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CULTURA DE OFÍCIO MARÍTIMA PESQUEIRA* * Agradecemos as valiosas sugestões feitas pelos(as) pareceristas deste artigo e o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), por meio da Bolsa de Produtividade, e da Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia do Estado de Pernambuco (Facepe) para a realização de pesquisas que deram origem a este escrito.

CULTURE OF MARITIME FISHING TRADE

Resumo

O artigo aborda um tradicional grupo de pescadores artesanais do Brasil, os jangadeiros, objetivando compreender como eles constituíram uma cultura de ofício pesqueira marítima, do século XVI até 1970. Combinaram-se, para tanto, a abordagem sócio-histórica (escritos e imagens) e a pesquisa de campo, quando foram entrevistados 12 jangadeiros de alto-mar da praia de São José da Coroa Grande, em Pernambuco. Conclui-se que os jangadeiros representam o encontro de duas tradições (a marítima e a de ofício), que tiveram na sociedade flutuante (a jangada) seu marco existencial e lócus de reprodução sociocultural.

Palavras-chave
Sociologia da pesca; jangadeiros; pescador artesanal; socioantropologia marítima; sociologia do trabalho

Abstract

The article approaches a traditional group of artisanal fishermen from Brazil, the rafters, aiming to understand how they constituted a culture of maritime fishing trade, from the sixteenth century until 1970. For that, a socio-historical approach was combined (writings and images) with field research where 12 deep sea rafters from São José da Coroa Grande beach, Pernambuco, were interviewed. It concludes that the rafters represented the encounter of two traditions (the maritime and the profession) that had in a floating society (the raft) its existential landmark and locus of socio-cultural reproduction.

Keywords
Fishing sociology; rafters; artisanal fisherman; marine socioanthropology; sociology of work

Minha jangada Eu batizei Regalia E por gozar ventania O pano é bem amarrado. No mar salgado Range, embica, pende e salta Toda vez que a maré alta Namora o vento exaltado (Siba, “Brisa”)

Este escrito analisa um grupo social que vive tradicionalmente do trabalho da pesca artesanal no Brasil, o dos jangadeiros, cujo modo de vida tornou-se sinônimo de uma extensa faixa litorânea do Nordeste brasileiro, do Ceará ao sul da Bahia.1 1 Sergipe, embora esteja entre Alagoas e a Bahia, não tem jangadeiros. Ao longo de dois séculos (XVI e XVII), a jangada, de referencial técnico-tecnológico indígena caetés, foi o equipamento hegemônico da pesca nas águas marinhas de Pernambuco. Após a segunda metade do século XVIII, ela foi modificada para poder se distanciar da costa, o que a tornou uma jangada de alto-mar. Assim, passaram a coexistir duas formas dessa embarcação (as de alto-mar e as de mar de dentro2 2 Para os jangadeiros, pescar em alto-mar tem o mesmo significado que pescar no mar de fora, mar adentro ou mar alto, o que representa pescar após os arrecifes. Distingue-se da pesca do mar de dentro, que é realizada em rios, estuários, mangues e na beira-mar. ). E foi assim, na condição de personagem hegemônica ou única - muitas vezes - das pescarias realizadas no oceano, que as de alto-mar chegaram até a década de 1970, quando se deu o aparecimento dos barcos motorizados. A cultura jangadeira, contudo, nunca deixou de ser importante para muitas comunidades litorâneas.

Nesse cenário Pernambuco se destaca, ora em decorrência da existência de várias imagens e relatos históricos de viajantes, desde a chegada dos portugueses, sobre a presença intensa e extensiva dos jangadeiros nos mares locais, ora por continuar sendo um dos lugares mais expressivos em relação à presença desse tipo de pescador - o estado, aliás, possui o maior número de jangadas (769) e detém a maior produção pesqueira capturada por jangadeiros (4.270,6 toneladas de pescados), tendo no município de São José da Coroa Grande (litoral sul e distante 125km do Recife) o que concentra a quantidade mais significativa deles no país, segundo a última e mais detalhada estatística pesqueira realizada em âmbito federal (Cepene-Ibama, 2006Cepene/Ibama. (2006). Boletim estatístico da pesca marítima e estuarina do Nordeste do Brasil-2006. Tamandaré: Cepene/Ibama.; 2008Cepene/Ibama. (2008). Boletim estatístico da pesca marítima e estuarina do Nordeste do Brasil-2007. Tamandaré: Cepene/Ibama.).3 3 O Centro de Pesquisa e Gestão de Recursos Pesqueiros do Litoral Nordeste (Cepene) era ligado ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) até a criação do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) em 2007.

A nossa hipótese é de que, por incorporar tradições marítimas e artesãs e étnicas distintas, o jangadeiro fez-se ponto de chegada e de partida de uma cultura de ofício pesqueira marítima no Brasil, tendo na jangada de alto-mar o centro de sua existência sociocultural e econômica, com capacidade de produzir e reproduzir-se enquanto sujeito hegemônico da pesca artesanal marinha por cerca de quatro séculos.

Combinamos dois procedimentos metodológicos, o primeiro de mais peso: a abordagem sócio-histórica com base em artigos, livros e imagens, bem como em escritos de viajantes do século XVI até o XIX. A ideia foi identificar e analisar a maneira como as jangadas e os jangadeiros foram descritos em suas formas de trabalho, modos de vida, técnicas e tecnologias produtivas. Já o uso das imagens almejou ilustrar mudanças e/ou permanências relativas aos aspectos anteriormente destacados, a partir de pinturas e fotografias4 4 Não utilizamos fotografias históricas dos jangadeiros de alto-mar de São José da Coroa Grande por dois motivos: dificuldades de conseguir acesso a elas em acervos públicos; e falta de autorização para torná-las públicas por parte das famílias de dois fotógrafos amadores. Para compensar essa falta, mostramos fotos antigas de jangadeiros e jangadas de outras praias pernambucanas para os jangadeiros de São José da Coroa Grande (todas fazem parte deste artigo), sendo unânime a afirmativa, por parte de nossos entrevistados, de que elas eram similares ao que existia na localidade (“sem tirar e nem pôr”). das jangadas e dos jangadeiros ao longo dos séculos em Pernambuco.

A pesquisa de campo deu-se de janeiro a maio de 2015 e, depois, de abril de 2017 a março de 2018 em São José da Coroa Grande, onde foram entrevistados 12 jangadeiros de mar-alto,5 5 Encerramos em 12 jangadeiros pelo fato de perceber que as respostas começaram a repetir-se. Na primeira fase da pesquisa foram sete entrevistados e, na segunda etapa, cinco deles voltaram a ser ouvidos (dois tinham falecido) e mais cinco foram adicionados. focalizando suas histórias de vida, especialmente os que tinham, no mínimo, 65 anos de idade, ou seja, os que haviam ingressado no trabalho pesqueiro antes da proliferação e hegemonia dos barcos motorizados (botes6 6 Barco artesanal motorizado que conta com cabine e possui entre oito e 12 metros de comprimento. ) na pesca artesanal de alto-mar, fato que aconteceu a partir da década de 1970 e que levou as jangadas a deixar sua condição de principal embarcação do mar de fora. Encontra-se aí a razão de nosso recorte histórico, século XVII ao decênio de 1970. Às entrevistas centradas na história de vida, que foi a estratégia mais privilegiada do campo, combinou-se a observação direta no mar (realizamos oito saídas para o oceano com os jangadeiros que ainda estavam em atividade, de janeiro a maio de 2015), pois algumas questões mencionadas pelos jangadeiros, até os anos 1970, ainda podiam ser observadas no trabalho pesqueiro. Tudo isso se voltou para nosso entendimento do modo como se constituíram o processo de socialização, a formação dessa cultura específica do mundo do trabalho (artesã e marítima), as representações sobre o ofício e o mar, partilhas, continuidades e/ou rupturas na pesca da jangada em suas técnicas e tecnologias.

Em certos trechos da redação, entrecruzamos análise histórica oriunda dos livros, artigos e imagens com os depoimentos dos jangadeiros, no intuito de, além de ofertar maior riqueza e dinamismo à análise, estabelecer algumas comparações para encontrar singularidades e/ou semelhanças.

MAR DE ENCONTROS: AS CULTURAS MARÍTIMA E DE OFÍCIO

Algumas frases oriundas de nossos diálogos com jangadeiros ao longo da pesquisa foram essenciais para as categorias de análise deste artigo: por um lado, as ideias expressas por eles de que “dentro da jangada, lá no mar, é outro mundo”, “a vida no mar faz um homem diferente do da terra” ou “o mar e a jangada fizeram de nós cabras únicos”; por outro, “não dá pra explicar a vida na jangada se a pessoa deixar pra fora que o jangadeiro é um tipo de artesão”, “um ofício que tem mestre pra ensinar a gente as manhas da pesca, de domínio da jangada e viver no mar”. Sem dúvida, “isso se ajunta” para esses pescadores.

Com base nesses relatos, resolvemos explorar cientificamente tais categorias locais. Para tanto, os conceitos de cultura marítima e cultura de ofício serão a base de nossa argumentação por representar a articulação de elementos materiais e imateriais presentes no universo do trabalho e da sociabilidade dos jangadeiros, que se desdobrarão no que categorizamos como cultura de ofício marítima pesqueira.

