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O fazer judicial e as moralidades da defesa pública: O ‘procedimentalizar’ e as relações com a ‘família judicial’

The Judicial Action and the Moralities of Public Defense: The ‘Proceduralizing’ and the Relations with the ‘Judicial Family’

RESUMO

Este artigo visa compreender em que medida o fazer judicial dos defensores públicos atuantes em varas criminais é direcionado pelas moralidades desses atores. Para tanto, descreve práticas e discursos informadores observados na atuação de defensores públicos nas audiências de instrução e julgamento, bem como na condução das atividades defensivas como um todo. A investigação conclui que as atividades de defesa processual penal são direcionadas pelas moralidades dos atores com relação ao fato criminoso e ao sujeito criminal, assim como por um elemento estruturante da lógica organizativa da técnica de defesa classificado como procedimentalização.

Palavras-chave:
moralidades situacionais; Baixada Fluminense; justiça criminal; Defensoria Pública; procedimentalizar

ABSTRACT

The Judicial Action and the Moralities of Public Defense: The ‘Proceduralizing’ and the Relations with the ‘Judicial Family’ aims to understand how the judicial actions of public defenders working in criminal courts are guided by the morality of these actors. It describes informative practices and discourses observed in the performance of public defenders in the instruction and trial hearings, as well as in the conduct of defensive activities. The investigation concludes that the criminal procedural defense activities are guided by the morality of the actors in relation to the criminal fact and the criminal subject, as well as a structuring element of the organizational logic of the defense technique, classified as proceduralization.

Keywords:
situational moralities; Baixada Fluminense; criminal justice; Public Defender’s Office; proceduralization

Introdução

Por força da lei complementar no 80/1994, a Defensoria Pública é uma instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, tendo como funções prioritárias a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa dos “direitos individuais e coletivos”, judicial e extrajudicialmente em todos as esferas e áreas. A instituição se apresenta como um instrumento de inclusão democrática1 1 Ver (on-line): http://www.defensoria.rj.def.br/Institucional/o-que-e-defensoria , já que sua função institucional visa oferecer, de forma integral e gratuita, assistência e orientação jurídica aos cidadãos que não têm condições financeiras de pagar as despesas desses serviços, defendendo os interesses da cidadania.

Tendo os mandamentos legais e constitucionais como norte informativo no que se refere à atuação da Defensoria Pública, muitos estudantes de direito optam, ainda na universidade, pela carreira pública. A ideia de que ser defensor público é escolher o “lado bom da força” está difundida entre os profissionais entrevistados nesta pesquisa, demarcando uma oposição ao Ministério Público, em uma alusão à lógica ao contraditório, característica da sensibilidade jurídica brasileira (KANT DE LIMA, 2010KANT DE LIMA, Roberto. “Sensibilidades jurídicas, saber e poder: Bases culturais de alguns aspectos do Direito brasileiro em uma perspectiva comparada”. Anuário Antropológico, vol. 2, pp. 25-51, 2010.). Além disso, o discurso sobre a oposição de forças, fortemente difundido entre os defensores entrevistados, representa a existência de dois ativismos nesse campo, envolvendo a consolidação da carreira da defensoria pública, e faz alusão à atuação mais combativa dos profissionais, muitas vezes análoga às pautas dos movimentos sociais (TONCHE, 2016TONCHE, Juliana. Defensoria Pública do Estado de São Paulo: A emergência de um novo ator em um campo de conflitos e os significados do ativismo. Trabalho apresentado no 40º Encontro Anual da Anpocs, São Paulo, 2016.).

A escolha pela instituição é muitas vezes atrelada à noção de “proteção dos mais fracos ante as arbitrariedades do Estado”, como afirmam defensores públicos entrevistados. O fato dissemina e reitera uma postura de tutela em relação aos assistidos em detrimento da possibilidade de orientação emancipatória, inclusive no que se refere à educação sobre direitos para a cidadania (GARAU e LUZ, 2017GARAU, Marilha Gabriela Reverendo; LUZ, Vladimir de Carvalho. “Educação em direitos: Sentidos e práticas a partir do contraste e do diálogo entre entre as experiências das defensorias públicas e da assessoria jurídica popular”. In: IPDMS. Defensoria Pública, assessoria jurídica popular e movimentos sociais populares: Novos caminhos traçados na concretização do Direito de Acesso à Justiça. Goiás: Anadep, 2017, pp. 219-250.). Em nossa pesquisa, os defensores públicos que se dizem mais apaixonados pela instituição explicam que não poderiam atuar em outras instituições, já que “não têm estômago” para negar remédios a doentes terminais no âmbito das ações da Fazenda Pública, como fazem os profissionais que atuam na Procuradoria, ou para apresentar uma denúncia e pedir a prisão preventiva de uma mãe que furtou uma lata de leite para alimentar um filho faminto. Ao dizerem isso, fazem alusão à forma como atuam seus antagonistas diretos na esfera criminal, os promotores de justiça.

Tendo como norte os discursos e as práticas dos defensores públicos, este artigo se propõe a explicitar e compreender sua atuação em dois municípios da Baixada Fluminense do Rio de Janeiro2 2 Os defensores públicos não serão identificados para não haver comprometimento do sigilo da identidade dos atores entrevistados. . Para tanto, descreve práticas e discursos informadores presentes no fazer judicial desses atores em audiências de instrução e julgamento (AIJ) na esfera criminal e na produção de documentos para a defesa processual penal, a fim de compreender em que medida se alinham. A descrição ganha mais sentido nas interações com outros atores igualmente vinculados ao Estado: juízes e promotores. Além disso, a análise se concentra na relação com atores que utilizam o serviço da Defensoria Pública, já que somente a partir dessa dinâmica é possível compreender as representações do profissional em relação ao crime e ao criminoso e, principalmente, ao papel da defesa pública no processo. Assim, o objetivo passa por discutir como esses atores produzem seus próprios significados sobre a atuação da defesa pública no âmbito do processo judicial e da relação com os cidadãos que recorrem ao serviço por eles prestado.

A pesquisa foi conduzida em duas varas criminais da Baixada Fluminense, dois campos distintos e complementares. A primeira autora fez observação direta em audiências criminais e entrevistou atores da Defensoria Pública no que chamamos de Município I, onde consolidou seu trabalho de campo da pesquisa de doutorado. A segunda autora, por sua vez, foi estagiária na Defensoria Pública do Município II por um ano. A vara criminal onde ela esteve lotada conjugava a defesa de casos do Juizado de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher e do Juizado Especial Criminal. Assim, ela foi observadora participante, já que as principais atividades que desempenhava envolviam o atendimento ao público e a confecção de peças processuais defensivas.

A rotina de gabinete da Defensoria Pública: o ‘procedimentalizar’

Entre as 27 unidades federativas, a Defensoria Pública Geral do Estado do Rio de Janeiro (DPGE-RJ) é a que apresenta a estrutura mais desenvolvida de atuação, concentrando maior contingente de defensores públicos estaduais e de atendimentos às classes populares, sobretudo quando comparada à Defensoria Pública da União no mesmo estado (SANTOS, 2013SANTOS, André Filipe Pereira Reid dos. “Defensoria Pública do Rio de Janeiro e sua Clientela”. Espaço Jurídico Journal of Law, vol. 14, n. 1, pp. 107-126, 2013.). Ela foi criada em 1954, ainda no antigo estado do Rio de Janeiro, que depois se fundiu com o estado da Guanabara. Neste, a Defensoria Pública emergiu como empreendimento de um grupo de promotores de justiça com o objetivo de ampliar o acesso à Justiça entre as camadas economicamente inferiores, no sentido de possibilitar uma gestão mais eficiente das demandas judiciais dos mais pobres. Com a fusão dos dois estados, a instituição foi regulamentada por lei estadual em 1977 (ROCHA, 2004ROCHA, Jorge Luís. História da Defensoria Pública e da Associação dos Defensores Públicos do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004.).

