes. Rio de Janeiro: Zahar .; SEYFERTH, 2002SEYFERTH, G. (2002). Colonização, imigração e a questão racial no Brasil. Revista USP, n. 53, p. 117-149. Disponível em <www.revistas.usp.br/revusp/article/view/33192>Acesso em: 28 ago. 2017.
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; 2008SEYFERTH, G. (2008). Imigrantes, estrangeiros: a trajetória de uma categoria incômoda no campo político. 26ª Reunião Brasileira de Antropologia. Porto Seguro. Disponível em <www.abant.org.br/conteudo/ANAIS/CD_Virtual_26_RBA/mesas_redondas/trabalhos/MR%2012/giralda%20seyferth.pdf>Acesso em: 28 ago. 2017.
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; BRANDÃO, 2007BRANDÃO, G. A. (2007). Sírios e libaneses em Cuiabá: imigração, espacializações e sociabilidade. 2007. Dissertação de Mestrado em História. Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá.; PINTO, 2010PINTO, P. G. H. R. (2010). Árabes no Rio de Janeiro: uma identidade plural. Rio de Janeiro: Cidade Viva.; 2014PINTO, P. G. H. R. (2014). Islã: religião e civilização: uma abordagem antropológica. 2a. reimp. Aparecida: Santuário.; FARAH, 2014FARAH, P. D. E. (2014) The summit of South America - Arab States: historical contexts of South-South solidarity and exchange. In: AMAR, P. (Org.) The Middle East and Brazil: perspectives on the new global South. Bloomington: Indiana University Press, 2014. pp. 39-56.; HAESBAERT, 2014HAESBAERT, R. (2014). O mito da desterritorialização: do fim dos territórios à multiterritorialidade. 8. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.; ZOLIN-VESZ, 2015ZOLIN-VESZ, F. (2015). Conheça o Alli Barato e os 40% de desconto: o Oriente bem aqui. Polifonia , v. 22 , nº 31 , pp. 538-553.; 2016aZOLIN-VESZ, F. (2016a). Terra de todos? - as narrativas sobre a (recente) migração árabe na cidade de Cuiabá. In: BRAGANÇA, I. F. S.; ABRAHÃO, M. H. M. B.; FERREIRA, M. S. (Orgs.) Perspectivas epistémico-metodológicas da pesquisa (auto)biográfica. Curitiba: CRV. pp. 301-310.; 2016bZOLIN-VESZ, F. (2016b). (Por entre) As narrativas que (não) nos contam sobre a migração árabe na cidade de Cuiabá. In: ZOLIN-VESZ, F. (Org.) Linguagens e descolonialidades - arena de embates de sentidos. Campinas: Pontes . pp. 59-73.; BAUMAN, 2017BAUMAN, Z. (2017). Estranhos à nossa porta. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar.). Conclui-se que é no embate entre a hospitalidade e a intolerância, em constante tentativa de uma se firmar diante da outra como mais verdadeira, que a reportagem parece contribuir para a compreensão do Brasil contemporâneo.

Palavras-chave:
migrante árabe; intolerância; hospitalidade

ABSTRACT

This paper analyses the online article "Cariocas fazem 'esfihaço' para apoiar refugiado sírio agredido em Copacabana" (in English, "Cariocas do 'esfihaço' to support a Syrian refugee who was harassed in Copacabana"), published on August 12th, 2017 by the Brazilian website G1. The article refers to the acceptance and the intolerance towards a Syrian refugee in Brazil. It is understood that the article presents the same Brazil discursively constructed in two different ways: the country of hospitality and the countru of intolerance. The analysis is supported by concepts such as Orientalism (SAID, 2016SAID, E. W. (2016). Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. Trad. Rosaura Eichenberg. 6a. reimp. São Paulo: Editora Companhia das Letras.) and (Arab) migration (OLIVEIRA, 2002OLIVEIRA, L. L. (2002). O Brasil dos imigrantes. Rio de Janeiro: Zahar .; SEYFERTH, 2002SEYFERTH, G. (2002). Colonização, imigração e a questão racial no Brasil. Revista USP, n. 53, p. 117-149. Disponível em <www.revistas.usp.br/revusp/article/view/33192>Acesso em: 28 ago. 2017.
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; 2008SEYFERTH, G. (2008). Imigrantes, estrangeiros: a trajetória de uma categoria incômoda no campo político. 26ª Reunião Brasileira de Antropologia. Porto Seguro. Disponível em <www.abant.org.br/conteudo/ANAIS/CD_Virtual_26_RBA/mesas_redondas/trabalhos/MR%2012/giralda%20seyferth.pdf>Acesso em: 28 ago. 2017.
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;BRANDÃO, 2007BRANDÃO, G. A. (2007). Sírios e libaneses em Cuiabá: imigração, espacializações e sociabilidade. 2007. Dissertação de Mestrado em História. Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá.; PINTO, 2010PINTO, P. G. H. R. (2010). Árabes no Rio de Janeiro: uma identidade plural. Rio de Janeiro: Cidade Viva.; 2014PINTO, P. G. H. R. (2014). Islã: religião e civilização: uma abordagem antropológica. 2a. reimp. Aparecida: Santuário.; FARAH, 2014FARAH, P. D. E. (2014) The summit of South America - Arab States: historical contexts of South-South solidarity and exchange. In: AMAR, P. (Org.) The Middle East and Brazil: perspectives on the new global South. Bloomington: Indiana University Press, 2014. pp. 39-56.; HAESBAERT, 2014HAESBAERT, R. (2014). O mito da desterritorialização: do fim dos territórios à multiterritorialidade. 8. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.; ZOLIN-VESZ, 2015ZOLIN-VESZ, F. (2015). Conheça o Alli Barato e os 40% de desconto: o Oriente bem aqui. Polifonia , v. 22 , nº 31 , pp. 538-553.; 2016aZOLIN-VESZ, F. (2016a). Terra de todos? - as narrativas sobre a (recente) migração árabe na cidade de Cuiabá. In: BRAGANÇA, I. F. S.; ABRAHÃO, M. H. M. B.; FERREIRA, M. S. (Orgs.) Perspectivas epistémico-metodológicas da pesquisa (auto)biográfica. Curitiba: CRV. pp. 301-310.; 2016bZOLIN-VESZ, F. (2016b). (Por entre) As narrativas que (não) nos contam sobre a migração árabe na cidade de Cuiabá. In: ZOLIN-VESZ, F. (Org.) Linguagens e descolonialidades - arena de embates de sentidos. Campinas: Pontes . pp. 59-73.; BAUMAN, 2017BAUMAN, Z. (2017). Estranhos à nossa porta. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar.). It is concluded that the clash between hospitality and intolerance, identified in the online article, contributes to the comprehension of contemporary Brazil, given that one seeks to consolidate its veracity in face to the other.