A cultura marítima incorpora códigos, normas, valores, sociabilidades, linguagens, simbologias, saberes e organização produtiva capazes de possibilitar a (re)produção sociocultural dos homens no mar ao longo dos 7.500km da região costeira brasileira. Significa igualmente modos de vida particulares que encontraram nas águas suas razões de ser; e é justamente aí que podemos “falar de uma ‘subcultura caiçara’ e de uma ‘subcultura jangadeira’, no interior de uma cultura marítima em geral existente no Brasil” (Silva, 1993Silva, Luiz Geraldo. (1993). Caiçaras e jangadeiros. São Paulo: Nupaub-USP.: 12), a dos pescadores artesanais, tendo a primeira se abrigado no Sul e Sudeste, e a outra no Nordeste secularmente.

A cultura marítima dos pescadores serviu de esteio para outras culturas marítimas. Na Europa, em finais do século XV, “algumas comunidades criaram culturas marítimas locais e regionais e, em alguns casos, desenvolveram importante atividade pesqueira, funcionando assim como escolas, nas quais os exploradores da década de 1490 iam buscar navios e tripulações” (Fernández- Armesto, 2009Fernandez-Armesto, Felipe. (2009). Os desbravadores: uma história mundial da exploração da terra. São Paulo: Companhia das Letras.: 196-197).

Embora existam várias expressões da cultura marítima (além dos diversos tipos de pescadores, surgiram marinheiros, navegantes, piratas, velejadores), elas se apoiaram em uma centralidade: a água como marco e marca existencial. E isso se torna também evidente em estudos internacionais (Acheson, 1981Acheson, James. (1981). Anthropology of fishing. Annual Review of Anthropology, 10.; Collet, 1993Collet, Serge. (1993). Uomini e pesce. Milano: Giuseppe Maimone Ed.; Philbrick, 2000Philbrick, Nathaniel. (2000). No coração do mar. São Paulo: Companhia das Letras.; Rediker; Linebaugh; 2008Rediker, Marcus & Linebaugh, Peter. (2008). A hidra de muitas cabeças. São Paulo: Companhia das Letras.; Rediker, 2011Rediker, Marcus. (2011). O navio negreiro. São Paulo: Companhia das Letras.; Ritchie, 1989Ritchie, Robert C. (1989). Capitão Kidd e a guerra contra os piratas. Rio de Janeiro: Campus.), cuja sociedade flutuante (vida embarcada) criou processos sociais repletos de dinâmicas peculiares com suas formas de solidariedade, incertezas e imaginários, pois não se deve desconsiderar o fato de que “definitivamente, a gente do mar tem boa parte de sua existência em um ambiente distinto do ‘continental’” (Mollat, 1983Mollat, Michel. (1983). La vie quotidienne des gens de mer en Atlantique (IX-XVI). Paris: Hachette.: 220).

Imaginários esses que decorrem das singularidades e contextos “vivenciados no isolamento dos mares” (Miceli, 2008Miceli, Paulo. (2008). O ponto onde estamos: viagens e viajantes na história da expansão e da conquista (Portugal, século XV e XVI). 4 ed. Campinas: Editora da Unicamp.: 205). Ademais, os riscos de acidente e morte nos oceanos exigiam solidariedades entre os tripulantes de um mesmo destino (o barco) para que pudessem sobreviver, viver.

Isso mostra a importância da vida embarcada como categoria representativa na definição desse conceito, o que também é decisivo para a pesca artesanal, porque “significa a produção de um modo de vida particular, com sua ideologia, racionalidade, sociabilidade e organização típica de um trabalho, o que propiciou o florescimento de uma cultura marítima com seus laços de pertencimento e seus princípios éticos fundantes e fundados por reciprocidades” (Ramalho, Santos, 2018Ramalho, Cristiano Wellington Noberto & Santos, Andreia Patrícia dos. (2018). Particularidades do pertencimento na pesca artesanal embarcada. Revista Ciências Sociais Unisinos, São Leopoldo, 54/2, p. 256-268.: 259). Outrossim, “é a conjugação de seu trabalho com os instrumentos que possibilita a atividade, que não pode se dar sem alguma forma de mediação tecnológica entre o homem e os peixes a serem capturados” (Pessanha, 2003Pessanha, Elina Gonçalves da Fonte. (2003). Os companheiros. Niterói: Eduff.: 76), que encontra na sua sociedade flutuante uma centralidade existencial.

Para os povos pesqueiros, laços de sociabilidade e territoriais fundem-se como chaves explicativas da sua cultura marítima, e o barco é mais do que um simples instrumento produtivo, ao significar relações afetivas, território identitário, uma totalidade formada pela soma de tripulantes, segurança possível em um ambiente móvel e perigoso, uma oficina artesã em pleno movimento (Ramalho, 2011Ramalho, Cristiano Wellington Noberto. (2011). O sentir dos sentidos dos pescadores artesanais. Revista de Antropologia-USP, São Paulo, 54/1, p. 315-352.; 2017aRamalho, Cristiano Wellington Noberto. (2017a). Embarcadiços do encantamento: trabalho sinônimo de arte, estética e liberdade na pesca marítima. São Cristóvão/Campinas: Editora UFS/Ceres-Unicamp.; 2017bRamalho, Cristiano Wellington Noberto. (2017b). O mar na terra e a terra no mar: o encontro das oficinas pesqueiras. Vivência, 1/49, p. 167-186.).

É na vida embarcada que a cultura marítima resplandece. “Desta forma, a noção de cultura marítima aponta para a existência de noções e princípios que estão além do momento de produção e que também a antecedem, perpassando a ordem social, a lógica e os valores das sociedades de pescadores marítimos” (Maldonado, 1993Maldonado, Simone. (1993). Mestre & mares. São Paulo: Annablume.: 34). Por isso, a maritimidade não é um conceito ligado diretamente ao mundo oceânico enquanto entidade física, é uma produção social e simbólica (Diegues, 2004Diegues, Antonio Carlos. (2004). A pesca construindo sociedades. São Paulo: Nupaub-USP.: 15-16).

Embora a centralidade do mundo das águas seja essencial, os estudos anteriormente referidos dividem-se em alguns eixos específicos: uma abordagem mais simbólica, a exemplo de autores como Maldonado (1993)Maldonado, Simone. (1993). Mestre & mares. São Paulo: Annablume. e Mollat (1983)Mollat, Michel. (1983). La vie quotidienne des gens de mer en Atlantique (IX-XVI). Paris: Hachette.; outra acerca do trabalho, suas formas de organização, vivência e representações (Diegues, 1983Diegues, Antonio Carlos. (1983). Pescadores, camponeses e trabalhadores do mar. São Paulo: Ática.; Pessanha, 2003Pessanha, Elina Gonçalves da Fonte. (2003). Os companheiros. Niterói: Eduff.); e, por fim, uma terceira sobre os marcos das desigualdades, seus questionamentos e sociabilidades, linguagens e ritos próprios, que se apresentavam - neste último caso - na rotina embarcada das grandes navegações (Rediker, Linebaugh, 2008Rediker, Marcus & Linebaugh, Peter. (2008). A hidra de muitas cabeças. São Paulo: Companhia das Letras.; Rediker, 2011Rediker, Marcus. (2011). O navio negreiro. São Paulo: Companhia das Letras.; Rodrigues, 2005Rodrigues, Jaime. (2005). De costa a costa: escravos, marinheiros e intermediários do tráfico negreiro de Angola ao Rio de Janeiro (1780-1860). São Paulo: Companhia das Letras.; 2016).

Buscamos estabelecer, neste escrito, um exercício de síntese dos três eixos acima apontados, com base no conceito de cultura do trabalho voltado para a realidade da pesca artesanal, até para melhor entender a própria categoria cultura marítima, dando continuidade a escritos anteriores (Ramalho, 2017aRamalho, Cristiano Wellington Noberto. (2017a). Embarcadiços do encantamento: trabalho sinônimo de arte, estética e liberdade na pesca marítima. São Cristóvão/Campinas: Editora UFS/Ceres-Unicamp.). Esse conceito, de cultura do trabalho, é desenvolvido por Rodrigues (2005Rodrigues, Jaime. (2005). De costa a costa: escravos, marinheiros e intermediários do tráfico negreiro de Angola ao Rio de Janeiro (1780-1860). São Paulo: Companhia das Letras.; 2016) para desvelar exclusivamente a vida embarcada nas navegações que cruzavam séculos atrás o Atlântico para chegar ao Brasil, entre as quais os navios negreiros. Lembramos que a cultura do trabalho resulta dos costumes, experiências e valores pertencentes a determinada fração de classe social, dando-lhe sentido e identidade ao lhe permitir opor-se e/ou diferenciar-se de outros grupos sociais em termos práticos e simbólicos, especialmente a partir das experiências de vida e, também, do lugar que ocupa na esfera da produção (Thompson, 2002Thompson, Edward P. (2002). Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia da Letras.). Ademais, “homens e mulheres, ao se confrontar com as necessidades de sua existência, formulam também seus próprios valores e criam sua cultura própria, intrínsecos a seu modo de vida” (Thompson, 2001Thompson, Edward P. (2001). As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas: Editora da Unicamp.: 261). Ou seja, as pessoas “experimentam sua experiência como sentimento e lidam com esse sentimento na cultura, como normas, como obrigações familiares e de parentesco, e reciprocidades, como valores ou (através de formas mais elaboradas) na arte ou nas convicções religiosas” (Thompson, 1981Thompson, Edward P. (1981). A miséria da teoria: ou um planetário de erros. Rio de Janeiro: Zahar.: 193). Trazida para o âmbito dos jangadeiros, de sua cultura marítima, essa cultura de trabalho, que podemos classificar como pesqueira, pode ser interpretada enquanto um modo de vida e de trabalho singulares, experienciados nas águas, na sociabilidade embarcada. De modo geral, “trata-se de ir ao encontro dos valores em torno dos quais legitimavam as condições de seu pertencimento social, as representações que os levavam a criar uma identidade particular, as formas com que designavam os ‘outros’” (Silva, 2003Silva, Fernando Teixeira da. (2003). Operários sem patrões: os trabalhadores da cidade de Santos no entreguerras. Campinas: Editora da Unicamp.: 26). Desse modo, cultura do trabalho pesqueira será aqui tratada por cultura marítima, em decorrência das próprias singularidades do que é viver nas (e das) águas marinhas.

