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A OBRA DE ANAJÁ CAETANO: UMA ESCRITORA BRASILEIRA NEGRA NA LITERATURA DE FICÇÃO

LA OBRA DE ANAJÁ CAETANO: UNA ESCRITORA NEGRA BRASILEÑA EN LA LITERATURA DE FICCIÓN

THE WORK OF ANAJÁ CAETANO: A BLACK BRAZILIAN WRITER IN FICTION LITERATURE

RESUMO

Este artigo analisa a obra Negra Efigênia, paixão do senhor branco, da escritora Anajá Caetano. O livro trata das relações entre escravos negros e senhores brancos na localidade de São Sebastião do Paraíso (MG). O romance contextualiza o espaço onde transcorre a história. O enredo da obra permite considerá-la um romance de costumes com trânsitos em histórias de fundações de lugares, colocando em questão gêneros literários predominantemente masculinos da época. A origem africana da autora desafia os acontecimentos e a legalidade quando relata, um século após a abolição da escravatura do Brasil, as relações étnicas e raciais.

Palavras-chave:
Romances de Costumes e Fundações; Escravidão; Anajá Caetano; Relação interétnica; Literatura e espacialidade

RESUMEN

Este artículo analiza la obra Negra Efigênia, paixão do senhor branco de Anajá Caetano. El libro trata de las relaciones entre esclavos negros y amos blancos en Sao Sebastiao do Paraíso-MG. La novela contextualiza el espacio donde se desarrolla la historia. La trama de la obra permite considerarla como una novela costumbrista con tránsitos en historias de fundación de lugares, poniendo en cuestionamiento géneros literarios predominantemente masculinos de la época. El origen africano de la autora desafía los acontecimientos y la legalidad cuando relata, un siglo después de la abolición de la esclavitud en Brasil, las relaciones étnicas y raciales.

Palabras clave:
Novelas de costumbres y fundaciones; Esclavitud; Anajá Caetano; Relación interétnica; Literatura y espacialidad

ABSTRACT

This article analyzes the novel Negra Efigênia, paixão do senhor branco of Anajá Caetano. The book deals with the relations between black slaves and white masters in São Sebastião do Paraíso-State of Minas Gerais (MG). The narrative contextualizes the space where the story takes place. The plot of the work allows us to consider it as a novel of manners crossing city foundation stories, calling into question predominantly male literary genres of the time. The author's African origin defies events and legality when, a century after the abolition of slavery in Brazil, she goes through ethnic and racial relations.

Keywords:
Novels of manners and foundations; Slavery; Anajá Caetano; Interethnic relationship; Literature and spatiality

INTRODUÇÃO

Descendente de angoleses da tribu dos “Quiôcos” conservara de memória todas aquelas narrativas de seus antepassados, na sua maioria feitas ao pé do fogo, junto ao borralho da velha e solarenga residência de seu pai de criação, o dr. José de Souza Soares. Ficou assim justificada a preponderância das inclinações artísticas da autora, porquanto, como é sabido e notório os “Quiocos” foram, na África, os precursores de uma série de apreciáveis criações artísticas cuja influência seria impossível negar (Caetano, 1966CAETANO, A. Negra Efigênia, paixão do senhor branco. São Paulo: Edicel, 1966.: 15)1 1 Todas as citações do livro de Anajá Caetano são transpostas para este artigo tal como escrita na obra. Haverá estranheza do leitor quanto as diferenças da linguagem, no entanto optei por seguir a obra original. Em complemento ao texto do artigo, escolhi as citações tal como escritas na obra da autora, apesar do tempo verbal na terceira pessoa. Tal como escrita, são elas que expressam suas inclinações para a literatura relacionada a sua origem étnica como mais predominante pelas suas próprias palavras. .

Seja o gesto louvável e dignificante mais um elo, entre a África livre e seus descendentes aquem Atlântico. Um estímulo para meu povo que, a despeito de tôdas as liberdades, continua sentindo em sua sub-consciência o amargor de “sonhos esmagados sob o peso de cangas e limbabos amando ao longe o sol da liberdade (Caetano, 1966CAETANO, A. Negra Efigênia, paixão do senhor branco. São Paulo: Edicel, 1966.: 16)2 2 Essa segunda citação extraída do texto “Homenagem Especial” do livro mostra, como já mencionado, certa discrepância de o país livre africano com a situação histórica no Brasil pós-abolição da escravatura. A liberdade africana e o escravagismo brasileiro. A origem étnica esmagada sob as condições as quais os escravos já libertos legalmente no Brasil ainda estavam submetidos na localidade de São Sebastião do Paraíso nas fazendas de Minas Gerais. Na diáspora, insere o sonho de superação, a liberdade. Esses significados ficam mais bem entendidos ao final da obra, quando a autora propõe um tipo de superação do regime escravagista. .

As citações foram extraídas da obra em análise assinada pela autora no texto que antecede o romance nomeado “Homenagem Especial”, e chama atenção o modo como uma narrativa autobiográfica não é escrita na primeira pessoa gramatical. Na primeira citação, é como se Anajá estivesse falando para que alguém escrevesse sobre a curiosidade de outros sobre sua vocação artística. A citação é aqui colocada porque é representativa de um dos assuntos de que este artigo trata, mas cujos temas são colocados em discussão e merecem um aprofundamento: a relação da origem étnica com a vocação da escritura em complemento à influência do pai de criação na ambiência em que viveu a sua infância e o que é possível extrair de início do texto.

É notória a hierarquia da vocação apresentada pela autora. A influência africana apresenta-se como mais representativa do que a vivência com o pai. A análise abarcando a capa do livro e todos os seus componentes textuais (texto da orelha, homenagem póstuma, outras homenagens, prefácio e homenagem especial) é metodologicamente importante para o entendimento da obra, com destaque aos comentários da orelha do livro e o prefácio, que ingressam na discussão.

