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Memórias de professoras e o uso de cartas como ferramenta pedagógica 1 1 Editor responsável: Antônio Carlos Rodrigues de Amorim https://orcid.org/0000-0002-0323-9207 2 2 Normalização, preparação e revisão textual: Vera Lúcia Fator Gouvêa Bonilha verah.bonilha@gmail.com

Memories of teachers and the use of letters as a pedagogical tool

AYOUB, Eliana. 2021. Memórias da Educação Física na escola: cartas de professoras. Pontes Editores

Resumo

Esta resenha visa discutir e apresentar a obra intitulada Memórias da educação física na escola: cartas de professoras, de Eliana Ayoub. O objetivo apresentado é promover reflexões a respeito da educação física (EF), do corpo e da gestualidade na escola, a partir das narrativas de alunas-professoras participantes do Programa Especial de Formação de Professores em Exercício na Rede Municipal dos Municípios da Região Metropolitana de Campinas. Fruto da tese de livre docência da autora, as cartas que compõem o livro relacionam processos formativos em que Ayoub vivenciou ao longo de suas experiências como professora, pesquisadora e como aluna no universo da EF, entretecidos com suas experiências de vida e dos sujeitos presentes nessa trajetória.

Palavras-chave
Experiências formativas; Educação Física Escolar; Formação de professores

Abstract

This review aims to discuss and present the writing entitled Memories of physical education at school: letters from teachers, by Eliana Ayoub. The presented objective is to promote reflections about physical education (PE), the body, and gestures at school, based on the narratives of student-teachers participating in the Special Training Program for Teachers in Exercise in the Municipal Organization of Municipalities in the Metropolitan Region of Campinas. As a result of the author's professor habilitation thesis, the letters that compose the book relate education processes which Ayoub experienced throughout her experiences as a teacher, researcher, and student in the PE universe, intertwined with her life experiences and the subjects present in this trajectory.

Keywords
Training experiences; School Physical Education; Teacher training

O livro intitulado Memórias da educação física na escola: cartas de professoras foi escrito pela Professora Doutora Eliana Ayoub, docente da Faculdade de Educação (FE) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a partir de sua tese de livre-docência na área de Conhecimento e Linguagem pela FE da Unicamp. A autora tem como foco de seus estudos a formação docente, o corpo, a linguagem e educação, a ginástica para todos (GPT), a educação física (EF) escolar, a iniciação à docência e o estágio supervisionado. A construção deste livro, que assume a carta como gênero textual, é fruto das reflexões e das experiências de vida pessoais e profissionais.

Na “Carta às(aos) leitoras(es)”, é enfatizada a relevância da formação continuada de professores(as), ao elencar os aprendizados e os esforços que foram necessários para a atuação docente adiante da pandemia de Covid-19. Ayoub descreve como as cartas se fazem presentes em sua vida desde a infância e justifica sua escolha para a forma como redigiu a obra. Dessa forma, são narrados os resultados de uma pesquisa qualitativa, utilizando como fonte as cartas sobre memórias da educação física escolar escritas por professoras que participaram do Programa Especial de Formação de Professores em Exercício na Rede Municipal dos Municípios da Região Metropolitana de Campinas (PROESF). Assim, o objetivo é refletir a respeito da educação física, do corpo e da gestualidade na escola, a partir das narrativas dessas alunas-professoras.

Para construir a narrativa, a proposta foi discorrer sobre memórias, experiências e histórias como aluna e como professora na escola e na universidade, entretecendo com as reflexões das alunas-professoras e demais interlocutores(as) que fizeram parte do processo de escrita do material. É imperativo destacar o papel dado às mulheres como figura central do processo educacional.

A “Carta para Benjamin: o livro e a fossa” é endereçada a um senhor, chamado Benjamin, responsável por cavar uma fossa no quintal da autora. Num primeiro momento, o texto parece não apresentar conexão com a temática da obra, no entanto, é a partir da relação construída com o interlocutor e as reflexões estabelecidas no período de escrita que compreendemos a analogia realizada. De maneira poética, Ayoub reforça um ponto que se faz presente em todo o livro, a importância da formação continuada, da necessidade de aprofundamento nos estudos e pesquisas e, acima de tudo, a compreensão de que as relações com o outro e as interações humanas construídas integrarão esse processo.

Eliana Ayoub menciona, na “Carta às(aos) formadoras(es) de professoras(es)”, a escrita nesse formato como uma estratégia para se aproximar das experiências das professoras que participaram do PROESF, particularmente no que diz respeito à EF escolar. Nesse momento, reforça ser um ato político adotar o gênero feminino para ilustrar as memórias que compõem o livro, já que o androcentrismo se faz presente nos ambientes acadêmicos. Tal decisão por essa forma de linguagem também se justifica pelo fato de a pesquisa envolver majoritariamente mulheres (979 cartas, sendo 971 de mulheres). Esse amplo acervo foi produzido principalmente durante o programa de formação mencionado e contou com a participação de aproximadamente 1200 profissionais da rede pública que ingressaram na Unicamp entre 2005 e 2008.

