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Trajetória Sinuosa: Surgimento de uma Dimensão Pública na Formulação da Política de Defesa no Brasil?

Winding Trajectory: The Emergence of a Public Dimension in the Formulation of Defence Policy in Brazil?

Trajectoire Sinueuse : L’Émergence d’une Dimension Publique dans la Formulation de la Politique de Défense au Brésil?

Trayectoria Sinuosa: ¿Surgimiento de una Dimensión Pública en la Formulación de la Política de Defensa en Brasil?

RESUMO

Por meio de um esforço de monitoramento empírico, este artigo tem como objetivo analisar de que modo mecanismos institucionais do Estado brasileiro e recentes movimentos na sociedade afetam a trajetória de construção de uma dimensão pública mais plural no processo de formulação da política de defesa no Brasil. A caracterização da política de defesa como uma política pública sui generis sugere a pertinência de investigar o jogo político entre atores assimétricos que permeiam as tomadas de decisão. Por meio de análises da literatura acadêmica, de relatórios oficiais, do ordenamento jurídico e de entrevistas, este artigo argumenta que houve avanços na construção de uma dimensão pública para a defesa, embora a falta de institucionalidade e a baixa qualidade do diálogo façam que essa trajetória seja frágil e não linear.

política de defesa; política pública; relações civis-militares; Democracia; Segurança

ABSTRACT

Through an empirical monitoring effort, this article analyses how Brazilian state’s institutional mechanisms and recent movements in society affect the trajectory of establishing a more plural public dimension regarding defence policy formulation-process in Brazil. The conceptualisation of defence policy as a sui generis public policy entails the relevance of investigating the asymmetrical political dynamics inherent to decision making. Based on an analysis of the scientific literature, official reports, laws and interviews, this article argues that progress has been made in building a public dimension for defence, although the lack of institutionalisation and the low quality of the dialogue leads to fragile and non-linear trajectory.

defence policy; public policy; civil-military relations; democracy; security

RÉSUMÉ

En utilisant des observations empiriques comme base, cet article vise à explorer comment les mécanismes institutionnels de l’État et les mouvements récents de la société brésilienne affectent la trajectoire de construction d’une dimension publique plus plurielle dans le processus de formulation de la politique de défense au Brésil. La caractérisation de la politique de défense comme une politique publique sui generis suggère la pertinence d’enquêter sur le jeu politique entre les acteurs asymétriques qui imprègnent la prise de décision. Par le biais des analyses de la littérature académique, des rapports officiels, de l’organisation judiciaire et des entretiens, cet article soutient qu’il y a eu des avancées dans la construction d’une dimension publique de la défense, même si le manque de la solidité institutionnelle et la faible qualité du dialogue rendent cette trajectoire fragile et non linéaire.

politique de défense; politique publique; relations civil-militaires; démocratie; sécurité

RESUMEN

Por medio de un esfuerzo de monitoreo empírico, este artículo tiene como objetivo analizar de qué modo mecanismos institucionales del Estado brasilero y recientes movimientos en la sociedad afectan la trayectoria de construcción de una dimensión pública más plural en el proceso de formulación de la política de defensa en Brasil. La caracterización de la política de defensa como una política pública sui generis sugiere la pertinencia de investigar el juego político entre actores asimétricos que permean las tomas de decisión. Por medio de un análisis de la literatura académica, de informes oficiales, del ordenamiento jurídico y de entrevistas, este artículo argumenta que hubo avances en la construcción de una dimensión pública para la defensa, aunque la falta de institucionalidad y la baja calidad del diálogo hagan que esta trayectoria sea frágil y no lineal.

política de defensa; política pública; relaciones civiles-militares; democracia; seguridad

INTRODUÇÃO

De que modo recentes movimentos na sociedade e nas instituições estatais brasileiras afetam a trajetória de construção de uma dimensão pública mais plural no processo de formulação da política de defesa no país? A política de defesa, assim como políticas públicas em outros nichos temáticos, também visa a prestar um serviço à sociedade para que o Estado atenda a uma interpretação de interesses nacionais. Pressupõe-se, para fins deste artigo, que esses objetivos – bem como a interpretação deles – são construídos e, em um regime que se propõe democrático, devem refletir a vontade da sociedade, debatida e formulada por meio uma dimensão pública. Ou seja, um processo de formulação mais participativo (ainda que assimétrico) e com pluralidade de atores (ainda que esses atores tenham funções diferentes e que o Estado seja o responsável por coordenar o processo e executar a política elaborada).

O processo de formulação da política de defesa passou, de modo não linear, por modificações ao final do século XX e ao longo do XXI, criando condições para o surgimento, ainda embrionário, de uma dimensão pública na formulação de políticas de defesa, com a atuação (assimétrica, frágil e/ou ad hoc ) de uma pluralidade de atores, como representantes da iniciativa privada, órgãos subnacionais, acadêmicos e sociedade civil organizada. Nesse sentido, alguns fatores e momentos são simbólicos para entender esse movimento. Assim, tornou-se inviável, na prática (e não mais apenas no campo teórico), pensar política de defesa como algo delimitado por uma divisão de assuntos civis e militares, de modo estanque e segregado. Pelo contrário, o diálogo, a negociação, a mútua influência, a cooperação, a contradição e o conflito entre atores diversos, capazes de chegar em um consenso democrático são fundamentais para balizar, com a devida legitimidade, as ações do Estado e de suas Forças Armadas – constitucionalmente os atores protagonistas quando se fala na execução da política de defesa.

Em vista dessas modificações e em resposta à pergunta enunciada no início desta introdução, este artigo parte do entendimento de que, no Brasil, assim como em casos de outros regimes democráticos no pós-Guerra Fria, a formulação da política de defesa foi marcada por um processo de modificação não linear em que paulatinamente passou a ser mais permeado por lideranças, grupos e instituições civis e militares, sendo, portanto, passível de mútua influência e envolvendo a interação de diferentes interesses e opiniões. Torna-se pertinente, portanto, um monitoramento empírico desses mecanismos institucionais, espaços e marcos, que podem ter contribuído para o avanço ou para o retrocesso do que pode se tornar uma dimensão pública de defesa, com o entendimento de que essa trajetória não é linear ou natural, mas fruto da disputa entre forças políticas da sociedade brasileira.

Cabe ressaltar que o tema de controle civil-militar não é prioridade para este estudo, embora seja inevitável tangenciá-lo. Carvalho (2020CARVALHO, José Murilo de. (2020), Forças Armadas e Política no Brasil. São Paulo: Todavia., p. 2016), ao discorrer sobre a omissão de setores da sociedade civil em criar soluções para melhorar as relações da sociedade com as Forças Armadas, afirma que “o problema só será resolvido se deixar de ser militar ou civil para se tornar nacional”. O mesmo pode ser dito para as relações civis-militares: deve ser um debate da sociedade brasileira. Os dois não podem ser vistos como adversários irreconciliáveis, pelo contrário, ambos devem debater e assumir responsabilidades no respeito às instituições democráticas (Bland, 1999BLAND, Douglas. (1999), “A Unified Theory of Civil-Military Relations”. Armed Forces and Society, vol. 26, n. 7.). Este artigo aceita a sugestão de José Murilo de Carvalho de ir do “macro para o micro”. Ou seja, não focar exclusivamente no debate entre o tensionamento e a conivência ou omissão das elites políticas civis na atuação dos militares em tutelar a República, que são indiscutivelmente relevantes, mas também olhar para “as dimensões mais pontuais” (Carvalho, 2020CARVALHO, José Murilo de. (2020), Forças Armadas e Política no Brasil. São Paulo: Todavia., p. 216).

Para isso, este artigo é dividido em cinco partes, além desta introdução. A seção que se segue é destinada a breves considerações metodológicas. Essa seção é seguida de uma contextualização da formulação da política de defesa brasileira e um breve debate conceitual sobre a sua caracterização como política pública. Em seguida, analisa-se a trajetória de expansão da dimensão pública na formulação da política de defesa, que é organizada em seis dimensões. A quarta seção foca em potenciais entraves a esse processo à luz da conjuntura mais recente. A última seção é destinada a comentários finais e conclusões.

BREVES CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS

O primeiro passo na direção de fazer um monitoramento empírico sobre a consolidação de uma esfera pública de defesa no Brasil foi no sentido de definir quais são as “as dimensões mais pontuais”, seguindo a sugestão de Murilo de Carvalho citada na introdução. Para isso, foram necessárias duas etapas metodológicas de modo a criar um critério para indicar o caminho a ser tomado para sair do “macro” e fazer o mapeamento dos assuntos que são relevantes no “micro”. Em um primeiro momento, fez-se uma revisão bibliográfica sobre os artigos científicos que se debruçam especificamente sobre a formulação da política de defesa no Brasil. Foram considerados doze periódicos científicos, que podem ser divididos em três grupos. O primeiro consiste nas revistas das escolas militares e do ministério da defesa (a saber: Revista da Escola Superior de Guerra, Revista da Escola de Guerra Naval e Coleção Meira Mattos). 1 1 . A Revista da Universidade da Força Aérea não foi incluída, pois seus arquivos estavam fora do ar no momento da execução desta pesquisa. As revistas das associações de pesquisa da área de Ciência Política, Relações Internacionais e Defesa estão no segundo grupo, uma vez que se presume que esses periódicos tendem a representar em certo grau os rumos do debate acadêmico no Brasil (são essas revistas: Brazilian Political Science Review, Carta Internacional e Revista Brasileira de Estudos de Defesa). Por fim, os periódicos da área que receberam classificação A1 no índice Qualis-CAPES do quadriênio 2013-2016 (Revista Sociologia e Política, Dados – Revista de Ciências Sociais, Opinião Pública, Revista de Administração Pública e Brazilian Journal of Political Economy). 2 2 . O periódico Cadernos de Pesquisa, da Fundação Carlos Chagas, foi considerado, mas não publicou nenhum trabalho sobre o tema abordado por esta pesquisa no período analisado.

Por meio de uma revisão bibliográfica, foi possível identificar seis temas que foram abordados mais frequentemente nesses periódicos, entre 2010 e 2020, que versam especificamente sobre a formulação da política de defesa, conforme indicado na imagem 1 . Esses temas foram usados como critério para definir as prioridades do monitoramento empírico – o objetivo principal deste artigo. Somam-se a essas dimensões principais, publicações sobre missões de paz, segurança pública e indústria de defesa. Apesar de que publicações sobre esses tópicos não têm a formulação da política de defesa como principal foco, frequentemente abordam os impactos que esses têm na dimensão pública sobre defesa.

Imagem 1
: Definindo as Dimensões

Com as dimensões definidas a partir dessa revisão da literatura, passou-se ao monitoramento empírico de mecanismos institucionais, espaços e marcos, que podem ter contribuído para o avanço ou para o retrocesso do que pode se tornar uma dimensão pública de defesa. O uso dessas revistas citadas foi feito sem prejuízo de outros periódicos e de livros como fonte bibliográfica para esta pesquisa. Buscamos identificar modificações feitas nas organizações estruturais do Ministério da Defesa e dos Comandos das Forças Armadas por meio dos documentos legais (leis, portarias e regimento internos). Além das fontes jurídicas, foi necessário recorrer a pedidos de acesso à informação, por meio do Portal da Transparência do governo federal. No total, foram cinco consultas ao longo do ano de 2019 e uma em 2020. 3 3 . As consultas receberam as seguintes numerações: 60502000504201919, 60502000505201963, 60502000506201916, 60502000507201952, 60502000508201905 e 60502000597202015. Entrevistas e conversas informais com ministros, militares de alta patente, com servidores civis, bem como com acadêmicos, de modo a esclarecer pontos contraditórios, prospectar novas hipóteses e buscar informações que não estão consolidadas documentalmente. Como trata-se de assuntos sensíveis para alguns entrevistados, o anonimato foi concedido de modo irrestrito para todos e todas.