Em termos metodológicos, considero que a análise de um livro como o de Anajá deve ser abrangente e, ao mesmo tempo, detalhista, considerando a sua materialidade, a arte (a capa — Figura 1), os textos acessórios e a narrativa da autora sobre o momento histórico ao qual ela se refere. Trata-se de uma obra escrita na década de 1960 que reporta a acontecimentos do século XIX, mostrando o trânsito da proclamação da lei da abolição da escravatura e a sua efetivação em determinada localidade do Brasil. A articulação temporal, espacial e memorialística questiona a efetivação da legalidade na forma de romance; enfrenta o desconhecimento da obra do pai adotivo, que escreveu a primeira história de fundação da localidade que, até as vésperas da conclusão do livro, ela desconhecia e a coloca diante de sua origem étnica assumida em todo o texto. Considero Anajá uma escritora “etnicamente situada”. Utilizo esse termo pela assunção pessoal da autora pela origem étnica, esta sendo considerada impulsionadora da escrita, justificatória da vocação de escritora, e também porque, dentro dos estudos realizados no Brasil sobre escritoras negras do passado, é também essa origem, a diáspora, sobretudo africana, que é buscada para reuni-las nessa categoria que aqui nomeio como escritoras “etnicamente situadas”, fazendo uma ligação a uma memória e a uma espacialidade apresentadas pela narrativa3 3 “Etnicamente situadas”, na minha definição, não significa colocar as primeiras escritoras negras brasileiras dentro de um lócus pré-definido pela etnicidade de suas narrativas, mas situá-las na relação étnica e espacial da escritura e da narrativa. Significa também, pensando como Maurice Halbwachs (1990), que a memória individual e a memória coletiva não são indissociáveis. Esse pensamento se expressa na escritura. No sujeito que escreve, seja uma autobiografia, seja uma biografia, um romance de costumes ou uma história de fundação de lugares. A escrita do romance fornece o contexto de expressão de uma identidade (negra) e de uma experiência (a escravidão) notadamente verificada na narrativa da autora. .

Figura 1
Capa e parte da orelha do livro de Anajá Caetano.

Um dos caminhos possíveis para a análise da obra Negra Efigênia, paixão do senhor branco, de Anajá Caetano, parte da compreensão de uma literatura que perpassa inevitavelmente a memória de quem escreve e as suas definições identitárias e étnicas. Trata-se de um romance de costumes cuja narrativa é retrospectiva, memorialística e localizada, que expressa os anseios da autora por uma sociedade mais justa e humanitária diante da persistência do regime escravagista brasileiro no século XIX4 4 O aspecto da “localidade” está presente nas histórias de fundações de lugares e romances de costumes. A espacialidade da memória expressada nas obras literárias locais e é rica para o conhecimento de histórias, costumes, regiões e sujeitos que escrevem sobre essas regiões/lugares/espaços, muitos deles “autodidatas” (Rodrigues, 2013). .

MERGULHANDO NA OBRA DE ANAJÁ CAETANO E NA TEMÁTICA DAS ESCRITORAS NEGRAS ETNICAMENTE SITUADAS

A história da obra se entrelaça com a vida da escritora retratada em parte nos breves textos biográficos e interpretativos anexos à história da negra Efigênia durante o período da escravidão nas fazendas de Minas Gerais, no Brasil. Esses textos interpretativos complementares ao romance contribuem para o entendimento do contexto histórico e social da obra e da autora como se alicerçassem a história narrada. Diante dessa composição de textos no livro, indago inicialmente sobre o sentido deles: se são realmente necessários para o entendimento da obra ou se a ficção necessita desse entendimento complementar. Estariam ali para fornecer uma legitimidade ao romance? Se é possível afirmar que as histórias de fundações de lugares trazem fatos locais e documentais clamando por uma legitimidade da escrita de autodidatas, o romance de Caetano busca nesses textos a importância da obra na localidade de São Sebastião do Paraíso (MG) e fora dela, colocando o tema da escravidão como principal enfoque.

Em complemento, a pesquisa realizada sobre a escritora e o livro, em fontes digitais, mostrou textos repetitivos que demonstraram uma leitura de seus primeiros intérpretes ou dos textos anexos ao livro, sobretudo os contidos na orelha e no prefácio.

Destaca-se nessas interpretações o fato biográfico apresentado pela própria autora no momento de publicação do livro como mais significativo: a visita de representantes importantes de Ghana no Brasil, que tiveram a curiosidade de conhecê-la pessoalmente. A origem desse contato é desconhecida nesta escrita. Ficam em aberto, assim, algumas conexões entre esses representantes e Caetano, uma vez que a vinculação do enredo é local, mesmo tratando de um tema internacional como a escravidão da etnia negra de origem africana.

O registro significativo, mas parcialmente revelado, é o do romance da autora com a história de fundação de São Sebastião do Paraíso, escrita pelo pai adotivo e publicada em 1945. A memória da convivência com ele, um autor autodidata, desde a infância é ressaltada nos textos complementares (prefácio e orelha) e justifica a sua vocação literária, mas a mencionada no texto de homenagem pela própria autora contida no livro enfatiza a sua origem étnica angolesa da “tribu dos Quiôcos”. Temos aqui duas histórias que se intercruzam no relato sobre a vocação de Anajá: a sua origem étnica e a memória de infância.

A autora desloca os sentidos da escrita literária do terreno da individualidade e de um desvinculamento sociocultural pessoal. Destaca a sua trajetória vinculada a um lugar significativo e à subjetividade na escrita para cultura étnica, mesmo quando é inserida e participa de uma “ideologia da vocação” ou de uma “ideologia do dom” sobre a qual se refere Giséle Sapiro (2007aSAPIRO, G. Je n’ai appris de la vocation d´ecrivain. Actes de la Recherche en Sciences Sociales, n. 168, p. 5-11, 2007a., 2007bSAPIRO, G. La vocation artistique entre don et don de soi. Actes de la Recherche en Sciences Sociales, n. 168, p. 4-11, 2007b.).