Com base nessa experiência de formação, Ayoub se propôs a ouvir as professoras sobre suas experiências nas aulas de EF e lançou o mesmo compromisso a outras(os) formadoras(es) de professoras(es), a fim de dar voz a quem trabalha na escola, para contar a respeito de suas vidas, anseios, dificuldades, temores e conquistas. Nesse cenário, a pesquisa qualitativa de inspiração narrativa ou autobiográfica se mostrou adequada para atender à sensibilidade requerida na dinâmica de trabalho de escrita das cartas. Ao acolher as histórias, mesmo as constrangedoras, a intenção era oportunizar a liberdade no processo narrativo e resgatar as memórias das professoras sobre sua experiência na EF escolar.

Na “Carta às(os) escritoras(es)”, há a explicação da “mania” com esse gênero textual, recordando sua própria história. Ao compartilhar cenas pessoais com as(os) leitoras(es), a partir do seu cotidiano, compreendemos seu posicionamento em defesa das cartas e sua justificativa para, a partir de 2002, materializar o uso desse gênero discursivo na prática educativa e configurá-lo como fonte de pesquisa a partir de 2006. Nos momentos de encontros com as professoras, as memórias emergiram e se expressaram também nas rodas de conversa, ou seja, o papel de interlocutoras(es) era ocupado tanto pelas(os) destinatárias(os) quanto pelas professoras do PROESF.

Ainda sobre essa parte do livro, pedimos licença às(aos) leitoras(es) para compartilhar um fragmento da própria autora: “a escrita da carta tem a intenção de, a partir de suas próprias experiências, impulsionar o diálogo sobre a educação física, o corpo e a gestualidade na escola” (Ayoub, 2021AYOUB, Eliana. (2021). Memórias da Educação Física na escola: cartas de professoras. Pontes Editores., p. 42). Diante do amplo e rico texto, entendemos que o recorte aqui elencado pode ser um dos objetivos da pesquisa. Apesar de o olhar estar direcionado à EF escolar a partir das vozes das professoras participantes, as cartas possibilitaram expor outros assuntos sobre a educação do corpo.

Na “Carta às(aos) orientandas(os)”, relata suas “aventuras intelectuais” como professora e pesquisadora com o intuito de, ao descrever o seu processo de formação como pesquisadora, inspirar seus(as) orientandos(as) em suas pesquisas e percursos profissionais. Para atingir seu propósito, destaca a pesquisa qualitativa de inspiração narrativa, que está entretecida com sua prática docente, que a motiva compreender com mais profundidade a expressão corporal como linguagem. Como suporte teórico para o adensamento da pesquisa, apoia-se nas obras de Walter Benjamim, Lev Vigotski e Mikhail Bakhtin. E como método de análise, recorre a Carlo Ginzburg, buscando decifrar nas 979 cartas como se deu a educação do corpo na escola dos(as) participantes da pesquisa.

Expressa que a escolha pelo gênero textual escolhido se justifica metodologicamente, além de contribuir para a formação do(a) pesquisador(a), já que, ao escrever para outras pessoas, também estabelecemos um diálogo conosco que pode ser profícuo e reflexivo. Realça a escola como um espaço sociocultural, a não dissociação de teoria e prática e a perspectiva de trabalho coletivo como suporte para as práticas de formação de professoras(es) e pesquisadoras(es), em especial os de pedagogia e de EF. Confessa que uma de suas maiores curiosidades era saber quais memórias predominavam, as positivas ou as negativas, assim como com quais temas da cultura corporal alunas-professoras tiveram acesso por meio da EF escolar.

Na “Carta às alunas-professoras do PROESF”, emergem perguntas para as alunas sobre sua memória acerca do que escreveram e informa que elas se tornaram objeto de sua pesquisa. Acrescenta que o objetivo da pesquisa consiste em refletir a respeito da EF, do corpo e da gestualidade na escola a partir das experiências narradas. Conta sobre a riqueza das narrativas, que trazem experiências intensas, prazerosas e, por vezes, desastrosas. Acrescenta que neste texto fez a opção por narrar memórias de exclusão, frustração e desencanto das aulas de EF escolar, além disso explica a importância de nossas vivências pessoais para a atuação profissional, posto que as experiências vividas nos constituem e cooperam no exercício da profissão.

Ao compartilhar as cartas, expõe os cenários de exclusão e fracasso de escolas brasileiras. As alunas-professoras contam experiências acerca de suas aulas de EF, e há alguns excertos tais como: “aulas horríveis, chatas, intermináveis ”; “verdadeiro inferno, horror, tormento, pavor, massacre, tortura, lágrimas” (Ayoub, 2021AYOUB, Eliana. (2021). Memórias da Educação Física na escola: cartas de professoras. Pontes Editores., p. 139). Explicita a importância de desvelar situações desastrosas que pertencem ao jogo educativo da EF, porque só assim podemos refletir sobre as possibilidades de modificar o modo como funciona a escola, que não contribui para a formação do aluno, mas sim, o afasta dela.