CONTEXTO BRASILEIRO E A CARACTERIZAÇÃO DA DEFESA ENQUANTO POLÍTICA PÚBLICA SUI GENERIS

A literatura científica sobre políticas públicas vem crescendo em quantidade e qualidade no Brasil, com destaque para o trabalho de Celina Souza (2006)SOUZA, Celina. (2006), “Políticas públicas: uma revisão da literatura”. Sociologias. ano 8, n. 16, pp. 186-192. que define políticas públicas como o Estado em movimento para prover um bem público em determinada área temática. Nesse sentido, alguns pesquisadores já buscaram caracterizar a política externa brasileira como uma política pública sui generis , por ser um serviço público prestado no exterior, mas ter sua formulação e configuração influenciada pelo jogo político doméstico (Duarte & Lima, 2017DUARTE, Rubens de S.; LIMA, Maria Regina Soares de. (2017), “Politicising Financial Foreign Policy: An Analysis of Brazilian Foreign Policy Formulation for the Financial Sector (2003-2015)”. Rev. bras. polít. int., vol. 60, n. 1.; Milani & Pinheiro, 2013MILANI, Carlos R. S.; PINHEIRO, Letícia. (2013), “Política Externa Brasileira: os desafios de sua caracterização como política pública”. Contexto Internacional, vol. 35(1), pp. 11-40.; Sanchez et. al., 2006SANCHEZ, M. R.; SILVA, E. C. G. da; CARDOSO, E. L.; SPÉCIE, P. (2006), “Política externa como política pública: uma análise pela regulamentação constitucional brasileira (1967-1988)”. Rev. Sociol. Polít. n. 27, pp. 125-143.). No Brasil, após a redemocratização ocorrida na década de 1980, observou-se uma progressiva quebra do insulamento do Itamaraty, ocasionando uma abertura do processo de formulação de política externa, que passou a contar com uma crescente participação de novos atores. De modo análogo, a formulação da política de defesa brasileira, em que pese se tratar de uma área de responsabilidade do Estado, igualmente com foco predominante voltado para o cenário internacional (pelo menos em sua concepção mais clássica), também está sujeita a restrições sistêmicas e é influenciada por condicionantes diversas advindas dos aspectos domésticos.

Em outras palavras, a política de defesa sempre será influenciada por:

um determinado equilíbrio temporário de forças. (...) [E]mbora a política de defesa deva ser considerada como parte da política do Estado, ela também é, como qualquer política, provisória, temporária, e seus objetivos tenderão a oscilar conforme o grau de diferença entre os grupos e suas respectivas posições de força no cenário político (Proença Jr & Diniz, 1998PROENÇA JR., Domício; DINIZ, Eugenio. (1998), Política de defesa no Brasil: uma análise crítica. Brasília: Editora Universidade de Brasília., p. 37).

O que não significa, entretanto, que os fatores sistêmicos devem ser relegados a um segundo nível de importância nem que todos os fatores – internacionais ou domésticos – sempre influenciam ao mesmo tempo e com a mesma intensidade o comportamento internacional do Estado. Todavia, faz-se importante ressaltar que políticas públicas podem existir mesmo em governos autoritários (Milani & Pinheiro, 2013MILANI, Carlos R. S.; PINHEIRO, Letícia. (2013), “Política Externa Brasileira: os desafios de sua caracterização como política pública”. Contexto Internacional, vol. 35(1), pp. 11-40.), uma vez que essas políticas continuam sendo permeadas por pressões políticas de atores no cenário doméstico, ainda que, ao marginalizar parte da sociedade, o resultado dessa formulação tenha sua legitimidade prejudicada.

No Brasil, cabe ao Ministério da Defesa (MD) e às Forças Armadas a função institucional de formular e conduzir a política de defesa. Em regimes democráticos, a prestação desse serviço também deve levar em conta fatores domésticos na definição de seus objetivos, uma ideia que é reforçada pelo artigo 1º, parágrafo único da Constituição Federal de 1988, quando afirma que todo o poder emana do povo. Portanto, para cumprir o disposto constitucional, a formulação da política de defesa deve estabelecer os mecanismos institucionais de diálogo entre os diversos atores governamentais e de diversos setores da sociedade brasileira. Todavia, por questões históricas, sociais e culturais, observa-se no caso brasileiro um insulamento das principais instituições do Estado responsáveis por articular e implementar a política de defesa. O processo histórico brasileiro, principalmente no período pós-reabertura política, acarretou peculiaridades na formação de uma constituency nacional em temas relacionados à defesa. Milani e Nery (2019)MILANI, Carlos R. S.; NERY, Tiago. (2019), “The Sketch of Brazil’s Grand Strategy under the Governments of the Workers’ Party (2003-2014): Domestic and International Constraints”, in Thierry Balzacq; Peter Dombrowski; Simon Reich (eds.). Comparative Grand Strategies: A Framework and Cases. Oxford: Oxford University Press. identificam dois “divórcios” que representaram entraves a uma maior participação na formulação da política de defesa: o afastamento entre as principais burocracias estatais responsáveis por formular políticas de inserção internacional do Brasil – o Itamaraty e o Ministério da Defesa –, bem como o desinteresse de grande parcela da população civil para temas de defesa, percebidos como assuntos que dizem respeito exclusivamente a militares, apesar do processo de transição negociada. Pion-Berlin (2007)PION-BERLIN, David. (2007), “Attention Deficits: Why Politicians Ignore Defense Policy in Latin America”. Latin American Research Review, vol. 42, n. 3. argumenta que os esforços políticos e os estudos que tangem as relações políticas entre civis e militares em países que passaram por regimes autoritários recentes tendem priorizar o controle civil para evitar interrupções democráticas por parte dos militares, relegando a formulação mais participativa da política de defesa para um segundo patamar de importância.

De modo dialético, somam-se a esses “divórcios” um insulamento das Forças Armadas, que tendem a considerar que civis, de modo geral, não têm os conhecimentos técnicos necessários na condução da política de defesa (Almeida, 2010ALMEIDA, Carlos Wellington de. (2010), “Política de defesa no Brasil: considerações do ponto de vista das políticas públicas”. Opinião Pública, vol. 16(1), pp. 220-250.). Também contribui para o desinteresse da sociedade sobre temas de defesa as mazelas sociais enfrentadas pelo país e o baixo impacto que a economia de defesa tem na geração de empregos (Pion-Berlin, 2007PION-BERLIN, David. (2007), “Attention Deficits: Why Politicians Ignore Defense Policy in Latin America”. Latin American Research Review, vol. 42, n. 3.). Temas socioeconômicos tendem a ser priorizados pela população em detrimento da defesa, por afetarem diretamente e de modo mais urgente o cotidiano do brasileiro, principalmente ao considerar que o Brasil não tem tradição de se envolver em guerras. Essas prioridades refletem-se na falta de envolvimento significativo de instituições políticas, como o Congresso Nacional, em temas de defesa (Amorim Neto, 2010AMORIM NETO, Octavio. (2010), “O papel do Congresso nas questões de defesa: entre a abdicação e o comprometimento”, in Nelson A. Jobim; Sergio W. Etchengoyen; João Paulo Alsina (orgs.), Segurança internacional: perspectivas brasileiras, Rio de Janeiro: Editora FGV, pp. 435-448.).

Há de se ressaltar que os temas de defesa, na medida em que abrangem assuntos e decisões sensíveis à soberania do Estado brasileiro, tendem a ter um processo decisório mais opaco em comparação com políticas públicas em outros nichos, o que Alves (2004ALVES, Leonardo R. R. (2004), “O Ministério da Defesa está consolidado?”. A Defesa Nacional, vol. 90, n. 800., p. 48) chama de “predisposição cultural e endógena para o monopólio dos assuntos castrenses”. Apesar da natureza da política de defesa, até mesmo a necessidade de reservas e o grau de sigilo devem ser previamente debatidos e acordados conscientemente com a sociedade, principalmente em regimes democráticos (Rodrigues, 2017RODRIGUES, Karina F. (2017), “Informações de Defesa e Segurança Nacional: entre a legitimidade do segredo e o direito à informação”, in Jhessica Reia; Pedro Augusto Francisco; Marina Barros; Eduardo Magrani (org.). Horizonte presente: tecnologia e sociedade em debate. Rio de Janeiro: Letramento. vol. 1.). Por esse motivo, o cumprimento dos preceitos constitucionais e a legitimidade democrática da política de defesa brasileira depende de um processo de consolidação de uma dimensão pública doméstica e de aparatos institucionais que deem estabilidade e robustez ao diálogo entre o Estado e diversos outros atores da sociedade. A carência de institucionalização do processo decisório, bem como de canais de diálogo com atores da sociedade dificulta um debate mais amplo sobre quais interesses nacionais que o Brasil deveria buscar por meio da sua política de defesa, o que leva a opinião pública ser mais suscetível a alterações, bem como uma maior instabilidade da política de defesa quando há troca de governantes. Essa falta de diálogos formais e constantes também contribui para a perpetuação do desinteresse da sociedade para assuntos de defesa, bem como críticas e questionamentos relativos à necessidade de investimentos na área, em que pese tentativas de robustecer o diálogo, como será mais explorado ao longo do artigo.

TRAJETÓRIA SINUOSA DE UMA DIMENSÃO PÚBLICA NA FORMULAÇÃO DA POLÍTICA DE DEFESA

As Forças Armadas, historicamente, são os responsáveis tanto pela formulação da política de defesa do Brasil quanto pela sua execução. Assim como ocorreu em outras políticas públicas, como no caso da política externa, o processo de redução do insulamento desses atores estatais na definição dos rumos tomados pela política de defesa foi acelerado pelo período de redemocratização no final do século XX. Todavia, o surgimento de uma dimensão pública na formulação da política de defesa tem uma trajetória que não é linear nem está consolidada (Proença Jr & Diniz, 1998PROENÇA JR., Domício; DINIZ, Eugenio. (1998), Política de defesa no Brasil: uma análise crítica. Brasília: Editora Universidade de Brasília.). A literatura científica frequentemente aborda questões ou fatores que influenciam nesse processo. Este artigo organiza esses tópicos em seis dimensões e busca fazer um monitoramento empírico dos recentes desenvolvimentos (sejam avanços ou retrocessos) dessa trajetória sinuosa de construção de uma dimensão pública sobre defesa no Brasil. São eles: 1) Estruturas institucionais do governo responsáveis pela formulação da política; 2) Formulação de documentos declaratórios de política; 3) Transversalidade temática inerente à defesa e o aumento do leque de atores envolvidos; 4) Desenvolvimento da comunidade epistêmica; 5) Integração e diálogo regional; e 6) Efeitos da diáspora profissional no papel constitucional das Forças.

ESTRUTURAS INSTITUCIONAIS DO GOVERNO

A criação do Ministério da Defesa, em 1999, é citada por diversos especialistas como um marco na formulação da política de defesa, muito embora reconheçam que o ministério não tem adensamento institucional, nem apoio político suficiente para competir com o peso político das Forças Armadas e, consequentemente, para cumprir suas funções originais (Lima, 2010LIMA, Maria Regina Soares de. (2010), “Diplomacia, defesa e a definição política dos objetivos internacionais”, in Nelson A. Jobim, Sergio W. Etchengoyen; João Paulo Alsina (orgs.). Segurança internacional: perspectivas brasileiras, Rio de Janeiro: Editora FGV, pp. 401-418.; Almeida, 2010ALMEIDA, Carlos Wellington de. (2010), “Política de defesa no Brasil: considerações do ponto de vista das políticas públicas”. Opinião Pública, vol. 16(1), pp. 220-250.; Amorim Neto, 2010AMORIM NETO, Octavio. (2010), “O papel do Congresso nas questões de defesa: entre a abdicação e o comprometimento”, in Nelson A. Jobim; Sergio W. Etchengoyen; João Paulo Alsina (orgs.), Segurança internacional: perspectivas brasileiras, Rio de Janeiro: Editora FGV, pp. 435-448.; Zaverucha, 2005ZAVERUCHA, Jorge. (2005), “A fragilidade do Ministério de Defesa brasileiro”, in Rev. Sociol. Polít. , vol. 25, pp. 107-121.; Fuccille, 2003FUCCILLE, Luís Alexandre. (2003), “A criação do Ministério da Defesa no Brasil: entre o esforço modernizador e a reforma permanente”. Security and Defense Studies Review. vol. 3(1), pp. 1-27.). O referido órgão tem como um de seus objetivos facilitar a articulação entre as três Forças Armadas que, de certo modo, competem por protagonismo e orçamento, bem como são compostas por diversos grupos que divergem politicamente quanto aos rumos que a política de defesa deve tomar. Não obstante, a criação do Ministério da Defesa também está relacionada com a adoção de um modelo burocrático e organizacional que busca reforçar o papel da sociedade como um todo em monitorar e avaliar a ação dos militares, bem como busca evitar novo envolvimento na condução do Estado (Pion-Berlin, 2007PION-BERLIN, David. (2007), “Attention Deficits: Why Politicians Ignore Defense Policy in Latin America”. Latin American Research Review, vol. 42, n. 3.; Carvalho, 2020CARVALHO, José Murilo de. (2020), Forças Armadas e Política no Brasil. São Paulo: Todavia.).