A cultura marítima dos jangadeiros também se constituiu, no passado, em interação com as dinâmicas da casa-grande, dos sobrados, da escravidão ou da busca pelo trabalho livre, e, no presente, por ser o jangadeiro um habitante das periferias das grandes cidades e/ou dos pequenos municípios. Se não for o primeiro pescador artesanal marítimo de nosso país, o jangadeiro o é de Pernambuco, sendo a um só tempo pai e filho da cultura marítima pesqueira artesanal. Segundo pesquisadores, “os jangadeiros constituem, talvez, os pescadores artesanais por excelência” (Tassara, 2005Tassara, Helena. (2005). Os vários pescadores artesanais. In: Linsker, Roberto & Tassara, Helena. O mar é uma outra terra. São Paulo: Terra Virgem, p. 29-63., p. 36), sendo “essencialmente pescadores marítimos” (Diegues, Arruda, 2001Diegues, Antonio Carlos & Arruda, Rinaldo. (2001). Saberes tradicionais e biodiversidade no Brasil. Brasília/São Paulo: MMA/Nupaub-USP.: 46).

Essa cultura marítima do jangadeiro associou-se ao que classificamos como cultura de ofício, oriunda das corporações (confrarias e irmandades) que existiram no Brasil até o século XIX oficialmente, já que sua extinção legal foi promulgada pela Constituição do Império, de 1824. Vários aspectos dessa organização social, porém, não se deslocaram dos costumes e práticas dos setores populares, mantendo-se ainda hoje entre pescadores.

Essa cultura de “ofício compreendia todos aqueles que tinham adquirido técnicas peculiares de ocupação mais ou menos difícil, através de um processo específico de educação” (Hobsbawm, 1987Hobsbawm, Eric. (1987). Mundos do trabalho. Rio de Janeiro: Paz e Terra.: 355) inerente ao trabalho, no qual “ao mestre não cabia unicamente a função instrutora, mas o caráter educativo do processo de aprendizagem profissional, individual e social do aprendiz”(Martins, 2008Martins, Mônica de S. N. (2008). Entre a cruz e o capital: as corporações de ofícios no Rio de Janeiro após a chegada da família real (1808-1824). Rio de Janeiro: Garamond.: 83). Entre eles imperava “um senso de dignidade e de autoestima, derivado do trabalho manual difícil, bom e útil à sociedade” (Hobsbawm, 1987Hobsbawm, Eric. (1987). Mundos do trabalho. Rio de Janeiro: Paz e Terra.: 372), que legitimava sua condição de artista (Cunha, 2000Cunha, Lúcia Helena de O. (2000). Tempo natural e tempo mercantil na pesca artesanal. In: Diegues, Antônio Carlos (org.). Imagem das águas. São Paulo: Hucitec, p. 101-110.) e se avivava, aliás, na força societária do verbo fazer, já que “o fazer do artista ressalta o aspecto artesanal de seu trabalho, no sentido de ver sua obra acabada após ter percorrido ele próprio as etapas necessárias à sua realização” (Lopes, 1976Lopes, José Sérgio Leite. (1976). O vapor do diabo. Rio de Janeiro: Paz e Terra.: 36, grifo do autor), ou seja, “o ‘artista mesmo’ é reconhecido por sua prática cotidiana” (Lopes, 1976Lopes, José Sérgio Leite. (1976). O vapor do diabo. Rio de Janeiro: Paz e Terra.: 39).

Por isso, encarna uma “crença justificada de que sua técnica era indispensável à produção; na verdade na crença de que ela era o único fator indispensável à produção” (Hobsbawm, 1987Hobsbawm, Eric. (1987). Mundos do trabalho. Rio de Janeiro: Paz e Terra.: 358, grifo do autor), o que encontramos na tradição de trabalho dos jangadeiros. Tradição essa que entendemos como “reprodução em ação” (Williams, 2008Williams, Raymond. (2008). Cultura. 3 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra.: 184).

Em várias comunidades os pescadores portam um “sentimento de corporação de ofício”, propiciando que a pescaria artesanal seja “entendida como o domínio de um conjunto de conhecimentos e técnicas que permitem ao produtor subsistir e se reproduzir enquanto pescador” (Diegues, 1983Diegues, Antonio Carlos. (1983). Pescadores, camponeses e trabalhadores do mar. São Paulo: Ática.: 197). Portam um pertencimento ao trabalho vivido como uma “cultura de ofício pesqueira” (Ramalho, 2020Ramalho, Cristiano Wellington Noberto. (2020). Mestria da pesca: cultura de um ofício. Etnográfica, 24/2, p. 315-337.: 335). Ser pescador é ter “o controle de como pescar e do que pescar, em suma, o controle da arte da pesca” (Diegues, 1983Diegues, Antonio Carlos. (1983). Pescadores, camponeses e trabalhadores do mar. São Paulo: Ática.: 198), que se efetiva nas águas em pleno exercício da atividade pesqueira; e “esse controle da ‘arte da pesca’ se aprende com ‘os mais velhos’ e com a experiência” (Diegues, 1995Diegues, Antonio Carlos. (1995). Povos e mares. São Paulo: Nupaub-USP.: 35), gerando distinções em relação a outros profissionais e moradores locais. Então, “o pescador aqui aparece como um mestre em seu ofício; possuidor, portanto, de um saber profissional capaz de distingui-lo dos demais moradores. Detém consigo competências adquiridas a partir de uma biografia dedicada exclusivamente à pesca artesanal” (Dias Neto, 2015Dias Neto, José Colaço. (2015). Quanto custa ser pescador artesanal? Rio de Janeiro: Garamond.: 95).

No Brasil, o surgimento da cultura marítima irmanou-se, na pesca, com a cultura de ofício, e o jangadeiro foi seu artífice primevo, sendo a afirmação da condição de pescador artesanal e, assim, a expressão da cultura de ofício marítima pesqueira (sociabilidade embarcada e um tipo de trabalho fundado num complexo saber-fazer de base artesanal), que reverberou de forma hegemônica entre pescadores do mar de fora de Pernambuco até 1970, conectando, dialeticamente, organização produtiva artesã e tradições marítimas na sua sociedade flutuante chamada jangada de alto-mar.

OS JANGADEIROS E A PESCA ARTESANAL

Antes da chegada dos portugueses em 1500, a pesca era praticada junto à costa por diversos grupos indígenas em canoas feitas “com casca de árvore ou cavadas a fogo em um só tronco” (Ribeiro, 1995Ribeiro, Darcy. (1995). O povo brasileiro. 2 ed. São Paulo: Companhia de Letras.: 129) e/ou em jangadas (denominadas peri-peri pelos nativos) fabricadas “com cinco ou seis paus, toros ou rolos de uma madeira bastante leve de fácil flutuar, conhecida como piúba, pau-de-balsa, jangadeira, embira-branca ou pente-de-macaco” (Tassara, 2005Tassara, Helena. (2005). Os vários pescadores artesanais. In: Linsker, Roberto & Tassara, Helena. O mar é uma outra terra. São Paulo: Terra Virgem, p. 29-63.: 40). Não se tinha uma tradição, nem domínio técnico e tecnológico para se alcançar o mar alto, as águas profundas, como foi também o caso dos caetés, que dominaram todo litoral de Pernambuco (Silva, 1998Silva, Luiz Geraldo. (1998). História e meio ambiente: a pequena pesca marítima no Brasil. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, 10/11, p. 219-231.). A grande biodiversidade permitiu aos caetés pescar nos rios, estuários e na beira-mar, já que os pescados (peixes, moluscos e crustáceos) habitavam ou chegavam em fartura até ali e, portanto, não havia necessidade de deslocamento mar adentro (Monteiro, 1992Monteiro, John Manuel. (1992). As populações indígenas do litoral brasileiro no século XVI: transformação e resistência. In: Dias, Jill R. (org.). Brasil nas vésperas do mundo moderno. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, p. 121-136.). Por isso, “foi exatamente na pesca fluvial e lacustre que as influências indígenas chegaram a exercer-se e a perdurar entre nós, quase sem temer competição” (Holanda, 2011Holanda, Sérgio Buarque de. (2011). A pesca em nossa economia colonial. In: Costa, Marcos (org.). Sérgio Buarque de Holanda: escritos coligidos - livro I, 1920-1949. São Paulo: Editora da Unesp/Fundação Perseu Abramo, p. 327-332.: 330), deixando-nos como herança técnicas e tecnologias de capturas, a exemplo dos anzóis de espinhos, jereré, puçás7 7 Além da canoa e da jangada já referidas. e, fundamentalmente, a jangada (ver figura 1).

1
Frans Post, jangada à beira-mar cabo de Santo Agostinho, Pernambuco pintura, 1645 330 x 510mm (Maior, Silva, 1993Maior, Mário Souto & Silva, Leonardo Dantas (orgs.). (1993). A paisagem pernambucana. Recife: Editora Massangana.)