Se o pai adotivo, ao escrever uma história de fundação, pode ter, porventura, incentivado a vocação da autora, o relato de Anajá Caetano, por outro lado, mesmo citando a sua experiência de convivência com ele, foi uma escolha por um romance de costumes negando a influência supostamente familiar. Destaca-se, assim, que a obra escrita em 1965, mas publicada em 1966, tem uma história, mas a história de Anajá tem muitas lacunas biográficas até o momento não totalmente desvendadas.

Essa incompletude biográfica se revela a partir de uma relação parietal de convivência, não conhecida. Fica clara, contudo, no livro, a ênfase da narrativa contrária à exploração, à violência e à desumanidade praticada contra os negros e as negras escravos(as) no embate com os tutores brancos e, por outro lado, o desfecho final apaziguador que advém dessa situação, com o casamento da negra Efigênia em uma igreja católica com Paulinho, filho e herdeiro das terras de um senhor branco que praticava atrocidades com os escravos. O final do romance encaminha a esperança de um elo humanitário entre negros(as) e branco(as) e os anseios para o fim da escravidão.

O fato conhecido por meio da história da origem do romance de Anajá que consta no texto de orelha escrito por Eunice Arruda e no prefácio de Eduardo de Oliveira enfatizando a herança memorialística da infância ocorreu quando ela estava em fase de conclusão do livro. José de Souza Soares publicou, em 1945, um livro de 450 páginas sobre a história de fundação da cidade de São Sebastião do Paraíso, mesma localidade espacial onde se desenvolve a trama do romance de Anajá (Soares, 1945SOARES, J. de S. São Sebastião do Paraíso. Rio de Janeiro: Panamericana, 1945.).

A etnografia em arquivos (Castro e Cunha, 2005CASTRO, C.; CUNHA, O. M. G. Quando o campo é um arquivo. Estudos Históricos, v. 2, n. 36, p. 3-5, 2005.; Cunha, 2005CASTRO, C.; CUNHA, O. M. G. Quando o campo é um arquivo. Estudos Históricos, v. 2, n. 36, p. 3-5, 2005.) e a discussão sobre os arquivos literários (Miranda e Souza, 2003MIRANDA, W. de M.; SOUSA, M. de. (org.). Arquivos literários. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003.) colaboraram para o meu estudo por fornecerem ferramentas para a pesquisa antropológica em “campo etnográfico” da disciplina não tradicional e em discussão. Partindo dessas leituras e de outras (Okely e Callaway, 1992OKELY, J.; CALLAWAY, H. (org.). Anthropology e Autobiography. Londres e Nova York: Routledge, 1992.), busquei os arquivos. A obra original de José de Souza Soares, o tutor de Anajá, descobri durante a busca de outros exemplares do livro da autora. Tive acesso ao livro de Soares nos arquivos da biblioteca literária do Instituto Cultural Amilcar Martins, em Belo Horizonte (MG). A obra também consta na publicação de Amilcar Martins, que lista muitas obras relacionadas às histórias passadas de diversas localidades de Minas Gerais (Martins, 2005MARTINS, V. M. F. Como escrever a história de sua cidade. Belo Horizonte: Instituto Cultural Amilcar Martins, 2005.).

A acessibilidade à obra de Soares foi restrita em razão das características da biblioteca, que contém livros raros da história do estado de Minas Gerais. Pela leitura feita, observei que a obra de Soares é muito documental, mas rica em detalhes sobre os costumes, o que a faz categorizar mais como um romance de fundações e costumes, qual seja, de São Sebastião do Paraíso. Os fatos por ele narrados compõem o romance de Anajá, sobretudo nas notas de rodapé, na citação de datas e fatos locais. A escritora inclui alguns deles como paralelos e justificatórios do romance, fornecendo um teor de veracidade. Importante ressaltar que não encontrei, porém, o romance de Anajá nesse arquivo.

Essa característica já demonstra um aspecto de gênero da escrita feminina e de silenciamento da memória da autora ao diferenciar-se de uma história de fundação e, ao mesmo tempo, pela utilização de fatos e pela elaboração da obra, mostrando que a narrativa fica no meio do caminho entre uma história de fundação e um romance de costumes, apesar de adotar-se, aqui, a segunda denominação, uma vez que encontramos, nos textos de romance de costumes, fatos que entrelaçam a história inscrita por datas e nomes reais com a ficção. Considerando aqui que a expressão literária se inscreve como parte das complexidades das culturas e das desigualdades sociais, a interpretação da obra de Caetano, uma escritora mineira, negra, do início do século XX, é significativa por possibilitar expor as contradições que perpassam a escrita de romances de costumes por mulheres etnicamente situadas.

A biografia da escritora e o contexto histórico que a obra abarca fornecem um sentido particular aos estudos das ciências sociais quanto ao significado desses gêneros literários na literatura brasileira e da América Latina por elucidar os meandros e trânsitos das dimensões biográficas, autobiográficas, memorialísticas, políticas e étnicas, tratando-os como diferentes contextos dialogais. Trabalhar essas diferentes e relacionais dimensões da literatura impôs-se como um desafio para a pesquisa diante do pouco conhecimento biográfico da autora e de sua trajetória.

Sobre esse tema, ingresso tanto na discussão sobre as histórias de fundação e de costumes entrelaçadas, nas quais escritores e escritoras se voltam para os contextos locais, quanto às de gênero, de escritoras etnicamente situadas. Ressalte-se ainda o trânsito por uma época do passado em que a escrita de mulheres escritoras e suas participações no gênero literário ficcional eram predominantemente masculinas. Segundo o artigo de Marina Colasanti e Joyce Cavalcanti (1999COLASANTI, M.; CAVALCANTI, J. A mulher na literatura. In: COLASANTI, M.; CAVALCANTI, J. (org.). O escritor nas bibliotecas. São Paulo: Secretaria Municipal de Saúde, 1999. p. 11-17.), as histórias locais e de costumes e as incursões na temática da escravidão foram uma das primeiras jornadas das mulheres no campo literário de uma época e possibilitou uma mudança da escrita e da ótica contextual e de gênero. Ainda de acordo com as pesquisadoras, a participação de mulheres no campo literário brasileiro inicia-se nas revistas literárias no século XIX e tinha, entre outras características, a campanha pela abolição da escravidão e a defesa dos direitos das mulheres.