Com isso, a criação de um ministério, para a formulação de políticas de defesa e coordenação das Forças Armadas, ensejou um novo espaço de debate, de troca de experiências e ideias, contribuindo para o desenvolvimento de uma dimensão pública, que aqui se estuda. Todavia, ao longo das duas décadas que se passaram desde a criação do ministério ainda não foram estabelecidos novos mecanismos de diálogo formais que deem conta da crescente pluralidade na formulação da política de defesa, tais como conselhos, fóruns regulares ou canais de consulta. De um modo dialético, relaciona-se a esse entrave institucional a composição dos quadros do órgão. O Ministério da Defesa configura-se, ainda, como uma burocracia nova e com identidade conflitiva entre as esferas civil e militar. Ao comparar a pasta com outras da Esplanada, observam-se consideráveis diferenças no tocante ao processo seletivo dos quadros técnico-profissionais que as compõem, na formação e preparação desses quadros, na sua rotatividade no exercício dessas funções.

Pelo lado dos servidores civis, o Ministério da Defesa conta com uma proporção elevada de cargos comissionados – ou seja, funcionários alocados a partir de indicações políticas dos membros designados pelo Executivo Federal. Enquanto o concurso público é um importante meio de seleção e entrada de quadros qualificados na grande parte dos ministérios, é simbólico que o Ministério da Defesa, desde sua criação, nunca tenha realizado concurso público para provimento de cargos de servidores civis no âmbito da Pasta. 4 4 . Resposta do Ministério da Defesa obtida por meio da Lei de Acesso à Informação NUP 60502.000503/2019-74, de 25 de fevereiro de 2019: “Após consulta ao órgão competente da administração central deste Ministério, o Serviço de Informações ao Cidadão (SIC/MD) informa que no Quadro Geral de Cargos do Ministério da Defesa, não foi criado o cargo de analista de defesa. Por sua vez, no tocante à publicação de editais de concurso público, esclarece-se que, até o presente momento, não houve abertura de concurso público para provimento de cargos no âmbito desta Pasta.” Os civis concursados com vínculo com o Ministério da Defesa são servidores remanescentes dos extintos Ministério do Exército, Ministério da Marinha e Ministério da Aeronáutica, que, em via de regra, não ocupam cargos elevados na estrutura organizacional do ministério e, portanto, dificilmente conseguem influenciar a elaboração de políticas públicas.

A criação de uma carreira de defesa nacional, composta de cargos civis de analista de defesa, proposta por diversos ministros que estiveram à frente do Ministério da Defesa, em especial por Raul Jungmann, ainda não foi levada adiante. A falta de uma carreira de servidor civil no Ministério da Defesa pode aumentar a suscetibilidade a mudanças políticas, além de minar uma crescente especialização do civil e a construção de uma memória institucional. A falta de concursos públicos que sejam específicos para cargos no órgão dificulta a absorção de profissionais com conhecimento e capacidades específicas em temas de defesa. Com isso, a burocracia estatal subaproveita o crescente esforço feito nos programas de graduação e de pós-graduação para formar pessoas significativamente qualificadas. 5 5 . Como será visto adiante nesta seção, a quantidade de programas de graduação e de pós-graduação em Defesa cresceu significativamente, a partir de 2010.

A Estratégia Nacional de Defesa (END) de 2008 já falava em “estudos sobre a criação de quadro de especialistas civis em Defesa, em complementação às carreiras existentes na administração civil e militar”. Por sua vez, a atualização do documento em 2012 falava em “captação de pessoal visando à ampliação dos quadros de servidores civis do Ministério da Defesa e das Forças Armadas, por intermédio de concursos públicos realizados periodicamente, de modo a contribuir para a reestruturação das Forças” (END, p. 151). Todavia, na versão publicada em 2020, o trecho sobre recursos humanos é significativamente mais comedido do que nos documentos anteriores, além de retirar a especificação de “civil” para a carreira de analistas, o que sugere que essa proposta, além de não ter avançado em períodos anteriores, está perdendo força e apoio político, o que representa a perpetuação de uma barreira institucional para a entrada de civis que sejam capacitados para atuar na formulação da política de defesa.

Ao analisar a composição burocrática dos órgãos que são diretamente subordinados ao Ministro da Defesa e que têm função administrativa, cabe ressaltar que há uma divisão de funções e de temas entre civis e militares dentro do Ministério da Defesa ( Imagem 2 ). Enquanto alguns órgãos são tradicionalmente compostos por maioria civil, como é o caso da Consultoria Jurídica (CONJUR), outros órgãos apresentam situação inversa. A maioria dos militares desempenha funções no Estado Maior Conjunto das Forças Armadas (EMCFA), em uma de suas três ramificações, Logística, Operações Conjuntas e Assuntos Estratégicos, setores esses voltados mais à coordenação e ao gerenciamento das três Forças Armadas, função primordial ao Ministério, mas que efetivamente pouco participa da formulação das políticas de defesa do Brasil, o que fica mais a cargo da Secretaria Geral e do Gabinete do Ministro (Olmedo, 2013OLMEDO, Luiza Bulhões. (2013), Ministério da defesa brasileiro: civis e militares na política de defesa. Monografia (Graduação em Relações Internacionais), Universidade Federal do Rio Grande do Sul.). A ascensão de forças políticas com a eleição federal de 2018 também levou a uma reconfiguração desses dois órgãos. Enquanto o Gabinete do Ministro teve um aumento na quantidade de militares em relação ao ano de 2014 e, consequentemente, tornou-se um órgão predominantemente militar, a Secretaria Geral, que tinha composição de maioria militar passou a ter maioria civil. Contudo, considerando os cinco órgãos analisados, a proporção mudou de 42,1% de civis e 57,9% de militares em 2014 para uma relação de 33,9% para 66,1%. Essa divisão coloca em perspectiva o argumento de que a criação do MD facilitou o diálogo entre civis e militares em temas de defesa, indicando que, apesar de avanços, a ideia de que há “assuntos de militares” e “assuntos de civis” pode ainda não ter sido totalmente superada. 6 6 . Na medida em que o Gabinete do Ministro é composto por cargos de confiança, pode ser uma tendência natural que esses postos sejam preenchidos por redes formadas ao longo da vida profissional do ministro. Com isso, em 2014, quando o ministro era civil, a participação de civis era de 88,7%. Em 2019, sob a gestão de um militar, a participação de militares é de 73,5%. Todavia, seria necessária uma amostragem de outras gestões de ministros militares para confirmar essa hipótese.

Imagem 2
: Divisão Funcional Dentro do Ministério da Defesa

Conforme abordado anteriormente, as Forças Armadas tradicionalmente têm autonomia corporativa para a condução da política de defesa (Lima, 2010LIMA, Maria Regina Soares de. (2010), “Diplomacia, defesa e a definição política dos objetivos internacionais”, in Nelson A. Jobim, Sergio W. Etchengoyen; João Paulo Alsina (orgs.). Segurança internacional: perspectivas brasileiras, Rio de Janeiro: Editora FGV, pp. 401-418.), principalmente na gestão das próprias Forças Armadas e na e implementação estratégica da política de defesa (Bruneau, 2016BRUNEAU, Thomas C. (2016), “As relações civis-militares em Portugal: o longo processo para o controle civil e a eficácia militar”. Dados: Revista de Ciências Sociais, vol. 59, n. 2.). Esse fato que não se confunde com a formulação da política de defesa, que traça as diretrizes que devem guiar a dimensão estratégica e operacional. A quantidade de militares em cargos de chefia ( imagem 3 ) sugere que a criação do Ministério da Defesa não modificou tal fato. Militares ocupam 69% do total de cargos de chefia do ministério (57,6% da ativa e 11,4% da reserva). Por outro lado, se considerarmos que a burocracia é um ator político que, por meio de seu trabalho, impacta a formulação das políticas e não apenas a sua execução, a grande quantidade de militares em situação de chefia confere maior controle sobre a condução dos quadros do ministério e, consequentemente, capacidade de influenciar os resultados. Deve-se questionar, portanto, o peso da burocracia, especialmente dada sua composição. Para oficiais das Forças Armadas, a hierarquia militar soma-se à funcional, que, pelo menos em teoria, tende a reduzir o grau de autonomia dessas pessoas em situação de chefia na adoção de diretrizes superiores. Com isso, o mencionado controle civil sobre os militares que era esperado por parte da sociedade por meio da criação da pasta se dá, principalmente, na figura do ministro, de seus assessores mais próximos e da composição da Secretaria Geral.

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: Cargos de Chefia no Ministério da Defesa

Cabe ressaltar que a literatura científica confere pouca ênfase – tanto ao comparar com a quantidade de análises destinadas ao Ministério da Defesa quanto em termos absolutos – ao estudo de outros mecanismos institucionais, como é o caso das Comissões de Relações Exteriores e Defesa Nacional, do Senado e na Câmara dos Deputados. Essa lacuna é o reflexo de uma falta de interesse e de hábito de diversos atores da sociedade brasileira de acompanhar, pesquisar, monitorar e cobrar que essas instituições desempenhem suas funções. As referidas comissões são compostas por representantes eleitos pela sociedade brasileira e deveriam ser um canal de diálogo sobre assuntos que envolvem “Forças Armadas de terra, mar e ar, requisições militares, passagem de forças estrangeiras e sua permanência no território nacional, questões de fronteiras e limites do território nacional, espaço aéreo e marítimo, declaração de guerra e celebração de paz”. 7 7 . Artigo 103, V do Regimento Interno do Senado - Resolução do Senado Federal nº 93, de 1970. Todavia, grande parte de seus integrantes são escolhidos por conveniência política, ao invés de interesse ou conhecimento sobre política externa e defesa (Baracho, 2015BARACHO, Gustavo. (2015), “Nem fidelidade partidária e nem especialização: as determinantes para a seleção de parlamentares aos cargos da Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional”. Coleção Meira Mattos, vol. 9, n. 35, pp. 299-305.). É simbólico que as novas versões dos documentos oficiais de defesa tenham sido enviadas para o Congresso no final do ano de 2016 e ficaram inertes por dois anos. Sem qualquer alteração no texto enviado 8 8 . Parecer da Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligência do Congresso Nacional, sobre a Mensagem (CN) nº 02, de 2017. Documento publicado em 19 de outubro de 2017. Disponível em: http://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=7237929&disposition=inline . Acesso em: 17/10/2019. nem a criação de audiências públicas nesse período (atribuições elementares das referidas comissões), os documentos foram aprovados em uma votação por voto simbólico, 9 9 . O voto simbólico é mais comum em temas que são entendidos como de baixa prioridade. Segundo o Glossário de Termos Legislativos, voto simbólico é “Processo de votação em que os parlamentares se manifestam fisicamente. O presidente, ao anunciar a votação, convida os parlamentares a favor da matéria a permanecerem sentados, devendo os que se posicionam contrariamente manifestar-se, o que se dá, normalmente, pelo ato de levantar um braço.”. Disponível em: https://www.congressonacional.leg.br/legislacao-e-publicacoes/glossario/-/definicoes/lista/V . Acesso em: 20/03/2021. sem que os líderes das Casas se pronunciassem. Com isso, os documentos seguiram para serem sancionados pela Presidência. Ainda que a defesa nacional seja um assunto do Poder Executivo, cabe ao Legislativo, na lógica da divisão dos Poderes, a fiscalização e controle dessas políticas, inclusive discutindo projetos, diretrizes e orçamento. É conhecido o baixo interesse que políticos tendem a ter nos temas relacionados à defesa, por não darem resultados eleitorais (Amorim, 2010AMORIM NETO, Octavio. (2010), “O papel do Congresso nas questões de defesa: entre a abdicação e o comprometimento”, in Nelson A. Jobim; Sergio W. Etchengoyen; João Paulo Alsina (orgs.), Segurança internacional: perspectivas brasileiras, Rio de Janeiro: Editora FGV, pp. 435-448.; Pion-Berlin, 2007PION-BERLIN, David. (2007), “Attention Deficits: Why Politicians Ignore Defense Policy in Latin America”. Latin American Research Review, vol. 42, n. 3.). Entretanto, ainda é pouco claro o motivo pelo qual as comissões deixam de ser percebidas como oportunidades de diálogo público entre a elite política e as Forças Armadas sobre questões de defesa nacional, um assunto que mereceria pesquisas mais profundas.