A DPGE-RJ dispõe da maior dotação orçamentária entre os estados brasileiros, ficando a execução orçamentária em 62% do valor destinado à Defensoria, o que corresponde a 0,66% do orçamento executado por todo o estado fluminense3 3 Disponível (on-line) em: http://www.fazenda.rj.gov.br/transparencia . André Felipe Santos (2013SANTOS, André Filipe Pereira Reid dos. “Defensoria Pública do Rio de Janeiro e sua Clientela”. Espaço Jurídico Journal of Law, vol. 14, n. 1, pp. 107-126, 2013.) fez uma pesquisa sobre a estrutura e o funcionamento dessa instituição e identificou que sua estrutura de trabalho e de atendimento ao público é uma das melhores, senão a melhor, entre as defensorias públicas do Brasil. Entretanto, ele mostra que a estrutura é ainda muito precária, principalmente em comparação com o Ministério Público do Rio de Janeiro. Os espaços ocupados pelos defensores são precários, malconservados ou apertados (ou tudo isso ao mesmo tempo); o material utilizado por eles é escasso ou obsoleto, embora tenha havido uma melhoria considerável nos últimos anos. Ainda segundo o pesquisador, o volume de trabalho da Defensoria Pública chega a ser desumano, com cada defensor público respondendo por, em médias anuais, 6.994 atendimentos, 410 ações e 315 audiências.

A reclamação de sobrecarga de processos é constante entre os defensores públicos da Baixada Fluminense. Em certa ocasião, a defensora titular do Município I discutiu com um advogado em função de um comentário feito por ele sobre a demora da Defensoria em apresentar suas respectivas peças defensivas nos casos em que há concurso de agentes e, por isso, outros advogados também atuam na defesa. Ela respondeu, bastante irritada, à insinuação de demora: “O senhor tem 50 clientes por semana só nessa vara? Eu acho que não, né? Então não me venha com esse tipo de comentário, porque eu tenho a carga de trabalho multiplicada por cem”.

Todo esse volume de trabalho da Defensoria Pública do Rio de Janeiro não seria possível sem a participação direta dos mais de mil estagiários de direito em atividade. A seleção dos estagiários é feita por chamada pública de provas e conta com uma demanda crescente de jovens estudantes que se candidatam e são selecionados por meio de prova escrita de conhecimentos jurídicos. Os estagiários são tão importantes para a execução do trabalho da Defensoria que há um setor específico para cuidar da fase de seleção e do acompanhamento da sua atuação.

***

Em 2012, eu estava no início da faculdade de direito e muito empolgada para dar início à aprendizagem do direito na prática, ou seja, aplicar tudo o que vinha aprendendo por meio de manuais e doutrinas aos casos concretos que apareceriam. Porém, em muitos momentos tive tal expectativa frustrada. Eu ainda estava no início dos meus estudos, aprendendo as matérias introdutórias do curso, muito crua para lidar com o cotidiano da Defensoria Pública com a desenvoltura necessária, como meus demais colegas estagiários, para atender aos assistidos e fazer peças processuais todas as tardes.

Embora o estágio em um órgão público seja uma fase comum na formação jurídica de estudantes de direito no Brasil, a noção de que a prática está dissociada da teoria não é enunciada nas salas de aula. Isso porque o estudo jurídico, tal como reproduzido nas salas de aula do país, é transmitido a partir de construções de natureza dogmática, consubstanciadas nos manuais e livros com considerações doutrinárias a respeito de determinados assuntos ou mesmo interpretações acerca de leis, sem que sejam fidedignas à prática judiciária. A pesquisa científica das práticas institucionais, quando (raramente) realizada, tem objetivo meramente especulativo de conhecimento e sistematização ou, em sentido prático, de interpretação das normas jurídicas para sua exata aplicação (LUPETTI e KANT DE LIMA, 2010KANT DE LIMA, Roberto. “Sensibilidades jurídicas, saber e poder: Bases culturais de alguns aspectos do Direito brasileiro em uma perspectiva comparada”. Anuário Antropológico, vol. 2, pp. 25-51, 2010.).

Comecei então a estagiar na Defensoria Pública. Na estrutura do órgão no Município II, cada defensor era vinculado a um juízo específico, denominado vara. Nessa dinâmica, a instituição era responsável por prestar a defesa pública a todos os feitos criminais encaminhados ao juízo quando não houvesse um advogado particular constituído para tanto. Na vara onde eu estagiava havia, além de mim, um estagiário encarregado do expediente4 4 Expediente é uma categoria nativa usada para todos os atos realizados no âmbito do processo judicial. O expediente é diário: são enviados à defensoria autos processuais com prazos em aberto para ciência por parte do defensor ou para a confecção de peças processuais próprias da defesa. das audiências preliminares de crimes de menor potencial ofensivo processados pelo Juizado Especial Criminal (Jecrim). Também trabalhava conosco um secretário, que não era graduado em direito e não prestou concurso público para ocupar o cargo. Não se tratava de um cargo em comissão: o vínculo mais se assemelhava a um contrato de terceirização. Sua função era organizar e agendar horários de atendimento ao público. Ele também era responsável por realizar uma espécie de triagem, separando os casos que poderiam ser encaminhados ao atendimento principal - pelo defensor ou pelos estagiários - daqueles cuja documentação era insuficiente5 5 Era comum que assistidos e seus familiares comparecessem à Defensoria Pública com documentos ilegíveis ou inconsistentes. O secretário os encaminhava a órgãos oficiais, formalmente por meio da expedição de ofícios ou informalmente, simplesmente lhes dando o endereço de onde deveriam se apresentar. .

O atendimento das partes era responsabilidade dos estagiários, encarregados de orientar e explicar o andamento do processo aos assistidos e seus familiares. O contato com os defensores era restrito. Embora os estagiários tivessem mais contato com as partes e seus familiares, pouco ou quase nada daquilo por eles narrado chegava de fato ao defensor ou era assimilado por ele. O defensor público titular passava a maior parte do seu tempo de trabalho em audiências, que levavam muitas vezes o dia inteiro. A ausência de defensores nas lotações em que trabalham, motivada pela necessidade da sua presença em audiências nos mesmos horários do atendimento ao público, era comum em praticamente todas as varas da comarca. Essa agenda estreita, que deveria estar em compasso com a do juiz titular da vara correspondente no tribunal, bem como com a do promotor de justiça, ainda dava azo para o defensor - de maneira semelhante a outros colegas de profissão - ter acesso aos processos e conhecer os réus ou seus familiares apenas no momento das audiências. Eu não tinha permissão para participar delas, pois os estagiários tinham bastante a fazer na Defensoria. Afinal, alguém precisava atender os assistidos e confeccionar as peças defensivas enquanto os defensores cumpriam a agenda de audiências.

Uma das primeiras coisas que aprendi no período foi fazer o “modelão” de resposta à acusação6 6 A resposta à acusação está prevista no artigo 396 do Código de Processo Penal (CPP) brasileiro: “Nos procedimentos ordinário e sumário, oferecida a denúncia ou queixa, o juiz, se não a rejeitar liminarmente, recebê-la-á e ordenará a citação do acusado para responder à acusação, por escrito, no prazo de 10 (dez) dias”. Em seguida, o artigo 396-A do CPP diz que: “Na resposta, o acusado poderá arguir preliminares e alegar tudo o que interesse à sua defesa, oferecer documentos e justificações, especificar as provas pretendidas e arrolar testemunhas, qualificando-as e requerendo sua intimação, quando necessário”. . Era simplesmente uma peça processual salva no computador que era usada pelos estagiários, com dizeres básicos, sem muita profundidade jurídica ou argumentativa - apenas a “defesa técnica” em poucas palavras. Era assim, então, que a primeira possibilidade de o réu se manifestar nos autos do processo acontecia; bastava mudar o nome do réu, o número do processo, colocar ou retirar nomes e dados (telefone e endereço) das pretensas testemunhas - porque todas poderiam mudar na audiência - e modificar a data ao final da folha. Caso a parte ré estivesse ali respondendo ao processo em liberdade, ela assinaria ao final.

Embora o contato com os réus e seus familiares tivesse por objetivo a confecção das respectivas respostas à acusação, as entrevistas com os réus presos raramente eram utilizadas para a escrita dessa peça processual, sendo mais uma maneira de tornar um procedimento a garantia constitucional do acusado. Essa mesma operação de “copiar e colar” nas telas dos computadores os textos de defesa se dava para as demais peças, inclusive as alegações finais, com exceção daquelas que o defensor separava para ele mesmo fazer, ou seja, as dos casos que ele entendia como mais difíceis. No entanto, chama atenção que mesmo as alegações finais, consideradas as peças mais complexas e relevantes para a defesa, já que apresentam toda matéria defensiva de fato e de direito ao juiz, também são produzidas com base em modelos.