Dedicaram-se os caetés, assim como vários outros grupos indígenas, a outras atividades combinadas à pescaria, porque “estes viviam, principalmente, de caça, pesca e coleta, muitas vezes de forma itinerante, ainda que ocasionalmente tivessem roças de mandioca” (Lago, 2014Lago, Luiz Aranha Corrêa do. (2014). Da escravidão ao trabalho livre: Brasil, 1550-1900. São Paulo: Companhia das Letras.: 30). Antes da chegada dos portugueses não havia relações mercantis (trocas monetárias) desenvolvidas pelos indígenas, mas de escambos, trocas de produtos.

Com o aumento do extermínio, fuga e/ou não adaptação indígena ao trabalho de cunho mercantil e compulsório imposto pela colonização portuguesa, outro sujeito (o africano escravizado) entrou em cena na pesca brasileira, do século XVII em diante (Freyre, 2004Freyre, Gilberto. (2004). Nordeste. 7 ed. São Paulo: Editora Global.; Silva, 2001Silva, Luiz Geraldo. (2001). A faina, a festa e o rito. Campinas: Papirus.), marcando profundamente a cultura pesqueira nordestina ao fazer dela uma cultura marítima via o aparecimento do pescador artesanal.

Ser pescador artesanal é mais do que um ato de pesca, ou seja, ser jangadeiro é mais do que pescar de jangada, é um modo de vida, no qual a pescaria assume centralidade na existência do indivíduo e da sua comunidade. Então, o índio caeté que pescava não deve ser caracterizado, propriamente, como pescador artesanal.

Mas qual o motivo para isso?

O trabalho da pesca artesanal no Brasil, principalmente na região nordestina, surgiu e se desenvolveu (do período colonial ao Império) fundamentado no trabalho negro escravo (ver figura 2 na página seguinte), assim como aconteceu com as demais atividades artesanais (Silva, 2001Silva, Luiz Geraldo. (2001). A faina, a festa e o rito. Campinas: Papirus.). Diferentemente do índio, esse africano escravizado era resultado do tráfico negreiro presente na dinâmica da divisão internacional do trabalho da época, sendo uma mercadoria de importante sustentação da ordem econômica colonial capitalista aqui instalada (monocultivo da cana-de-açúcar e grande propriedade de terra) com seu tipo de acumulação original (Fernandes, 2010Fernandes, Florestan. (2010). Circuito fechado. São Paulo: Editora Globo.; Kowarick, 1994Kowarick, Lúcio. (1994). Trabalho e vadiagem. 2 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra.).

2
Frans Post, pescador negro em jangada de rolo, sem vela, de estilo indígena, com fateixa ao fundo, Recife, pintura, 1640

Tais questões conferiram novos determinantes à pesca, por conectá-la à economia colonial (e mercantil), seja em termos diretos ao trabalhar em prol da casa-grande, da alimentação das senzalas ou dos senhores dos sobrados, seja indiretamente ao disponibilizar alimento e renda para segmentos populacionais que existiam sob a sombra e os espaços deixados pela economia açucareira, seja pelo fato de os pescadores combinarem consumo familiar e comercialização de seus pescados nas ruas de centros urbanos (Olinda e Recife) e/ou entrega de parte do que capturavam aos seus senhores, o que refletia a condição daqueles sujeitos que ingressaram na pescaria.

Muitos negros escravizados eram originários das regiões costeiras africanas e, portanto, alguns já tinham sido socializados na pesca (Rodrigues, 2016Rodrigues, Jaime. (2016). No mar e na terra: história e cultura de trabalhadores escravos e livres. São Paulo: Alameda.), como era o caso dos Cabinda que chegaram em Pernambuco (Silva, 1998Silva, Luiz Geraldo. (1998). História e meio ambiente: a pequena pesca marítima no Brasil. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, 10/11, p. 219-231., 2001Silva, Luiz Geraldo. (2001). A faina, a festa e o rito. Campinas: Papirus.), o que foi a âncora, do século XVII em diante, para que vários deles fossem comprados por conta dessa experiência e incorporados a uma tripulação pesqueira, com o objetivo de gerar renda para seus senhores de maneira mais rápida ao evitar que os mesmos “perdessem tempo” no preparo profissional de seus novos escravos. Sem dúvida, “constitui um fato que algumas das diversas nações ou etnias africanas envolvidas no tráfico atlântico entre os séculos XVII e XIX detinham um arcabouço técnico simples, de pequena escala (armadilhas, redes e embarcações), empregado na pesca marítima e litorânea e na navegação por rios e mar” (Silva, 2001Silva, Luiz Geraldo. (2001). A faina, a festa e o rito. Campinas: Papirus.: 61).

Esse fenômeno deu-se com a obrigação de vínculo desses trabalhadores de cor às corporações ou irmandades negras, devido às normas que regulamentavam o exercício dos ofícios - de modo geral - na época. Cada irmandade tinha como “patrono um santo do calendário” (Vitorino, 2004Vitorino, Artur José Renda. (2004). Os sonhos dos tipógrafos na corte imperial brasileira. In: Batalha, Claudio et al. Culturas de classe. Campinas: Editora da Unicamp, p. 167-203.: 170), recebendo a tutela das Câmaras Municipais (Recife era uma delas),8 8 Essas profissões eram consideradas artesanatos, artes manuais, ofícios. também mediante pagamentos de impostos (Costa, 1954Costa, Francisco Augusto Pereira da. (1954). Anais pernambucanos: 1740-1794. V. VI. Recife: Arquivo Público Estadual.). Assim, distintamente do que se efetivou na Europa, boa parte dos profissionais das corporações era de origem sobretudo negra escrava (Cunha, 2000Cunha, Lúcia Helena de O. (2000). Tempo natural e tempo mercantil na pesca artesanal. In: Diegues, Antônio Carlos (org.). Imagem das águas. São Paulo: Hucitec, p. 101-110.).

Na segunda década do século XVII, constatam-se menções feitas por viajantes da existência, em Pernambuco, de negros escravos na pesca artesanal: “Mas a principal pescaria de que se aproveitam os demais moradores deste Estado é a que mandam fazer por negros em jangadas, os quais nelas saem fora ao mar alto, aonde ao anzol pescam peixes grandes e formosos, com os quais se tornam a recolher ao pôr do sol, e desta sorte se toma muito pescado” (Brandão, 1997Brandão, Ambrósio Fernandes. (1997). Diálogos da grandeza do Brasil. 3 ed. Recife: Editora Massangana/Fundaj.: 184).

Outros europeus, que estiveram no estado, narraram algo sobre as jangadas e/ou os jangadeiros. Em 1816 Tollenare (1978Tollenare, Louis-François. (1978). Notas dominicais. Recife: Secretaria de Educação e Cultura de Pernambuco.: 17) registrou que, quando aqui chegou, “o mar estava coberto de jangadas ou pequenas balsas do país, nas quais os negros pescadores se aventuram com uma audácia assombrosa”. No mesmo século XIX, Gardner (1942Gardner, George. (1942). Viagens no Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional.: 64) abordou a jangada em sua chegada ao Porto do Recife ao identificar que “perto de nós passou grande número de barcos de pesca, de construção originalíssima: chamam-se jangadas e são formadas de quatro ou mais peças de madeiras, atadas umas às outras, com um mastro e uma grande vela, um banco fixo em forma de mocho”.

Nesse contexto, a expansão da pesca artesanal deu-se por meio, de um lado, da proliferação dos escravos de ganho (também chamados de aluguel ou rendeiro), já que havia limites em fiscalizar esse trabalho nos rios, estuários e, fundamentalmente, no mar; e, do outro, pela constituição das corporações de ofício, confrarias ou irmandades.

A inserção do negro escravo no universo produtivo artesanal fez com que muitos mestres artesãos portugueses - chegados aqui - repassassem os ensinamentos de suas artes aos seus escravos aprendizes, no intuito de tornálos mestres o mais rápido possível, ao mesmo tempo em que pretendiam obter renda, extraindo-a do trabalho exercido por seus negros artífices, de acordo com um pagamento estipulado aos próprios escravos de ganho ou de aluguel.

Inúmeros negros eram escravos de aluguel (ou ganho), como relatou o viajante inglês Koster (2002Koster, Henry. (2002). Viagens ao Nordeste do Brasil. V. I. 11 ed. Recife: Editora Massangana.: 633), quando de sua estada em Pernambuco, no início do século XIX. Então, pescadores, marceneiros, sapateiros e outros “pagavam semanalmente aos seus donos um estipêndio proveniente do que ganham n’algumas ocupações feitas sem que estejam sob o olhar do senhor”. Eles tinham a chance de obter dinheiro para comprar suas alforrias, em alguns casos. Era comum, enquanto proprietários de escravos, “dois tipos de senhores. Entre os primeiros encontramos os pequenos proprietários urbanos, que dispunham de poucos artífices. Os outros eram os empreiteiros de médio e grande porte que possuíam quantidades de escravos mais consideráveis” (Mac Cord, 2012Mac Cord, Marcelo. (2012). Artífices da cidadania. Campinas: Editora da Unicamp.: 53).Por meio de dados oficiais da época, Silva (2001)Silva, Luiz Geraldo. (2001). A faina, a festa e o rito. Campinas: Papirus. identificou, nas primeiras décadas do século XIX, uma quantidade maior de mulatos livres e negros alforriados exercendo a pesca em Pernambuco, e um dos prováveis motivos era a oportunidade de terem conseguido pagar suas cartas de alforria, dos filhos e esposas, sendo escravos de ganho. Isso não era uma trilha fácil, mas possível. Vale lembrar o que aludiu Koster (2002Koster, Henry. (2002). Viagens ao Nordeste do Brasil. Vol. II. 11 ed. Recife: Editora Massangana.: 380): “um pescador obtivera a manumissão de sua mulher porque, mesmo ele continuando cativo, desejava que os futuros filhos nascessem libertos, e se mantinha no propósito de adquirir posteriormente sua liberdade e a dos outros filhinhos”.