A “Carta às(aos) professoras(es) de educação física” é uma possível mensagem para a própria autora, para suas(seus) orientandas(os), ex-alunas(os) do curso de EF e demais colegas de profissão. Isso porque são retratadas, de forma bastante professoral e intimista, peculiaridades típicas da rotina profissional, seus sabores e dissabores, como aqueles próprios da escola pública – e aqui a experiência vira memória discursiva. Mesmo defendendo a escola pública, Eliana Ayoub não se intimida em criticar a crise educacional brasileira e a sua desvalorização pelo poder público. E é baseada na importância dada à educação pública e à EF escolar como parte, desse contexto, que temos contato com um enredo de coerência entre o trabalho docente e seus ideais educacionais. De modo incisivo, demonstra que sua atuação e intencionalidade almejam aproximar a universidade da realidade do ensino público e assim intervir na realidade posta no campo formativo e, consequentemente, na EF da escola pública.

Ao buscar fomentar uma formação inicial de qualidade, trata de aspectos concernentes à atuação docente, perpassando por temas relativos à EF, tais como corpo, gestualidade e educação do corpo no contexto escolar. Ao travar o diálogo com as próprias cartas, imputa responsabilidades aos(às) professores(as) para que a EF escolar seja efetiva. Tece críticas à falta de planejamento aliada a não sistematização de conteúdos e ao abandono pedagógico, aspectos estes diretamente associados à promoção de um espaço educacional não satisfatório, o que pode dificultar a justificativa da presença da EF no currículo escolar. Estas críticas também estão essencialmente relacionadas ao trato pedagógico que infringe conceitos básicos, no que tange ao não respeito aos corpos que experienciam as práticas corporais desenvolvidas na EF escolar – disciplina que pertence à escola, e se constitui como lócus de formação e produção de conhecimento.

Motivada por suas experiências gímnicas, a autora escreve a “Carta para Nadia Comaneci”. Observamos, no discurso, que a vida da Nadia gera certa dose de inspiração esportiva e poética, já que percebemos um paralelo entre suas vivências ginásticas com a longa história da Nadia Comaneci, que, por coincidência ou não, escreveu sua autobiografia em forma de cartas. De modo bastante interessante, a escritora consegue exprimir diferentes sentimentos e emoções atrelados à vivência corporal na ginástica em seus diferentes contextos e, assim, vai tecendo um diálogo, que ora parece um monólogo, ora parece ter respostas sobre a história de vida de Nadia.

Do ponto de vista crítico, Ayoub trata de uma ginástica que pode ser disciplinadora, regrada e sem respeito aos corpos de quem a pratica, e busca apresentar uma alternativa para superar os meandros de um tipo de ginástica que não considera o sujeito como um humano repleto de sentimentos, emoções, criatividade e possíveis traumas. Assim, há uma mensagem de apresentação da GPT para a Nadia, como se essa manifestação fosse detentora da solução mágica para tudo aquilo que não é bom no mundo das ginásticas de competição. Precisamos nos atentar que a atuação profissional é determinante no trato de qualquer modalidade ginástica, sendo ela competitiva ou não. Talvez a crítica posta sobre a rigidez e a cobrança de alta performance, desconsiderando o sujeito, possa diametralmente explicar o distanciamento da ginástica das aulas de EF escolar, visto que, nesses moldes criticados, realmente ela perde o sentido em seu desenvolvimento, necessitando de uma alternativa para (re)criar os modelos de inspiração para o trato com as ginásticas na escola.

A “Carta às(aos) minhas(meus) companheiras(os)” caminha para o encerramento dos escritos e vamos percebendo a preocupação em mostrar aos(às) leitores(as) que o destino que tanto buscamos não é algo único ou finito, estando sempre em processo de construção. A autora (2021) reflete, no processo de escrita e docência, sobre a vulnerabilidade vivida por grande parte das(os) professoras(es) e pesquisadoras(es) expressando que “Exercito minha vulnerabilidade nesse processo de escrita porque o próprio processo de docência e de pesquisa igualmente o são. Sabemos que a academia, a universidade, a ciência, alegram-se muito mais com as convicções do que com as dúvidas ” (p. 292).

Finalizando, a “Carta ao tempo” permite entender os diversos aspectos que foram perpassados para construir o livro, demonstrando as diferentes facetas adotadas pelo tempo que enfrentamos. Dessa maneira, esta carta mostra a relação direta entre a memória de todos os sujeitos participantes do processo de escrita do livro.

Concluímos que o livro é endereçado para todos(as) aqueles(as) profissionais, envolvidos(as) de alguma forma com a EF escolar, uma vez que as cartas levam à reflexão e à compreensão das ações docentes. Por fim, a obra apresenta a significância do registro das memórias no campo da EF escolar e de nos tornarmos protagonistas, ao contar nossa própria história.

Referências

  • AYOUB, Eliana. (2021). Memórias da Educação Física na escola: cartas de professoras. Pontes Editores.
1
Editor responsável: Antônio Carlos Rodrigues de Amorim https://orcid.org/0000-0002-0323-9207

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    03 Abr 2023
  • Aceito
    05 Set 2023
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