Keywords:
Arabian migrant; intolerance; hospitality

Sempre se escreve a história da guerra, mesmo quando se escreve a história da paz e de suas instituições. (FOUCAULT, 2012FOUCAULT, M. (2012). Microfísica do poder. 30. reimp. Rio de Janeiro: Graal., p. 176)

INTRODUÇÃO

Os contínuos fluxos migratórios ao redor do globo terrestre, e as vidas em constante trânsito, que se (re)integram às demais em seus destinos finais ou provisórios, contribuem para as configurações das cidades, redefinindo espaços e reverberando nas mais diversas instâncias da vida e do mundo social. A presença do migrante1 1 Neste trabalho, preferimos os termos migrante e migração a imigrante e imigração, ou emigrante e emigração. Todo imigrante é também emigrante, e migrante parece abarcar ambos os termos. , contudo, ainda que incessante, é comumente entendida como ameaça - o estranho que bate à nossa porta, conforme alude Bauman (2017)BAUMAN, Z. (2017). Estranhos à nossa porta. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar.. Especificamente a migração árabe, após os fatídicos eventos que se sucederam ao 11 de setembro de 2001, nos Estados Unidos, tem se constituído como elemento de importante análise. Se, de um lado, há expressivo fluxo de pessoas oriundas do Oriente Médio e da África Setentrional para diferentes partes do mundo, principalmente refugiados, de outro há portas que se fecham em decorrência do estigma construído sobre o que é considerado "mundo árabe" (PINTO, 2014PINTO, P. G. H. R. (2014). Islã: religião e civilização: uma abordagem antropológica. 2a. reimp. Aparecida: Santuário.). A ótica ocidentalista de conceber o mundo constrói para si um ideal de existência ao qual todos parecem ser convidados a participar. No entanto, também subjuga outros modos de vida, de forma a excluí-los do imaginário paraíso ocidental ou considerá-los apenas enquanto visitantes que não se demoram.

Em tempos de visível instabilidade (BAUMAN, 2017BAUMAN, Z. (2017). Estranhos à nossa porta. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar.), cenários de acolhimento aos refugiados surgem ao mesmo passo em que diversos casos de intolerância aos migrantes parecem ganhar força. Com o intuito de entender os sentidos construídos sobre tais fenômenos sociais, buscamos investigar, em última análise, como se delineiam tais sentidos: tanto em relação ao estranho que bate à nossa porta quanto a nós mesmos, enquanto anfitriões que resistem (ou não) em acolher o desconhecido. Para isso, analisamos a reportagem, veiculada em 12 de agosto de 2017 pelo portal G1, sob o título "Cariocas fazem 'esfihaço' para apoiar refugiado sírio agredido em Copacabana"2 2 Disponível em <https://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/cariocas-fazem-fila-em-esfihaco-para-apoiar-refugiado-sirio-agredido-em-copacabana.ghtml>. Acesso em 13 ago 2017. , com subtítulo "Após divulgação de vídeo em que é hostilizado por outros ambulantes, Mohamed Ali recebe apoio dos brasileiros. Perto dali, no Arpoador, grupo protestou contra muçulmanos". A reportagem noticia um evento denominado "esfihaço", cuja convocação ocorreu por meio de uma rede social após divulgação de vídeos que mostravam vendedores de rua brasileiros hostilizando verbalmente outro vendedor e jogando sua barraca ao chão. Conforme a reportagem, Mohammed Ali, o vendedor hostilizado, é um refugiado sírio, que vende esfirras e outros quitutes árabes na mesma rua que os agressores, em Copacabana, um bairro da cidade do Rio de Janeiro. Ainda de acordo com a reportagem, ao mesmo tempo em que Ali era "abraçado pelos cariocas", um protesto contra muçulmanos acontecia no Arpoador, outro bairro da cidade do Rio de Janeiro. Assim, para tal análise, buscamos compreender, de igual modo, quais sentidos sobre o Brasil e sobre o migrante árabe podem ser retomados ou (re)construídos e o que permite que possam irromper em um mesmo espaço/tempo.

Inicialmente, abordamos o pensamento orientalista enquanto instrumento de criação da alteridade árabe. Entendemos que a hostilização sofrida pelo migrante sírio, antes e durante o evento noticiado pela reportagem aqui analisada, retoma enunciados que ecoam o que Said (2016)SAID, E. W. (2016). Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. Trad. Rosaura Eichenberg. 6a. reimp. São Paulo: Editora Companhia das Letras. designou Orientalismo. Em seguida, aludimos à figura do migrante econômico e do refugiado na sociedade destino, além de abordarmos a migração no Brasil por meio da ótica de Oliveira (2002)OLIVEIRA, L. L. (2002). O Brasil dos imigrantes. Rio de Janeiro: Zahar ., Seyferth (2002SEYFERTH, G. (2002). Colonização, imigração e a questão racial no Brasil. Revista USP, n. 53, p. 117-149. Disponível em <www.revistas.usp.br/revusp/article/view/33192>Acesso em: 28 ago. 2017.
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; 2008)SEYFERTH, G. (2008). Imigrantes, estrangeiros: a trajetória de uma categoria incômoda no campo político. 26ª Reunião Brasileira de Antropologia. Porto Seguro. Disponível em <www.abant.org.br/conteudo/ANAIS/CD_Virtual_26_RBA/mesas_redondas/trabalhos/MR%2012/giralda%20seyferth.pdf>Acesso em: 28 ago. 2017.
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e Haesbaert (2014)HAESBAERT, R. (2014). O mito da desterritorialização: do fim dos territórios à multiterritorialidade. 8. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil., bem como das contribuições de Brandão (2007)BRANDÃO, G. A. (2007). Sírios e libaneses em Cuiabá: imigração, espacializações e sociabilidade. 2007. Dissertação de Mestrado em História. Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá., Pinto (2010PINTO, P. G. H. R. (2010). Árabes no Rio de Janeiro: uma identidade plural. Rio de Janeiro: Cidade Viva.; 2014)PINTO, P. G. H. R. (2014). Islã: religião e civilização: uma abordagem antropológica. 2a. reimp. Aparecida: Santuário., Farah (2014)FARAH, P. D. E. (2014) The summit of South America - Arab States: historical contexts of South-South solidarity and exchange. In: AMAR, P. (Org.) The Middle East and Brazil: perspectives on the new global South. Bloomington: Indiana University Press, 2014. pp. 39-56., Zolin-Vesz (2015ZOLIN-VESZ, F. (2015). Conheça o Alli Barato e os 40% de desconto: o Oriente bem aqui. Polifonia , v. 22 , nº 31 , pp. 538-553.; 2016aZOLIN-VESZ, F. (2016a). Terra de todos? - as narrativas sobre a (recente) migração árabe na cidade de Cuiabá. In: BRAGANÇA, I. F. S.; ABRAHÃO, M. H. M. B.; FERREIRA, M. S. (Orgs.) Perspectivas epistémico-metodológicas da pesquisa (auto)biográfica. Curitiba: CRV. pp. 301-310.; 2016b)ZOLIN-VESZ, F. (2016b). (Por entre) As narrativas que (não) nos contam sobre a migração árabe na cidade de Cuiabá. In: ZOLIN-VESZ, F. (Org.) Linguagens e descolonialidades - arena de embates de sentidos. Campinas: Pontes . pp. 59-73. e Bauman (2017)BAUMAN, Z. (2017). Estranhos à nossa porta. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar.. A constituição discursiva, que caracteriza os brasileiros como povo hospitaleiro, parece colidir com as narrativas de um Brasil intolerante com o estranho que bate à nossa porta. Na seção de análise, buscamos investigar o que permite que tais enunciados, a princípio distintos, se materializem no mesmo evento discursivo, produzindo embates em torno do estatuto da verdade.

