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Formando Médicos da Pessoa - O Resgate das Relações Médico-Paciente e Professor-Aluno

Resumo:

Destaca-se a importância de formar médicos que, tendo a compreensão da unicidade mente­corpo, façam uma leitura mais global do paciente e exerçam a Medicina do homem, não do sintoma. É traçado um paralelo entre a relação médico-paciente e a relação professor-aluno, mostrando a semelhança dos fenômenos que ocorrem em ambas (desigualdade, dependência, cisão, transferência, etc.) e a necessidade de compreendê-los para resgatar a qualidade dessas interações, fator indispensável à adequada formação do profissional médico. Relata-se a preocupação dos educadores médicos contemporâneos com o perfil humanístico do seu produto final e focalizam-se algumas medidas que estão sendo ou podem ser conduzidas pela escola médica comprometida com o exercício da Medicina da pessoa.

Palavras-chave:
Relações médico-paciente; Relação professor-aluno; Psicologia Médica; Educação médica: graduação

Summary:

The author stresses the importance of medical students being prepared for the practice of de Medicine of the Man, not of the symptom. She draws a parallel between the Doctor-Patient and the Teacher-Student relationships showing the occurrence of similar phenomenons in bath, such as inequality, dependence, splitting, transference, etc, proposing that they should be understood in order to attain a better quality of these interactions, this being a crucial step in the making of a good physician. Considering that educators are concerned with the humanistic and ethical aspects of the students education she paints out procedures that are or could be conducted by the lnstitutions in order to prepare doctors for the practice of the Medicine of the Person.

Key words:
Doctor-pacient relationship; Medical Psychology; Medical Education: undergraduate

O PACIENTE

Chega o paciente: não só um corpo, um homem. Não só um homem: um universo singular. Não um animal de laboratório, cujas variáveis, você, sem muita dificuldade, controla e, de certo modo, uniformiza. O homem, herdeiro que Deus fez do pó das estrelas desde que ·sua força transcendente ocasionou a grande expansão, vem como fruto das gerações que o antecederam e resultado de todos os fatores que, entrelaçados, escreveram sua história de vida.

Cada um original, até semelhante, mas não cópia, adaptando-se do ventre materno até chegar à frente do familiar, amigo ou desconhecido, ou da mesinha do doutor do SUS, com o seu modo peculiar de ser, com seu jeito de se apresentar, falar, temer, amar, que pode ser tão diferente quão diferente é seu universo interior. Chega com sua personalidade e sua modalidade relacional própria, que, muitas vezes, pode surpreender o médico, que também carrega impresso em si todo um modo característico de ser, sentir e se comportar.

E o médico, para entender o que o paciente tem, precisa primeiro começar a perceber que ele é. Você pode palpá-lo, auscultá-lo, percuti-lo, mas só vai curar-lhe o corpo se ouvir-lhe a alma.

RELAÇÃO MÉDICO-PACIENTE

Avançamos na compreensão da doença como resposta global do organismo: é corrente no pensamento médico atual que todas as doenças são psicossomáticas. Portanto, o médico deve ver além e através dos sintomas, e enxergar e conhecer o homem para a efetiva compreensão do seu problema. Muitas vezes, porém, desastrosamente, nos distanciamos do paciente, rompe-se nas equipes a relação mítica e intransferível, e o paciente é visto como pequenas peças de um quebra-cabeças, às vezes sem um "dono" que o monte adequadamente.

Temos indicações de que a propedêutica do futuro é uma propedêutica armada. Diante disso, ocorrem-nos fantasias: não se ausculta, mas se tomografa; não se palpa, mas se ultra­sonoriza. Provavelmente, digitaremos no computaDoutor as queixas e sintomas, picaremos o indicador para testes sanguíneos ao apertar teclas escolhendo saldo (se quisermos só o diagnóstico) ou extrato (para maiores orientações). Talvez um robô acoplado nos costure ou grampeie asséptica e mecanicamente o corte da perna e sairemos com um duplo band-aid de leitura ótica para facilitar a evolução e o controle. Quase tudo que já fez parte das histórias de ficção é hoje realidade concreta, e em Medicina já temos exemplo disso.

Devemos bendizer progressos e estar familiarizados com os avanços tecnológicos. Fica, porém, uma pergunta: uma porcentagem bem alta de pacientes que procura um médico tem problemas emocionais, sejam eles principais ou secundários: a automação vai resolver?