Com a modernidade nas artes, esse caminho inicial muda, deslocando a centralidade dos aspectos sociais para os aspectos pessoais. Essa mudança ocorreu em função da inserção das mulheres no mercado literário de publicações, que as incluiu em papéis mais andrógenos que femininos da escritura e distanciaram-se das questões feministas dos contextos internacionais. Essa guinada literária no Brasil constituiu, portanto, uma estratégia para o enfrentamento do mercado literário brasileiro de época predominantemente masculino. Esse mesmo aspecto andrógeno e androcêntrico da literatura de mulheres é levantado por Daphne Patai como responsável pela distorção do conhecimento sobre as mulheres. Para as autoras, as vidas de homens ainda têm sido consideradas mais importantes do que as das mulheres comuns (Colasanti e Cavalcanti, 1999COLASANTI, M.; CAVALCANTI, J. A mulher na literatura. In: COLASANTI, M.; CAVALCANTI, J. (org.). O escritor nas bibliotecas. São Paulo: Secretaria Municipal de Saúde, 1999. p. 11-17.; Patai, 2010PATAI, D. História oral, feminismo e política. São Paulo: Letra e Voz, 2010.).

Isso posto, a obra de Anajá Caetano possibilita o diálogo relacional com diferentes contextos históricos e culturais da literatura de mulheres, desde a insurgência feminina como escritoras até suas participações no gênero literário (as histórias locais e de costumes e as incursões na temática da escravidão). Muda-se, assim, a ótica contextual e de gênero e, a partir de então, ocorre a participação de escritoras da literatura étnica de mulheres no Brasil de época. Vale ressaltar que Anajá, por meio do seu romance, apesar do conhecimento da obra do pai adotivo — uma história de fundação —, escreve por sua escolha na forma romance, a história de São Sebastião do Paraíso. A história do pai representa apenas uma referência para a sua escrita.

Contextualizando de forma mais ampla, segundo Doris Sommer (2004SOMMER, D. Ficções de fundação: os romances nacionais da América Latina. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004.), há uma aproximação entre as ficções de costumes e as de fundação que surgem em uma época na América Latina, mais especificamente na América do Sul, para preencher as lacunas de uma história nacional incipiente. Para essa autora, os romances de costumes se entrelaçam com o que se considera romances de fundação nos projetos de construção mais autóctones e locais, falando de um período histórico pós-colonial em que havia a necessidade de reescrever, por meio das literaturas locais, a história nacional (Sommer, 2004SOMMER, D. Ficções de fundação: os romances nacionais da América Latina. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004.; Rama, 2008RAMA, A. A literatura em seu marco antropológico. In: RAMA, A. Literatura, cultura e sociedade na América Latina. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. (Coleção Humanitas.) p. 183-208.).

O romance de Caetano também permite colocar em discussão a abordagem da literatura étnica de mulheres e oferece uma contribuição de uma reflexão nas ciências sociais, mais especificamente da antropologia na análise da literatura. Relacionado a esse campo disciplinar, a proposta de Angel Rama (2008RAMA, A. A literatura em seu marco antropológico. In: RAMA, A. Literatura, cultura e sociedade na América Latina. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. (Coleção Humanitas.) p. 183-208.) é o ponto inicial. Por meio de um debate textual e crítico à abordagem sociológica, Rama (2008RAMA, A. A literatura em seu marco antropológico. In: RAMA, A. Literatura, cultura e sociedade na América Latina. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. (Coleção Humanitas.) p. 183-208.) argumenta que a antropologia, ao centrar-se desde o início nas relações de alteridade, no reconhecimento das particularidades das culturas, na consideração das diferenças culturais em relação à centralidade da metrópole e no conhecimento das normas reguladoras das tradições, forneceu um passo adiante para a sociologia que, no final do século XIX, é incorporada aos intelectuais latinos de um modo que desqualificava as tradições nacionais, substituindo-as pelos postulados estrangeiros (Rama, 2008RAMA, A. A literatura em seu marco antropológico. In: RAMA, A. Literatura, cultura e sociedade na América Latina. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. (Coleção Humanitas.) p. 183-208.).

O romance de Caetano ingressa nessa discussão ao colocar contrapontos ao modo como o campo literário seleciona os autores e as histórias para tratar os temas locais e, ao mesmo tempo, contextualizar o âmbito nacional do período da escravidão no Brasil. É tal como valorizar na análise da literatura de ficção a participação de autodidatas sobre as histórias de localidades brasileiras e a incorporação de questões de gênero e étnicas.

Os romances históricos no Brasil podem também incluir tanto os elementos documentais quanto ficcionais que expressam contextos geográficos, históricos e socioculturais (Rodrigues, 2013RODRIGUES, C. M. C. Literatura e espacialidade: experiências e narrativas de escritores. Goiânia: Cânone, 2013.). Citando Benedit Anderson, Sommer considera que a América Latina viu tal problemática antes dos europeus, e por isso ofereceu modelos tanto de ficção quanto de fundação unidos em obras mais espacialmente localizadas (Sommer, 2004SOMMER, D. Ficções de fundação: os romances nacionais da América Latina. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004.: 43).

Se lidas individualmente, as ficções de fundação são de fato bastante distintas. Parece difícil, na verdade, falar de um denominador comum dos livros quando os projetos que eles advogam são tão diversos, abrangendo do racismo ao abolicionismo, da nostalgia à modernização, do livre comércio ao protecionismo (Sommer, 2004SOMMER, D. Ficções de fundação: os romances nacionais da América Latina. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004.: 36).