Este artigo, portanto, parece ser emoldurado, a nosso ver, pela compreensão do que Moita Lopes (2006)MOITA LOPES, L. P. (Org.) (2006). Por uma linguística aplicada INdisciplinar. São Paulo: Parábola . denomina linguística aplicada INdisciplinar, ou seja, as discussões que o permeiam pautam-se na direção de um arcabouço teórico transdisciplinar, afastando-se da concepção de que linguística aplicada organiza-se enquanto aplicação da linguística. Essa perspectiva aponta para a reivindicação da linguística aplicada em "misturar-se", "melecar-se" (ROJO, 2013ROJO, R. (2013). Caminhos para a LA: política linguística, política e globalização. In: NICOLAIDES, C.; SILVA, K. A.; TILIO, R.; ROCHA, C. H. (Orgs.) Política e políticas linguísticas. Campinas: Pontes, 2013. pp. 63-78., p. 65) com teorias que atravessam o campo das ciências sociais e das humanidades, na tentativa de "criar inteligibilidade sobre problemas sociais em que a linguagem tem um papel central" (MOITA LOPES, 2006MOITA LOPES, L. P. (Org.) (2006). Por uma linguística aplicada INdisciplinar. São Paulo: Parábola ., p. 14).

Daí a opção em empregar, por um lado, proposições oriundas de diferentes áreas das ciências sociais e das humanidades como embasamento teórico para a compreensão da referida reportagem, por meio da combinação de estudos em história, sociologia e antropologia, cujos autores, já anteriormente elencados, "misturam" e "melecam" essas áreas do conhecimento pelos meandros da pesquisa transdisciplinar. Por outro lado, o conceito de Orientalismo, ponto-chave para a discussão que ora apresentamos, é compreendido, conforme observa Said (2016)SAID, E. W. (2016). Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. Trad. Rosaura Eichenberg. 6a. reimp. São Paulo: Editora Companhia das Letras., na acepção foucaultiana de discurso. Vale lembrar que, segundo Maingueneau (2015)MAINGUENEAU, D. (2015). Discurso e análise do discurso. Trad. Sírio Possenti. São Paulo: Parábola., desde a chamada virada discursiva, o interesse dos estudos das ciências sociais e humanidades tem sido direcionado para os objetos produzidos por meio de práticas discursivas. E como nos lembra o autor, "a principal referência, nesse sentido, é, sem dúvida, Michel Foucault" (MAINGUENEAU, 2015MAINGUENEAU, D. (2015). Discurso e análise do discurso. Trad. Sírio Possenti. São Paulo: Parábola., p. 32), que "[...] traz a noção de discurso para o centro da reflexão" (MAINGUENEAU, 2015MAINGUENEAU, D. (2015). Discurso e análise do discurso. Trad. Sírio Possenti. São Paulo: Parábola., p. 18). Entretanto, segundo o autor, o que Foucault denominava discurso "não tinha relação direta com o uso da língua" (MAINGUENEAU, 2015MAINGUENEAU, D. (2015). Discurso e análise do discurso. Trad. Sírio Possenti. São Paulo: Parábola., p. 19), ou seja, elementos como o vocabulário e a organização textual, caros a muitas vertentes da análise do discurso, não constituem o eixo analítico central. De acordo com Maingueneau (2015)MAINGUENEAU, D. (2015). Discurso e análise do discurso. Trad. Sírio Possenti. São Paulo: Parábola., o conceito de discurso, para Foucault, relaciona-se com a produção de enunciados que contribuem para a construção de determinados sentidos em certo momento sócio-histórico.

Dois pontos, portanto, merecem ser elucidados: primeiramente, enunciado se refere, na tessitura de Foucault (2008)FOUCAULT, M. (2008). A arqueologia do saber. Trad. Luiz Felipe Baeta Neves. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária., a uma função que atravessa estruturas e unidades possíveis linguisticamente - uma frase ou uma proposição, por exemplo - e faz com que lhes atribuamos (ou não) um sentido e/ou um valor de verdade. Dessa forma, a análise que desenvolvemos neste artigo busca compreender por que surgiram determinados enunciados em relação ao evento noticiado pela reportagem aqui analisada, e não outros em seu lugar, de modo a retomar enunciados que parecem ressoar o que Said (2016)SAID, E. W. (2016). Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. Trad. Rosaura Eichenberg. 6a. reimp. São Paulo: Editora Companhia das Letras. já havia denominado Orientalismo. Em virtude dessa peculiaridade, a reportagem não é analisada em seu todo, mas enfatizando os enunciados que buscam construir a compreensão proposta acima. O segundo ponto se relaciona ao conceito de discurso como prática, apenas citado anteriormente. Como observa Foucault (2012)FOUCAULT, M. (2012). Microfísica do poder. 30. reimp. Rio de Janeiro: Graal., práticas discursivas criam sentidos que possuem efeito de verdade. A nosso ver, são esses efeitos de verdade, tanto no que diz respeito à receptividade do brasileiro quanto à intolerância ao mundo comumente denominado árabe, que a reportagem analisada parece abarcar, contribuindo para produzir os embates sobre qual dessas práticas discursivas seria mais verdadeira em um mesmo espaço/tempo.

1. ORIENTALISMO NA CONSTRUÇÃO DA ALTERIDADE ÁRABE

O pensamento orientalista parece dominar grande parte dos estudos sobre o Oriente e o oriental, tanto na academia quanto nas produções artísticas. Tal pensamento se constitui, de acordo com Said (2016)SAID, E. W. (2016). Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. Trad. Rosaura Eichenberg. 6a. reimp. São Paulo: Editora Companhia das Letras., como o campo do conhecimento baseado na distinção entre o Ocidente - nós, o familiar, o civilizado - e o Oriente - eles, o estranho, o primitivo -, sendo o orientalista aquele que possui autoridade para falar, escrever ou pesquisar sobre o Oriente. Desse modo, o orientalismo converge para um teor essencialista e homogeneizante sobre o oriental, o qual é comumente caracterizado por meio de um fenótipo, uma cultura, uma religião e uma visão de mundo, de forma tão distinta do ocidental que se torna trabalhoso traçar qualquer similaridade entre ambos. Como observa Said (2016)SAID, E. W. (2016). Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. Trad. Rosaura Eichenberg. 6a. reimp. São Paulo: Editora Companhia das Letras.,

essas atitudes orientalistas contemporâneas inundam a imprensa e a mente popular. Os árabes, por exemplo, são imaginados como libertinos a cavalgar camelos, com narizes aduncos, terroristas, venais, cuja riqueza imerecida é uma afronta à verdadeira civilização. Está sempre subjacente a pressuposição de que, embora pertença a uma minoria numérica, o consumidor ocidental tem o direito de possuir ou gastar (ou ambas as coisas) a maioria dos recursos do mundo. Por quê? Porque ele, ao contrário do oriental, é um verdadeiro ser humano. (SAID, 2016SAID, E. W. (2016). Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. Trad. Rosaura Eichenberg. 6a. reimp. São Paulo: Editora Companhia das Letras., p.160)

Portanto, a construção discursiva no tocante ao árabe, exemplificada pelo autor, o constrói por meio da distinção com o ocidental, como o extremo oposto - parafraseando Said (2016)SAID, E. W. (2016). Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. Trad. Rosaura Eichenberg. 6a. reimp. São Paulo: Editora Companhia das Letras., como "um ser humano não verdadeiro", unificando-o em categorias fixas e estáveis, de modo a ignorar ou minimizar a pluralidade que compõe o universo árabe.