Campbell33. CAMPBELL, J. O Poder do mito. São Paulo: Palas, 1990., com relação a Guerra nas Estrelas, afirma: "Lucas expressou em linguagem moderna a mensagem de que a tecnologia não vai nos salvar. Nossos computadores, nossas ferramentas, nossas máquinas não são suficientes. Temos que confiar em nossa intuição, em nosso verdadeiro ser...".

Definitivamente, não vamos prescindir da relação entre pessoas. Aliás, as raízes etimológicas da palavra terapia a ligam ao significado de serviço.

Muitos afluentes formam o grande rio: confluência de pensamentos traz a compreensão contemporânea da unicidade mente-corpo. E, também fruto dessa assunção, vemos reaparecer, com força, o desejo de ressurgimento do médico que a pratique. A tônica predominante nos congressos de educação médica tem sido a preocupação com qualidade total, reavaliação do ensino e assistência médica, delineamento do perfil desejável do médico, que inclui visão humanística e postura ética. Pesquisas como a das cinco universidades de Ontário77. Educating future physicians for Ontario (EFPO project). Part I. Summary: What people of Ontario need and expect from Physicians. Report, 1993. revelam as expectativas da comunidade, que reivindica "médicos que não só entendam o que o paciente tem, mas o que ele espera, o que ele teme e o que ele sente".

O resgate da relação médico-paciente é consensual entre educadores médicos, buscado e necessário. Contudo, esse exercício da Medicina da pessoa só poderá ocorrer se, ao lado de importantes mudanças político-sociais e institucionais, ocorrer também - e isso no âmbito da própria escola médica - um resgate da relação professor-aluno.

PARALELISMO DAS RELAÇÕES MÉDICO-PACIENTE E PROFESSOR-ALUNO

Esse é um tema a que nos referimos55. CRUZ, E. M. T. N. Responsabilidade do aluno frente ao próprio aprendizado. Submetido para publicação. num painel da Cinaem e num curso do Cemesp em Ribeirão Preto e com o qual nos temos ocupado.

Do mesmo modo que o paciente, cada aluno representa um universo. E o docente está compromissado com a necessária tentativa de percepção dessa singularidade também em seu aluno. Diz Merleau Ponty1010. MERLEAU PONTY, M. A Estrutura do comportamento. Belo Horizonte: Interlivros, 1975. que, "do mesmo modo que o cubo, o homem não mostra todas as suas faces ao mesmo tempo". Se a relação for rápida e superficial demais, poderemos ficar com a impressão de um só dos lados. E a história da vida de cada aluno vai determinando, provavelmente, o lado do cubo com que geralmente se apresenta.

O docente da escola médica deve estar ciente e preparado para perceber que sua interação com o aluno é tão importante quanto sua relação com o paciente. E este aluno só poderá desenvolver a percepção do paciente como pessoa se ele, aluno, for percebido e considerado como pessoa.

ASSIMETRIA E DESIGUALDADE

Ambas as relações - médico-paciente e paciente-aluno - são, em geral, assimétricas e desiguais, e nelas, se não estivermos atentos, podem ocorrer desrespeito e abuso de poder: com o paciente, se não lhe perguntarem o que pensa de sua situação, descuidando-se do homem por trás do sintoma; com o aluno, se não lhe derem espaço para se manifestar sobre o que vai fazer ou para criar, planejar junto.

Em contrapartida, há docentes e médicos que, ao manejarem essas situações de modo mais adequado, delas se aproveitam para uma útil "cumplicidade" na resolução dos pro­blemas ou eficaz engrenagem na educação do estudante.

Por meio de relatos colhidos dos nossos estudantes, alguns dos quais ilustram o texto, observamos como a interação professor-aluno é percebida em diferentes modalidades da relação médico-paciente. Eis um relato de aluno: "A relação professor-aluno pode ser comparada à relação mãe-bebê, nutridor e receptor." Acrescentaríamos que a relação mãe-bebê é bilateralmente ativa, como deve ser a relação médico-paciente e a relação professor-aluno.

DEPENDÊNCIA

A dependência que pode ocorrer na interação médico-paciente vem não só, mas também, da fragilização do doente frente à ameaça de morte, sofrimento e desamparo.