Os modelos são inevitáveis, conforme explica a defensora E.:

- Os defensores têm seus modelos e compartilham entre eles. Se você pegar processos de tráfico de drogas aqui da comarca, os três defensores vão usar o mesmo modelo na parte dos fundamentos jurídicos, que é um modelo enorme de uma tese de recurso da Súmula 70 que veio lá da capital. Pode olhar, são os mesmos. As pessoas ficavam loucas comigo quando cheguei aqui, porque no começo eu não tinha modelos, não queria usar. Estava naquele momento de querer conhecer caso a caso. Mas é impossível! A própria rotina não permite. São muitos casos chegando ao mesmo tempo; o trabalho acumula muito depressa. Sem os modelos ninguém consegue trabalhar.

A atividade era automatizada e padronizada. A ideia de um “modelão” não necessariamente vinculado ao caso concreto remete à produção da norma no Brasil: fatos precisam se enquadrar às normas, em uma expressão de ser/dever ser, e não de se/então (GEERTZ, 1998GEERTZ, Clifford. O saber local: Fatos e leis em uma perspectiva comparativa. Petrópolis: Vozes, 1998.). A categoria é utilizada por Geertz no sentido de elucidar que o direito é uma maneira de imaginar o mundo a partir de uma representação normativa, pautada em como as coisas deveriam ser (ser/dever), e não em como elas são, desenvolvendo um sentido de justiça local (Ibid.). Nessa dinâmica, as particularidades dos casos concretos são ignoradas e dão lugar a uma linha de produção.

Nesse sentido, a manifestação da defesa passa a ter um papel meramente formal, assim como outros atos praticados no processo e nas audiências que são levados a termo “só por formalidade” (EILBAUM, 2012EILBAUM, Lucía. “Só por formalidade: A interação entre os saberes antropológico, jurídico e judicial em um juicio penal”. Horizontes Antropológicos, n. 38, pp. 313-339, 2012.). A atividade-fim é procedimentalizar um ato processual sem compromisso com a confecção de um documento de defesa efetiva do acusado no caso concreto. A ideia de “enxugar gelo”, muito difundida nos órgãos públicos, explica bem essa dinâmica. As atividades dos atores que participam das etapas defensivas do processo são limitadas ao cumprimento de um mero ato oriundo do fluxo processual.

Chama atenção o fato de que as práticas que envolvem o uso de modelos são difundidas para além da Defensoria Pública, sendo frequentes entre juízes e promotores. Ao apresentar dados sobre como são produzidas decisões judiciais nessa vara criminal do Município I da Baixada Fluminense, identifiquei a prevalência de modelos de decisões e sentenças tomadas antes de os fatos serem levados ao conhecimento da juíza titular da vara, evidenciando uma prática processual formal de procedimentalização e padronização inevitável de casos semelhantes, com presunção de culpabilidade. Desse modo, atores que atuam no gabinete da juíza são responsáveis pelo preenchimento desses modelos, ao passo que, quando se trata de casos excepcionais, a produção da sentença fica a cargo da juíza, que, então, não usará modelos (GARAU, 2021GARAU, Marilha Gabriela Reverendo. “Os modelões e a mera formalidade: Produção de decisões e sentenças em uma vara criminal da Baixada Fluminense do Rio de Janeiro”. Antropolítica: Revista Contemporânea de Antropologia, n. 51, pp. 85-110, 2021.).

Assim, identificamos na dinâmica interna da Defensoria Pública no campo dos municípios I e II similitudes de práticas que separam casos semelhantes de casos excepcionais. Na Defensoria Pública, casos classificados como mais fáceis são de responsabilidade dos estagiários, e os mais difíceis são confeccionados pelo defensor público. Os primeiros envolvem tipos penais com maior incidência na comarca e, portanto, têm modelos consolidados que correspondem à lógica do procedimentalizar.

São os casos semelhantes que organizam e orientam a dinâmica de julgar do gabinete. Mobilizo a categoria casos excepcionais, em contraste aos casos semelhantes. Entretanto, não como um mero sinônimo daquilo tachado como casos corriqueiros ou de rotina, mas no sentido de chamar a atenção para o fato de que sobre os casos semelhantes prevalece a máxima da presunção de culpabilidade, orientada desde o início pela procedimentalização dos atos que antecedem a fase de conhecimento e julgamento. Isso se consolida num processo que conjuga o elemento da sujeição criminal operacionalizado dentro de um sistema de justiça criminal que valoriza práticas inquisitoriais que partem da desigualdade de indivíduos na hierarquia social (Ibid., p. 100).

Essa prática aparece alinhada com a previsibilidade das decisões e sentenças judiciais e a lógica de que casos semelhantes conduzem à presunção de culpabilidade do réu, assimilada pelos defensores públicos quando da interação com os réus, seja dentro ou fora da cena da audiência, conforme será demonstrado na seção a seguir. O pertencimento à família judicial aparece de igual modo como mola propulsora das moralidades que constroem representações sobre as identidades dos réus e a presunção de culpabilidade.

A Defensoria Pública e o ‘procedimentalizar’: a cena da audiência criminal

O defensor chegou apressado. Ele estava duas salas adiante no corredor em relação àquela onde estávamos. Acumulava, além da vara criminal pela qual era responsável, aquela onde aconteceria audiência, de titularidade de outra defensora pública, que estava de férias. O juiz também não era o titular. Assim como o defensor, ele acumulava a vara onde aconteceria a audiência com a vara da qual era titular.

Momentos antes, enquanto aguardavam a defesa, juiz e promotor conversavam amigavelmente sobre as férias do acusador, que retornara havia poucos dias da Europa e se queixava de ter voltado tão depressa ao trabalho. O viajante também reclamava do calor e da lotação das cidades europeias em junho. O juiz aquiesceu e declarou sua preferência por viajar no início do ano, quando as temperaturas são amenas e as ruas estão mais desertas. Mas, para ele, o velho continente já não tinha mais o mesmo glamour de anos atrás; a decadência estaria relacionada à enorme quantidade de turistas brasileiros que agora visitavam os países europeus e à imensa quantidade de imigrantes recebidos pela União Europeia nos últimos anos. “Paris está decadente”, sentenciou.

Um pouco afobado, o defensor cumprimentou amigavelmente os dois que já compunham a cena. Tomou assento e pediu para ver os autos do processo do caso da AIJ que começaria naquele momento. Eles já se conheciam e conheciam também a defensora que estava de férias. Todos se tratavam pelo primeiro nomes. Nas comarcas do interior, a noção de que todos são uma “família judicial” (NUÑEZ, 2018NUÑEZ, Izabel Saenger. Aqui não é casa de vingança, é casa de Justiça! Moralidade, hierarquizações e desigualdades na administração de conflitos no tribunal do júri da comarca do Rio de Janeiro. Tese (Doutorado em Antropologia) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2018., p. 80) é mais evidente; o número reduzido de varas e, consequentemente, de profissionais vinculados a elas possibilita que a relação de proximidade entre os atores seja mais intensa.

Apesar da característica observada na audiência, a rotatividade de juízes, promotores e defensores é uma constante no campo da justiça criminal no Rio de Janeiro, particularmente na Baixada Fluminense. Ao acompanhar audiências sobre casos de tráfico de drogas percorrendo diversas comarcas da capital fluminense, uma das autoras deste artigo observou a reiteração dessas práticas de substituição e acumulação, algo que também ocorria no Município II.

Na Defensoria Pública, a prática era ainda mais corriqueira. Até 2016, a carreira inicial de defensor era marcada pela característica da mobilidade dos atores, convocados e lotados em uma nova repartição quando defensores titulares gozavam períodos de licença. Conforme explicou a defensora C., ao ingressar na carreira, em meados de 2010, ela foi designada nos primeiros meses de atuação para quatro comarcas diferentes, sendo também designada por demanda para atuar na capital, na região litorânea, na Baixada Fluminense e no Sul Fluminense. Segundo conta, o diminuto período de permanência em cada uma delas dificultava o acompanhamento de processos e o desenvolvimento de vínculos com os profissionais da defensoria e demais atores da cena judicial (juízes, promotores, outros defensores etc.) e produzia descontinuidade das atividades de defesa.