DOCUMENTOS OFICIAIS DECLARATÓRIOS 10

Com uma narrativa semelhante à que acompanhou a criação do MD, de fomentar a interação entre as Forças Armadas e de buscar maior diálogo de outros atores, a elaboração de documentos oficiais de defesa contou com a participação de atores da sociedade, sejam civis ou militares, em sua elaboração, continuando um processo inaugurado pela primeira edição da PND, 11 11 . Em 1996, a Política Nacional de Defesa ainda era intitulada Política de Defesa Nacional. que remonta ao ano de 1996. A PND foi revisada e reeditada por duas vezes, em 2005 e 2012, ao passo que a Estratégia Nacional de Defesa teve sua primeira edição em 2008 e o Livro Branco da Defesa Nacional foi lançado em 2012. Apesar de ter enfrentado algumas resistências, a Lei Complementar nº 136, de 25 de agosto de 2010, ao alterar as normas gerais para a organização, o preparo e o emprego das Forças Armadas e do MD, disciplina que o Poder Executivo deve elaborar novas versões dos referidos documentos de defesa a cada quatro anos e submetê-lo à apreciação do Congresso Nacional. Esse dispositivo confirma o anteriormente mencionado protagonismo do Executivo na formulação da política de defesa, mas confere ao Legislativo a possibilidade de discutir, de apreciar e de alterar a política.

Esses documentos oficiais declaratórios são manifestações públicas de intenções e de compromissos por parte dos formuladores e dos condutores da política de defesa. Considerando que o conteúdo desses documentos teve mais continuidades do que modificações ao longo de quase trinta anos, essa iniciativa traz mais transparência e amplia oportunidades de diálogo, acompanhamento, análise, monitoramento e crítica por parte da sociedade e de outros atores do Brasil. A área de defesa ainda é uma das poucas que apresenta informações indispensáveis para a criação de um debate em torno dos rumos da política por meio desses documentos oficiais. Observa-se que não há, por exemplo, iniciativas semelhantes na área financeira, como um livro branco do Banco Central (BACEN) ou do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Transparência é um requisito fundamental na busca de formulação mais participativa de políticas públicas, ainda que se possa questionar os limites da transparência para incentivar ampla participação, uma vez que as desigualdades econômicas, sociais, educacionais são obstáculos estruturais enfrentados por todas as outras áreas temáticas, em especial as que exigem conhecimento mais técnico.

Os benefícios que documentos declaratórios revisados periodicamente podem trazer para o debate público são evidentes, mas ainda há espaço para melhora quanto ao processo de formulação deles. Pode-se argumentar que dois eventos são simbólicos na busca de diálogo na elaboração dos documentos oficiais de defesa: i) Ciclos de debates no âmbito dos “Encontros de Itaipava”, especialmente nas edições realizadas em 2003 e em 2004; e ii) Seminários sobre defesa realizados em 2011 na Fundação Getúlio Vargas. Deve-se reconhecer o mérito de terem criado um ambiente plural de diálogo com ricas contribuições, mas houve ruídos quanto ao conteúdo e finalidade desses eventos, que levaram a novos desafios. Em alguns casos, os participantes foram convidados em função do cargo que exerciam, sem considerar o conhecimento sobre o objeto que estava em pauta: defesa nacional. 12 12 . Confira-se a pesquisa de Mestrado (em desenvolvimento) de Maurício Grohs, no Programa de Pós-Graduação em Ciências Militares, do Instituto Meira Mattos – Escola de Comando e Estado-Maior do Exército. Alguns participantes manifestaram incapacidade de contribuir para o debate, por não dominarem especificidades técnicas e operacionais, o que é um reflexo falta de clareza sobre a fronteira entre política de defesa e estratégia. Além disso, houve a expectativa por parte de participantes da sociedade civil de participarem ativamente do processo de redação dos documentos que foi frustrada quando perceberam que iriam debater um documento que, segundo eles, estava praticamente finalizado – o que fez alguns participantes se sentirem como peças figurativas ou instrumentos de legitimação. Do lado das Forças Armadas, argumenta-se que houve uma vontade genuína de aproveitar a oportunidade criada pela revisão dos documentos oficiais, para ampliar o debate com diversos atores, no que foi uma atitude sem precedentes no Brasil, mas de modo consultivo. Essa busca por diálogo buscava induzir atores da sociedade em temas de defesa (Sá Ferreira, 2010SÁ FERREIRA, M. W. de. (2010), “A estratégia nacional de defesa: reflexão sobre o papel da sociedade na construção da defesa nacional”, in Coleção Meira Mattos: Revista das Ciências Militares, n. 22.), mas não tinha como objetivo mudar o locus decisório de modo imediato, ainda que fosse entendido como o início de um processo de aproximação com a sociedade, o que gerou atritos e sentimentos de frustração. Além disso, os debates tendem a ser mais abertos para o Livro Branco do que para a PND e a END.

Torna-se pertinente observar que as iniciativas de busca de diálogo descritas no parágrafo anterior não foram repetidas na revisão do documento enviado ao Congresso em 2016, diante da avaliação de que os efeitos da crise política que levou ao controverso impeachment de Dilma Rousseff poderiam comprometer os resultados. Pelo ponto de vista institucional, essa decisão foi possível dada a ausência de dispositivos que discorram sobre a obrigatoriedade de consultas ou de participação de outros atores da sociedade na formulação dos documentos de defesa. Esse silêncio na legislação acaba por reforçar o poder estrutural dos órgãos do Executivo. Enquanto os atores governamentais garantem o controle do processo de formulação da política de defesa, os demais são colocados em uma situação mais frágil por ter que disputar, a cada quatro anos, um lugar na mesa de negociação. Com isso, a pluralidade da formulação da política de defesa pode ser prejudicada, na medida em que não apenas faz com que outros setores da sociedade tenham que negociar suas participações, mas também condiciona atores – que almejam manter boas relações com o governo para continuarem sendo convidados – a repensar a oportunidade de apresentarem posicionamentos mais críticos. Além disso, a discricionariedade conferida ao Executivo para a escolha dos participantes permite que os contemplados sejam todos pertencentes a um mesmo grupo ou rede, bem como filiados a uma mesma tradição de pensamento político, econômico e social.

Em contrapartida, outro efeito da Lei Complementar nº 136 é que estabelece a obrigatoriedade de discussão sobre as prioridades da política de defesa a cada quatro anos, o que mantém constante o custo de decisões que gerem insulamento do processo decisório. Ainda é cedo para analisar qual será o impacto de longo prazo que essa periodicidade forçada terá na construção e na solidificação de uma dimensão pública. Ainda que o desinteresse por parte da classe política e a inexistência de regras formais que obriguem uma formulação participativa dessa política possam ser desafios, a obrigatoriedade vai dar oportunidade para que temas sejam colocados de volta na agenda a cada quatro anos. O que cria, também, possibilidades periódicas para que atores não estatais pressionem os representantes eleitos a terem seus pleitos atendidos em questões de defesa.

TRANSVERSALIDADE TEMÁTICA E AUMENTO DO LEQUE DE ATORES ENVOLVIDOS

Desenvolvimento e defesa são objetivos complementares e indissociáveis. A defesa nacional, por natureza, abrange a orquestração de diversas manifestações de poder do Estado e não apenas a capacidade bélica. Grande parte dos estudos sobre estratégia refutam a ideia de que defesa se resume a ações estritamente militares (Silove, 2017SILOVE, Nina (2017). “Beyond the Buzzword: The Three Meanings of Grand Strategy”. Security Studies, vol. 27, n. 1, pp. 27-57.). A defesa também tangencia temas como política industrial, energética, infraestrutura, ciência e tecnologia, defesa de recursos e regiões considerados estratégicos, entre outros, uma vez que impactam diretamente na capacidade do país de resposta a ameaças ou de dissuasão em tempos de paz. 13 13 . Não é objetivo deste artigo discutir a antecedência ontológica das políticas de um Estado, mas somente apontar a transversalidade dos temas relacionados à defesa nacional. No final do século XX e início do XXI, o processo político e social no Brasil, bem como a reconfiguração das relações internacionais criaram um ambiente propício para que a formulação de políticas de defesa englobasse um leque mais amplo de atores envolvidos e com interesses em temas internacionais (Milani & Pinheiro, 2013MILANI, Carlos R. S.; PINHEIRO, Letícia. (2013), “Política Externa Brasileira: os desafios de sua caracterização como política pública”. Contexto Internacional, vol. 35(1), pp. 11-40.). No pós-Guerra Fria, os debates sobre segurança internacional perderam relativo espaço na agenda internacional para temas como proteção dos direitos humanos, desenvolvimento, comércio, meio ambiente, cultura, regionalismo, cooperação técnica, etc. Com a emergência desses temas, houve um movimento de projeção de órgãos estatais como instituições responsável por liderar os diálogos do Brasil no plano internacional (Cason & Power, 2009)CASON, Jeffrey; POWER, Timothy. (2009), “Presidentialization, Pluralization and the Rollback of Itamaraty: Explaining Change in Brazilian Foreign Policy Making in the Cardoso-Lula Era”. International Political Science Review, vol. 30(2), pp. 117-140., o que reforçou a inevitabilidade de interface desses órgãos com temas e atores (domésticos e internacionais) que não estavam habituados a interagir. Se somam a isso a progressiva percepção de que os países devem se preparar não somente para responder a ameaças de outros Estados, consideradas “clássicas”, mas também a riscos à soberania de origem social, econômica, climática, alimentar, biológica, sanitária e cibernética. Por exemplo, Gustavo Costa (2018)COSTA, Gustavo. (2018), “Governamentalidade e soberania na fronteira Brasil-Bolívia: Segurança nacional e saúde pública como dispositivos de poder”. DADOS: Revista de Ciências Sociais, vol. 61, n. 2, pp. 373-404. descreve de que modo a atuação das Forças Armadas em questões de segurança pública e saúde, na região de fronteira com a Bolívia, tornou-se elemento fundamental para se entender a governabilidade, bem como a dinâmica social e identitária da região. 14 14 . Não é objetivo desta pesquisa analisar as consequências e potenciais contradições desse fenômeno político e social para a governabilidade e identidade coletiva local, como o autor do referido trabalho se propõe.