Retomando a participação de escritoras etnicamente sintonizadas à literatura de mulheres, desde a primeira publicação do romance Úrsula, de Maria Firmina dos Reis, em 1859 — considerada por vários autores a precursora do romance escrito por mulheres no Brasil —, e a retomada mais recente das discussões sobre gênero e etnia na literatura das primeiras escritoras negras brasileiras, até então desconhecidas, têm-se revelado. A obra de Anajá Caetano, quando incorporada por sua breve biografia, e a representação na escrita do seu encontro com lideranças de Ghana incluem na obra uma atitude política de grande significado, expressa pelo gênero e pelo aspecto étnico que a compõem. Ela narra, no século XX, fatos históricos do século XIX em um campo literário ainda pouco explorado por mulheres, sobretudo etnicamente situadas nas escritas locais. A participação feminina nessas histórias desafia a predominância de homens (Duarte, 2005DUARTE, C. L. Gênero e etnia no nascente romance brasileiro. Revista Estudos Feministas, v. 13, n. 2, p. 443-456, 2005. https://doi.org/10.1590/S0104-026X2005000200019
https://doi.org/10.1590/S0104-026X200500...
; Rodrigues, 2006RODRIGUES, C. M. C. Histórias sobre lugares, histórias fora de lugar? Os escritores e a literatura do Sudoeste de Goiás. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2006.; 2013RODRIGUES, C. M. C. Literatura e espacialidade: experiências e narrativas de escritores. Goiânia: Cânone, 2013.).

O campo cultural da obra em debate é rico em detalhes ao ingressar e se inserir na etnia negra, seja no misticismo, descrevendo os diferentes rituais negros, cultos religiosos de procedência africana e enaltecendo as formas da cultura negra, seja no relato denso e fecundo da escravidão. Da mesma forma que a interpretação de Constância Lima Duarte conecta Úrsula a um grupo étnico, Caetano “assume o ponto de vista do outro” ao se colocar na posição dos escravos como se ela mesma estivesse na história escrita vivendo e dialogando com os personagens, inserindo-se no contexto como se dele fizesse parte.

A PRÁTICA DE UMA PESQUISA EM ARQUIVOS E O INUSITADO

O relato contextual e descritivo do meu encontro com a obra de Anajá Caetano faz-se necessário por dialogar com o sentido metodológico de uma descoberta inusitada, prenhe de significados. De modo semelhante ao encontro casual da escritora com o livro do pai adotivo que não havia ainda conhecido, no momento de conclusão de seu livro, o meu encontro com a obra de Anajá ocorreu ao acaso, no contexto de outra pesquisa sobre uma região goiana focada nas literaturas locais. Encontrei a obra da autora em análise em 2005, durante a minha pesquisa de doutorado em Ciências Sociais, em uma prateleira de um porão de uma livraria desativada em uma cidade da região sudoeste do estado de Goiás. Havia apenas um exemplar. Na época, o meu objeto de pesquisa era a literatura dessa região goiana, mais especificamente sobre os escritores e escritoras locais, autodidatas (Rodrigues, 2006RODRIGUES, C. M. C. Histórias sobre lugares, histórias fora de lugar? Os escritores e a literatura do Sudoeste de Goiás. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2006.; 2013RODRIGUES, C. M. C. Literatura e espacialidade: experiências e narrativas de escritores. Goiânia: Cânone, 2013.). Ao encontrar o livro, chamou a minha atenção a data da obra e o fato de ela estar protegida por um plástico por ser um exemplar antigo e seu estado de conservação estar comprometido. Comprei e deixei para analisá-la depois do doutorado, uma vez que não se tratava da literatura da região goiana escolhida. Por várias razões acadêmicas de mudanças de temáticas de pesquisa, retomei a análise da obra em 2013, interrompendo-a novamente, e depois em 2021. Com a minha experiência de pesquisa em História Oral, Literatura e Memória, vislumbrei uma oportunidade de retomar o estudo sobre as literaturas locais. Elaborei um projeto para execução e este artigo provém dessa proposta.

A obra de Anajá Caetano ingressa nessa discussão por vários fatores: por ser oportuno o debate de gênero e étnico na literatura e pelo modo como esse campo seleciona autores predominantemente masculinos e suas histórias e obras, para construir, a partir de suas óticas, espaços culturais e geográficos e, ao mesmo tempo, como essa literatura sobre as localidades brasileiras constituem histórias de fundações romanceadas. A desigualdade de gênero no campo literário, apesar de apresentar abrandamentos, ainda é presente quando se considera a totalidade de mulheres que escrevem no Brasil em diferentes literaturas, sobretudo quando se trata de obras espacialmente localizadas e simbólicas.

Para conhecer o espaço geográfico e de referência da escritora e da obra, realizei, em 2013, uma pesquisa etnográfica na cidade de São Sebastião do Paraíso e em Belo Horizonte. A surpresa adveio do fato de eu não encontrar qualquer menção à memória de Anajá Caetano. Havia, na época, algumas incursões e menções sobre o livro na internet, mas pouco aprofundadas em uma análise de dentro. Percebi, então, que teria que lidar com o silenciamento. O silêncio da memória e da história da escritora evidenciou-se pela ausência de marcas e registros.

No entanto, chamou a minha atenção a tradição do espaço referenciado por Anajá, muito conhecido no presente pela realização de congadas, uma referência importante para se pensar o passado de negros na região mencionadas por Caetano.

Nessa experiência de campo, causou-me estranheza o desconhecimento das pessoas da cidade de São Sebastião do Paraíso sobre Anajá Caetano. Os romances de costumes, também considerados de histórias locais e fundacionais de localidades no Brasil, costumam ter lugares especiais nas bibliotecas públicas, em acervos privados, arquivos, museus e em outros espaços. Os escritores locais, em grande parte autodidatas, são também considerados historiadores locais e possuem um status de destaque nas localidades. Eles são sempre chamados para falar quando o assunto é o passado da cidade (Rodrigues, 2006RODRIGUES, C. M. C. Histórias sobre lugares, histórias fora de lugar? Os escritores e a literatura do Sudoeste de Goiás. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2006.; 2013RODRIGUES, C. M. C. Literatura e espacialidade: experiências e narrativas de escritores. Goiânia: Cânone, 2013.).