Uma dessas construções ocidentais sobre o árabe é a associação à religião islâmica. De acordo com Pinto (2014)PINTO, P. G. H. R. (2014). Islã: religião e civilização: uma abordagem antropológica. 2a. reimp. Aparecida: Santuário., o islã tem sido construído discursivamente, em especial pelas sociedades euroamericanas do século XXI, como uma alteridade radical a quem se atribuem qualidades negativas (terrorista, irracional, bárbaro, fanático, opressor com as mulheres, violento e tradicional), contrastando, dessa forma, com o Ocidente tolerante e moderno, em que há liberdade e igualdade de direitos. Ainda em conformidade com o autor, no Brasil, o estigma do árabe associado a um islã terrorista e radical não se tornou exclusivo e único no período que sucederam os ataques ao World Trade Center, em 11 de setembro de 2001. Para o autor, as práticas discursivas que estigmatizam o islã se manifestaram de forma ambígua no país, já que, ao mesmo tempo em que provocou o preconceito a comunidades muçulmanas como possíveis "arenas de atuação de grupos terroristas" (PINTO, 2014PINTO, P. G. H. R. (2014). Islã: religião e civilização: uma abordagem antropológica. 2a. reimp. Aparecida: Santuário., p. 210), também "o 11 de setembro teria revelado o islã como força cultural e oposição ao imperialismo americano" (PINTO, 2014PINTO, P. G. H. R. (2014). Islã: religião e civilização: uma abordagem antropológica. 2a. reimp. Aparecida: Santuário., p. 210).

Nessa seara, a hostilização e a hospitalidade (ao migrante/refugiado) podem parecer atos contraditórios ou mesmo opostos. Entretanto, neste trabalho, vemos a possibilidade de entendê-los como fenômenos que se relacionam, dado que, em constante duelo um contra o outro, tentam se apresentar como mais legítimos ou verdadeiros em um mesmo espaço/tempo.

2. MIGRANTE/REFUGIADO: O ESTRANHO À NOSSA PORTA

A migração árabe no Brasil tem se intensificado ano após ano, principalmente em decorrência dos conflitos no Oriente Médio, o que justifica o fato de que, em 2016, segundo dados do Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE)3 3 Disponível em <www.acnur.org/t3/fileadmin/Documentos/portugues/BDL/Convencao_relativa_ao_Estatuto_dos_Refugiados.pdf> Acesso em: 8 set. 2017. , os pedidos de refúgio deferidos ter sido majoritariamente em favor de migrantes oriundos de países daquela região. Tal presença parece ser demarcada pela dicotomia discursiva da acolhida e da discriminação. É a contraditória figura do migrante/refugiado, o estranho que bate à nossa porta.

Seyferth (2008)SEYFERTH, G. (2008). Imigrantes, estrangeiros: a trajetória de uma categoria incômoda no campo político. 26ª Reunião Brasileira de Antropologia. Porto Seguro. Disponível em <www.abant.org.br/conteudo/ANAIS/CD_Virtual_26_RBA/mesas_redondas/trabalhos/MR%2012/giralda%20seyferth.pdf>Acesso em: 28 ago. 2017.
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pontua que há diversos acontecimentos que motivam a mobilidade espacial de grandes fluxos de pessoas e diferentes são as razões para a configuração dos deslocamentos em massa, que constituem processos complexos. Essa complexidade, segundo a autora, pode ser analisada por meio de distintos referenciais, como as motivações que impulsionam o deslocamento (econômicas, políticas, culturais, religiosas, ambientais etc.), a temporalidade ou historicidade em que elas ocorrem, a multiplicidade de entendimentos a depender da classe socioeconômica do migrante, entre outros aspectos.

A figura do migrante, dessa forma, é elemento central para entender a complexidade dos fluxos migratórios. De acordo com Haesbaert (2014)HAESBAERT, R. (2014). O mito da desterritorialização: do fim dos territórios à multiterritorialidade. 8. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil., as múltiplas categorias de migrantes podem demandar relacionamentos diferentes entre migrante e sociedade de destino. Se, de um lado, as migrações ditas "econômicas" (que implicam mobilidade pelo trabalho) podem ser entendidas como interessantes para os espaços em que há grande demanda por mão-de-obra, por outro lado algumas migrações podem constituir ameaça, como tem sido concebida a categoria refugiado, cuja situação não se confunde com as demais migrações. O refugiado é entidade protegida por jurisdição internacional, especificamente pela Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados4 4 No Brasil, a lei n. 9.474, de 22 de julho de 1997, determina os mecanismos para a implementação da referida convenção. (ONU, 1951), a qual o define como aquele que se desloca do país de sua nacionalidade temendo ser perseguido por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opinião política, e que não pode ou não quer se valer da proteção de seu território de origem ou retornar a ele. Seyferth (2008)SEYFERTH, G. (2008). Imigrantes, estrangeiros: a trajetória de uma categoria incômoda no campo político. 26ª Reunião Brasileira de Antropologia. Porto Seguro. Disponível em <www.abant.org.br/conteudo/ANAIS/CD_Virtual_26_RBA/mesas_redondas/trabalhos/MR%2012/giralda%20seyferth.pdf>Acesso em: 28 ago. 2017.
www.abant.org.br/conteudo/ANAIS/CD_Virtu...
observa que, embora as migrações sejam vistas, de modo geral, como problema, a migração forçada, como é o caso dos refugiados, é tida como ameaça maior, apesar da proteção jurídica por meio dos tratados internacionais ratificados pela maioria dos países. No entendimento da autora, a presença de um indivíduo que é destituído da própria pátria fragiliza o ideal de Estado-Nação, ou seja, a estada de refugiados em determinado território perturba a univocidade da sociedade nacional, sobretudo quando as diferenças étnica e cultural são marcadas. Desse modo, conforme a autora, alguns migrantes podem ser menos tolerados que outros, na medida em que se aproximam ou se distanciam da unidade (que se pretende) nacional da sociedade destino.