Se, por um lado, essa percepção de que mais variados temas estão relacionados com defesa aumentou o leque de campos de atuação das Forças Armadas, por outro também fortaleceu o fenômeno que autores da Escola de Copenhague definiram como processo de securitização (Wæver, 1998WÆVER, Ole. (1998), “Security, Insecurity and Asecurity in the West-European NonWar Community”, in Emmanuel Adler and Michael Barnett (eds.). Security Communities. Cambridge: Cambridge University Press. pp. 69-118.). Esses movimentos afetam o relacionamento do Estado com a sociedade e mudam a relação dos militares com a sociedade em geral. Deve-se considerar que esse movimento, uma vez que significa uma percepção coletiva emergente de que determinado assunto ou fenômeno é uma ameaça, traz o risco inerente de respostas mais extremas e que envolvam o uso da força em questões que tenham origem de cunho social, econômico ou ambiental. Pelo lado militar, esse cenário em constante modificação ensejou a mudança na própria doutrina, para dar conta de ações multidimensionais e interagências, uma vez que a ideia de guerra convencional também é dinâmica (Visacro, 2018VISACRO, Alessandro. (2018), A guerra na Era da Informação. São Paulo: Editora Contexto.). A atuação na pandemia do Covid-19, as iniciativas de defesa cibernética, a atuação brasileira em missões de paz, bem como em operações de garantia da lei e da ordem – embora não sejam missões estritamente de defesa, mas de segurança internacional e de segurança pública, respectivamente – são simbólicas desse processo de expansão temática da defesa, aumento do leque de atores envolvidos e consequente mudança da relação entre as Forças Armadas e outros atores da sociedade.

Por exemplo, políticas de cooperação internacional em defesa 15 15 . Cabe ressaltar que cooperação em defesa é mais abrangente do que a cooperação militar, uma vez que envolve esforços conjuntos, troca de experiências e informações em diversas áreas de modo a garantir a defesa dos parceiros, por meio do fortalecimento das instituições e da busca do desenvolvimento. são simbólicas no sentido de demandar o diálogo de atores de naturezas distintas. Por exemplo, além da participação do MRE, por meio da Agência Brasileira de Cooperação (ABC), os diálogos com vistas à criação de um projeto de cooperação trilateral com Moçambique para temas de meteorologia, prevenção e gestão de calamidades envolveu o Instituto Nacional de Meteorologia, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, a Universidade de São Paulo e a Universidade Federal de Alagoas, além do Ministério da Defesa. 16 16 . Projeto BRA/04/044-A349 da ABC. Também por meio da ABC, outros projetos de cooperação entre países do Sul foram firmados, garantindo ao Brasil acesso a tecnologias fundamentais para a defesa, como na área nuclear e aeroespacial. É o caso de acordos com Argentina, Ucrânia, Rússia, com destaque para os países do Grupo de Visegrád, 17 17 . Hungria, Polônia, República Checa e Eslováquia em que desde 2013, foram firmadas iniciativas em variados assuntos estratégicos, sendo os mais relevantes a “Defesa Química Biológica Radiológica e Nuclear” e a defesa cibernética. 18 18 . Disponível em: https://www.defesa.gov.br/relacoes-internacionais/cooperacao-internacional/parcerias-e-acordos-bilaterais , acesso em 12 de fevereiro de 2019.

Essas relações sugerem o quanto temas demandam um conhecimento técnico específico muito elevado, mesmo não sendo exclusivamente temas de defesa, como por exemplo a ciência e tecnologia, a cibersegurança, a área nuclear e industrial, proporcionam uma articulação entre diversas políticas públicas e a agenda de defesa. Isso potencializa a importância dessa temática para o desenvolvimento nacional, mesmo em tempos de paz, e demonstra a importância de que o MD considere e integre interesses de diferentes setores de governo e privados, uma vez que o sucesso de um está vinculado ao outro. Essa necessidade enseja, também, uma mudança estrutural dentro das Forças Armadas, como é o caso da criação do Comando de Defesa Cibernética 19 19 . Pela Portaria n 666, publicada no Boletim do Exército no dia 6 de agosto de 2010. e da transformação da Companhia de Defesa Química Biológica Radiológica Nuclear no primeiro batalhão dessa especialidade no Brasil. 20 20 . Pela Portaria n 991, publicada no Boletim do Exército no dia 30 de novembro de 2012.

O comando brasileiro do componente militar da Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (MINUSTAH, acrônimo em francês), entre 2004 e 2017, traz exemplos de que esse processo de atuação articulada com outros atores causa impactos na modernização da doutrina e do treinamento 21 21 . Ou “adestramento”, como é comum no jargão militar. militar (Lima et al. , 2017LIMA, Maria Regina Soares de; et al. (2017), Atlas da política brasileira de defesa. Buenos Aires: CLACSO.). A necessidade de integrar um leque significativo de atores da sociedade civil às estratégias conduzidas pelos peacekeepers no país caribenho, bem como de atuar em situações que requerem respostas que ultrapassam o meio estritamente militar – como o acesso da população a serviços básicos, a construção de instituições para governança local e a promoção de diálogo entre culturas locais que têm tradições políticas, étnicas e religiosas distintas – demandou um esforço de adaptação e aprendizado pelos atores envolvidos, o que ensejou uma oportunidade de troca de ideias e influências (Hirst, 2009HIRST, Mônica. (2009), “La Intervención Sudamericana en Haití”, in HIRST, Mônica. (org.). Crisis del Estado e Intervención Internacional: Una mirada desde el Sur. Buenos Aires: Edhasa vol. 1, pp. 20-32.). A estrutura e os cursos do Centro Conjunto de Operações de Paz do Brasil 22 22 . Criado pela portaria nº 952-MD, de 2010, que extingue o Centro de Instrução de Operações de Paz. – que têm o objetivo de treinar militares, forças policiais, bem como civis brasileiros e de outros países – demonstram o fortalecimento de percepções quanto à importância de diálogo com diversos atores.

Ainda que o Brasil tenha um longo histórico de participação em operações de paz, a escala de envolvimento e mobilização no Haiti foi mais significativa, o que criou um ambiente propício para o surgimento de novas relações e redes de diálogo. Apesar disso, cabe destacar que o processo que levou à decisão de um maior envolvimento com missão no país caribenho teve pouca participação e interferência da sociedade civil em geral e das próprias Forças Armadas (Rocha, 2009ROCHA, Antônio J. R. (2009), “Política Externa e política de defesa no Brasil: civis e militares, prioridades e a participação em missões de paz”. E-cadernos CES (online), vol. 6, pp. 142-158.). Dentre as ações de organizações sociais que atuaram na MINUSTAH, pode-se citar o Viva Rio. Com base na experiência desenvolvida nas crises sociais do Rio de Janeiro desde 1993, a organização contribuiu para o treinamento da Polícia Nacional do Haiti, com o objetivo de diminuir o foco de tensão entre policiais e civis naquele conflitivo ambiente. Com o tempo, passou a ser um ator fundamental junto ao governo haitiano e ao comando da MINUSTAH na mediação de conflitos entre diversos grupos atuantes em Porto Príncipe (Schmitz, 2010SCHMITZ, Guilherme de O. (2010), “A sociedade civil brasileira e a cooperação Sul-Sul para o desenvolvimento: o caso do Viva Rio no Haiti”. Texto para discussão, Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA).). Por conta dessa aproximação, o Viva Rio foi convidado a participar dos debates anteriormente mencionados sobre os documentos declaratórios de defesa. Pelo lado acadêmico, a criação da Rede Brasileira de Pesquisa sobre Operações de Paz (REBRAPAZ), em novembro de 2016, é simbólica no sentido que cria um ambiente de debate mais plural. Visita de acadêmicos para fazer pesquisa de campo no Haiti também eram frequentes.

Esses fatores sugerem que a MINUSTAH propiciou um diálogo mais próximo e dinâmico entre as Forças Armadas e outros atores da sociedade brasileira e internacional. Todavia, ainda há espaço para melhoria na comunicação e entendimento entre esses atores. Em entrevistas conduzidas por Castro e Marques (2019)CASTRO, Celso; MARQUES, Adriana (orgs.). (2019), Missão Haiti: A visão dos force commanders. Rio de Janeiro: FGV Editora., os force commanders brasileiros, quando indagados sobre os contatos que tiveram com ONGs, respondiam que a relação era positiva e produtiva em geral. Entretanto, alguns entrevistados deixaram transparecer um desconforto quando as ONGs buscaram agir de modo autônomo, sem articular com o comando na missão antes. Esse contato prévio, apesar de não ser obrigatório, é comum à cultura organizacional militar, cunhada na hierarquia e disciplina. A centralização da cadeia de comando, bem como o conhecimento e o controle de todos os atores envolvidos no tabuleiro operacional são entendidos pelos militares como fatores indispensáveis ao sucesso da missão e, por esse motivo, qualquer movimentação inesperada é vista como um risco em potencial que poderia ser evitado. Cabe citar uma reflexão proposta por Aguilar (2016)AGUILAR, Sérgio L. C. (2016), “A coordenação civil‑militar nas operações de paz e o Brasil: algumas considerações”. Rev. Bra. Est. Def. vol. 3, n. 2, pp. 25-39., quando argumenta que as culturas organizacionais dos atores envolvidos (civis e militares) são, por vezes, diametralmente opostas, pois pertencem e são construídas para responder diferentes funções e contextos nos quais estão inseridos. Com isso, a coordenação de atores que têm modo de atuar, linguagem, abordagens aos desafios, interesses específicos, visões de mundo distintos, o que potencializa ruídos na comunicação, desentendimentos e fricções.

Os militares passaram a atuar e a incidir em pontos específicos da política industrial e de ciência e tecnologia, tanto pelo seu lado estratégico para a soberania nacional (Brick & Porto, 2020BRICK, Eduardo S.; PORTO, Henrique F. A. (2020), “O papel do Estado e a interação entre empresas, Institutos de Ciência e Tecnologia (ICT) e Instituições de Ensino Superior (IES) para inovação e capacitação industrial e tecnológica para defesa no brasil”. R. Esc. Guerra Nav., vol. 26, n. 1, pp. 254-303.), bem como a fim de revitalizar a indústria de defesa e gerar um efeito de transbordamento (Dagnino, 2008)DAGNINO, Renato. (2008), “Em que a Economia de Defesa pode ajudar nas decisões sobre a revitalização da Indústria de Defesa brasileira?”. OIKOS, n. 9(VII), pp. 113-137.. Esse fenômeno teve início nos anos 1960, diante da expansão do entendimento sobre Defesa Nacional, que passou a incorporar com maior clareza a busca de desenvolvimento (Stepan, 1974)STEPAN, Alfred. (1974), The Military in Politics: Changing Patterns in Brazil. New Jersey: Princeton University Press., mas ficou mais dinâmico a partir dos anos 2000, em especial durante o governo de Lula da Silva, com a tentativa de retomar a produção industrial após o colapso dos anos 1990 (Silva, 2020)SILVA, Diego Lopes da. (2020), “Brazil: Reassessing Brazil’s Arms Industry”, in HARTLEY, K.; BELIN, J. The Economics of the Global Defence Industry. New York: Routledge, pp. 482-505.. Em que pese um esforço de centralização, a partir da END de 2008 (Silva, 2015)SILVA, Peterson. (2015), A política industrial de defesa no Brasil (1999-2014): intersetorialidade e dinâmica de seus principais atores. Tese (Doutorado em Relações Internacionais), Universidade de São Paulo. São Paulo, 445p., Brick e Porto (2020)BRICK, Eduardo S.; PORTO, Henrique F. A. (2020), “O papel do Estado e a interação entre empresas, Institutos de Ciência e Tecnologia (ICT) e Instituições de Ensino Superior (IES) para inovação e capacitação industrial e tecnológica para defesa no brasil”. R. Esc. Guerra Nav., vol. 26, n. 1, pp. 254-303. argumentam que o aumento dos atores estatais que buscam incidir nos rumos da indústria de defesa resultou em um modelo extremamente descentralizado e desarticulado. Portanto, ainda que ineficiente, há um aumento de pluralidade de atores estatais que visam a permear políticas industriais na área de defesa. Por sua vez, o movimento contrário é pouco observado, o que sugere que a indústria de defesa ainda não é um tema que contribua significativamente na consolidação de uma dimensão pública na política de defesa. Possivelmente, esse é um dos motivos pelos quais há poucos trabalhos acadêmicos que olhem para atores ligados à indústria como agentes formuladores da política de defesa. O que não significa que esses atores não tenham incidência política, ainda que por canais e mecanismos informais, mas ainda é uma lacuna na literatura científica que precisa ser mais explorada. Por se aproximar de um monopsônio, o Estado passa a ter um peso muito maior do que os outros atores na condução dos rumos da política industrial de defesa, relegando os demais a uma postura mais reativa (Leske, 2005). Soma-se a isso uma baixa integração entre o setor privado da BID e outros atores da sociedade civil, como Instituições de Ensino Superior e Pesquisa (Brick & Porto, 2020)BRICK, Eduardo S.; PORTO, Henrique F. A. (2020), “O papel do Estado e a interação entre empresas, Institutos de Ciência e Tecnologia (ICT) e Instituições de Ensino Superior (IES) para inovação e capacitação industrial e tecnológica para defesa no brasil”. R. Esc. Guerra Nav., vol. 26, n. 1, pp. 254-303..