De fato, tal consequência foi observada pelas autoras ao longo do trabalho de campo. O defensor N. recebeu a incumbência de confeccionar alegações finais de um processo sem ter acompanhado as respectivas AIJs. Porém, ao verificar que o caso tratava de um crime de roubo em flagrante com emprego de arma de fogo, ele se sentiu um pouco aliviado após verificar os autos: “Menos mal que é um caso comum. Foi preso em flagrante, saidinha de banco, mas não tem laudo da arma aqui. Já sei o que vou ter que pedir”.

Na prática, o campo demonstrou que a AIJ representa o momento em que a defesa pública tem o primeiro contato com o réu e o caso como um todo, como ficará evidente adiante. Logo, não acompanhar a AIJ e ainda assim ter de confeccionar a peça defensiva, embora seja identificado como uma dificuldade para os defensores entrevistados - caracterizando, segundo a defensora pública C., uma descontinuidade do serviço público -, não impede a apresentação das alegações finais. Isso ocorre porque o ato da AIJ também é regido pela lógica da procedimentalização. Considerando que há previsibilidade de sentenciamento para os casos semelhantes, torna-se possível que um defensor que não teve contato com o réu ou com a cena da audiência ainda assim produza a peça processual mais importante, nos termos dos próprios interlocutores, das fases do procedimento penal.

Voltando à cena, o defensor folheava os autos em um compasso apressado. Sendo observado pelos presentes na sala, sua respiração ainda era acelerada, mas aos poucos ia se normalizando, entre a caça à página da denúncia e suas anotações em um pequeno bloco de notas. Ele explicou ao juiz que ainda não tivera um primeiro contato com o acusado porque o réu não estava na “carceragem”7 7 Carceragem é o local para onde são direcionados aqueles que aguardam julgamento presos. Quando são levados do presídio para as audiências do processo, são direcionados a esse espaço até serem convocados pelo juiz. No Município I, a carceragem fica no subsolo do Fórum, dividindo espaço com uma parte do estacionamento, somente podendo ser acessada através de um único elevador lateral. Apenas advogados, defensores, juízes e promotores podem ter contato com os presos na carceragem. As instalações remontam a uma prisão desde a entrada: há detectores de metal e os advogados precisam deixar celulares e outros pertences em um armário antes de ir às salas reservadas para conversar com os presos. Esse espaço de conversa lembra bastante o cenário dos filmes americanos: um corredor com seis portas do lado esquerdo; dentro da porta, uma divisória de vidro e um telefone. A estrutura da carceragem no Município II é semelhante, porém de menor proporção. Havia apenas uma sala denominada “parlatório”, no subsolo do Fórum, para que os advogados ou representantes da Defensoria se comunicassem com os presos através de um interfone, tendo uma vidraça como anteparo. quando ele se reuniu com outros presos. Diariamente, presos aguardando julgamento são levados do presídio de origem à comarca onde será realizada a audiência. Muitos estão acautelados em Japeri, Bangu, Benfica e até em São Gonçalo. Não raramente, esses presos não chegam no horário agendado das audiências, já que é necessário atravessar a cidade até o fórum de destino e cada carro do órgão responsável pelo transporte leva presos a distintas comarcas.

Uma mulher que observava tudo em silêncio enquanto mexia no computador atendeu ao pedido do juiz e ligou para a carceragem. Depois de alguns instantes aguardando na linha, confirmou a chegada do preso. “Posso mandar trazer?”. O juiz aquiesceu e anunciou que o defensor poderia conversar com o acusado ali mesmo, na sala de audiências. “Hoje estamos com tempo”. O juiz levantou e sugeriu uma pequena pausa, convidando o promotor para um café.

Ficamos por longos minutos na sala. Eu, a mulher, que voltara a olhar para a tela do computador e o defensor público, que permanecia sentado à esquerda da mesa de audiências e folheava o processo de um lado a outro, vez ou outra mexendo no celular. Eu pensava sobre o nó perfeito de sua gravata azul; seu terno cinza contrastava com o negro dos outros dois homens que até pouco antes compunham a cena. Ele tinha 31 anos e era defensor público “por paixão”, como costumava dizer. Cursou direito em uma instituição privada e tinha seis anos de Defensoria Pública, sendo dois deles dedicados à atuação na defesa criminal. Nos quatro anos que antecederam a experiência no âmbito criminal, trabalhou na condução de processos no cível. Segundo ele, os inventários eram mais trabalhosos: “O cara que está preso não tem ninguém atrás do dinheiro dele. Agora, quando morre, vou te contar...”, costumava brincar. Ele narrou que passou parte de sua infância em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense; embora não vivesse lá havia muitos anos, conhecia as condições de pobreza da região e, por isso, sempre ficou muito satisfeito por estar lotado ali e poder desenvolver seu trabalho institucional na região.

O réu chegou. Ele estava algemado com as mãos na frente do corpo. Um policial alto e robusto o conduziu até seu lugar cativo na sala de audiência: a ponta da mesa. O rapaz, negro e franzino, não aparentava ter mais de 18 anos de idade. O policial ordenou que sentasse e colocasse a mão embaixo da mesa: “Não coloca em cima!”. Imaginei que o condutor se retiraria, mas ele ficou lá de pé, ao lado do acusado. “Devo sair?”, perguntei reticente ao defensor, que agora afrouxava sua gravata. Provavelmente eu estava mais incomodada com a presença do policial e da secretária - que não desgrudava os olhos do computador - do que com a minha própria condição de observadora. “Não precisa. Vai ser jogo rápido”.

Voltei minha atenção para a conversa entre o defensor público e o acusado. Não precisei fazer muito esforço para ouvir. Conversavam em tom normal, inobstante o fato de não estarem a sós. Eles não se conheciam, nunca haviam se visto. O defensor se apresentou, dizendo que era o responsável pela defesa do caso naquele dia. A acusação era de tráfico de drogas. “Você está pensando em confessar?”, perguntou, sem muitos rodeios. O acusado pareceu confuso. Adiantou-se em explicar que era usuário de crack. Disse que fazia uso da substância desde os 12 anos de idade e que já fora submetido a um tratamento, mas que não conseguia parar, pois aquela era a sua doença. O português dele me soava ruim. Trocava algumas letras e dava ênfase ao final de todas as vogais. Também não usava muito o plural. Ele gaguejava muito, parecia estar com medo. O defensor pediu mais informações:

- Entendi, mas você tá sendo acusado de tráfico. Você pode me contar melhor o que aconteceu no dia em que você foi preso, pra eu poder fazer uma defesa melhor pra você? (Defensor)

- Eu tava lá na cracolândia, perto do beco, doidão já. Tinha usado muita droga. Mais de cem pessoas, tudo lá na fila pra comprar as droga. Aí a polícia já chegou atirando. Geral correu; eu não conseguia nem levantar, fiquei sentado no chão. Eles já chegaram esculachando, dizendo que a droga era minha. [Diziam:] “Deita no chão”, que não sei o que lá. Aí depois, quando eu contornei, eu tava no carro deles lá. Aí pra delegacia eles falaram que eu tava com 1kg de droga, mas eu não tava. (Acusado)

O réu levantou as mãos algemadas com certa dificuldade. Eu não pude vê-las porque ele estava de costas para mim. Ele relatou que teve a mão esmagada por um carro enquanto dormia na rua e estava drogado. Imaginei uma mão retorcida. E completou, explicando que esteve no hospital dois dias antes da ação policial que resultou em sua prisão: “Eu tava passando fome porque não podia carregar 1kg de arroz pra comer. Como que ia carregar 1kg de droga?”.

A versão do acusado não pareceu afetar o defensor; foi como se o réu não tivesse dito nada, ele não parecia surpreso com o relato. Perguntou ao homem se ele já tinha sido processado antes. Sim e não. Nunca foi condenado, mas, quando adolescente, foi levado à delegacia por um ato infracional, tendo sido liberado sem nenhum registro oficial do ocorrido. O defensor voltou sua atenção para os autos e confirmou a versão do réu: não tinha antecedentes criminais. O defensor anotou a página da folha de antecedentes criminais (FAC) em seu bloco de notas e prosseguiu:

- Você trabalha? (Defensor)

- Eu tô desempregado desde 2015, mas antes eu era ajudante de pedreiro. Depois, com as drogas, nem consegui voltar mais. (Acusado)

O defensor coçou a cabeça e voltou a folhear os autos. Anotou as duas últimas informações em seu bloco.