No aluno do primeiro ano, por exemplo, essa dependência pode-se prender a sua situação mais vulnerável frente ao desconhecido, à adaptação a um contexto não-costumeiro, a um sentimento de luto11. ABERASTURY, A., KNOBEL, M. Adolescência normal. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989. pela infância perdida e segurança ameaçada, ao medo de não corresponder às expectativas internas e do meio.

É interessante notar que o aluno reprovado é chamado "dependente".

O aluno do terceiro ano enfrenta problemas ao adentrar o hospital: impotência, limitações, sensação de "usar" o paciente. "Quem vai cuidar de nossa angústia?", perguntou com veemência uma terceiranista durante a aula. Os mais adiantados se defrontam com as decisões importantes do adulto jovem juntadas às dificuldades na opção de especialidade66. CRUZ, E. M. T. N. A Escolha da especialidade em Medicina. Campinas: Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP, 1976. Tese de Doutorado e profissionalização.

O paciente quer tranquilizarão, reasseguramento; o aluno se sente, por vezes, cheio de dúvidas: quer acolhimento, orientação.

Pontes1111. PONTES, J. F. O Ensino da psicologia no currículo médico. Arq. Gastroent., v. 5, n. 1, 1968., em 1968, afirmava: "estabeleceu-se no âmbito da escola médica o triângulo de relacionamento das três personagens principais: professor/estudante/paciente. Não esquecer que o estudante é a figura mais importante se se quiser estabelecer uma prioridade. Dele nascem diretamente o médico e o professor e poderá dar origem ao paciente tanto mais direta e facilmente quanto menos se lhe preste atenção como ser humano em formação".

CISÃO

O fenômeno da cisão também pode ser visto nas duas relações médico-paciente e professor-aluno. Para o paciente, o médico é cindido numa parte boa - salvador, mágico, poderoso para resolver os problemas - e noutra má, que ameaça com diagnóstico, intervenções, hospitalização.

Do mesmo modo, o professor é visto corno nutridor, fonte, instrumento de ampliação do saber e, ao mesmo tempo, figura que põe à prova, critica, exige.

Se o médico ou docente não exercitar uma compreensão adequada desses mecanismos, a ansiedade persecutória do aluno aumentará.

Muitas vezes, ao sentirem frustradas suas expectativas com relação ao sucesso ou rendimento, tanto o médico como o paciente, o docente ou o aluno podem atribuir ao outro a responsabilidade pelas falhas.

O professor pode generalizar conceitos para a classe toda, como desinteresse, irresponsabilidade do tal ano, de tal série. Alunos também generalizam o desapontame0to com determinado professor para sua disciplina ou até seu departamento.

DIDATOPATOGENIA

Reações indesejáveis podem advir de uma interação médico-paciente inadequada, assim como efeitos nocivos podem resultar de uma atuação inadequada do professor junto ao aluno. Cukier, em relato à Associação Psicanalítica Argentina, ainda não publicado, comentou esses efeitos nocivos do docente utilizando o termo "didatogenia". Etimologicamente, porém, didatogenia significa tudo o que foi gerado pela atuação docente, e isso, a nosso ver, englobaria a parte "boa" e a parte "má". Talvez pudéssemos salvaguardar tudo de bom que vem do docente e aplicar o termo "didatopatogenia" para indicar os efeitos indesejáveis que, infelizmente, podem resultar de uma inadequada atuação docente.

BUSCA DO MÉDICO-PESSOA E DO PROFESSOR­PESSOA

Assim como as comunidades77. Educating future physicians for Ontario (EFPO project). Part I. Summary: What people of Ontario need and expect from Physicians. Report, 1993. mostram o desejo por um médico-pessoa, nossos alunos também se referem a alguns professores que apressadamente "chegam e saem, os ignoram como pessoa e não se mostram como tal", "são livros que falam" (relatos de alunos).

IDENTIFICAÇÃO

Com outros docentes, no entanto, os alunos relatam interação de simpatia, que favorece o "poder nos espelhar neles, procurar neles o modelo médico que queremos ser".

Essa identificação se dá também com o "modo de ser" médico, a maneira com que esse professor se relaciona com seus pacientes.

TRANSFERÊNCIA

Não são raros os exemplos observados e relatados por alunos (sem identificação de nenhuma das partes envolvidas), como este: "condeno as formas autoritárias paternalistas que impõem provas, chamadas, trabalhos (...) pressão moral como armas de repressão".