No âmbito doméstico, as ações subsidiárias também representam oportunidades de contato entre as Forças Armadas e outros atores da sociedade, ainda que não sejam do âmbito da defesa em seu sentido mais clássico. As ações mais recentes e robustas são as executadas durante os grandes eventos esportivos (Copa do Mundo FIFA, em 2014, e Jogos Olímpicos, em 2016), a Garantia da Lei e da Ordem no Rio de Janeiro (em 2017, que foi seguida pela Intervenção Federal, em fevereiro de 2018) e a Operação Acolhida (iniciada em 2019). Todos esses casos demonstraram a necessidade de articulação das Forças Armadas com outras forças de segurança, instituições e organismos governamentais com diversas funções (saúde, educação, saneamento básico, infraestrutura, direitos humanos etc.), organizações internacionais, movimentos e organizações não governamentais, bem como com a comunidade epistêmica muito atuante. Todos eles com suas próprias redes e capacidade (assimétrica) de pressionar as decisões políticas de acordo com seus valores, ideias, preocupações e interesses. A título ilustrativo, a Operação Acolhida, para responder o aumento da chegada de imigrantes da Venezuela, foi constituída uma força-tarefa composta das Forças Armadas, doze ministérios, a Polícia Federal, as forças de segurança públicas de Roraima, bem como de atores não governamentais brasileiros e internacionais com experiência de atuação em crises humanitárias. 23 23 . Como o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, a Organização Internacional para as Migrações, o Fundo de População das Nações Unidas, entidades humanitárias como a Fraternidade Internacional, a Fraternidade Sem Fronteira, a Rotary, a Cáritas, a FUNASA e entidades religiosas. Apesar desses recentes avanços, ainda há um contexto caracterizado por uma preocupação com a defesa nacional, influenciada por leituras baseadas em desconfiança e desconhecimento, 2425 que leva a um receio generalizado de que organizações não governamentais tenham interesses escusos para atuar na região amazônica, colocando em risco a soberania do país.

Por outro lado, cabe ressaltar que, se por um lado o aumento na elasticidade do entendimento sobre defesa aproxima as Forças Armadas da sociedade, traz visibilidade e reforça o pleito por recursos, por outro também traz riscos para a atuação dos militares, os afastando da sua função clássica de defesa da soberania e do território nacional e aumentando o risco de politização. Por exemplo, o uso das Forças Armadas em temas relativos ao regime de segurança internacional, bem como em ações subsidiárias de segurança pública torna-se progressivamente mais frequente, o que pode levar a sociedade e o próprio militar a confundirem o papel de suas instituições e, consequentemente, transformarem a percepção que têm delas.

COMUNIDADE EPISTÊMICA

Essas modificações no contexto político internacional e doméstico tiveram reflexo no ambiente acadêmico. Provocados pelo histórico de intervenções em regimes democráticos, Murilo de Carvalho (2020)CARVALHO, José Murilo de. (2020), Forças Armadas e Política no Brasil. São Paulo: Todavia. relata a existência de sentimentos de suspeição e de repulsa a pesquisadores que debruçassem sobre temas de defesa, por parte da própria comunidade acadêmica, o que estabelecia barreiras informais ao desenvolvimento da comunidade epistêmica não apenas no Brasil, mas em toda a América Latina. Muitos acadêmicos brasileiros estavam envolvidos na luta pela redemocratização do país, o que gerou neles um sentimento antimilitarista, que foi transportado para a comunidade epistêmica de modo que as pesquisas não souberam “distinguir entre o papel ilegítimo que as instituições militares ocuparam como governantes e seu papel legítimo como ferramentas políticas do Estado” (Proença Jr. & Diniz, 1998PROENÇA JR., Domício; DINIZ, Eugenio. (1998), Política de defesa no Brasil: uma análise crítica. Brasília: Editora Universidade de Brasília., p. 32). Esse panorama começa a se alterar, principalmente nos anos 2000.

Novamente traçando um paralelo com outro curso de ciências sociais, os primeiros anos do século XXI foram o palco para um aumento significativo na quantidade de cursos de graduação e de pós-graduação em Relações Internacionais, inclusive com a criação da Associação Brasileira de Relações Internacionais, em 2005. A expansão da pesquisa científica sobre defesa seguiu esse processo cerca de uma década depois. Cursos de Relações Internacionais e de Ciência Política ampliaram o interesse pelo campo da Defesa, bem como foram criados cursos específicos em diversas universidades brasileiras. O primeiro curso de mestrado estritamente na área de Defesa foi criado em 2008. Nos dez anos que se seguiram, foram criados doze cursos entre mestrados e doutorados, sejam profissionais ou acadêmicos ( Imagem 4 ). Dentre esses programas, estão os ofertados para civis e para militares em instituições de ensino militar.

Imagem 4
: Expansão de Estudo de Defesa Nacional na Academia Brasileira

Parte da comunidade epistêmica de defesa, como é o caso de Héctor Saint-Pierre, critica a criação desses programas, por passarem a competir pelos parcos recursos para pesquisa, bem como baseados no entendimento que militares que desejassem deveriam buscar títulos acadêmicos nas universidades, como é o modelo estadunidense e alemão. 26 26 . “‘Temos Forças Armadas para defender os interesses dos EUA’, aponta pesquisador”. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2019/10/26/temos-forcas-armadas-para-defender-os-interesses-dos-eua-aponta-pesquisador , acesso em: 26/03/2020. Por outro lado, pode-se argumentar que o incentivo ao estudo, à pesquisa e à pluralidade deveriam ser desejáveis de modo amplo. Por estarem no âmbito de instituições militares, esses programas aumentam a quantidade de oficiais que aproveitam essa oportunidade de estudo, quebrando um possível viés confirmatório causado pelo insulamento do sistema de ensino militar, além de ampliar o contato desses militares com temas, reflexões, leituras e questionamentos levantados por professores doutores e por outros alunos civis. Ou seja, esses programas podem ser entendidos como parte do processo de transformação das Forças (Nunes, 2012NUNES, Richard. (2012), “O Instituto Meira Mattos da ECEME e o processo de transformação do exército brasileiro”. Coleção Meira Mattos, n. 26.). Cabe ressaltar, também, que a existência desses programas não exclui a possibilidade de militares frequentarem instituições de ensino superior civis, como de fato ocorre, o que sugere que os dois modelos são complementares. Além do mérito de ampliar os espaços de diálogo, esses cursos qualificam mestres e doutores civis em ciências militares, uma formação que, antes, era exclusiva aos militares.

Nessa direção, outro episódio marcante foi a criação da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED), em 2005, que busca contribuir para o crescimento desse campo do conhecimento no Brasil. 27 27 . Disponível em: https://www.abedef.org/conteudo/view?ID_CONTEUDO=182 , acesso em: 14/02/ 2019. O governo federal brasileiro – em especial o Ministério da Defesa e o Ministério da Educação – também contribuiu ao criar programas de fomento a pesquisas sobre temas de interesse da defesa nacional, como é o caso do Programa de Cooperação Acadêmica em Defesa Nacional (Procad) e do Pró-Defesa, ambos com fundos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Durante o período em que foi Ministro da Defesa, Celso Amorim criou o Instituto Pandiá Calógeras, que era um instituto composto de civis, que tinha como objetivo desenvolver pesquisas para assessoramento direto ao ministro, bem como buscava facilitar a articulação entre a pasta e a academia (Rocha & Cortinhas, 2013ROCHA, Antônio J. R.; CORTINHAS, Juliano S. (2013). “The Pandia Institute: Ideas and Dialogues to Improve Brazil’s Defense System”. Journal der Politisch-Militarischen Gesellschaft, vol. 87, p. 11.). O Pandiá foi gradualmente esvaziado, diante da percepção que ele tinha funções concorrentes com a Escola Superior de Guerra – a qual, apesar de teoricamente civil, é comandada por oficiais generais e seus quadros são majoritariamente militares. Em fevereiro de 2021, os funcionários remanescentes do referido Instituto foram remanejados, decretando o fim do Pandiá.

REGIONALISMO

Os diálogos sobre defesa na região entre diversos atores sul-americanos (estatais ou não) também foi foco de um dinâmico debate acadêmico. O processo de criação de mecanismos de articulação política na região teve sua origem no início dos anos 1990, com a liderança dos Estados Unidos. A América do Sul e a América Central passavam por processos de redemocratização, o que permitiam a diminuição da desconfiança e rivalidades regionais, bem como o desmantelamento de estruturas e instituições doméstica de cooperação entre militares e demais forças de segurança que emergiram ao longo dos regimes autoritários (D’Araujo, 2010D’ARAUJO, Maria Celina. (2010), Militares, democracia e desenvolvimento: Brasil e América do Sul. Rio de janeiro: Editora FGV, 2010.). Após décadas de iniciativas que visavam à construção de confiança entre os países da região, os países sul-americanos, baseados em um contexto de primazia de governos progressistas no continente, tomaram a decisão de “latinoamericanizar” os debates sobre defesa, sejam no combate a ameaças clássicas, como às não convencionais (Borda, 2010BORDA, Sandra. (2010), “Desafíos y oportunidades de la Unión Suramericana de Naciones”. Documentos CRIES, n. 18.).

Nessa esteira que foi criada a União de Nações Sul-Americanas (UNASUL), em 2008, em substituição da Comunidade Sul-Americana de Nações (CASA). Declaração de Bogotá – o documento emitido por ocasião da primeira reunião dos Ministros da Defesa da CASA, em 2006 – ressaltava a importância de se criar uma zona de paz e estabilidade na América do Sul. A criação do Conselho de Defesa Sul-Americano (CDS) consolidava aumento da consciência sobre a importância dos vizinhos sul-americanos para a defesa do Brasil – principalmente considerando o esforço no século XXI para consolidar o entendimento geográfico do “entorno estratégico” – e de que a política de defesa brasileira deveria potencializar o seu efeito dissuasório para fora da região, enquanto priorizava a cooperação entres os países da América do Sul (Amorim, 2016AMORIM, Celso. (2016), A grande estratégia do Brasil: discursos, artigos e entrevistas da gestão no Ministério da Defesa (2011-2014). São Paulo: Editora UNESP/ Fundação Alexandre de Gusmão.).

O CDS, diferentemente de outros tratados e alianças militares, não se resumia a acordos de cooperação e coordenação. Havia um esforço de construir em conjunto estruturas de diálogo, de reflexão intelectual e uma indústria de defesa regional (Lima et al. , 2017LIMA, Maria Regina Soares de; et al. (2017), Atlas da política brasileira de defesa. Buenos Aires: CLACSO.). Além de exercícios militares, foram promovidos cursos e encontros de modo a incentivar um entendimento conjunto sobre a defesa na América do Sul, bem como foram criadas instituições como o Centro de Estudos Estratégicos de Defesa, que tinha sede na Argentina, nem como a da Escola Sul-Americana de Defesa, com sede no Equador. Essas instituições abriram espaço – ainda que não plenamente aproveitado – para uma maior interação entre as Forças Armadas e outros atores da sociedade em um ambiente regional (Abdul-Hak, 2013ABDUL-HAK, A. P. N. (2013), O Conselho de Defesa Sul-Americano: objetivos e interesses do Brasil (CDS). Brasília: FUNAG.). Esse movimento regional trouxe à tona um debate entre visões de segurança regional: uma que priorizava a soberania sobre recursos regionais e percebia potências extrarregionais como principal ameaça e outra, mais próxima da agenda defendida pelos Estados Unidos, focada em ameaças transnacionais (Padula, 2015PADULA, Raphael. (2015), “A disputa pela agenda de segurança regional e o Conselho de Defesa Sul-Americano”. Revista da Escola de Guerra Naval, vol. 21, n. 2, pp. 221-262.).