- OK. Quer me perguntar alguma coisa? (Defensor)

- É pra eu falar o que, doutor? Eu posso falar com o juiz? Dirigir a palavra a ele? Explicar o que aconteceu? (Acusado)

- Você só deve falar com o juiz se ele falar pra você, mas no seu caso... Olha, sinceramente, eu acho melhor você não falar nada. (Defensor)

- Mas eu não queria não falar não, doutor. Todo mundo que tá lá em Bangu [Complexo Penitenciário de Gericinó] fica preso porque não quis falar. Aí que o juiz mete o pau mesmo. (Acusado)

- Mas não tem necessidade de você falar. Eu vou fazer a sua defesa e explicar tudo isso que você tá me dizendo. Não tem nada na lei que diga que você falar ou não falar vai causar a sua condenação. Eu acho melhor você ficar calado, até porque nada do que você diga vai ter mais relevância do que o que os policiais vão dizer. Então, por isso, pra evitar que você se enrole, de repente, com uma das perguntas do promotor, é melhor você exercer o seu direito constitucional ao silêncio. É direito seu. Não se preocupa, que o juiz não pode usar isso contra você. (Defensor)

O réu pareceu confuso e até um pouco desapontado. Permaneceu cabisbaixo durante toda a audiência, escutou as testemunhas de acusação em silêncio e assim permaneceu até o final. Sua versão sobre os fatos não foi exposta oralmente pela defesa. “Ele vai se valer do direito ao silêncio, Excelência”. A defesa também não expôs a narrativa do acusado nas alegações finais. O defensor costumava dizer que não se pode “inventar muito”, pois versões muito detalhadas são facilmente rechaçadas pela acusação e desconsideradas no momento da sentença. Em outros casos, pedia para os réus ficarem calados, exercendo o direito constitucional ao silêncio. Segundo ele, a Defensoria Pública fica de “mãos atadas” porque não dispõe de meios para produzir provas, e versões sem provas são inúteis e “interpretadas como tentativas desesperadas” não só pela acusação e pelos julgadores, mas também por ele mesmo, já que se sentia envergonhado quando advogados particulares tentavam emplacar versões defensivas. “A gente precisa entender que o réu é o fodido; a situação dele é essa. O Estado tem todas as provas contra ele. A gente pode tentar amenizar a condenação, diminuir as penas, mas, sinceramente, absolvição é quase impossível”.

Nesse sentido, é possível identificar, a partir das práticas e dos discursos desse defensor, a valoração de quem o indivíduo é na sociedade: sua condição de ser social trabalhador e ter ou não antecedente criminal são pontos mais significantes para a promoção da defesa do que os fatos dos quais o réu é acusado. Espera-se, portanto, que a aparência e o comportamento dos presos sejam compatíveis, de modo que as características visíveis relacionadas a determinado estereótipo sejam reforçadas pelas características não visíveis (trabalho, local de moradia, escolaridade, antecedentes criminais e afins). Por essa razão, os argumentos mais mobilizados pela defesa são centrados em desconstruir o estigma da figura criminosa (GOFFMAN, 1985GOFFMAN, Erving. Estigma: Notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, 1985.) e dar lugar a uma noção de cidadania regulada (CARDOSO, 2019CARDOSO, Adalberto. A construção da sociedade do trabalho no Brasil: Uma investigação sobre a persistência secular das desigualdades. Rio de Janeiro: Amazon, 2019.; SANTOS, 1987SANTOS, Wanderley dos. Cidadania e justiça: A política social na ordem brasileira. São Paulo: Paulus, 1987.). Tal cidadania está expressa na carteira de trabalho, já que profissões classificadas como “bicos” e trabalhos no setor informal da economia não são considerados suficientes para embasar a desconstrução de tal imagética.

Na estrutura do Judiciário, o réu ocupa um lugar bastante frágil. E, apesar dos dizeres constitucionais de que ele tem direito de produzir sua autodefesa, ou seja, falar sobre o fato que aconteceu em juízo, sua voz é silenciada - seja explicitamente, como no caso narrado, seja simbolicamente, já que as versões dos fatos explicitadas pelos réus são desconsideradas. A prática é corriqueira tanto nas AIJs como no momento de oficializar a defesa em um documento escrito, quando da apresentação de peças processuais. No caso apresentado, não houve nas alegações finais menção ao fato de o réu ter tido as mãos esmagadas, mas apenas à primariedade e à condição de dependência química. Isso acontece porque, para a defesa, o argumento técnico é dominante.

A versão dos réus não é sequer apresentada em juízo, já que a orientação é no sentido do silêncio. Ainda quando há a possibilidade de serem ouvidas no ritual das audiências, suas versões são recepcionadas com descrédito, seja em função da presunção de veracidade inerente aos documentos produzidos pelo Estado e seus respectivos agentes, que concedem verossimilhança a essas premissas (JESUS, 2016JESUS, Maria Gorete Marques. O que está no mundo não está nos autos: A construção da verdade jurídica nos processos criminais de tráfico de drogas. Tese (Doutorado em Sociologia) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016.), seja pela atribuição de descrédito a determinados sujeitos morais, evidenciando um “ato de desconsideração” (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2010CARDOSO DE OLIVEIRA, Luís. “A dimensão simbólica dos direitos e a análise de conflitos”. Revista de Antropologia da USP, vol. 53, n. 2, pp. 451-473, 2010.). A soma dos dois fatores constrói a exclusão discursiva do réu no processo (Idem, 08/06/2020), Além de reiterar uma lógica que perpassa toda a estrutura da persecução penal, tal perspectiva produz efeitos concretos que serão determinantes na condução instrumental do rito processual (GARAU, 2020GARAU, Marilha Gabriela Reverendo. Silêncio no tribunal: Um estudo contrastivo das representações judiciais sobre crimes de tráfico de drogas no Rio de Janeiro e em Málaga na Espanha. Tese (Doutorado Sociologia e Direito) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2020.) - e passa a nortear o fazer judicial de todos os atores envolvidos no processo, sendo naturalizada e reproduzida pela defesa pública.

A Defensoria Pública e o pertencimento à ‘família judicial’

Se chegarmos em uma sala de audiência e juiz, promotor e defensor público não estiverem sentados em seus lugares cativos naquele espaço, podemos facilmente confundi-los. Isso porque todos têm uma aparência similar: tipo de vestimenta, postura, forma de falar. No caso em questão, todos têm a mesma cor de pele, recebem salários aproximados, frequentam os mesmos espaços sociais em momentos de lazer, viajam para os mesmos países. Compartilham assim, capitais simbólicos, sociais e culturais muito similares.

O réu, por sua vez, não se confunde com esses atores, mas facilmente se confunde com outros réus. Para além dos estigmas próprios da situação de preso (chinelos, bermudas, camiseta e algema), o acusado ocupa um lugar na sociedade muito distinto daquele dos que conduzem seu processo. A cor de sua pele é a característica mais óbvia, mas os capitais socioeconômico e social-cultural do acusado fazem transparecer a desigualdade estampada. Ademais, no Rio de Janeiro, permanece a estrutura da sala de audiências que coloca juiz e promotor assentados lado a lado no ato da audiência processual.

Izabel Nuñez (2018NUÑEZ, Izabel Saenger. Aqui não é casa de vingança, é casa de Justiça! Moralidade, hierarquizações e desigualdades na administração de conflitos no tribunal do júri da comarca do Rio de Janeiro. Tese (Doutorado em Antropologia) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2018.) observou, em sua pesquisa no Tribunal do Júri da Comarca da Capital do Rio de Janeiro, que, ao se organizarem dessa forma, os atores do Judiciário reforçam a proximidade entre promotor e juiz, que muitas vezes compartilham informações e impressões sobre o caso em questão. A defesa, por sua vez, é afastada dessa interação, isolada dessa estrutura simbólica. A acusação permanece sentada ao lado do juiz e em posição literalmente superior à defesa, pois seu assento fica em um tablado mais alto. O réu e seu defensor, assim, foram ainda mais afastados do centro de poder: ficam posicionados de lado, distantes das dinâmicas que acontecem perto dos jurados. Estes, por sua vez, ficam subordinados às falas e expressões do magistrado e da acusação. Retira-se, assim, qualquer organização adversarial do espaço. A configuração observada pela autora no plenário do júri explicita as desigualdades e hierarquias do tratamento dispensado às partes, isto é, aos agentes que fazem o julgamento.