Os refugiados, portanto, não só abalam a estrutura na qual se sustenta o ideal de Estado-Nação como também tornam mais evidente o cenário atual vivido pela humanidade. Conforme Bauman (2017)BAUMAN, Z. (2017). Estranhos à nossa porta. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar., com a presença de tais grupos, "fomos forçados pelos 'remanescentes', que surgem à nossa porta en masse, a confrontar olho no olho os aspectos antes reconfortantes e tranquilizadoramente invisíveis da realidade do estado do mundo" (BAUMAN, 2017BAUMAN, Z. (2017). Estranhos à nossa porta. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar., p. 90). Remetendo à reportagem aqui em análise, a presença de um vendedor de rua sírio, ocupando um espaço do qual o brasileiro pensa ser o dono, parece ressaltar a volatilidade dessa propriedade territorial e a fragilidade do bem-estar que o vendedor de rua brasileiro acredita gozar. Dessa forma, o comportamento do vendedor brasileiro pode ser entendido não apenas como a tentativa de cunhar a superioridade (imaginada) do nativo, mas a hostilização sofrida pelo refugiado sírio parece acionar o que Bauman (2017) caracteriza como sistema de opressão que atinge a todos. Em suas palavras:

para os indesejáveis que suspeitam ter chegado ao fundo do poço, a descoberta de outro fundo abaixo daquele em que eles próprios foram lançados é um evento de lavar a alma, que redime sua dignidade humana e recupera o que tenha sobrado de autoestima. A chegada de uma massa de migrantes sem teto, privados de direitos humanos não apenas na prática, mas também pela letra da lei, cria a (rara) chance de um evento assim. (BAUMAN, 2017BAUMAN, Z. (2017). Estranhos à nossa porta. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar., p. 18)

O apontamento do autor parece nos auxiliar no entendimento das condições que contribuíram para o surgimento dos enunciados analisados na reportagem que propomos abordar neste artigo. Se a saída para a crise da humanidade é a solidariedade entre os seres humanos, conforme aponta o autor em outro ponto da obra, configura-se basilar, assim, entender não apenas a hostilidade, mas também como a acolhida é discursivamente construída.

3. BRASIL: UM PAÍS DE TODOS?

Em 2016, de acordo com dados do Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE), nacionais de noventa e cinco países solicitaram refúgio no Brasil. A Síria foi o país com maior número de deferimentos, seguido, nas cinco primeiras posições, pela República Democrática do Congo, pelo Paquistão, pela Palestina e pela Angola. Tais dados sugerem a grande presença de migrantes no Brasil, o que parece ser impulsionada pela concepção, construída historicamente, de um país acolhedor para todos, lugar de refúgio, terra de oportunidades.

Os fluxos migratórios em direção ao Brasil tiveram diferentes funções e características a depender de suas razões, dos povos que para cá migraram e da temporalidade. Determinados acontecimentos, em especial ao longo do século XIX, podem ser considerados constituintes das condições que permitiram a irrupção de um Brasil como "terra de todos".

Conforme observa Oliveira (2002)OLIVEIRA, L. L. (2002). O Brasil dos imigrantes. Rio de Janeiro: Zahar ., o mito fundador da nação brasileira se consolidou pela fusão do índio (nativo), do branco (colonizador europeu) e do negro (africano escravizado). A presença do negro como integrante dessa composição era vista como um problema a ser sanado. Assim, na tentativa de promover uma miscigenação branqueadora, as políticas de migração, que visavam a trazer europeus brancos para o Brasil, ganharam espaço (OLIVEIRA, 2002OLIVEIRA, L. L. (2002). O Brasil dos imigrantes. Rio de Janeiro: Zahar .; SEYFERTH, 2002SEYFERTH, G. (2002). Colonização, imigração e a questão racial no Brasil. Revista USP, n. 53, p. 117-149. Disponível em <www.revistas.usp.br/revusp/article/view/33192>Acesso em: 28 ago. 2017.
www.revistas.usp.br/revusp/article/view/...
). Portanto, não era para todo e qualquer migrante que as portas brasileiras estavam abertas, mas para aqueles que fossem trabalhadores (europeus brancos) eficientes, preferencialmente agricultores:

nas classificações imperam os atributos usualmente associados ao campesinato, incluindo a adjetivação da submissão: o bom colono deve ter amor ao trabalho e à família e respeito às autoridades, além de ser sóbrio, perseverante, morigerado, resignado, habilidoso, etc. Alemães e italianos são as nacionalidades mais frequentemente situadas no topo da hierarquia dos desejáveis "bons agricultores". (SEYFERTH, 2002SEYFERTH, G. (2002). Colonização, imigração e a questão racial no Brasil. Revista USP, n. 53, p. 117-149. Disponível em <www.revistas.usp.br/revusp/article/view/33192>Acesso em: 28 ago. 2017.
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, p. 120)

Desse modo, é a figura do migrante econômico, ou seja, aquele que vem ao país como força de trabalho, que, conforme exposto acima, encontra na sociedade brasileira uma terra de oportunidades. A configuração de um Brasil aberto a esses migrantes, que não só os recebe bem como os deseja em seu território, é um dos constituintes da construção discursiva da hospitalidade, mas que, como descrevemos na sequência, não abraça a todos.

O século XX, marcado por guerras, trouxe ao Brasil categorias não desejadas - os refugiados e apátridas -, que desestabilizavam a nação que se pretendia unívoca. É nesse período que há o aumento do fluxo de migrações vindas do Oriente Médio (PINTO, 2010PINTO, P. G. H. R. (2010). Árabes no Rio de Janeiro: uma identidade plural. Rio de Janeiro: Cidade Viva.). A narrativa sobre a migração árabe em direção ao continente americano constitui uma trama complexa, envolvendo processos políticos, sociais e econômicos que extrapolam a comumente perseguição religiosa atribuída ao Império Otomano, geralmente apontada como o gatilho para a intensificação do fluxo migratório árabe ao Brasil (BRANDÃO, 2007BRANDÃO, G. A. (2007). Sírios e libaneses em Cuiabá: imigração, espacializações e sociabilidade. 2007. Dissertação de Mestrado em História. Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá.; PINTO, 2010; FARAH, 2014FARAH, P. D. E. (2014) The summit of South America - Arab States: historical contexts of South-South solidarity and exchange. In: AMAR, P. (Org.) The Middle East and Brazil: perspectives on the new global South. Bloomington: Indiana University Press, 2014. pp. 39-56.; ZOLIN-VESZ, 2015ZOLIN-VESZ, F. (2015). Conheça o Alli Barato e os 40% de desconto: o Oriente bem aqui. Polifonia , v. 22 , nº 31 , pp. 538-553.; 2016aZOLIN-VESZ, F. (2016a). Terra de todos? - as narrativas sobre a (recente) migração árabe na cidade de Cuiabá. In: BRAGANÇA, I. F. S.; ABRAHÃO, M. H. M. B.; FERREIRA, M. S. (Orgs.) Perspectivas epistémico-metodológicas da pesquisa (auto)biográfica. Curitiba: CRV. pp. 301-310.; 2016bZOLIN-VESZ, F. (2016b). (Por entre) As narrativas que (não) nos contam sobre a migração árabe na cidade de Cuiabá. In: ZOLIN-VESZ, F. (Org.) Linguagens e descolonialidades - arena de embates de sentidos. Campinas: Pontes . pp. 59-73.). Contudo, havia um agravamento: além de o árabe não ser branco como o europeu e, portanto, não se enquadrar no projeto nacional de branqueamento, o orientalismo brasileiro o associava à ganância, à usura e à antropofagia (PINTO, 2010PINTO, P. G. H. R. (2010). Árabes no Rio de Janeiro: uma identidade plural. Rio de Janeiro: Cidade Viva.; 2014PINTO, P. G. H. R. (2014). Islã: religião e civilização: uma abordagem antropológica. 2a. reimp. Aparecida: Santuário.). Ainda assim, o árabe não era visto como "ameaça terrorista", aludida na reportagem aqui em análise. É a partir do atentado de 11 de setembro de 2001, nos Estados Unidos, que o islã, usualmente associado ao árabe de maneira generalizada, parece receber o estigma de terrorista. Como aponta Haesbaert (2014)HAESBAERT, R. (2014). O mito da desterritorialização: do fim dos territórios à multiterritorialidade. 8. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil., o crescimento do movimento terrorista provocou uma vinculação genérica e apressada entre migração e terrorismo internacional. No entanto, conforme observamos anteriormente, mesmo após o 11 de setembro e todo o aparato discursivo produzido sobre os muçulmanos, o "árabe islâmico terrorista" não se consolida de modo uniforme no imaginário social brasileiro. Essa ambivalência nos sentidos construídos se aproxima, a nosso ver, da relação também polissêmica entre grupos diferentes de brasileiros em relação ao refugiado sírio da reportagem: de um lado, intolerantes, o denominando como terrorista; de outro, acolhedores e solidários, enxergando um trabalhador. Dois lados de uma mesma moeda, cujos sentidos parecem estar em embate para um se tornar mais verdadeiro do que o outro.