Na contramão de leituras que argumentavam que o Conselho de Defesa Sul-Americano servia a propósitos geopolíticos e comerciais do Brasil (Manaut et al. , 2009MANAUT, Benítez, et al. (2009), “Los desafíos de la seguridad y la defensa en Latinoamérica”, in Hans Mathieu et al. (org.). Seguridad regional en América Latina y el Caribe. Bogotá: Friedrich Ebert Stiftung.), a percepção de que a UNASUL era um instrumento de fortalecimento de pautas ligadas a partidos de esquerda e de centro-esquerda predominou em governos e em Forças Armadas da região (Rodrigues & Dos Santos, 2020RODRIGUES, Bernardo Salgado; DOS SANTOS, Marcos Cardoso. (2020), “Da segurança regional ao vácuo político”. Coleção Meira Mattos: Revista das Ciências Militares, vol. 14, n. 50, pp. 127-149.). Consequentemente, os esforços para a criação do CDS, esvaziaram-se na segunda década do século XXI, diante de crises políticas e econômicas que atingiram a região, bem como a emergência de governos de cunho liberal, nacionalista ou de extrema-direita. Todas as instituições criadas no âmbito da UNASUL deixaram de existir. Em substituição, foi anunciada a criação, em março de 2019, do Fórum para o Progresso e Desenvolvimento da América do Sul (PROSUL), em uma iniciativa liderada pelo presidente chileno, Sebastián Piñera, com apoio do Brasil, Argentina, Colômbia, Guiana, Equador, Paraguai e Peru. Todavia, dois anos após sua criação, a nova articulação mostrou poucos resultados e conta com a falta de entusiasmo dos líderes nacionais.

EFEITOS DA DIÁSPORA PROFISSIONAL NO PAPEL CONSTITUCIONAL DAS FORÇAS

Além das mudanças empíricas já citadas no âmbito dos temas e das agendas de defesa do Brasil nas últimas duas décadas, o contexto político-institucional do País demonstrou transformações que requerem uma análise minuciosa a respeito de suas possíveis influências no processo de formulação da política de defesa. Novamente traçando um paralelo com a política externa, o Brasil testemunhou na década de 1980 um movimento que Milani e Pinheiro (2013)MILANI, Carlos R. S.; PINHEIRO, Letícia. (2013), “Política Externa Brasileira: os desafios de sua caracterização como política pública”. Contexto Internacional, vol. 35(1), pp. 11-40. classificaram como “diáspora”: um êxodo de diplomatas para outras agências governamentais, ao passo que a década de 1990 refletiu uma tendência de incorporação crescente de temas de política externa por outras agências do governo. Ou seja, um movimento que se deu, de modo dialético, como consequência da globalização e da internacionalização dos atores brasileiros, bem como pela presença de quadros formados no Instituto Rio Branco em outras agências e órgãos do governo. Nesse sentido, esses profissionais teriam facilitado articulações de temas “domésticos” com as agendas da política externa, assim como criando tensões e fricções por provocar modificações dentro dessas instituições para adequação à nova realidade. O Itamaraty, por sua vez, viu-se pressionado a ampliar o diálogo com um crescente número de atores dentro do governo, principalmente no nível federal, que estavam atuando internacionalmente, o que reduziu em parte o insulamento burocrático do MRE.

Guardadas as devidas peculiaridades de cada movimento, principalmente dada a diferença de função e de responsabilidades entre diplomatas e militares, a crescente quantidade de membros das Forças Armadas na administração pública federal pode provocar um efeito semelhante. Segundo dados do Portal da Transparência, esse movimento teve sua origem, pelo menos, desde 2014, tendo pontos de aceleração em 2016, no governo Temer, e em 2018, com a eleição de Jair Bolsonaro. Diversos veículos ressaltam que esses militares passam dos seis mil em 2020. 28 28 . FOLHA DE S. PAULO (2019). “Bolsonaro amplia presença de militares em 30 órgãos federais” publicado em 14/10/2019, disponível em https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/10/bolsonaro-amplia-presenca-de-militares-em-30-orgaos-federais.shtml , acesso em 12/03/2021. G1 (2020). “Governo Bolsonaro mais que dobra número de militares em cargos civis, aponta TCU”, publicado em 17/07/2020, disponível em https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/07/17/governo-bolsonaro-tem-6157-militares-em-cargos-civis-diz-tcu.ghtml , acesso em 12/03/2021. Todavia, cabe ressaltar que, segundo levantamento feito pelo Tribunal de Contas da União, 29 29 . TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO (2020). Memorando nº 57/2020-Segecex Em 17 de julho de 2020. Disponível em https://www.conjur.com.br/dl/levantamento-tcu.pdf , acesso em 12/03/2021. essa quantidade inclui profissionais da saúde e da educação, bem como militares da reserva que trabalham no INSS. Os militares (da ativa e da reserva) que estão alocados em funções públicas nas mais diversas pastas do Executivo, em temas que vão muito além da defesa, inclusive de chefia, totalizaram 2.643, em 2020, representando um crescimento de 34,50% em relação a 2016. Assim como ocorreu no processo de transformação da política externa, essa “diáspora” de militares pode desencadear um efeito semelhante ao que Milani e Pinheiro descreveram sobre os anos 1990 no caso da política externa: uma maior difusão dentro dos órgãos governamentais de visões mais preocupadas com temas de defesa.

Também há que se ressaltar que a diáspora de diplomatas foi um fenômeno que ocorreu em vários países, dada a internacionalização dos atores internacionais e a necessidade de profissionalização técnica nesse movimento. O caso do aumento da participação de militares no Brasil não é fruto de uma onda internacional, nem ocorre de modo mais orgânico, como foi o caso dos Estados Unidos, descrito por Rosa Books (2016)BROOKS, Rosa. (2016), How Everything Became War and the Military Became Everything: Tales from the Pentagon. New York: Simon & Schuster.. A falta de distanciamento histórico não permite um debate mais aprofundado sobre os indutores desses processos, mas parece claro que a emergência e a disseminação de assuntos de defesa não ocorrem devido a um maior interesse e amadurecimento da população para o tema, mas inseridas em uma disputa partidária e governamental. Uma confusão – seja ela deliberada ou não – da elite política e da sociedade em geral entre assuntos de defesa nacional e de segurança pública, especialmente após frequentes operações de GLO, também pode ter contribuído.

Ainda é difícil de antecipar os efeitos dessa participação de miliares da ativa e da reserva nos mais diversos temas da administração pública. Todavia, essa mudança na composição nos quadros das burocracias governamentais pode contribuir para que esses assuntos subam na escala de prioridades de suas respectivas instituições. Caso esses atores se apropriem de temas relacionados à defesa, novas camadas de fricção e de disputa tendem a surgir, com diferentes visões sobre defesa, contribuindo para a pluralidade e para o debate. Potencialmente, isso pode aumentar a pressão para o fim do insulamento do Ministério da Defesa e das Forças Armadas na condução e execução da política. O eventual aumento do leque de atores envolvidos e a pressão para a redução do insulamento do Ministério da Defesa desencadeariam um processo político no qual emergem novas alianças, interesses, competições, divergências e, inclusive, interpretações de interesses nacionais tanto na essência do processo decisório da política de defesa nacional como em todas as demais políticas que a margeiam e lhe dão sustentação. Se por um lado tal dimensão pública na formulação traz à tona elementos capazes de favorecer a legitimidade e a consolidação dessa política, ao mesmo tempo tornaria esse processo mais conflitivo, exigindo habilidade e lideranças qualificadas para conduzir o processo decisório.

Deve-se ressaltar, entretanto, que o aumento da quantidade de militares na política, principalmente no cargo de Ministro da Defesa, é visto com apreensão por parte da sociedade, dado o histórico de envolvimento das Forças Armadas na política, bem como as cicatrizes mal curadas causadas ao longo do regime militar (Carvalho, 2020CARVALHO, José Murilo de. (2020), Forças Armadas e Política no Brasil. São Paulo: Todavia.). Em geral, as críticas à escolha de militares para esses cargos comissionados não são baseadas na trajetória ou competência dessas pessoas, mas um receio de que esse movimento possa significar uma retração do controle civil sobre os militares, 30 30 . Cf. artigo de Octávio Amorim Neto, “O Governo Bolsonaro e a Questão Militar”, no site Diplomatizzando , publicado em 28/01/2019, disponível em: https://diplomatizzando.blogspot.com/2019/01/otavio-amorim-o-governo-bolsonaro-e-os.html , acesso em: 18/10/2019. o risco de associar órgãos que deveriam se comportar como instituições de Estado a governos e ideologias específicas, 31 31 . O Globo (2019). “Generais fazem alerta sobre contaminação política e risco de associação entre governo e militares”, publicado em 02/12/2018, disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/generais-fazem-alerta-sobre-contaminacao-politica-risco-de-associacao-entre-governo-militares-23274936 , acesso em: 18/10/2019. bem como a potencial ascensão de um modelo de gestão menos participativo, uma vez que esses militares replicam um modelo de gestão a qual estão acostumados, baseado na hierarquia e disciplina (Carvalho, 2020CARVALHO, José Murilo de. (2020), Forças Armadas e Política no Brasil. São Paulo: Todavia.; Ribeiro, 2019RIBEIRO, Andrea. (2019), “Austeridade econômica e o 2º turno das eleições presidenciais”, in FERES JR & PAULA (orgs.). Eleições 2018 e a crise da democracia Brasileira. Curitiba: Appris.).

Torna-se importante ressaltar que os militares, principalmente os da ativa, que decidem participar do governo podem gerar problemas institucionais para as Forças Armadas, ainda que esses grupos não representem suas corporações de origem (Carvalho, 2020CARVALHO, José Murilo de. (2020), Forças Armadas e Política no Brasil. São Paulo: Todavia.). Por outro lado, a quantidade de militares na administração pública pode colocar em risco o caráter apolítico das Forças Armadas, previsto constitucionalmente, uma vez que laços pessoais, redes profissionais, espírito de corpo e visões de mundo coincidentes aproximem as instituições militares com o governo que passam a servir, independentemente do intuito original desses indivíduos. Esse risco institucional é tratado com muita seriedade dentro das Forças Armadas, em especial pelo Exército Brasileiro. Paradoxalmente, militares críticos ao envolvimento político de colegas, por entender que eles descumprem o regimento e normas constitucionais e colocam em risco sua instituição, não podem vir à público ou estariam emitindo opiniões políticas e, portanto, também ocorrendo a mesma infração que criticam. Informalmente, pressiona-se para que os militares que decidam ocupar cargos no governo peçam para ir para reserva remunerada. 32 32 . Por exemplo, a decisão de Eduardo Pazuello de aceitar o cargo de Ministro da Saúde (em um primeiro momento como interino e, depois, oficialmente) sem ir para a reserva remunerada causou grande desconforto entre os generais que compunham o Alto Comando do Exército, conforme foi anunciado por diversos veículos de informação. Pode-se questionar se isso é o bastante para estabelecer um distanciamento entre as Forças Armadas e as instituições políticas, mas cria-se uma barreira formal com poder simbólico importante, além de atender os requisitos legais e constitucionais. Por outro lado, cabe a reflexão se um posicionamento oficial das Forças Armadas deveria ter ficado mais claro na época das eleições de 2018, para reforçar o caráter apolítico, uma vez que vários candidatos, em especial Jair Bolsonaro, buscaram utilizar a boa imagem que as instituições gozavam na sociedade para conquistar votos. Além disso, a revelação do general Villas Boas de que seu tweet 33 33 . Tweet do então comandante do Exército Brasileiro, postado no dia 03 de abril de 2018, disponível em: https://twitter.com/Gen_VillasBoas/status/981315180226318336?s=20 , acessado em: 09/06/2021. na véspera do julgamento pelo Supremo Tribunal Federal do habeas corpus do ex-presidente Lula da Silva foi previamente lido pelo Alto Comando do Exército e tinha como objetivo conter a animosidade existente dentro da Força Terrestre (Castro, 2021CASTRO, Celso. (2021), General Villas Boas: conversa com o comandante. Rio de Janeiro: FGV editora.) coloca dúvidas sobre até que ponto esses grupos que criticam a politização dos quartéis teriam respaldo.