Em 1844 um viajante norte-americano embarcou em uma jangada conduzida por negros alforriados, descrevendo a perícia deles: “Os nossos negros jangadeiros mostravam-se muito polidos e quietos durante a viagem. Eram ambos negros forros e moradores de Itamaracá. Mostravam-se conhecedores de seus misteres e diligentes em executá-los (Kidder, 1943Kidder, Daniel. (1943). Reminiscência de viagens e permanência no Brasil (províncias do Norte). São Paulo: Livraria Martins.: 113).

A situação desses escravos de aluguel ensejava “um emaranhado de possibilidades de ascensão social negadas ao assenzalado” (Barbosa, 2008Barbosa, Alexandre de Freitas. (2008). A formação do mercado de trabalho no Brasil. São Paulo: Alameda.: 73). De fato, “a subgrupos de mecânicos vindos do Reino ou da Europa foram-se juntando muitos mestiços, hábeis em ofícios, peritos em caligrafia e em outras artes burocráticas aprendidas com os brancos e que, desde os primeiros dias de colonização, começaram a surgir na sombra das casas-grandes e dos sobrados patriarcais e, principalmente - naqueles primeiros dias - dos colégios de padres” (Freyre, 2003Freyre, Gilberto. (2003). Sobrados & mucambos. 14 ed. São Paulo: Editora Global.: 493).9 9 Ao lado das pescas desenvolvidas por negros, houve a de brancos pobres, que procuraram praias afastadas dos meios urbanos (Cabo, Ipojuca, Itamaracá, São José da Coroa Grande, Tamandaré), a fim de efetivar sua arte, bem como para fugir do estigma de exercer o mesmo ofício que os trabalhadores de cor.

Dependentes do mundo pesqueiro, profissões e atividades econômicas floresceram numa espécie de “microeconomia dos pobres” (Castellucci Júnior, 2009: 134). Quanto mais a pesca artesanal ocupava espaço e tempo na vida das pessoas, apareceram sujeitos sociais especializados e dedicados, exclusivamente, ao fabrico e à confecção de embarcações e armadilhas para pescar, tornando-se artesãos respeitados pela qualidade dos seus trabalhos.

E isso também ocorreu com o comércio dos pescados em cidades como Recife, Olinda e Salvador, que era fartamente ocupado pelas mulheres negras (libertas ou escravas de ganho) chamadas de ganhadeiras no século XIX. Castellucci Junior (2009Castellucci Junior, Wellington. (2009). Caçadores de baleia: armações, arpoadores, atravessadores e outros sujeitos envolvidos nos negócios do cetáceo no Brasil. São Paulo: Annablume.: 139, grifo do autor) mencionou que “pelo respeito desfrutado no seio da gente miúda, e pelas repercussões de suas ações nas vilas e cidades do Brasil, as ganhadeiras foram eternizadas pelo olhar sensível de cronistas e viajantes de época, os quais viram, em suas atividades, um tipo de comércio, no mínimo, inusitado [...] elas cumpriam um importante papel na distribuição de subsistência, sobretudo, o pescado”.

Percebe-se que o pescador artesanal emerge em sociedades cuja produção, além de ser um valor de uso, torna-se cada vez mais uma mercadoria (e até renda para alguns senhores), não se destinando somente à subsistência. Assim, sua faina voltava-se “para dois horizontes. De um lado, para o consumo doméstico e, de outro, para a comercialização. Esse horizonte tende a se alargar à medida que se criam e/ou se ampliam os mercados já existentes para o produto da pesca” (Furtado, 1993Furtado, Lourdes Gonçalves. (1993). Pescadores do rio Amazonas. Belém: MPEG.: 335), devido ao fato de muitos residirem “na própria cidade ou em suas proximidades” (Diegues, 1983Diegues, Antonio Carlos. (1983). Pescadores, camponeses e trabalhadores do mar. São Paulo: Ática.: 221) ou em face das mudanças vividas pelas áreas rurais. No geral, o que se apresentou ao horizonte desses jangadeiros e que conferiu sentido ao seu trabalho foi alcançar a alforria (sua, da esposa e filhos), anunciando que essa cultura marítima “não é somente uma herança; é também um projeto” (Houtondji apud Sahlins, 1997Sahlins, Marshall. (1997). O “pessimismo sentimental” e a experiência etnográfica: porque a cultura não é um “objeto” em via de extinção (parte II). Mana, Rio de Janeiro, 3/1, p. 103-150.: 131).

A SOCIEDADE FLUTUANTE

O que representou o aparecimento dos jangadeiros em termos socioculturais e econômicos? Sobre isso é importante voltarmos ao século XVII, pois foi nesse período que a jangada se sofisticou, especialmente devido ao fato de o pescado ter ampliado sua participação na dieta alimentar de um crescente mercado consumidor urbano (Olinda e Recife), bem como das áreas rurais (habitantes dos engenhos de açúcar). Uma das provas disso foi a criação, em 1648, de um mercado público exclusivo para a venda de pescados no Recife na fase de ocupação holandesa (1630-1654).10 10 Em que pese sua influência na urbanização do Recife e Olinda, do ponto de vista da organização do trabalho pesqueiro, a época holandesa não trouxe novidades.

O aumento populacional e a urbanização produziram a necessidade de navegar mais distante e passar mais tempo no mar, o que se deu entre o final do século XVII e o início do XIX (Cascudo, 2002Cascudo, Luís da Câmara. (2002). Jangada. São Paulo: Global Editora.; Ramalho, 2017aRamalho, Cristiano Wellington Noberto. (2017a). Embarcadiços do encantamento: trabalho sinônimo de arte, estética e liberdade na pesca marítima. São Cristóvão/Campinas: Editora UFS/Ceres-Unicamp.). No tempo da “exclusividade” do modelo da pescaria e da jangada indígena, a organização do trabalho não sofreu grandes alterações, visto que o menor porte do equipamento de navegação, que poderia ser conduzido por, no máximo, dois homens explicitava as demandas concentradas na alimentação das populações nativas; nesse caso, a venda ocupava valor secundário.

O crescimento da demanda alimentar e comercial levou pescadores a inserir nas jangadas elementos da pesca lusitana, quando introduziram a vela latina, o banco do mestre, o leme, a fateixa,11 11 Armação de madeira em forma de X, de cima a baixo, com uma pedra grande e redonda (entre três e cinco quilos em média) no meio, que é pressionada pelas madeiras, funcionando como âncora. o anzol de ferro, para substituir o de espinha, ocorrendo, ademais, um aumento no tamanho da embarcação (capacidade maior para levar pessoas, de captura e armazenamento), fazendo nascer a jangada de alto com sua vida social flutuante.

Concomitantemente, para que tais componentes pudessem ser utilizados, ocorreu a difusão da arte de pescaria graças ao aparecimento dos misteres pesqueiros, os quais permitiram o surgimento de profissionais vinculados exclusivamente ao setor (homens livres ou escravos, na maioria, de ganho).

Deu-se, com isso, o nascimento de uma cultura marítima pertencente a uma cultura de ofício, que se apoiou no aparecimento e na permanência do mestre de pesca, e em maior divisão social do trabalho no barco. Isto é, o jangadeiro foi o primeiro e o principal expoente - durante séculos - da cultura de ofício marítima, que fez da jangada um instrumento “útil para vários misteres” (Cascudo, 2002Cascudo, Luís da Câmara. (2002). Jangada. São Paulo: Global Editora.: 116).

A incorporação de tecnologias lusitanas e de técnicas africanas projetou- se também articulada à permanência dos saberes indígenas, fazendo da jangada de alto e dos instrumentos de capturas entes miscigenados, “fruto de várias adaptações introduzidas pelos europeus e africanos” (Diegues, Arruda, 2001Diegues, Antonio Carlos & Arruda, Rinaldo. (2001). Saberes tradicionais e biodiversidade no Brasil. Brasília/São Paulo: MMA/Nupaub-USP.: 47), tendo por premissa o que já havia sido realizado pelos índios caetés. Então, a cultura é troca material e simbólica (Sahlins, 1997Sahlins, Marshall. (1997). O “pessimismo sentimental” e a experiência etnográfica: porque a cultura não é um “objeto” em via de extinção (parte II). Mana, Rio de Janeiro, 3/1, p. 103-150.). A instalação, nas jangadas, do banco de mestre (banco de governo em algumas localidades) conferiu precisão ao trabalho marítimo e ajudou a dar direção mais proveitosa a tal instrumento produtivo, pelo uso do leme (ou remo de governo) situado na popa. Isso simbolizou a instauração de uma hierarquia social firmada no saber- fazer, um domínio mais rigoroso e um exercício sofisticado constitutivo e constituído de uma cultura de ofício pesqueira marítima, cuja tradução manifestou suas marcas, ora na presença, a partir daí em diante, do jangadeiro mestre no comando do barco, ora na cultura material que renovou essa embarcação de vida secular com a chegada do banco do mestre, da vela triangular, do leme, dos papéis sociais no barco, de um saber-fazer peculiar etc., estabelecendo uma simbiose entre jangadeiros e jangada de alto (figura 3).

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Jangada de alto com vela latina, banco de mestre, leme e âncora, sendo navegada por negros (proeiro e mestre) início do século XIX, Pernambuco

Entendemos que essa cultura marítima já estava completamente consolidada no século XVIII; e foi ela que chegou quase inalterada até as décadas de 1960 e 1970.