4. (POR ENTRE) O BRASIL DA HOSPITALIDADE E O BRASIL DA INTOLERÂNCIA

Nesta seção, analisamos enunciados da reportagem "Cariocas fazem fila em 'esfihaço' para apoiar refugiado sírio agredido em Copacabana", apresentados na ordem em que estão distribuídos textualmente. Reiteramos que a reportagem não é examinada em seu todo, uma vez que nosso propósito é compreender como os enunciados referentes ao evento noticiado parecem irromper em um mesmo espaço/tempo sobre os processos migratórios em direção ao Brasil e, em particular, sobre o migrante (árabe), de modo a produzir determinados efeitos de verdade que permitem a construção discursiva tanto do Brasil da hospitalidade quanto do Brasil da intolerância.

Desse modo, o primeiro enunciado a ser analisado é a fala de Mohamed Ali sobre o "esfihaço", evento promovido em prol do refugiado sírio.

Enunciado 1

Não sei dizer como eu me sinto agora. Eu estou muito feliz, muito mesmo. Sou a pessoa mais feliz do mundo hoje. Esse movimento mostra como os brasileiros recebem as pessoas. Eles sempre estão com amor, os brasileiros são muito amáveis, disse. (Retirado de <https://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/cariocas-fazem-fila-em-esfihaco-para-apoiar-refugiado-sirio-agredido-em-copacabana.ghtml>. Acesso em 13 ago 2017)

Evidenciar a fala do próprio Ali, que, dessa forma, destaca-se na organização textual da reportagem, parece contribuir para confirmar a construção discursiva do Brasil como o país da hospitalidade. A afirmação do refugiado sírio, ao estender sua percepção sobre os participantes do "esfihaço" para abranger, de forma genérica, os brasileiros, em "eles sempre estão com amor, os brasileiros são muito amáveis", parece recuperar enunciados que legitimam o Brasil como um país acolhedor para todos, um lugar de refúgio, e os brasileiros como genuinamente receptivos. O emprego do advérbio "sempre", na primeira oração, bem como o uso do intensificador "muito", na segunda oração, colaboram para evidenciar, na fala do sírio, essa receptividade dos brasileiros, travestida de amabilidade, o que parece concorrer para a indubitabilidade de que o Brasil é o país da hospitalidade - "sempre com amor", "muito amáveis". De igual modo, a edificação da figura do migrante grato pela solidariedade recebida, em "eu estou muito feliz, muito mesmo", cujo emprego geminado do intensificador "muito" parece exacerbar a veemência da felicidade do sírio, também caminha para a construção discursiva do Brasil como o país da hospitalidade: em uma nação tão acolhedora, da qual os habitantes são tão amáveis, só poderia culminar no bem-estar do refugiado. Como o próprio Ali afirma, "sou a pessoa mais feliz do mundo hoje".

Entretanto, o enunciado 1 parece colaborar, similarmente, para generalizar o comportamento do brasileiro, além de silenciar outras possibilidades, como o desejo da expulsão e o medo de que o migrante "roube" o espaço que o brasileiro acredita ter por direito. Assim sendo, o destaque que o enunciado recebe aparenta turvejar o comportamento dos vendedores de rua brasileiros em momento anterior ao "esfihaço". Dessa forma, a construção discursiva do Brasil como o país da intolerância ao refugiado sírio pode ser identificada na narração de como ocorreu a hostilização a Mohammed Ali, por meio da transcrição da fala de um dos vendedores de rua brasileiros no vídeo que registra a hostilidade, seguida pela justificativa de Ali em não denunciar a agressão, verificada no enunciado 2.

Enunciado 2

"Sai do meu país! Eu sou brasileiro e estou vendo meu país ser invadido por esses homens-bomba miseráveis que mataram crianças, adolescentes. São miseráveis. Vamos expulsar ele!", disse.

Mohamed não postou o vídeo e não foi à polícia. "Eu não quero problemas, só quero trabalhar. Eu não quero problema para ninguém", disse Mohamed Ali. (Retirado de <https://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/cariocas-fazem-fila-em-esfihaco-para-apoiar-refugiado-sirio-agredido-em-copacabana.ghtml>. Acesso em 13 ago 2017)

Assim como ocorre com o enunciado 1, a fala do vendedor de rua brasileiro neste enunciado, em nosso entendimento, não é isolada, ou seja, não emerge de um fato inédito. Ao contrário, supõe, se relaciona e retoma outros enunciados: neste caso, parece recuperar enunciados que compõem, ao menos, os seguintes discursos: (1) o discurso orientalista, que estigmatiza o árabe como pertencente a uma alteridade radical; (2) o discurso nacionalista, que, por um lado, estabelece a condição de ser nativo de determinado Estado-Nação como sine qua non para usufruir das benesses daquele território (quando o vendedor afirma "eu sou brasileiro", sugere a crença de possuir direito nato para ocupar aquele espaço), e, por outro lado, confere à migração o status de ameaça para a consolidação do Estado-Nação, que não pode ser "invadido" pelo estranho que bate à nossa porta - a exclamação "vamos expulsar ele!", proferida pelo vendedor em referência a Ali, parece apontar para esse tom intimidador que a migração adquire); (3) o discurso político das sociedades euroamericanas, que apresenta o árabe sob enunciados tais como aqueles expressos pelo vendedor brasileiro - "homem-bomba", "miseráveis que matam crianças, adolescentes"; e (4) os discursos que emergem na atualidade com a crise migratória, uma vez que a afirmação "são miseráveis", proferida pelo vendedor brasileiro para se referir a Mohammed Ali, de forma a abarcar os povos árabes sob a mesma inscrição, parece denotar, parafraseando Bauman (2017)BAUMAN, Z. (2017). Estranhos à nossa porta. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar., "a descoberta de um fundo do poço abaixo daquele em que o próprio vendedor de rua brasileiro se encontra".