No campo das varas criminais, a estrutura de proximidade e afastamento se reproduz. Era comum que a juíza titular da vara comentasse sobre os casos com os promotores, apresentando sua opinião pessoal sobre os fatos. Ela também podia estender as suas impressões aos defensores públicos com os quais tinha mais proximidade, mas nunca aos advogados particulares. A estrutura dialógica que separava a juíza e o promotor dos demais não versava apenas sobre casos concretos, mas também sobre assuntos da vida particular da própria juíza. Ela tinha muita estima por dois dos promotores.

P. era promotor substituto e trabalhava havia pouco tempo na Baixada Fluminense. Ele ainda não havia completado 30 anos de idade; estava em fase de estágio probatório no Ministério Público. A juíza mantinha com P. uma relação amigável e bastante solícita. Em algumas ocasiões, esclareceu dúvidas procedimentais do jovem promotor e até o auxiliou com o preenchimento de uma documentação institucional, instruindo-o na acusação de um caso.

H. era o promotor mais próximo da juíza. Seus cabelos grisalhos sugeriam que eles combinavam na faixa de idade e de tempo de carreira. Ele visitava o gabinete da juíza com frequência para lanchar e tomar café nos dias em que suas escalas combinavam. Ambos viviam no mesmo bairro do Rio de Janeiro e frequentavam espaços sociais comuns, já que conheciam as mesmas pessoas e eram parte do mesmo círculo social.

J., defensora pública, também era bastante próxima dos dois. Nas ocasiões em que a escala dos três coincidia, as audiências eram conduzidas em um tom muito animado. Eles comentavam em tom jocoso sobre as pessoas e os casos do dia, enquanto conversavam sobre assuntos variados, desde política até fofocas institucionais, passando por filhos, viagens e festas. J. era a mais antiga dos três na comarca, conhecia todos os servidores, circulava pelo Fórum cumprimentando a todos. Quando chegava no corredor da parte invisível para o público, ela já falava alto desde o começo do caminho, cumprimentando policiais e servidores. Brincava sobre futebol e perguntava sobre os familiares de cada um com quem se deparava. Era uma mulher exageradamente simpática. Falava e ria alto. A juíza identificava a chegada de J. já de longe, porque ouvia sua voz e as gargalhadas pelos corredores: “Olha a doida chegando aí”, comentava entre risos com o amigo promotor.

Era comum, mesmo após a chegada do réu, que defensora, promotor e juíza continuassem o assunto sem se importar com a presença do acusado. A juíza interrompia brevemente a conversa para saber se a defensora já havia estado com o réu antes e então continuavam proseando, enquanto cada um deles se localizava no processo. Depois de algum tempo, o tom mudava, como em uma virada de chave, e um deles voltava para a cena a partir da assunção da performance do papel institucional que lhe cabia. A mudança de tom inevitavelmente conduzia os demais à adoção de uma conduta menos informal: “Vamos começar?”.

O clima amigável se convertia por alguns instantes em um tom de formalidade. O promotor então fazia uma breve leitura da denúncia para anunciar ao réu os fatos da audiência. Na sequência, havendo vítimas ou testemunhas de acusação, ele as interrogava e, posteriormente, a defensora também o fazia. Se a juíza tivesse alguma dúvida em relação ao testemunho, ela intervinha, fazendo perguntas. A defensora pública tinha como práxis pedir que os réus não falassem - a prática era comum entre todos os membros da Defensoria naquela comarca, como um acordo tacitamente celebrado entre eles. Sobre o assunto J. explicou:

- Eu não gosto que falem. Sempre falo pra quem tá entrando na Defensoria [novos defensores] darem preferência pro silêncio do réu e em hipótese alguma instruírem as testemunhas. Eu mesma nem gosto de trazer testemunha nenhuma, porque atrapalha mais. (Defensora J.)

- Atrapalha em que sentido? (Entrevistadora)

- Na defesa técnica. Eu posso construir bons argumentos pra diminuir a pena do réu, pra deixar o processo robusto, pra interpor um recurso e até, de repente, pra absolver eles, se eles não se afundarem mais na situação. (Defensora J.)

Outro defensor também comentou não gostar quando os réus falam nas audiências:

- Não é por nada, mas eles têm dificuldades cognitivas. Inventam histórias que não conseguem sustentar. Se alguma coisa sai do roteiro, eles já não sabem o que falar. Melhor ficar calado. Alguns fazem muita questão de falar, aí eu deixo. Vou fazer o quê? Não posso amordaçar. Se for um caso que não estranho, eu até deixo falar. (Defensor)

- Como assim caso estranho? (Entrevistadora)

- Ah, se eu suspeitar que a pessoa é mesmo inocente. Se as histórias que eles contam me convencerem, aí eu deixo falar. Vai que convence outra pessoa também. Até porque vou ter que seguir nessa linha de defesa. Daí mando falar mesmo. Mas eu realmente prefiro que não fale. Vou lá embaixo, converso com eles, vejo o que posso apresentar nas alegações finais, se eles têm antecedentes, se trabalhavam e pronto. Não adianta insistir em teses mirabolantes se a gente não vai ter como provar nada. (Defensor)

A juíza permitia que J. entregasse lanche para seus assistidos: “Vai lá, defensora dos pobres e oprimidos”, debochava. Era a comida trazida pela própria família do acusado, aquela que não podia ser entregue pelos advogados particulares. Apesar da proximidade entre as duas, não observei entre elas negociações explícitas em casos nos quais a defensora atuava. Ao contrário, em raras situações a defensora conversou sobre a situação de algum réu. Em certa ocasião ela pediu a liberdade provisória de um réu porque ele já tinha uma idade avançada e estava com pneumonia. A juíza não determinou a liberdade do acusado, mas quando a audiência terminou redigiu um ofício para a direção do presídio solicitando que lhe fossem prestados serviços médicos imediatamente, com encaminhamento do acusado para tratamento ambulatorial, se necessário.

Em outra ocasião, entretanto, a situação foi diferente. Era uma audiência em que o réu estava presente, com a cabeça enfaixada e sem conseguir falar por conta de um acidente no dia de sua prisão. De acordo com a denúncia, ele havia caído da moto quando tentava roubar um carro; bateu forte com a cabeça no asfalto e ficou sangrando, desmaiado no chão, enquanto seu parceiro persistia na empreitada criminosa. Os policiais militares e o corréu do caso confirmaram que ele havia sido levado para um hospital público nos arredores da cidade, e o laudo apresentado pela defesa demonstrou que o rapaz esteve em coma por duas semanas e, por conta do acidente, sua fala e capacidade mental estavam comprometidas. Quando a advogada particular solicitou a liberdade provisória ou a remoção do réu para um presídio especializado, a juíza negou e ainda comentou entre seus pares no fim da audiência que aquilo tudo era cena. Acrescentou que o réu podia sim falar e que já estava plenamente recuperado do acidente, uma vez que se movimentava sem prejuízos. Estariam, portanto, “armando” para que ele fosse solto.

A relação entre juíza, promotor e defensor levou-me a refletir sobre aquilo identificado por Nuñez (2018NUÑEZ, Izabel Saenger. Aqui não é casa de vingança, é casa de Justiça! Moralidade, hierarquizações e desigualdades na administração de conflitos no tribunal do júri da comarca do Rio de Janeiro. Tese (Doutorado em Antropologia) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2018.) como família judicial. Essa relação se constrói e é representada moralmente entre aqueles que fazem parte da família. Os sentidos que atribuem a casa (espaço privado) e rua (espaço público) são compartilhados por todos ao longo do fazer judicial. A antropóloga ainda observou que o principal traço que fazia da família judicial uma família era “reforçado por dar conta do fazer judicial, da maneira mais rápida e simples possível” (Ibid., pp. 88-89).

Uma vez que a defesa pública é representada pela juíza como parte dessa interação que possibilita o fazer judicial naquele espaço, ela é tida como uma igual - seja por seu pertencimento ao público seja por sua forma de trabalho, que possibilita essa dinâmica.