Aguiar (1965Aguiar, Severino. (1965). Mudanças em um grupo de jangadeiros de Pernambuco. Recife: Imprensa Universitária.: 83) constatou, em 1960, que “a mesma jangada feita com toros de madeira, utilizada no século XVI pelos caboclos que habitavam o litoral do Nordeste na época do descobrimento, continua a ser, em pleno século XX (quando o homem prepara-se para ir à lua), a principal navegação dos pescadores da vila” praieira de Pontas de Pedra, Goiana, litoral norte de Pernambuco. Nessa época, na costa sul pernambucana, a jangada começava a dar lugar aos barcos motorizados (Ramalho, 2006Ramalho, Cristiano Wellington Noberto. (2006). “Ah, esse povo do mar!”: um estudo sobre trabalho e pertencimento na pesca artesanal pernambucana. São Paulo/Campinas: Editora Polis/Ceres-Unicamp.; 2017aRamalho, Cristiano Wellington Noberto. (2017a). Embarcadiços do encantamento: trabalho sinônimo de arte, estética e liberdade na pesca marítima. São Cristóvão/Campinas: Editora UFS/Ceres-Unicamp.), acontecendo fenômeno similar em outras praias do Nordeste, como Alagoas (Forman, 1970Forman, Shepard. (1970). The raft fishermen. Indiana: University Press.) e Rio Grande do Norte (Galvão, 1967Galvão, Hélio. (1967). Cartas da praia. Rio de Janeiro: Edições de Val.: 20), porque “o bote-de-vela tomou-lhe o lugar [das jangadas] e o bote motorizado, com motor a óleo diesel, vai gradativamente substituindo o de vela”.

Sobre essa mudança coletamos inúmeros relatos dos jangadeiros de São José da Coroa Grande, indicando que “foi por volta dos anos 1970 que as jangadas tiveram que dividir o mar com os botes” e que depois “passaram a perder a concorrência pros barcos a motor, mas sem sumir”.

Essa longa permanência da jangada parece ser aspecto universal nas embarcações, o que mostra certa estabilidade nas dinâmicas de trabalho e do modo de vida marítimo em muitas regiões. Braudel (1988Braudel, Fernand. (1998). Memorias del Mediterráneo. Madrid: Cátedra.: 41-42) argumentou que “é espantoso ver ainda hoje, numa rua de Messina ou nos arredores de uma pequena cidade grega, nas ilhas de Chio, Lesbos, em Samoa, na Turquia, ou ainda em Djerba, barcos em construção que são surpreendentemente semelhantes aos barcos gregos e romanos tal como nos são reconstituídos pela iconografia antiga e pela arqueologia submarina”.

No caso da rede e linha, pela facilidade de acesso à matéria-prima e pelas técnicas aprendidas com os índios caetés e outros grupos para suas feituras e seus usos, de maneira similar ao processo da jangada, houve um encontro entre a tradição portuguesa e o estilo nativo de fabrico, que foi manejado e desenvolvido pelos negros com maestria. No passado, linhas e redes eram feitas do fio da macaíba, ticum, principalmente, e do algodão (Costa, 1951Costa, Francisco Augusto Pereira da. (1951). Anais pernambucanos: 1493-1590. V. I. Recife: Arquivo Público Estadual., 1958Costa, Francisco Augusto Pereira da. (1958). Anais pernambucanos: 1795-1817. V. VII. Recife: Arquivo Público Estadual.). O ticum foi material usado por populações indígenas e, depois, por inúmeros pescadores brasileiros (Mussolini, 1980Mussolini, Gioconda. (1980). Ensaios de antropologia indígena e caiçara. Rio de Janeiro: Paz e Terra.). Em Pernambuco, seu uso perdurou até os anos 1970, de acordo com, praticamente, todos os jangadeiros entrevistados: “a gente usou ticum muito”, “acho que findou seu uso pra pertinho de 1980, mas alguns tinham parado antes”, “já na copa de 1978 eu não usava mais”.

Assim como os instrumentos, as funções sociais do trabalho pesqueiro sofreram poucas mudanças, principalmente quando comparamos os relatos colhidos dos jangadeiros (suas histórias de vida) e a observação direta (quando embarcamos) com os escritos dos viajantes do século XIX (Koster, 2004; Kidder, 1943Kidder, Daniel. (1943). Reminiscência de viagens e permanência no Brasil (províncias do Norte). São Paulo: Livraria Martins.; Tollenare, 1978Tollenare, Louis-François. (1978). Notas dominicais. Recife: Secretaria de Educação e Cultura de Pernambuco.), estudos acadêmicos sobre essa aludida época (Araújo, 2007Araújo, Rita de Cássia Barboza. (2007). As praias e os dias. Recife: Fundação de Cultura da Cidade do Recife.; Cascudo, 1957Cascudo, Luís da Câmara. (1957). Jangadeiros. Rio de Janeiro: SAI.; Silva, 2001Silva, Luiz Geraldo. (2001). A faina, a festa e o rito. Campinas: Papirus.) e imagens históricas (figuras 3, 4 e 5).

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Pescadores em jangada, 1905, Recife, Pernambuco estrutura igual à da que apareceu no século XVII Arquivo Josebias Bandeira

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Chegada de jangada do mar, Pernambuco, 1940 Arquivo Josebias Bandeira

Além do mestre, os proeiros12 12 Jangadeiro que fica na proa da embarcação. (o da ponta e o do centro) e, em alguns casos, o aprendiz (jovem que começa sua lide) surgiram em finais do século XVII, como já foi apontado. Essa equipe de pescaria e sua organização passaram a ser definidas como companha ou parceria pelas comunidades locais; e na divisão das suas atribuições, o jangadeiro que ocupava a função de proeiro da ponta caracterizava-se pela sofisticada capacidade de externar seu saber e fazer em nível mais qualificado que o do centro. Por isso, localizava-se na ponta do barco, lançando e retirando as redes e as pegando com o bicheiro (uma vara de mais de dois metros com um gancho na ponta) e demais armadilhas na hora em que a jangada - muitas vezes - estava em pleno movimento, sendo auxiliado pelo proeiro do centro (ambos responsáveis pelos cuidados com a vela durante a navegação: molhá-la, por exemplo). Já o aprendiz efetivava ações mais simples de apoio ao trabalho dos demais, recebendo suas orientações e a do mestre. Tais aspectos sobreviveram na pesca, de acordo com que observamos e também colhemos nas entrevistas em São José da Coroa Grande (figuras 4, 5 e 6).

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Jangadeiros de alto-mar (mestre no governo, provável jovem aprendiz e proeiro de ponta), Olinda, Pernambuco, 1955

Na hierarquia fundada pelo conhecimento, o proeiro da ponta é a segunda autoridade no barco após o mestre, fato que existe na pescaria de alto-mar desde a segunda metade do século XVII (Cascudo, 1957Cascudo, Luís da Câmara. (1957). Jangadeiros. Rio de Janeiro: SAI.). Em 1940 no Ceará, por exemplo, Abreu (2012Abreu, Berenice. (2012). Jangadeiros. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.: 41, grifos da autora) encontrou uma estrutura parecida de companha, em que “os jangadeiros normalmente saíam para pescar em grupo de quatro, denominados, a partir de suas funções na jangada, de mestre, proeiro, rebique e bico de proa”.

Em São José da Coroa Grande, segundo os jangadeiros, esses personagens, com suas funções e hierarquias, “foram comuns” e “ainda são comuns até hoje não só nas jangadas, mas nos botes também. Os botes trouxeram isso das jangadas, depois dos anos de 1970”. De acordo com seu Inácio, jangadeiro aposentado, “com praticamente todo jangadeiro foi o seguinte: menino entra como aprendiz levado pelo seu pai, um tio mestre, e, se mostrasse capacidade, virava, depois de uns tempos, proeiro, inclusive de ponta. Alguns chegavam a mestrar, devido à sabedoria desenvolvida na vida do mar, de manejar a jangada e saber pescar direitinho. Aí eu peguei isso e dei prosseguimento, assim como foi com meu pai e avô”. Cada etapa e a socialização no mundo aquático são, para seu Inácio, “a reunião de dois itens: entender do mar e dominar bem o seu serviço, o seu ofício, pois, se o camarada não souber essas coisas, não vive em cima da jangada em alto-mar. Por isso, precisamos do mestre”.

Esse elo familiar, seu processo de socialização e a presença do mestre jangadeiro anunciam mecanismos de certa estabilidade social, com sua transmissão de valores e normas típicas dessa cultura de ofício marítima que ultrapassou séculos.

A entrada e a hegemonia do mestre jangadeiro representaram, ao mesmo tempo, a incorporação da arte de ser pescador em jangada, a conquista de espaços mais amplos no mar e o predomínio de uma técnica mais rica de manejo e desvelamento dos territórios marinhos. De fato, “com essas e outras modificações, o tempo de permanência no mar se prolongou para muito além da jornada primitiva - que se iniciava ao amanhecer e findava ao pôr do sol -, possibilitando um aumento no volume do pescado” (Araújo, 2007Araújo, Rita de Cássia Barboza. (2007). As praias e os dias. Recife: Fundação de Cultura da Cidade do Recife.: 46). Dessa maneira, o pescador negro (escravo ou forro) “saía a pescar em alto-mar, aonde os índios ainda não havia ido” (Silva, 1988Silva, Luiz Geraldo. (1988). Os pescadores na história do Brasil. V. 1. Petrópolis: Vozes.: 31), o que fez emergir, assim, um modo de vida pesqueiro de mar alto, uma cultura marítima que agregava em si uma cultura de trabalho de ofício com sua sociabilidade embarcada que passou a ficar, de agora em diante, vários dias em águas profundas (até cinco dias).