Já a fala de Ali, ao justificar o fato de não ter denunciado a agressão à polícia, sugestiona a pacificidade do refugiado que "não quer problema, apenas trabalhar". Além de remeter à figura do migrante econômico (aquele que alcunha certo bem-aceite nas sociedades destino, uma vez que migra como força de trabalho, e, em especial na história migratória brasileira, encontra no país uma terra de oportunidades), também colabora para o distanciamento do rótulo, anteriormente cunhado pelo vendedor de rua brasileiro no país da intolerância, de que se trata de um homem-bomba, de um terrorista. Esse posicionamento da reportagem em enfatizar a motivação pacífica do refugiado sírio em sua migração para o Brasil - é, antes de tudo, um trabalhador que "não quer problemas", mas "apenas trabalhar" - parece reverberar no enunciado 3, por meio da descrição de Ali.

Enunciado 3

Mohamed tem 33 anos, é filho de pai sírio e mãe egípcia, nasceu na Síria e foi criado no Egito, de onde saiu há três anos. Diz que no Brasil as pessoas respeitam a religião do outro, e ele pode viver "em paz". Mesmo após a agressão, ele defende o país. "Eu amo o Brasil".

O sírio é casado com uma brasileira e tem um filho. Fugiu da guerra no Oriente Médio e não quer mais conflitos por aqui. "Eu fui para a guerra lá, cheguei aqui e não quero guerra aqui". (Retirado de <https://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/cariocas-fazem-fila-em-esfihaco-para-apoiar-refugiado-sirio-agredido-em-copacabana.ghtml>. Acesso em 13 ago 2017)

A apresentação de Ali como migrante pacífico, alguém muito distinto do "árabe terrorista", parece ser consolidada na descrição acima, que o indica como já integrado à vida local, "casado com uma brasileira" e com filho nascido no Brasil. O retrato do refugiado demonstra que já não se trata de alguém tão "estranho", uma vez que está devidamente inserido socialmente - a declaração "eu amo o Brasil" parece confirmar essa constatação. Ao narrar que Ali é um fugitivo de guerra, que "não mais quer conflitos", que não "quer uma guerra aqui", podemos identificar a tentativa da reportagem em maximizar a pacificidade do migrante frente à agressão sofrida, anterior ao "esfihaço", no país que transita entre a hospitalidade e a intolerância.

Embora o enunciado não registre a religião de Mohamed Ali, o que parece configurar-se como estratégia para não o associar ao islã, religião contra a qual, em outro ponto da cidade do Rio de Janeiro, um grupo protestava, a fala de Ali, caracterizando o Brasil como um país que "respeita a religião do outro" e um lugar em que ele pode "viver em paz", sugere o contraste entre esse Brasil acolhedor (mesmo em se tratando de questões religiosas) e o Brasil intolerante, tendo em vista o protesto que acontecia no Arpoador, outro bairro da cidade, ao mesmo tempo em que Ali era "abraçado pelos cariocas".

Nesse ínterim, a reportagem apresenta uma imagem5 5 A imagem pode ser visualizada em <https://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/cariocas-fazem-fila-em-esfihaco-para-apoiar-refugiado-sirio-agredido-em-copacabana.ghtml>. Acesso em 13 ago 2017. que retrata o referido protesto, com pessoas vestidas de preto e portando cartazes com ataques a muçulmanos, recuperando enunciados já manifestos pelo vendedor de rua brasileiro no vídeo que registrou o ataque ao refugiado sírio, de modo a associar aos muçulmanos adjetivos como assassino, estuprador e pedófilo: "Muslims: Killers, Kidnappers, Rapists", "Muçulmanos: assassinos, sequestradores, estupradores", "Meu Deus não é pedófilo! Não sou muçulmano!" e "Diga não à pedofilia, diga não ao Islamismo". Os cartazes, portanto, parecem resgatar outros enunciados, em especial aqueles que remetem o islã e os muçulmanos a práticas sexuais condenáveis pelo Ocidente, tais como o estupro e a pedofilia. Conforme Pinto (2010)PINTO, P. G. H. R. (2010). Árabes no Rio de Janeiro: uma identidade plural. Rio de Janeiro: Cidade Viva., tais enunciados foram massivamente repetidos internacionalmente após o 11 de setembro, de sorte que a própria diversidade interpretativa das vertentes do islã sobre o Alcorão - o texto sagrado para os muçulmanos - fosse apagada.

A associação do islã à pedofilia é um dos estigmas da religião, visto que a união marital com crianças é permitida em alguns países de maioria islâmica. Além disso, é usualmente resgatado o fato de o profeta Muhammad (também conhecido como Maomé) ter se casado com Aisha quando ela ainda era impúbere. Said (2016)SAID, E. W. (2016). Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. Trad. Rosaura Eichenberg. 6a. reimp. São Paulo: Editora Companhia das Letras. observa que a recepção do islã no Ocidente ocorreu em analogia com o cristianismo, segundo a qual Muhammad seria a base do islã da mesma forma que Cristo é para o cristianismo. Dessa analogia, formou-se um círculo reprodutor de enunciados que atribuíam a Muhammad não apenas a alcunha de "disseminador de uma falsa Revelação" (SAID, 2016SAID, E. W. (2016). Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. Trad. Rosaura Eichenberg. 6a. reimp. São Paulo: Editora Companhia das Letras., p. 101) como também o "epítome da lascívia, devassidão, sodomia e toda uma bateria de diversas traições" (SAID, 2016SAID, E. W. (2016). Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. Trad. Rosaura Eichenberg. 6a. reimp. São Paulo: Editora Companhia das Letras., p. 101). A analogia descrita pelo autor se configura, de igual modo, como uma construção distintiva das duas religiões, que visa a colocar em lados opostos o islã e o cristianismo, ignorando as semelhanças e ressaltando as diferenças radicais, que parecem ser retomadas por meio dos cartazes do referido protesto, em enunciados como "Meu Deus não é pedófilo" e "Diga não à pedofilia, diga não ao Islamismo".

Assim sendo, tanto os dizeres que compõem os cartazes quanto os insultos proferidos na agressão sofrida por Mohamed Ali sugerem elementos para o entendimento da construção discursiva da intolerância, visto que retomam enunciados que não são inéditos em relação aos árabes muçulmanos - "homens-bomba pedófilos que matam/violentam crianças e adolescentes", como pode ser observado ao reunir tanto a fala do vendedor de rua brasileiro quanto os cartazes do protesto contra muçulmanos. Contudo, na tentativa de ratificar que, a despeito da intolerância, o Brasil também é o país do acolhimento, e os brasileiros não coadunam, em sua totalidade, com a agressão do vendedor de rua a Mohamed Ali, ou com os ataques contra muçulmanos proferidos por meio dos cartazes do protesto, a reportagem destaca parte da entrevista com uma professora que fotografava o protesto no Arpoador, reproduzida no enunciado 4.