É importante ressaltar a existência de outros livros sobre a história de São Sebastião do Paraíso, escritos por outros autores em diferentes instituições da cidade.

O silenciamento da memória de Anajá Caetano na época da imersão em campo foi um fato de pesquisa a ser aprofundado para além do que a literatura científica escreve sobre fatos passados de cunho negativo para a região, tal como a escravidão.

MERGULHANDO NA OBRA

A obra Negra Efigênia, paixão do senhor branco, de Anajá Caetano (1966CAETANO, A. Negra Efigênia, paixão do senhor branco. São Paulo: Edicel, 1966.), traz inicialmente uma homenagem póstuma a John F. Kennedy, considerado pela autora “o líder da luta contra a segregação racial”. Os agradecimentos citam ainda pessoas conhecidas, como Florestan Fernandes e José do Patrocínio.

O romance segue o curso inicial descritivo com algum teor documental como parte de uma reconstituição histórica do lugar: o sertão de Minas Gerais e as grandes fazendas localizadas na região. A trama da história — as relações entre brancos (donos das terras e propriedades) e escravos negros — se passa no interior das propriedades, com poucas referências à fundação de São Sebastião do Paraíso, apesar de, desde o início da narrativa, essa espacialidade local ser mencionada. As evidências apresentadas são realmente as de um romance de costumes, mais do que a de fundação de lugares, afastando o teor da história da escrita de seu pai adotivo e tutor.

A narrativa da autora flui no sentido de mostrar os sofrimentos dos negros nas fazendas da região mineira, mas também as possibilidades de superação, alvitrando um futuro que integre a relação de igualdade no contexto espacial e cultural descrito, mas também o clamor mais amplo para relações étnicas mais humanas de igualdade. O encontro da cultura negra de origem africana com práticas do catolicismo popular descrito por ela aponta também para a constituição desse elo. Um dos personagens importantes do enredo é um padre católico que tenta amenizar e diminuir as práticas de tortura com os negros e as negras nas fazendas com a sua interferência religiosa e diplomática com os brancos. É ele que, ao final do romance, realiza o casamento na igreja católica da negra Efigênia e de Paulinho, personagens simbólicos que se casam no dia 13 de maio, dia escolhido por esse padre.

O tema escravidão está sempre presente em toda a narrativa em um contexto de escrita da autora no qual ainda se discutia a liberdade dos escravos um século após oficialmente efetuada no Brasil essa libertação. Esse é um aspecto que chama a atenção para a diversidade de tempo e de espaço da aplicabilidade da lei que envolve a aceitação da condição de libertos e a inserção dos negros na sociedade brasileira. Nesse aspecto, nota-se como a narrativa da escritora está sintonizada com as demandas coletivas, segundo ela, “do meu povo”, assim considerado ao referir-se aos escravos.

A vinculação de gênero e etnia é colocada pela própria autora ao se inserir na narrativa. Mesmo não contida totalmente no romance, essa inserção, frisa-se, pode ser compreendida na leitura dos textos anexos ao livro (orelhas, prefácio e no relato da homenagem especial que recebe por líderes africanos no Brasil). Esses textos acessórios iluminam o romance quando a breve biografia da autora a aproxima da obra literária. Aliás, uma das características do romance de costumes é essa inserção do autor ou autora repercutido na história e na memória na escritura.

GÊNERO E ETNIA NA LITERATURA DE MULHERES

MAIS, SOBRE MULHERES E O ROMANCE DE COSTUMES NO BRASIL

O ingresso das mulheres no romance de costumes no Brasil no século XIX inclui-se como parte das primeiras incursões femininas na arena social, política e histórica ao participarem de um campo predominantemente masculino da literatura de época. No entanto, foi a partir dessas escritas que as mulheres fizeram incursões de enfrentamento da desigualdade e de gênero.

Não se trata aqui, porém, de elaborar uma história dessas conquistas que o passado registrou, mas trazer à discussão a obra de Anajá Caetano, colocando-a como parte desse processo histórico de conquistas femininas. Considero aqui que são duas as esferas que se encontram em determinado momento histórico do ponto de vista político e ideológico: a posição da mulher escritora no contexto do início do século XX e o cenário de escravidão reportado. No romance da autora há explicitamente uma voz que grita contra um processo cruel da escravidão de homens e mulheres em uma conjuntura política e econômica brasileira.

Considero que as características históricas e de gênero do romance de costumes brasileiros iniciaram-se com escritoras autodidatas que, por meio de suas experiências socioculturais, encontraram um caminho em que poderiam ser ouvidas e expressarem-se. Por outro lado, esse gênero literário da forma romance se encontrou, conforme menciona Sarlo (2005SARLO, B. Mulheres, histórias e ideologia. In: SARLO, B. Paisagens imaginárias. São Paulo: EDUSP, 2005. p. 192-196.), com os papéis mais femininos socialmente permitidos de época. Nessa perspectiva, romance de costumes seria a forma “concedida” pelo campo masculino da literatura, sobretudo nos interiores espaciais do Brasil. No caminho inverso dessa interpretação, ao ingressarem nesse campo, as mulheres se expressaram politicamente e ideologicamente a favor de situações variadas de desigualdades sociais, encontrando, assim, um lugar de reconhecimento profissional no campo literário.

Os gêneros biográficos e autobiográficos tiveram o papel fundamental ao significar um instrumento político. É possível que romances como o de Anajá Caetano e outras escritoras etnicamente situadas signifiquem um passo importante para que as literaturas de mulheres adquiram uma proeminência história e participem do que hoje se discute sobre literatura étnica feminina e sejam consideradas na história literária brasileira, saindo do desconhecimento.