Para o mestre de jangada seu José, “eu passava uns quatro dias no mar, na jangada de alto. Sabe o que é isso? você vive n’outro mundo, rapaz, porque a jangada é outro mundo. Não tem como: o mar faz você”. Desnuda-se, aqui, uma dialética insuprimível entre o jangadeiro e o mar, sendo a construção social da cultura de ofício marítima pesqueira influenciada pela natureza e pela vida embarcada, enquanto marcas e centros da sua existência.

O distanciamento do continente significou a criação de um mundo de relações socioculturais e econômicas peculiares ao universo marinho; e uma dessas especificidades tem a ver com o tempo do jangadeiro, ou seja, o tempo do pescador artesanal forjou-se enquanto um tempo ecossocial por encontrarse em fina relação com o tempo da natureza. Sem dúvida, os jangadeiros e as outras expressões da condição de ser pescador artesanal sempre seguiram as dinâmicas oceânicas, em que “os ritmos temporais presentes na pesca artesanal implicam entender a forma como os homens se inter-relacionam, entre si, e, especificamente, com a natureza marinha, como um ecossistema próprio” (Cunha, 2000Cunha, Lúcia Helena de O. (2000). Tempo natural e tempo mercantil na pesca artesanal. In: Diegues, Antônio Carlos (org.). Imagem das águas. São Paulo: Hucitec, p. 101-110.: 107). Isso permitiu não só a produção e reprodução de saberes e fazeres singulares no mar, mas a criação de bairros ou comunidades - em grandes cidades ou em pequenos e médios municípios13 13 Dentro dessas características, em Pernambuco há as seguintes localidades: Pina, Brasília Teimosa e Ilha de Deus, em Recife; Amaro Branco, em Olinda; Canto e Espinheiro, em Itapissuma; Levada, Porto e Pedra, em Rio Formoso; Abreu do Una e Várzea do Una em São José da Coroa Grande. - com dinâmicas próprias de horários ao ser habitados por comunidades pesqueiras. De acordo com o jangadeiro Amaro, “por conta da nossa vida depender do mar, tudo é diferente pra nós, da hora de dormir e de acordar; do trabalhar à comida e ao lazer. O mar faz a gente diferente das outras pessoas por essas bandas, em um tudo”.

A combinação dos aspectos aqui discutidos é importante para desvelar o fato de que a pesca artesanal havia se tornado um tipo de trabalho em que a pessoa passou “a viver exclusiva ou quase exclusivamente da sua profissão” (Diegues, 1983Diegues, Antonio Carlos. (1983). Pescadores, camponeses e trabalhadores do mar. São Paulo: Ática.: 155), incorporando um cabedal de conhecimentos típicos do mar, com capacidade de mapear os locais mais piscosos e seguros para navegar (Barbosa, Devos, 2017Barbosa, Gabriel Coutinho & Devos, Rafael. (2017). Paralaxe e “marcação por terra”: técnicas de navegação entre jangadeiros na Paraíba e Rio Grande do Norte (Brasil). Mana, 23/3, p. 343-372.; Cascudo, 2002Cascudo, Luís da Câmara. (2002). Jangada. São Paulo: Global Editora.; Maldonado, 1993Maldonado, Simone. (1993). Mestre & mares. São Paulo: Annablume.; Ramalho, 2006Ramalho, Cristiano Wellington Noberto. (2006). “Ah, esse povo do mar!”: um estudo sobre trabalho e pertencimento na pesca artesanal pernambucana. São Paulo/Campinas: Editora Polis/Ceres-Unicamp.). Não surge ao acaso a fala de seu Manoel,14 14 Nome fictício a pedido do entrevistado. jangadeiro aposentado de São José da Coroa Grande: “não há um ofício mais desafiado que o nosso, porque atuamos no mar, e o mar não é coisa qualquer. Ele muda todo tempo e é quase infinito. Temos que decifrar toda hora ele, o que é coisa de muita sabedoria e se traz de família”.

Isso fez com que o ato de pescar - além de ser transmitido no ouvir, ver, sentir, saber, fazer e refazer geracionalmente - passasse a ser definitivamente um modo de vida e trabalho peculiar, em que o jangadeiro é a base da cultura de ofício marítima, do século XVII até o tempo presente.

O surgimento da profissão de pescador, com seu cabedal de conhecimento singular, ressoou na partilha dos frutos do trabalho por meio do quinhão, que é algo característico do regime de companha existente na pesca artesanal secularmente. O quinhão caracteriza-se por ser uma forma de organização e divisão do resultado do trabalho com base na cooperação simples, mesclando trabalho familiar e elos de compadrio e vizinhança, entre os tripulantes de uma mesma embarcação. Foi trazido da pesca artesanal portuguesa e se difundiu no Brasil (Diegues, 1983Diegues, Antonio Carlos. (1983). Pescadores, camponeses e trabalhadores do mar. São Paulo: Ática.). É ainda muito presente na pesca portuguesa (Amorim, 2003Amorim, Inês. (2003). Técnicas de pesca na costa portuguesa: melhorar ou inventar? um percurso de investigação. Zainak, 25, p. 349-368.), sendo, em Pernambuco, o modelo hegemônico até hoje.

Duas entrevistas feitas com jangadeiros15 15 Um tinha 84 anos de idade, em fevereiro de 2015, e o outro 82 anos em janeiro de 2015 (ambos faleceram entre o final desse ano e início de 2016). Eles ingressaram na pesca na década de 1940. são emblemáticas por recuperar componentes históricos sobre o quinhão. Por meio de histórias contadas a eles, quando crianças, por seus ancestrais (um avô e outro tio-avô) e pescadores mais velhos da região, relataram acontecimentos sobre a pesca durante e pós-escravatura, focalizando o quinhão: (a) “os cativos”, como chamavam os escravos, separavam o que seria pago aos seus senhores, e o restante era dividido igualmente entre os tripulantes (podiam ser negros do mesmo proprietário ou não), incluindo a parte do barco, isto é, se pescassem na jangada um mestre e dois proeiros e se fossem capturados 250 quilos de peixes, “dividia-se em cinco partes o vendido, do pagamento do senhor, da manutenção da embarcação e das armadilhas e o restante era divido pelos três que pescaram”; (b) por existir jangadeiros com senhores diferentes, não deixava de haver uma solidariedade entre os homens de uma mesma jangada, para efetivar o pagamento coletivamente por meio do quinhão, o que fazia com que a parte desses senhores de escravo fosse garantida coletivamente; e (c) quando não se era escravo, o pescado era dividido de maneira igualitária, contando com a parte destinada ao instrumento de trabalho. Este último sistema, “é adotado até hoje por todos nós jangadeiros”, “tudo veio dos jangadeiros”, o que é facilitado, segundo eles, pela condição “familiar que existia na equipe de pescaria e que continua existindo hoje também nos de bote” (figuras 7 to 8).

7
Botes de pesca na praia de São José da Coroa Grande, Pernambuco, jan. 2018

8
Jangada indo para o mar, São José da Coroa Grande, Pernambuco, nov. 2008

O quinhão e a companha, portanto, assentam-se, desde tempos imemoriais, no parentesco, em laços de compadrio, “sem vínculos empregatícios entre as tripulações e os mestres” (Maldonado, 1986Maldonado, Simone. (1986). Pescadores do mar. São Paulo: Ática.: 15), em que estes últimos sempre cumpriram papel de destaque no desenvolvimento da equipe que pesca, na permanência do quinhão e na transmissão do saber-fazer pesqueiro sendo “o fundamento da organização […] e a distribuição do conhecimento e da informação” (Maldonado, 1993Maldonado, Simone. (1993). Mestre & mares. São Paulo: Annablume.: 135).

Não se está aqui mencionando a família nuclear trabalhando no barco (esposa e filhas), mas laços familiares que envolvem apenas os homens (irmãos, pai, tios, primos, avôs) e aqueles que não são apenas parentes de sangue (compadres, padrinhos, amigos). Essa questão feminina na pesca de alto-mar, aliás, situa- se também no universo simbólico, sendo componente da cultura de ofício marítima pesqueira. Historicamente, ir para o mar de fora tornou-se um ato apenas masculino em diversas localidades e países. De modo geral, os marítimos compartilham o sentimento de que as mulheres, se embarcadas, não trariam sorte.

Não é à toa que duas importantes estudiosas das socioantropologia da pesca no Brasil ressaltaram essa questão. Maldonado (1986Maldonado, Simone. (1986). Pescadores do mar. São Paulo: Ática.: 21) afirmou: “não conheço casos em que as mulheres participem junto com os homens da pesca de alto”; e Miller (2012Miller, Francisca de Souza. (2012). Pescadores e coletoras de Patané/Camocim. Natal: Editora da UFRN.: 72), com base em depoimentos de pescadores e pescadoras, desvelou “que o sangue menstrual é perigoso e que pode trazer azar na pescaria”, caso as mulheres embarquem.

De acordo com os jangadeiros pernambucanos, as mulheres não trariam sorte no mar porque “podem afastar os peixes e a água pode ficar embravecida”; levariam, segundo alguns, “Iemanjá a ficar triste e até revoltada devido ao ciúme”; seriam delicadas para as lidas marinhas, ao “não aguentarem o rojão”; poderiam despertar intrigas entre os embarcados; ou precisam ficar em terra cuidando dos filhos e da casa, pois é “melhor assim com cada um no seu lugar”.