Observo uma dinâmica que perpassa toda a fase processual das AIJs, dando lugar a atos que são cumpridos “só por formalidade”, como relatado pela antropóloga Eilbaum (2012EILBAUM, Lucía. “Só por formalidade: A interação entre os saberes antropológico, jurídico e judicial em um juicio penal”. Horizontes Antropológicos, n. 38, pp. 313-339, 2012., pp. 335-337) quando participou, na condição de testemunha, de um Juicio Oral em La Plata, na Argentina. A ênfase na expressão “só por formalidade” se dá em função da excepcionalidade de se ouvir testemunhas que não pudessem falar sobre as circunstâncias dos fatos. Ela estava ali na condição de testemunha técnica, para apresentar o estudo comparado que havia feito entre os contextos brasileiro e argentino. Ocorre que a autora identificou um incômodo dos operadores em relação à sua presença, já que, uma vez que não tinha relação com o caso, não se expressava na linguagem jurídica para aportar elementos técnicos. Portanto, não atendia às expectativas dos interlocutores no sentido de compor adequadamente o cenário em que se constroem os procedimentos de aferição da culpabilidade dos sujeitos envolvidos no caso sob julgamento.

Na Baixada Fluminense, identifico que há por parte da família judicial um incômodo sempre que aqueles que não fazem parte dessa família entram na cena da audiência. Isso acontece porque todos os atos da audiência são conduzidos por seus integrantes “só por formalidade”. A denúncia é lida só por formalidade; as testemunhas policiais, de igual modo, são recebidas por formalidade. O réu, quando fala, também é ouvido nesse registro. Quando alguém de fora da família judicial entra, inadvertidamente, em cena, a condução protocolar, formal, dá lugar à lógica do contraditório. Ou seja, dá-se um processo em que aqueles que conduzem o formalismo do rito buscam desqualificar as teses presentes no argumento alienígena, não permitindo que este componha o enredo da verdade a ser construída sobre o caso.

Cabe ressaltar que isso não significa que a Defensoria renuncia ao contraditório, mas apenas que o fará em outro momento oportuno, na apresentação das alegações finais. Entretanto, no ato da audiência, a apresentação das teses por essas partes está destinada unicamente a cumprir uma nova etapa do procedimento, já que para eles é mais claro que a decisão final se baseia exclusivamente no convencimento do julgador (MENDES, 2011MENDES, Regina Lúcia Teixeira. Do princípio do livre convencimento motivado: Legislação, doutrina e interpretação dos juízes brasileiros. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.). Os advogados particulares, por sua vez, estão empenhados em convencer a juíza sobre um outro ponto de vista, na esperança de desconstruir as presunções inerentes a todas as fases que antecederam o momento da audiência, ou seja, conduzir o olhar da juíza, quando de um caso semelhante, para um olhar de caso excepcional - na maioria das vezes sem o efetivo sucesso.

- Essa juíza é linha dura. Não vale a pena se desgastar muito porque a condenação vem. Ainda mais nos casos de flagrante... Ela condena mesmo, sem pena. Pode ser trabalhador, pode ser pai de família. Se foi pego em flagrante ela não quer nem saber. Agora, se chega aqui um caso todo zoado, um flagrante duvidoso... sei lá, uma história que me convence, sabe? [] eu até tento mudar alguma coisa, tento construir uma versão que convença. Por exemplo, se eu vejo que a vítima chegou aqui e não reconheceu o réu, eu não vou ficar calado, né? Tenho que fazer o meu trabalho. Tenho que tentar mostrar pra juíza que naquele caso tem alguma coisa errada. Aí eu mando falar, às vezes até eu mesmo já falo: “Olha, não reconheceu o réu. Prestem atenção”. (Defensor)

Cumpre ressaltar que o pertencimento à família judicial não está necessariamente ligado à proximidade e à simpatia ou a relações de afeto compartilhadas por esses profissionais, mas ao compartilhamento de moralidades e do fazer judicial. Ser parte dessa família significa incorporar ativamente os pressupostos de procedimentalização dos atos processuais voltados para a ratificação da presunção de culpa do réu. Tal pertencimento fortalece a condução de um caso a partir de moralidades situacionais (KANT DE LIMA, EILBAUM e PIRES, 2010KANT DE LIMA, Roberto. “Sensibilidades jurídicas, saber e poder: Bases culturais de alguns aspectos do Direito brasileiro em uma perspectiva comparada”. Anuário Antropológico, vol. 2, pp. 25-51, 2010.), já que a atuação dos atores é norteada pelos valores e interesses dos agentes judiciais, naquilo que se refere às perspectivas profissionais, história de vida e, principalmente, relações sociais e institucionais.

Assistir ou tutelar? Moralidades e representações sobre sujeitos criminais

O defensor saiu para o corredor. Os autos do processo nas mãos. Leu o nome do acusado em voz alta e perguntou pela família. A mãe estava ansiosa, queria saber o resultado da audiência. Ele sairia em poucos dias - “A juíza deferiu a liberdade provisória”. Era um caso de furto sem violência, praticado em concurso de agentes. O jovem, de 19 anos, não tinha antecedentes penais e, para sua sorte, o coautor do crime assumiu toda a responsabilidade. A mulher, de meia idade, pareceu confusa: “Isso quer dizer que ele vai pra casa?”. O defensor explicou que dentro de alguns dias ele seria libertado. “Vão expedir o alvará de soltura”. A mãe estava aliviada e muito agradecida.

O diálogo não terminou na verbalização do sentimento de gratidão da mulher. O defensor queria alertá-la: “Seu filho anda com umas companhias complicadas”. A frase anunciou um discurso sobre a importância de a mãe “vigiar”, “instruir” e “orientar” o filho para que ele não voltasse àquela condição. Ele não acreditava na inocência do jovem: “O colega assumiu a culpa pra ele não ficar com a ficha suja”. Ainda assim, reiterou para a mãe que acreditava que ele seria absolvido pelo juízo. “Mas se ele voltar aqui não vai ter uma segunda chance. Você precisa manter ele na linha”.

A defensora pública A. relatou que os casos despertavam sentimentos nela: “Eu não quero julgar, mas...”. Sempre repetia que as mães dos acusados eram as que mais sofriam ao longo do processo. A. costumava dizer que a pena era pior para elas do que para os condenados. Ela também é mãe e não conseguia imaginar criar os dois filhos, ainda crianças, sem participar da rotina deles. Dizia conversar com os meninos sobre “tudo”; fazia questão de levá-los à escola e de estar em casa antes de o pai os buscar na natação. “Não quero ser dessas mães que não sabem onde os filhos estão e com quem estão”. A defensora dizia que até entendia que a situação econômica podia dificultar a relação com os filhos, mas que não conseguia entender como uma mãe poderia criar um filho “largado no mundo”.

J., interlocutor frequente, considerava o local de residência dos “criminosos” o fator mais relevante e (quase) determinante do cometimento do delito. Segundo ele, o espaço favela e os bairros pobres produzem tendências criminais, já que a personalidade individual seria formada tendo como base os cenários e as atividades cotidianas compartilhadas pelos sujeitos que vivem em determinado local.

A fala dos defensores revela elementos orientadores das moralidades situacionais dos atores, explicitando uma visão que separa o nós e os outros. Essas moralidades são construídas a partir de representações sobre crime e criminoso que conjugam sujeição civil e criminal. Atuar na defesa de processos criminais, nesse contexto, é mais do que manipular o processo penal: a atuação envolve uma assistência, para além do ritual, orientada pelas moralidades dos defensores públicos. Nesse exercício, o papel de assistente social, auxiliar à instituição, é muitas vezes assumido pelo defensor público, resultando em uma relação de tutela. Não se trata aqui de tutela de direitos, atinente à atuação da própria instituição, que visa à consolidação de direitos fundamentais e à promoção da cidadania. A tutela, nesse caso, ganha uma conotação binária, orientada pelas noções de bem e mal, certo e errado, normal e anormal constitutivas das representações dos defensores sobre a estrutura e a dinâmica da sociedade, bem como do seu olhar sobre o outro.

Ocorre que, em uma sociedade como a brasileira, permeada por grande desigualdade, a categoria “conflitos interpessoais” encontra forte correlação com o insulto moral (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2010CARDOSO DE OLIVEIRA, Luís. “A dimensão simbólica dos direitos e a análise de conflitos”. Revista de Antropologia da USP, vol. 53, n. 2, pp. 451-473, 2010.). Muitas vezes, corresponde à percepção do insulto sentida pelo interlocutor. As categorias conflitos interpessoais e insultos morais protagonizam a questão da afirmação de direitos e das demandas por reconhecimento no cenário jurídico brasileiro. Assim, se referem a agressões a direitos que não podem ser adequadamente traduzidos em evidências materiais e implicam a desvalorização ou negação da identidade do outro (Idem, 2008). São conflitos de caráter habitual, desenvolvidos no cotidiano das sociabilidades e provenientes de algum tipo de interação pretérita entre as partes que compartilham modos de expressão variados nas esferas pública e/ou íntima, podendo envolver terceiros não envolvidos diretamente na disputa. A notoriedade dessas categorias está ligada, fundamentalmente, a dois aspectos: são conflitos recorrentemente carentes de reconhecimento (Idem, 2010) na realidade jurídica e cultural do país e, em contraste, têm desencadeado práticas graves de violência, muitas vezes invisibilizadas.