Enunciado 4

"Minha primeira reação foi não entender o que estava acontecendo. Até porque as mensagens pareciam misturar alhos com bugalhos. Pareceu um movimento 'cristão' radical contra muçulmanos, fazendo algum tipo de analogia louca com assassinatos, sequestros e estupros. Como se pra cometer esses crimes tivesse que ter alguma relação com algum credo em especial", disse, em entrevista ao G1.

(Retirado de <https://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/cariocas-fazem-fila-em-esfihaco-para-apoiar-refugiado-sirio-agredido-em-copacabana.ghtml>. Acesso em 13 ago 2017)

O enunciado, portanto, parece reforçar a visão, proposta pela reportagem, de que, no Brasil acolhedor, muitos brasileiros não compartilham da mesma crença que os integrantes do protesto contra muçulmanos. O relato da professora sobre a incompreensão do que se trata o protesto, uma vez que recupera o discurso orientalista no momento em que associa o islã a uma alteridade radical, parece demarcar o posicionamento contrário da reportagem sobre a construção discursiva do Brasil como o país da intolerância, à guisa de que o acolhimento, simbolizado por meio do "esfihaço", sobressaia na composição discursiva sobre o Brasil. A expressão "misturar alhos com bugalhos", em conjunto com "analogia louca" entre muçulmanos e "assassinatos, sequestros e estupros", sugere que tal aproximação - entre muçulmanos e essa alteridade radical - constitui uma vinculação, no mínimo, confusa entre instâncias diversas. De fato, para a entrevistada, a radicalização está associada mais ao movimento que parecia organizar o protesto ("pareceu um movimento 'cristão' radical contra muçulmanos") do que a muçulmanos. O encerramento da entrevista, com o argumento da professora de "como se pra cometer esses crimes tivesse que ter alguma relação com algum credo em especial", contribui para sintetizar o posicionamento da reportagem sobre a generalização não condizente entre o islã e "assassinatos, sequestros e estupros", reforçando, uma vez mais que, no Brasil acolhedor, não é a totalidade de brasileiros que pensa como os integrantes do referido protesto.

Dessa forma, é a hospitalidade, por meio do evento "esfihaço" e de posições individuais contrastantes àquelas defendidas pelos membros do protesto contra muçulmanos, que parece construir a concepção de um Brasil acolhedor ao migrante árabe, tolerante a religiões não cristãs e solidário a quem sofre qualquer tipo de violência. Entretanto, como vimos argumentando ao longo deste artigo, trata-se de dois lados de uma mesma moeda chamada Brasil, cujos sentidos estão em embate para um se tornar mais verdadeiro do que o outro. Diante disso, pensamos não haver a possibilidade, portanto, de retratarmos o Brasil da hospitalidade sem espelhá-lo ao Brasil da intolerância: como aponta a reportagem, a um só tempo, os brasileiros são retratados como acolhedores e solidários, enxergando em Mohamed Ali um trabalhador - apesar de reverberar a figura do migrante econômico pacífico que, embora não seja mais o "colono branco europeu", ao menos "não quer problema, apenas trabalhar", sobrepujando-se ao pensamento orientalista brasileiro que associa o árabe à ganância e à usura; e como intolerantes, denominando o refugiado sírio de terrorista e classificando muçulmanos como "assassinos, sequestradores e estupradores", cujo "Deus é pedófilo".

É essa retomada de enunciados, cingida pela reportagem "Cariocas fazem 'esfihaço' para apoiar refugiado sírio agredido em Copacabana", que proporciona o embate entre a hospitalidade e a intolerância, em constante tentativa de uma se firmar diante da outra, ressoando, assim, como mais verdadeira ou legítima, e contribuindo para a construção discursiva do que entendemos por Brasil contemporâneo - concomitantemente, o país da hospitalidade e o país da intolerância. Dessa forma, o migrante árabe continua a constituir-se como figura polissêmica na história migratória do Brasil: desde indesejados, a contar do início do processo da migração árabe ao país até o 11 de setembro de 2001, em que comunidades muçulmanas foram taxadas como possíveis "arenas de atuação de grupos terroristas" (PINTO, 2014PINTO, P. G. H. R. (2014). Islã: religião e civilização: uma abordagem antropológica. 2a. reimp. Aparecida: Santuário., p. 210), passando pela condição de refugiados oriundos do Oriente Médio e da África Setentrional, que chegam ao país de forma constante, conforme dados do Comitê Nacional para os Refugiados, até desejados, uma vez que "o 11 de setembro teria revelado o islã [...] como oposição ao imperialismo americano" (PINTO, 2014PINTO, P. G. H. R. (2014). Islã: religião e civilização: uma abordagem antropológica. 2a. reimp. Aparecida: Santuário., p. 210) e a chegada desses refugiados pode transparecer a efígie do migrante econômico. Da hospitalidade à intolerância, da condição de indesejados à condição de desejados, construções discursivas sobre um mesmo Brasil.

5. E ENTRE A HISTÓRIA DA PAZ E A HISTÓRIA DA GUERRA...

Neste artigo, analisamos a reportagem "Cariocas fazem 'esfihaço' para apoiar refugiado sírio agredido em Copacabana", veiculada em 12 de agosto de 2017 pelo portal G1, a qual noticia um evento denominado "esfihaço", convocado após a hostilização de vendedores de rua brasileiros contra um refugiado sírio, também vendedor de rua. Nesse enquadre, a análise aponta para a compreensão da hostilização e do acolhimento ao migrante/refugiado como fenômenos que se relacionam, dado que, em constante duelo um contra o outro, tentam se apresentar como mais legítimos ou verdadeiros em um mesmo espaço/tempo, compondo o que nomeamos como dois lados de uma mesma moeda na construção discursiva sobre o Brasil contemporâneo - a um só tempo, o país da hospitalidade e o país da intolerância. É a história da guerra sempre sendo contada mesmo quando se escreve a história da paz, como nos adverte Foucault (2012)FOUCAULT, M. (2012). Microfísica do poder. 30. reimp. Rio de Janeiro: Graal. já na epígrafe deste artigo.

Desse modo, o contínuo fluxo migratório de populações refugiadas em território brasileiro nos convida a reexaminarmo-nos enquanto anfitriões que resistem (ou não) em acolher o estranho que bate à nossa porta. Que o duelo discursivo entre o país da hospitalidade e o país da intolerância possa contribuir, nesses tempos de visível instabilidade, para que reconheçamos, como nos orienta Bauman (2017)BAUMAN, Z. (2017). Estranhos à nossa porta. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar., que

[...] a única forma de escapar dos atuais desconfortos e sofrimentos futuros passa por rejeitar as traiçoeiras tentações da separação. Em vez de nos recusarmos a encarar as realidades dos desafios de nossa época, sintetizados na expressão "Um planeta, uma humanidade", lavando as mãos e nos isolando das irritantes diferenças, dessemelhanças e estranhamentos autoimpostos, devemos procurar oportunidades de entrar num contato estreito e cada vez mais íntimo com eles - resultando, ao que se espera, numa fusão de horizontes, e não numa fissão induzida e planejada, embora exacerbantes. (BAUMAN, 2017BAUMAN, Z. (2017). Estranhos à nossa porta. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar., p. 23)

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2018

Histórico

  • Recebido
    02 Mar 2018
  • Aceito
    21 Jun 2018
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