Apesar dos perigos levantados por vários autores sobre a análise de biografias e autobiografias, sobretudo quando se refere à unidade do sujeito que narra e à sua centralidade na escrita, a abordagem biográfica pode ser de suma importância para o entendimento das trajetórias pessoais e de grupos, tais como as mulheres, grupos étnicos e outros envolvidos em patamares de diferenças culturais em seus percursos históricos, sociais, políticos e ideológicos em campos em que há oposições significativas.

Fica, assim, uma reflexão final sobre o modo como Caetano, por meio do romance, insere-se em suas narrativas e afasta-se dela, como uma personagem anônima da história, ao mesmo tempo em que se integra de modo coletivo à etnia negra e à relação com a África. O romance tem propósitos políticos e ideológicos maiores de humanidade que se condensam ao final com o casamento de negra Efigênia e Paulinho já mencionado, realizado no dia 13 de maio. As palavras do padre são assim proferidas:

Sejam quais forem as contingências históricas, as verdades terrenas se confundem em suas relações com as revelações divinas, e o homem as interpreta sob a inspiração de Deus. Não há senão um Deus a cobrir a sua bondade extrema, toda a humanidade da qual fazem parte negros e brancos com os mesmos direitos à vida. Os sentimentos são iguais e o mesmo amor puro que une os brancos pode unir um branco e uma preta sob a proteção de Deus (Caetano, 1966CAETANO, A. Negra Efigênia, paixão do senhor branco. São Paulo: Edicel, 1966.: 318).

Com base nesse relato, pode-se compreender que os valores que redundam em uma vocação literária, sobretudo de autodidatas, podem percorrer outros caminhos diversos daqueles reconhecidos pelo campo literário, os quais muitos escritores seguem. A narrativa do romance apresenta um conteúdo representacional oposto àquele que define o escritor como um ser livre, indeterminado, sem raiz, sem ligação a um fato social. Ao contrário, expressa o compromisso com uma etnia na forma de missão, de crença política e ideológica, expondo a tradição da escritura e sua vocação ligada aos seus vínculos culturais e familiares.

ETNICIDADE, GÊNEROS E VOCAÇÃO ARTÍSTICA

O texto de homenagem escrito por Caetano agrega um teor pessoal, mesmo sendo curiosamente escrito na terceira pessoa. Em “Homenagem Especial”, Anajá fala sobre a origem de sua vocação literária ao agradecer a visita do embaixador africano de Ghana e do conselheiro dessa embaixada que foram conhecê-la quando o livro estava no prelo: “Ambos queriam identificar a escritora negra que, no Brasil, quase um século após a libertação dos escravos, escrevia um romance de costumes, reportando com fidelidade hábitos multisseculares de tribos africanas” (Caetano, 1966CAETANO, A. Negra Efigênia, paixão do senhor branco. São Paulo: Edicel, 1966.: 15).

A vocação de escritora com a herança de convivência familiar não é apenas citada, mas resgatada nos termos da cultura apenas mencionando as possíveis influências do pai: “Os Quiocos foram, na África, os precursores de uma série de apreciáveis criações artísticas cuja influência seria impossível negar. As provas são exuberantes quer, no Museu Etnológico de Neuchatel (Suíça), no Museu de Dundo, em Angola” (Caetano, 1966CAETANO, A. Negra Efigênia, paixão do senhor branco. São Paulo: Edicel, 1966.: 15).

O texto complementar de orelha escrito por Eunice Arruda chama atenção para o fato de o livro tratar das memórias de infância de Caetano, quando ela estava sob a tutela de José de Souza Soares. Para essa intérprete, o cotidiano da casa do “tutor”, muito frequentada por seus amigos, e o realismo dos fatos por ele narrados nesse espaço doméstico influenciaram a vocação da escritora. As narrativas orais de seu “pai de criação”, como a autora o considerava, sobre os fatos ocorridos na época colonial em São Sebastião do Paraíso e no contexto espacial da casa onde viveu constituíram lembranças que fundamentaram essa elaboração. Importante frisar que a conclusão do romance foi possibilitada somente após a escritora ter encontrado um exemplar raro da obra do pai adotivo na primeira década de 1960, tendo sido incluídas as informações documentais dessa obra na trama do romance. Contudo, pondera Arruda, o livro de Caetano não ultrapassa os limites da ficção com base em fatos reais, constituindo-se um característico romance de costumes, e tem valor ao também agregar “um caldo de cultura”, referindo-se aos costumes dos negros escravos da região mineira descritos por Caetano na forma romance.

Enfatizando ainda mais com base no texto de homenagem de Caetano — e em contraponto à linha interpretativa dos textos acessórios, no diz respeito à desconsideração da influência paterna nas homenagens (apesar do texto de Arruda) —, é a adoção do grupo étnico na trajetória vocacional da escritora, a inserção a uma coletividade em uma ficção de costumes.

Isso posto, “diletantismo literário” se opõe à reconstituição histórica; a ficção à realidade; o universalismo literário à produção de texto situado pelo gênero e pela cultura, operando essas oposições como dicotomias relacionais que deixam o romance no meio do caminho, entre essas possibilidades. Fica evidente que o lugar do romance de costumes admitido é a ficção. Se há, por um lado, o fato de esse romance referir-se a um contexto coletivo, mais curioso ainda é o fato de as homenagens dirigirem-se para pessoas públicas ligadas à causa da não segregação racial ou de origem africana e apagarem o mérito do pai. Apesar de todas essas questões, a temática étnica do livro sobressai, assim como o posicionamento político da autora e sua origem cultural, fornecendo à obra um valor colaborado pelos intérpretes, apesar das lacunas e críticas que aqui faço desses textos.

Ressalvo então as considerações totais dos textos complementares ao romance que foram destacados neste artigo sobre questões que perpassam as discussões acadêmicas sobre a vocação literária e as relações entre etnicidade e gênero na antropologia e na literatura.