Embora também possamos ser alvos de "ataques", não resistimos à oportunidade de relatar aqui transferências evidenciadas e "curtidas": a denominação de mãe-drinha de uma das turmas e o recebimento de um cartão de um aluno já formado, então no exterior, com estes dizeres: "hoje, no dia das Mães, pensei na senhora".

CONTRATRANSFERÊNCIA

Do mesmo modo que nas relações médico-paciente, além dos fenômenos transferenciais, acontecem as contratransferências: o docente, ao sentir-se hostilizado, reage contratransferencialmente - "contra-atacando" - ou, não podendo aceitar em si a crescente raiva do aluno, o beneficia com uma complacência inusual, numa formação reativa que só entende mais tarde.

CONLUIO

Não podemos deixar de referir também o conluio: o médico "seduzido", que faz intervenções desnecessárias, ou o professor que, num perigoso faz-de-conta, não exige e, em contrapartida, também não é cobrado. Isso foi exemplificado por Hossne99. HOSSNE, W. S. Relação professor-aluno: inquietações ­ indagações - ética. R. Bras. Educ. Méd. v. 18, n. 2, p. 75- 81,1994., que, com outro enfoque e sob outro prisma, apresentou o tema das relações professor-aluno.

O INÍCIO DA RELAÇÃO

De modo semelhante ao que acontece na relação médico­paciente, a relação paciente-aluno também se inicia mesmo antes do primeiro encontro. O paciente, já ao pensar em ir ao médico, faz as fantasias de como ser (ou não ser) atendido. O calouro inicia sua relação com docentes que ainda nem conhece por meio de "dossiês herdados" sobre condutas e modos de ser, às vezes alimentando preconceitos difíceis de corrigir.

A compreensão e o manejo adequado dos fenômenos já ressaltados, o processo de resgate das relações médico-paciente e professor-aluno e outras medidas gerais podem-nos colocar a caminho da formação do médico da pessoa.

Para isso, o que a escola médica pode fazer?

  1. Assistência centrada no paciente e não na instituição: modernização do saber médico e adestramento nos avanços tecnológicos, sem detrimento da pessoa;

  2. Valorização do serviço em equipe sem difusão da figura-vínculo;

  3. Contribuição da Psicologia Médica - nesses quase 30 anos de atividade docente em Psicologia Aplicada à Medicina, temos sentido e vivenciado que essa disciplina constitui um espaço muito importante na formação do médico com visão abrangente e ampliada do binômio doente-doença.

A psicanálise foi o instrumento que nos deu a percepção da doença como um episódio da vida. "Em qualquer tratamento não basta o desaparecimento do sintoma, importa tratar do fracasso de adaptação à vida (...) o corpo pede ajuda para a melhora da relação do indivíduo consigo mesmo e com o mundo que o circunda."44. CAPISANO, H. F. Doença, episódio da vida. Artes Médicas, 1993.

A genialidade de Freud88. FREUD, S. O Sentido dos sintomas. In: Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro Imago, 1976. revelou que há o sentido dos sintomas, e em decorrência fala-se também dos sentidos do sintoma. Afirma muito bem Rubem Alves22. ALVES, R. Corpo e símbolo, 1989. In: SOUSA, P. R. Os Sentidos do sintoma: psicanálise e gastroenteorologia. Campinas: Papirus, 1992. (mimeografado).: "Carne, sangue e nervos são apenas uma fina camada visível que envolve um segredo invisível, uma estória que mora em nós". E o médico é chamado a ser decifrador ou decodificador dessa linguagem da alma impressa no corpo e expressa por ele.

A psicanálise dá óculos: como nos livros de instrução programada, ela oferece a folha gelatinosa colorida, que, ao ser colocada, faz a leitura que o olho nu não pode conseguir. E os docentes de Psicologia Médica são chamados a treinar seus alunos nessa leitura. A Psicanálise é o princípio no qual se sustenta nossa visão psicodinâmica e que norteia nossa atuação nas aulas, nas discussões em grupo, na instrumentalização de estudantes e outros especialistas e no manejo dos problemas emocionais.