Misse (2014MISSE, Michel. “Sujeição criminal”. In: LIMA, Renato Sérgio de; RATTON, José Luiz; AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de. Crime, polícia e justiça no Brasil. São Paulo: Contexto, 2014, pp. 204-212.) ressalta que o processo de sujeição criminal se territorializa, ganhando contornos espaciais, porque a identificação e a exposição de indivíduos com determinadas condutas classificadas como indesejáveis (em determinadas situações sociais) não se ocupam dos fatos, senão dos aspectos e identidades subjetivas, construídos como negativos a partir de paradigmas históricos. Ora, a sujeição criminal não é tão somente um rótulo, senão uma disputa por significados morais decorrentes de práticas de atores sociais sob uma classificação social estável, recorrente e, como tal, legítima.

Tais circunstâncias são constantemente reiteradas pela atuação da Defensoria Pública no âmbito criminal. A classificação de indivíduos como “fodidos” e “vagabundos”, por exemplo, reitera uma posição que estigmatiza e desiguala indivíduos. A característica demarcada da sujeição civil associada à sujeição criminal aparece como central na construção desse processo, uma vez que é estruturante das relações desiguais da sociedade brasileira. Nessa dinâmica, os rumos da atuação da Defensoria Pública são conduzidos pelas moralidades situacionais dos defensores públicos, que organizam e hierarquizam características e argumentos, em uma triagem entre os casos passíveis e não passíveis de defesa, adequando tal dinâmica às características de cada um dos assistidos.

Considerações finais

As práticas e os discursos dos defensores públicos revelam uma tendência à procedimentalização das atividades cotidianas na produção de peças e teses de defesa, na condução de AIJs ou ainda na interação com os réus. As relações com os assistidos e a condução dos atos da defesa técnica são orientadas pelas moralidades dos atores, bem como por suas representações de crimes e criminosos. A tutela, nesse caso, ganha uma conotação binária, orientada pelas moralidades e representações dos defensores sobre o que é certo ou errado, moral ou imoral etc. Curiosamente, tais representações remontam ao lugar desses atores na estrutura e dinâmica da sociedade brasileira, marcada por desigualdades jurídicas.

Além de os defensores públicos entrevistados demonstrarem uma tendência de tutelar as partes a partir de suas próprias moralidades, construídas por projeções de sujeição civil e criminal, o campo revelou como parte da dinâmica de procedimentalização a compreensão de quais casos podem obter maior sucesso na defesa, uma vez que o pertencimento à família judicial permite assimilar as lógicas de julgamento de casos semelhantes. Assim, o fazer judicial passa por lógicas e saberes particularizados que favorecem o silenciamento de versões produzidas pelo próprio réu no processo, reproduzindo uma dinâmica de exclusão discursiva. Assim, em casos semelhantes não há movimento no sentido de buscar a produção de provas defensivas especificamente relacionadas aos fatos, senão ao indivíduo. A atividade da defesa muitas vezes se limita à mitigação da pena, a partir da apresentação das condições subjetivas dos réus: se têm família, dependentes econômicos, antecedentes criminais, vínculo profissional etc.

Chamam atenção, de igual modo, os discursos que circulam na Defensoria Pública com relação ao assistido, muitas vezes categorizado como “vagabundo” e/ou “fodido”. Eles estão diretamente relacionados com a posição que o defensor ocupa na sociedade brasileira e na composição da família judicial, proporcionalmente desigual em relação àquela ocupada pelo assistido/réu. O pertencimento à instituição não parece estar assimilado pelos atores entrevistados como a prestação de um serviço público, no sentido de uma atividade oferecida a toda a sociedade. Por sua vez, os discursos e as práticas remetem a uma projeção de uma instituição pertencente ao Estado que reitera uma posição hierárquica e desigual em relação a seus usuários. Nesse cenário, aqueles que exercem uma atividade profissional vinculada ao Estado se desigualam em relação aos demais membros da sociedade e, consequentemente, a quem recorre ao serviço público. Diante desse cenário de desigualdades e hierarquia, a prestação desse serviço público é feita também de forma desigual e hierárquica, com as moralidades da defesa servindo de norte para sua atuação.

Referências

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  • CARDOSO DE OLIVEIRA, Luís. “Existe violência sem agressão moral?”. RBCS, vol. 23, n. 67, pp. 135-146, 2008.
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  • MENDES, Regina Lúcia Teixeira. Do princípio do livre convencimento motivado: Legislação, doutrina e interpretação dos juízes brasileiros. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.
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  • NUÑEZ, Izabel Saenger. Aqui não é casa de vingança, é casa de Justiça! Moralidade, hierarquizações e desigualdades na administração de conflitos no tribunal do júri da comarca do Rio de Janeiro. Tese (Doutorado em Antropologia) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2018.
  • ROCHA, Jorge Luís. História da Defensoria Pública e da Associação dos Defensores Públicos do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004.
  • SANTOS, André Filipe Pereira Reid dos. “Defensoria Pública do Rio de Janeiro e sua Clientela”. Espaço Jurídico Journal of Law, vol. 14, n. 1, pp. 107-126, 2013.
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  • 1
    Ver (on-line): http://www.defensoria.rj.def.br/Institucional/o-que-e-defensoria
  • 2
    Os defensores públicos não serão identificados para não haver comprometimento do sigilo da identidade dos atores entrevistados.
  • 3
    Disponível (on-line) em: http://www.fazenda.rj.gov.br/transparencia
  • 4
    Expediente é uma categoria nativa usada para todos os atos realizados no âmbito do processo judicial. O expediente é diário: são enviados à defensoria autos processuais com prazos em aberto para ciência por parte do defensor ou para a confecção de peças processuais próprias da defesa.
  • 5
    Era comum que assistidos e seus familiares comparecessem à Defensoria Pública com documentos ilegíveis ou inconsistentes. O secretário os encaminhava a órgãos oficiais, formalmente por meio da expedição de ofícios ou informalmente, simplesmente lhes dando o endereço de onde deveriam se apresentar.
  • 6
    A resposta à acusação está prevista no artigo 396 do Código de Processo Penal (CPP) brasileiro: “Nos procedimentos ordinário e sumário, oferecida a denúncia ou queixa, o juiz, se não a rejeitar liminarmente, recebê-la-á e ordenará a citação do acusado para responder à acusação, por escrito, no prazo de 10 (dez) dias”. Em seguida, o artigo 396-A do CPP diz que: “Na resposta, o acusado poderá arguir preliminares e alegar tudo o que interesse à sua defesa, oferecer documentos e justificações, especificar as provas pretendidas e arrolar testemunhas, qualificando-as e requerendo sua intimação, quando necessário”.
  • 7
    Carceragem é o local para onde são direcionados aqueles que aguardam julgamento presos. Quando são levados do presídio para as audiências do processo, são direcionados a esse espaço até serem convocados pelo juiz. No Município I, a carceragem fica no subsolo do Fórum, dividindo espaço com uma parte do estacionamento, somente podendo ser acessada através de um único elevador lateral. Apenas advogados, defensores, juízes e promotores podem ter contato com os presos na carceragem. As instalações remontam a uma prisão desde a entrada: há detectores de metal e os advogados precisam deixar celulares e outros pertences em um armário antes de ir às salas reservadas para conversar com os presos. Esse espaço de conversa lembra bastante o cenário dos filmes americanos: um corredor com seis portas do lado esquerdo; dentro da porta, uma divisória de vidro e um telefone. A estrutura da carceragem no Município II é semelhante, porém de menor proporção. Havia apenas uma sala denominada “parlatório”, no subsolo do Fórum, para que os advogados ou representantes da Defensoria se comunicassem com os presos através de um interfone, tendo uma vidraça como anteparo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Fev 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    15 Maio 2020
  • Aceito
    14 Jul 2021
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