UMA NARRATIVA DE EXCLUSÃO?

Chama atenção o fato de o romance de Anajá contar a história da localidade partindo da ênfase na cultura negra, ao contrário da maioria das histórias de fundações de lugares no Brasil, escritas por homens, que destacam a trajetória das famílias fazendeiras na “formação do patrimônio local”. Ao mesmo tempo em que descreve os acontecimentos da época e a fundação de São Sebastião do Paraíso, a escritora apresenta mais um fragmento sobre a experiência africana no Brasil.

A narrativa é igualmente libertária e dialógica (Hall, 2006HALL, S. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Humanitas, Editora UFMG, 2006.), é composta de fato e ficção e aborda a relação entre os grupos desiguais, equilibrando hábitos das tribos africanas e práticas da colonização no Brasil. A ambiguidade é inerente ao romance e situa-se nas relações afetivas estabelecidas, positivadas e romanceadas entre o senhor branco e a escrava negra, narrada por uma escritora negra. Por outro lado, a biografia da autora que compõe a obra recompõe e reinterpreta essa ambiguidade por permitir compreender o modo como se entrelaçam na escritura de mulheres as memórias excluídas e as emoções.

Indaga-se então o que tece as narrativas femininas de resistência, de transformação e da inversão, da prática e da invenção das práticas, do tradicional. Como resultado de uma ruptura — como pode tudo isso ser escrito? Como as mulheres escrevem esse processo? O que elas escrevem a esse respeito?

É geralmente reconhecido que as recentes organizações femininas sobre assuntos de direitos humanos resgataram a história da América Latina do esquecimento. As mulheres não apenas gritaram por justiça, mas também contribuíram para a preservação de uma memória coletiva. A narrativa contada por vozes femininas coincide com a narrativa feita por camponeses trabalhadores e favelados, frequentemente apontando o mesmo sistema de aliados e inimigos, padrões de tópicos similares, bem como as tensões entre os discursos e as práticas (Sarlo, 2005SARLO, B. Mulheres, histórias e ideologia. In: SARLO, B. Paisagens imaginárias. São Paulo: EDUSP, 2005. p. 192-196.).

A partir do início deste século, as mulheres começaram a explorar os gêneros masculinos como os ensaios políticos e ideológicos. Para tanto, elas tiveram que aprender uma forma de raciocínio, as estratégias de demonstração, a lógica e a retórica da argumentação. Tiveram que fazer isso para ser admitidas no mundo masculino da política e no espaço masculino da discussão ideológica. Na verdade, tiveram que aprender as regras do jogo, regras formais que tornaram possível a elas montar seu discurso público e competir com as regras substantivas que organizam atores e forças no campo (Sarlo, 2005SARLO, B. Mulheres, histórias e ideologia. In: SARLO, B. Paisagens imaginárias. São Paulo: EDUSP, 2005. p. 192-196.: 194).

Relativo ao que diz Beatriz Sarlo (2005SARLO, B. Mulheres, histórias e ideologia. In: SARLO, B. Paisagens imaginárias. São Paulo: EDUSP, 2005. p. 192-196.), Anajá escreve um romance sobre um contexto local que tem como referência central a obra do seu pai adotivo escrita em 1945, por meio do romance. Adota a ficção com menções a fatos e marca a história com sua própria escrita.

NOTAS

  • 1
    Todas as citações do livro de Anajá Caetano são transpostas para este artigo tal como escrita na obra. Haverá estranheza do leitor quanto as diferenças da linguagem, no entanto optei por seguir a obra original. Em complemento ao texto do artigo, escolhi as citações tal como escritas na obra da autora, apesar do tempo verbal na terceira pessoa. Tal como escrita, são elas que expressam suas inclinações para a literatura relacionada a sua origem étnica como mais predominante pelas suas próprias palavras.
  • 2
    Essa segunda citação extraída do texto “Homenagem Especial” do livro mostra, como já mencionado, certa discrepância de o país livre africano com a situação histórica no Brasil pós-abolição da escravatura. A liberdade africana e o escravagismo brasileiro. A origem étnica esmagada sob as condições as quais os escravos já libertos legalmente no Brasil ainda estavam submetidos na localidade de São Sebastião do Paraíso nas fazendas de Minas Gerais. Na diáspora, insere o sonho de superação, a liberdade. Esses significados ficam mais bem entendidos ao final da obra, quando a autora propõe um tipo de superação do regime escravagista.
  • 3
    “Etnicamente situadas”, na minha definição, não significa colocar as primeiras escritoras negras brasileiras dentro de um lócus pré-definido pela etnicidade de suas narrativas, mas situá-las na relação étnica e espacial da escritura e da narrativa. Significa também, pensando como Maurice Halbwachs (1990HALBWACHS, M. A memória coletiva. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990.), que a memória individual e a memória coletiva não são indissociáveis. Esse pensamento se expressa na escritura. No sujeito que escreve, seja uma autobiografia, seja uma biografia, um romance de costumes ou uma história de fundação de lugares. A escrita do romance fornece o contexto de expressão de uma identidade (negra) e de uma experiência (a escravidão) notadamente verificada na narrativa da autora.
  • 4
    O aspecto da “localidade” está presente nas histórias de fundações de lugares e romances de costumes. A espacialidade da memória expressada nas obras literárias locais e é rica para o conhecimento de histórias, costumes, regiões e sujeitos que escrevem sobre essas regiões/lugares/espaços, muitos deles “autodidatas” (Rodrigues, 2013RODRIGUES, C. M. C. Literatura e espacialidade: experiências e narrativas de escritores. Goiânia: Cânone, 2013.).
  • Fonte de financiamento: nenhuma.

REFERÊNCIAS

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    » https://doi.org/10.1590/S0104-026X2005000200019
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    07 Mar 2022
  • Aceito
    30 Ago 2022
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