NOSSO TRABALHO JUNTO AO ALUNO

Primeiro ano: mesmo antes do início do curso, devemo­nos preocupar - em nossa escola o fazemos em conjunto com a Diretoria de alunos - com a recepção ao aluno recém-chegado, procurando auxiliá-lo nas dificuldades de adaptação à cidade, à escola e ao novo modo de vida. Temos estimulado pesquisas, entre os alunos, que nos propiciem melhorar seu atendimento.

O curso ressalta a importância da relação médico-paciente e a visualização do homem como ser global biopsicossocial. Trabalhos de campo que podem ser feitos em associação com outras disciplinas estimulam a interdisciplinaridade e reforçam a visão do homem inserido em seu contexto de vida, permitindo ainda relações mais estreitas entre os alunos e deles com os docentes.

Segundo ano: além do curso teórico regular, promovemos grupos de discussão (cada um com um docente) de temas emergentes, com ampla oportunidade de lidarem, entre outros tópicos, com os problemas das relações aluno-aluno e docente-aluno. Essas discussões têm suscitado medidas ensejadoras de melhor ajuste da relação professor-aluno nessa e em outras disciplinas.

Terceiro ano: ao longo do curso teórico, grupos de discussão abordam mais especificamente as dificuldades da relação estudante-paciente e preceptor-aluno, com reflexão sobre as angústias frente às limitações, quebra da onipotência, frustrações e vicissitudes (do aluno, do paciente e do docente) em suas vivências no hospital-escola.

A anamnese psicossomática deve ser ensinada também pelos professores de outras disciplinas. São necessários contatos - muitas vezes difíceis - com esses docentes para compartilhar pensamentos semelhantes e linguagem comum.

Julgamos que a Psicologia Médica deve adentrar no inter­nato não como especialidade, mas incorporada à identidade médica e aplicada pelo clínico, pelo cirurgião. Temos que fazer parte da equipe instrumentalizando estudantes e docentes para que possam fazer um atendimento mais abrangente. Não podemos, porém, treinar um estudante na leitura do global se esta não for valorizada, por exemplo, por seu cirurgião-herói e figura de identificação.

Têm sido produtivas as discussões de casos clínicos com membros da Psicologia Médica, levando docentes, estudantes e residentes de outras especialidades a se familiarizar com a visão sócio-psicossomática.

4 - Retaguarda para o aluno, com adequada continência de suas angústias de ser médico e ser pessoa. É preciso oferecer atendimento psicológico ao estudante, com prevenção, orientação e encaminhamento mais especializado quando requerido.

Em nossa pesquisa66. CRUZ, E. M. T. N. A Escolha da especialidade em Medicina. Campinas: Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP, 1976. Tese de Doutorado com 569 doutorandos de oito escolas médicas, quatro na capital e quatro no interior, o estímulo percebido pelos alunos como o mais importante para a escolha da especialidade foi a faculdade. Isso era esperado, mas foi surpreendente o número de alunos que indicou "conversas informais" com professores como uma das mais importantes influências para a sua opção. Esse fato mostra a importância da atuação do professor dentro e fora da sala de aula e a necessidade de o aluno poder contar com esse espaço psíquico de interação amistosa com o docente.

Seria importante, como referem os alunos em nossa coleta de dados tanto na pesquisa mencionada66. CRUZ, E. M. T. N. A Escolha da especialidade em Medicina. Campinas: Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP, 1976. Tese de Doutorado como nas atuais, que a escola fornecesse orientação para a escolha de especialidade. Têm sido frutíferos os grupos de discussão sobre as vicissitudes da carreira e da vida. Estudantes do sexo feminino e médicas têm dificuldades específicas66. CRUZ, E. M. T. N. A Escolha da especialidade em Medicina. Campinas: Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP, 1976. Tese de Doutorado, que merecem atenção, aconselhamento e suporte.

5 - Ensino centrado no aluno. As inovações metodológicas apontam para técnicas que privilegiam maior responsabilidade e autonomia do aluno frente ao próprio aprendizado55. CRUZ, E. M. T. N. Responsabilidade do aluno frente ao próprio aprendizado. Submetido para publicação. com a consciência do compromisso interno, com aprimoramento constante.

6 - Os alunos devem ter mais espaço para expressar sua percepção do que lhes está sendo oferecido, dando sugestões e constituindo-se co-gestores de seu curso.

7 - Inserção precoce do aluno na comunidade, em trabalhos multidisciplinares, treinando-os na Medicina Viva.