Essa simbologia passa, além do machismo, pela presença de seres sobrenaturais, como o Velho do Mangue, a Mãe-d’água e o João-Galafoice. São seres que devem ser respeitados e nunca ofendidos. O mesmo se dá com o nome de pessoas mortas. Impropérios no mar também são tabus para alguns, porque “vários não gostam que se diga palavrões ou que se cuspa no mar”. “Sua criação [a do mar], embora seja um ato de Deus”, pode ser influenciada pelas “vontades do diabo, assim como acontece com as pessoas”, de acordo com os jangadeiros. Então, “tem que se ter respeito mesmo”.

Uma das justificativas históricas para isso seria o sentimento de perigo inerente ao mar, o medo do desconhecido, de criaturas sobrenaturais e da morte (Corbin, 1989Corbin, Alain. (1989). O território do vazio. São Paulo: Companhia das Letras.; Delumeau, 1989Delumeau, Jean. (1989). História do medo no Ocidente (1300-1800). São Paulo: Companhia das Letras.) tão presentes nas culturas marítimas pelo mundo.

A história das comunidades pesqueiras no Brasil associa-se à existência de divindades protetoras, ex-votos, devoção a santos e santas, procissões marítimas (São Pedro, São Gonçalo do Amarante, Nossa Senhora da Boa Viagem), crenças e interdições, na condição de aspectos a respeitar em prol do sucesso da pescaria e/ou da sobrevivência dos pescadores nos mares (Diegues, 2004Diegues, Antonio Carlos. (2004). A pesca construindo sociedades. São Paulo: Nupaub-USP.). Esse apego ao sagrado, aliás, acontece também em outros lugares, a exemplo dos pescadores calabreses e sicilianos, na Itália, visto que “isolado no mar, distante da terra que nutre e na qual o corpo encontra sepultura, o pescador não tem outro meio a não ser a ordem divina, os santos protetores e a Virgem Maria” (Collet, 1993Collet, Serge. (1993). Uomini e pesce. Milano: Giuseppe Maimone Ed.: 145).

Além dessas questões pertencentes ao universo do imaginário das águas, há outros aspectos que devem ser considerados no âmbito imaterial. Freyre (2004Freyre, Gilberto. (2004). Nordeste. 7 ed. São Paulo: Editora Global.: 67) observou que “o jangadeiro negro remava cantando dentro de um ritmo”, conferindo, dessa maneira, uma dimensão lúdica ao seu trabalho e estabelecendo uma inseparável conexão entre trabalho, arte e lazer. Nas praias pernambucanas, a ciranda tornou-se uma manifestação típica dessas comunidades; e no Rio Grande do Norte, para o jangadeiro, “o verdadeiro divertimento é o coco de roda” (Cascudo, 1957Cascudo, Luís da Câmara. (1957). Jangadeiros. Rio de Janeiro: SAI.: 33).

O conjunto dessas simbologias demarcou um modo de vida que se adaptou ao mundo aquático, construindo-o social, econômica e culturalmente. Tudo isso foi produzindo e sendo produzido por uma cultura de ofício marítima pesqueira, tendo na vida embarcada o seu centro simbólico e produtivo, uma forma de ser, estar, sentir e ver o mundo (sua vida, a de seu grupo e a sua relação com a natureza aquática). Assim, esse centro referencial, a sociedade flutuante da jangada, aviva-se quando a vida nas águas se reproduz no decorrer do tempo, (re)criando práticas, costumes, simbologias e maneiras de trabalho únicas de um modo de vida bastante singular, uma tradição marítima e de ofício que alcança vários séculos.

CONCLUSÃO

As transformações vividas pela jangada, de mar de dentro para mar de fora, e sua permanência como principal embarcação pesqueira artesanal marítima durante séculos representou a formação, expansão e continuidade de um modo de vida e de um tipo de trabalho que incorporam tradições (culturas marítima e de ofício) para construir dinâmicas societárias próprias, únicas.

Da cultura marítima, o jangadeiro herdou e (re)elaborou uma centralidade existencial apoiada no mar, cujo fundamento foi a sociedade flutuante da jangada. Assim, formas de ser e determinações de existência, o afastamento da terra durante dias e as representações sociais compuseram cotidianos singulares, uma cultura do trabalho pesqueira de alto-mar. Já da cultura de ofício, a presença dos mestres, a influência do sentimento de corporação, o trabalho baseado num profundo conhecimento e conexão entre saber e fazer também se apresentaram no mundo dos jangadeiros, marcado por maritimidade específica.

Tudo isso se assentou e floresceu por meio de conexões entre tradições étnicas e culturais diferentes. Se os elementos indígenas caetés foram a sua base, os portugueses e, fundamentalmente, os africanos representaram o repertório de consolidação e desenvolvimento da cultura de ofício marítima pesqueira do jangadeiro, que foi e é tão singular em relação a outras pescarias artesanais que proliferaram em nosso país.

Essa cultura de ofício marítima pesqueira ganha sentido nas histórias de vida dos jangadeiros, que expressam a força do mar, a profunda habilidade presente no trabalho pesqueiro, o imaginário, a organização produtiva, a mestrança, o quinhão e, principalmente, a arte de manejar a jangada no oceano durantes dias. Apesar dos dados encontrados e das considerações feitas no decorrer deste artigo, é, contudo, necessário compreender, em pesquisas futuras,16 16 Acerca disso, estamos desenvolvendo a pesquisa “A cultura de ofício marítima pesqueira dos jangadeiros nordestinos” com apoio do CNPq, por meio de Bolsa de Produtividade (2020-2023). como foi o impacto da chegada dos barcos motorizados na pesca artesanal, na vida dos jangadeiros, em seu trabalho e para as jangadas, seja para os que abandonaram essa embarcação secular para ingressar nos botes, seja para desvelar as circunstâncias de continuidade dos jangadeiros e das jangadas após a década de 1970 até o tempo presente.

NOTAS

  • *
    Agradecemos as valiosas sugestões feitas pelos(as) pareceristas deste artigo e o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), por meio da Bolsa de Produtividade, e da Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia do Estado de Pernambuco (Facepe) para a realização de pesquisas que deram origem a este escrito.
  • 1
    Sergipe, embora esteja entre Alagoas e a Bahia, não tem jangadeiros.
  • 2
    Para os jangadeiros, pescar em alto-mar tem o mesmo significado que pescar no mar de fora, mar adentro ou mar alto, o que representa pescar após os arrecifes. Distingue-se da pesca do mar de dentro, que é realizada em rios, estuários, mangues e na beira-mar.
  • 3
    O Centro de Pesquisa e Gestão de Recursos Pesqueiros do Litoral Nordeste (Cepene) era ligado ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) até a criação do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) em 2007.
  • 4
    Não utilizamos fotografias históricas dos jangadeiros de alto-mar de São José da Coroa Grande por dois motivos: dificuldades de conseguir acesso a elas em acervos públicos; e falta de autorização para torná-las públicas por parte das famílias de dois fotógrafos amadores. Para compensar essa falta, mostramos fotos antigas de jangadeiros e jangadas de outras praias pernambucanas para os jangadeiros de São José da Coroa Grande (todas fazem parte deste artigo), sendo unânime a afirmativa, por parte de nossos entrevistados, de que elas eram similares ao que existia na localidade (“sem tirar e nem pôr”).
  • 5
    Encerramos em 12 jangadeiros pelo fato de perceber que as respostas começaram a repetir-se. Na primeira fase da pesquisa foram sete entrevistados e, na segunda etapa, cinco deles voltaram a ser ouvidos (dois tinham falecido) e mais cinco foram adicionados.
  • 6
    Barco artesanal motorizado que conta com cabine e possui entre oito e 12 metros de comprimento.
  • 7
    Além da canoa e da jangada já referidas.
  • 8
    Essas profissões eram consideradas artesanatos, artes manuais, ofícios.
  • 9
    Ao lado das pescas desenvolvidas por negros, houve a de brancos pobres, que procuraram praias afastadas dos meios urbanos (Cabo, Ipojuca, Itamaracá, São José da Coroa Grande, Tamandaré), a fim de efetivar sua arte, bem como para fugir do estigma de exercer o mesmo ofício que os trabalhadores de cor.
  • 10
    Em que pese sua influência na urbanização do Recife e Olinda, do ponto de vista da organização do trabalho pesqueiro, a época holandesa não trouxe novidades.
  • 11
    Armação de madeira em forma de X, de cima a baixo, com uma pedra grande e redonda (entre três e cinco quilos em média) no meio, que é pressionada pelas madeiras, funcionando como âncora.
  • 12
    Jangadeiro que fica na proa da embarcação.
  • 13
    Dentro dessas características, em Pernambuco há as seguintes localidades: Pina, Brasília Teimosa e Ilha de Deus, em Recife; Amaro Branco, em Olinda; Canto e Espinheiro, em Itapissuma; Levada, Porto e Pedra, em Rio Formoso; Abreu do Una e Várzea do Una em São José da Coroa Grande.
  • 14
    Nome fictício a pedido do entrevistado.
  • 15
    Um tinha 84 anos de idade, em fevereiro de 2015, e o outro 82 anos em janeiro de 2015 (ambos faleceram entre o final desse ano e início de 2016). Eles ingressaram na pesca na década de 1940.
  • 16
    Acerca disso, estamos desenvolvendo a pesquisa “A cultura de ofício marítima pesqueira dos jangadeiros nordestinos” com apoio do CNPq, por meio de Bolsa de Produtividade (2020-2023).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    07 Maio 2019
  • Revisado
    06 Jul 2020
  • Aceito
    21 Jul 2020
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