8 - Revitalização dos ambulatórios didáticos, com supervisão adequada, para maior segurança, treinando o aluno a ver o paciente com uma visão de figura e fundo e a estabelecer o fundamental: o vínculo.

9 - Valorização da docência, que não é só subproduto da assistência adequada, mas requer preparo e técnica. Docência não pode ser imposta; é vocação trabalhada. Núcleos de apoio pedagógico para professores e suporte para esse profissional que tem que instruir o viver.

10 - Interdisciplinaridade: entre outros benefícios, promove a racionalização do curso, favorecendo a montagem do quebra-cabeças para a leitura global do paciente.

11 - Canais adequados para lazer, arte, esporte, parte importante da saúde da instituição.

A saúde do ensino não é só a ausência de reprovações nas condutas ou nos exames: ela privilegia um ajustamento satisfatório do estudante à escola e deve incluir sua adequa­ção, como pessoa, à vida.

CONCLUSÃO

À medida que o aluno seja visto como pessoa e não como número, cresce a chance de que ele veja o paciente como pessoa e não como caso. À medida que ele conte com espaços onde possa se expressar, ser ouvido e respeitado no processo de que faz parte, cresce a possibilidade de ele poder "ouvir" o paciente como agente ativo da relação. À medida que o aluno te­nha supervisão no problema emocional do paciente ou conte com atendimento numa dificuldade emocional sua, aumenta sua percepção da importância do psíquico no funcionamento global do ser. À medida que faça parte de discussões "ao pé do leito" ou em equipes multidisciplinares, e os docentes, seus modelos de identificação, mostrem uma visão psicossomática, o olhar do aluno se modifica para ver o homem da doença, e não a doença do homem. Tudo isso requer treino e... amor.

Lembremos Paracelso: "O mais profundo alicerce da Medicina é o amor... pois o amor é o que nos faz aprender a arte e fora dele não nascerá nenhum médico."

É impossível fazer Medicina ou docência sem amor ou sem esperança. Porque é essa esperança que deve persistir, resistir e insistir nesse mundo psicótico em que ter é mais que ser, em que o hedonismo egoísta mostra o declínio da civilização, em que crianças geram crianças, e filhos sem pais são criados sem mães, em que sacerdotes, pais, amigos, colegas, ninguém mais tem tempo para ouvir ou desaprendeu de fazê-lo. Temos que lembrar que o paciente:

Nesse mundo febril de incoerência

Náufrago, luta por sobrevivência

falta-lhe amor, perdida a inocência,

chega a você, em última insistência:

Doutor, deixe de lado essa ciência

Dê-lhe um pouco de tempo e de paciência

Por trás da arritmia e da falência

Escute o choro deste coração!

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • 1
    ABERASTURY, A., KNOBEL, M. Adolescência normal. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989.
  • 2
    ALVES, R. Corpo e símbolo, 1989. In: SOUSA, P. R. Os Sentidos do sintoma: psicanálise e gastroenteorologia. Campinas: Papirus, 1992. (mimeografado).
  • 3
    CAMPBELL, J. O Poder do mito. São Paulo: Palas, 1990.
  • 4
    CAPISANO, H. F. Doença, episódio da vida. Artes Médicas, 1993.
  • 5
    CRUZ, E. M. T. N. Responsabilidade do aluno frente ao próprio aprendizado. Submetido para publicação.
  • 6
    CRUZ, E. M. T. N. A Escolha da especialidade em Medicina. Campinas: Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP, 1976. Tese de Doutorado
  • 7
    Educating future physicians for Ontario (EFPO project). Part I. Summary: What people of Ontario need and expect from Physicians. Report, 1993.
  • 8
    FREUD, S. O Sentido dos sintomas. In: Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro Imago, 1976.
  • 9
    HOSSNE, W. S. Relação professor-aluno: inquietações ­ indagações - ética. R. Bras. Educ. Méd. v. 18, n. 2, p. 75- 81,1994.
  • 10
    MERLEAU PONTY, M. A Estrutura do comportamento. Belo Horizonte: Interlivros, 1975.
  • 11
    PONTES, J. F. O Ensino da psicologia no currículo médico. Arq. Gastroent., v. 5, n. 1, 1968.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Nov 2020
  • Data do Fascículo
    May-Dec 1997
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