Ainda carece distanciamento histórico para que se produzam análises mais apuradas sobre o grau de proximidade do governo Bolsonaro e as Forças Armadas, bem como seus impactos. Todavia, há evidências que sugerem que há debate e preocupação com esse tema dentro das Forças Armadas. Por exemplo, Fernando Azevedo e Silva, em sua breve carta de despedida ao ser demitido do Ministério da Defesa, escolheu citar como seu principal legado preservar “as Forças Armadas como instituições de Estado”. 34 34 . MINISTÉRIO DA DEFESA (2021). Nota oficial , publicada em: 29/03/2021, disponível em: https://www.gov.br/defesa/pt-br/centrais-de-conteudo/noticias/nota-oficial-do-ministro-de-estado-da-defesa , acesso em: 31/03/2021. Também foi vinculado por canais jornalísticos que a inédita substituição conjunta dos comandantes das três Forças Armadas que se seguiu à queda do ministro citado pode estar relacionada à recusa deles a atenderem o pedido do presidente a fazerem “demonstrações de apreço” ao governo. 35 35 . Conferir: VEJA (2021). Bolsonaro se fecha em seu labirinto , publicado em: 29/03/2021, disponível em: https://veja.abril.com.br/blog/ricardo-rangel/bolsonaro-se-fecha-em-seu-labirinto/ , acesso em: 31/03/2021. UOL (2021). Reforma de Bolsonaro é sinal de fraqueza, não de autogolpe de Estado, publicado em: 29/03/2021, disponível em https://noticias.uol.com.br/colunas/leonardo-sakamoto/2021/03/29/reforma-aumenta-influencia-de-bolsonaro-no-exercito-e-da-espaco-ao-centrao.htm , acesso em 31/03/2021. O GLOBO (2021). Bolsonaro demitiu o ministro para tirar o comandante do Exército, publicado em: 29/03/2021, disponível em: https://blogs.oglobo.globo.com/miriam-leitao/post/bolsonaro-demitiu-o-ministro-para-tirar-o-comandante-do-exercito.html , acesso em: 31/03/2021. Os críticos dessa perspectiva perguntam se a alta quantidade militares da ativa no governo e o silêncio quanto ao uso por parte de políticos de símbolos e brados que remetem às Forças já não seriam uma demonstração de apreço. Entretanto, a decisão do Exército Brasileiro 36 36 . EXÉRCITO BRASILEIRO (2021). Nota à imprensa , publicado em: 03/06/2021, disponível em: https://www.eb.mil.br/web/imprensa/documentos-a-imprensa/-/asset_publisher/oQTTiIUbAfKO/content/nota-a-impren-7 , acesso em: 08/06/2021. de arquivar sem punição o processo que analisava a participação do general Eduardo Pazuello em uma manifestação política em favor do governo de Jair Bolsonaro, ainda que tenha sido tomada sob forte pressão do Planalto, dá claros sinais de tolerância à politização da instituição e de seus membros. 37 37 . Eduardo Pazuello, enquanto ainda estava servindo como General de Divisão da ativa, subiu ao palanque e discursou em trajes civis ao lado de Jair Bolsonaro, em uma manifestação popular em apoio ao Presidente, que ocorreu no Rio de Janeiro, no dia 23 de maio de 2021. O Comandante do Exército acolheu os argumentos de Pazuello de que a manifestação não era política, nem partidária, uma vez que não ocorria em período eleitoral e que o Presidente não estava filiado a qualquer partido naquele momento. Não está traçada com clareza a linha entre o envolvimento político e o profissionalismo das Forças Armadas. 38 38 . A título de ilustração, essa fronteira é demarcada com maior clareza em outros países. Mark Milley, General Comandante do Exército dos Estados Unidos, desculpou-se publicamente por ter aparecido fardado em uma foto ao lado do então presidente Donald Trump, após conflitos entre agentes de segurança pública e manifestantes. Segundo o general, aquela foto poderia passar a ideia de que as Forças Armadas daquele país estariam envolvidas com a política doméstica. Cf. CNN (2020). Top general apologizes for appearing in photo-op with Trump after forceful removal of protesters . Disponível em: https://edition.cnn.com/2020/06/11/politics/milley-trump-appearance-mistake/index.html , publicada em: 11/06/2020, acesso em: 08/06/2021. Cada ator busca empurrar os limites conforme suas visões de mundo e seus interesses. A falta de institucionalização e de um consenso social desses limites acaba por favorecer os atores da sociedade que têm poder estrutural, que, no caso brasileiro, historicamente são os militares.

O RISCO DA FALTA DE INSTITUCIONALIZAÇÃO

O paralelo traçado com estudos sobre a política externa sugere que o processo de formulação da política de defesa nacional está passando por transformações. Todavia, a redução do insulamento das Forças Armadas e do Ministério da Defesa, pressionados pelo crescimento de uma dimensão pública de defesa, não é um processo linear ou natural. Pelo contrário, assim como em outros percursos de mudanças político-sociais, essa trajetória tem momentos marcados por avanços, aumento de iniciativas, busca de atores por maior proatividade; mas também períodos em que predominam barreiras, resistências, desvios e retrocessos. Pelo menos em parte, essas idas e vindas são um reflexo da falta de institucionalização do processo de formulação da política de defesa no Brasil. Se, como afirmado anteriormente, os documentos declaratórios demonstram mais continuidades do que reformas ao longo dos últimos anos, essa estabilidade deve-se mais ao insulamento dos tomadores de decisão do que a maturidade de um consenso brasileiro sobre os rumos que a defesa nacional deve tomar. Com exceção do Ministério da Defesa, todas as iniciativas nas dimensões analisadas neste trabalho são frágeis, estão em processo de consolidação ou têm um baixo adensamento formal.

Não se nega a natureza política da defesa nacional, o que pressupõe que os objetivos e leituras nela contidos são permeadas pelo panorama do jogo de poder na sociedade. Todavia, a falta de institucionalização faz com que o processo de consolidação de uma dimensão pública de defesa possa ter um efeito ambíguo: se, por um lado, favorece uma maior estabilidade devido a uma blindagem das elites decisórias, por outro permite que grande parte da sociedade, marginalizada do processo de formulação, seja mais facilmente instrumentalizada, dificultando, ainda mais, o amadurecimento do debate sobre temas de defesa.

Conforme anteriormente explorado, a política de defesa, no Brasil, não costuma ser usada de modo instrumental em campanhas eleitorais, uma vez que o interesse, em termos gerais, por assuntos de defesa é pequeno, principalmente se comparado com outros assuntos de cunho social e econômico. Todavia, na segunda década do século XXI, o cenário político internacional foi palco de uma onda internacional da direita nacionalista, populista e conservadora. Tornou-se mais frequente a instrumentalização de sentimentos nacionalistas para formar percepções de inimigos internos e externos, junto com um processo de securitização, a fim de manter os eleitores constantemente mobilizados e de aumentar os níveis de rejeição aos adversários políticos. No Brasil, essa estratégia tomou forma na generalização e folclorização de todos os partidos de centro ou de esquerda, na ideia de uma ameaça ao “ocidentalismo” e na pauta anti-imigração (Albuquerque & Lima, 2019ALBUQUERQUE, Marianna R.; LIMA, Maria Regina Soares de. (2019), “ABC do Jair: o novo léxico da política externa brasileira”. Boletim OPSA, n. 3 jul./set.). Esse tipo de estratégia política dissemina na sociedade leituras deturpadas sobre os objetivos de defesa nacional, dificultando, ainda mais um debate de qualidade que contribua com reflexões para a política de defesa. Com isso, há o risco em potencial de que se forme um ciclo vicioso em que a carência de canais formais e institucionalizados de diálogo torna ainda mais difícil combater a desinformação, que por sua vez contribui para a perpetuação de uma situação de desinteresse/despreparo por parte da sociedade em geral para debater defesa, causando um insulamento ainda maior dos formuladores da sua política.

Faz-se necessário um distanciamento temporal maior para que uma análise mais apurada seja possível sobre a instrumentalização de assuntos de defesa. Ainda não é claro, por exemplo, se essa prática será repetida em futuras eleições ou se foi um momento influenciado por uma onda antiliberal no mundo. Desse modo, também é incerto o impacto que essas estratégias eleitorais terão na formação da dimensão pública da política de defesa. Com base no monitoramento empírico feito na seção anterior e na análise do contexto atual, o que parece certo é o processo de formulação da política de defesa do Brasil carece de institucionalidade, de modo a estimular um debate qualitativo sobre o tema na sociedade brasileira.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante dos argumentos expostos neste artigo, parece pertinente argumentar que há avanços na consolidação dimensão pública na formulação da política de defesa no Brasil que não devem ser ignorados. Este artigo fez um monitoramento empírico de seis dimensões na formulação da política de defesa do Brasil. Em todas elas, em graus diferentes, houve avanços resistências e obstáculos que evidenciam que esse processo não é linear e que, por ser frágil, pode ser revertido. Observando a trajetória dos últimos 30 anos, a formulação da política de defesa tornou-se mais plural, embora ainda exista muito espaço no sentido de democratizar esse processo. Ou seja, os avanços na consolidação de uma dimensão pública na formulação da política de defesa, embora tenham méritos em fomentar um debate mais plural e participativo, ainda não se mostraram capazes de superar entraves históricos e a falta de institucionalização, a fim de nutrir qualitativamente uma relação simbiótica entre todos os atores da sociedade, sejam civis ou militares. Como em outras políticas públicas, a assimetria de poder entre os atores e a existência de motivações, interesses, valores, princípios e visões de mundo dificultam formações de consensos. No caso da defesa brasileira, há oportunidades de diálogo (ainda que poucas) para que se busque a superação dessas diferenças, mas as dificuldades são potencializadas por um diálogo de baixa qualidade entre os atores. Conforme visto, isso ocorre devido a ruídos na comunicação, falta de institucionalização, desconfianças históricas e desalinhamento de expectativas e instrumentalização política do tema.

Cabe destacar que, do reconhecimento dessa pluralidade poderia resultar uma eventual inconsistência política ou a fragmentação das agendas de defesa, dado o adensamento da presença de diversos órgãos da burocracia federal e demais entidades se especializando em temas internacionais. No entanto, parte-se do princípio aqui de que a pluralidade, além de não inviabilizar, pode coexistir com hierarquias, assimetrias e distintas funções entre os atores envolvidos, além de visões distintas do que vem a caracterizar o bem público. A autonomia das forças armadas na definição dos rumos da política de defesa pode gerar mais rapidez. Todavia, com a criação de mecanismos institucionais e maior participação de variados atores, a política de defesa ganha em pluralidade, estabilidade, transparência e legitimidade, além de aumentar o interesse e consciência da sociedade sobre temas de defesa nacional, fatores inegociáveis em um regime democrático. Além disso, considerar a política de defesa como política pública não significa diminuir o papel das Forças Armadas e do MD em sua formulação. Pelo contrário, continuam sendo os principais atores responsáveis pelas decisões nessa área, mas fazendo-se necessário reconhecer a influência de outros atores e o jogo político inerente a esse processo.

Ageadecimentos

Este artigo é de responsabilidade do autor e não reflete necessariamente a opinião das instituições a que está vinculado. O autor gostaria de agradecer à Monica E. S. Hirst e ao Carlos R. S. Milani, bem como aos colegas e aos revisores da DADOS que permaneceram anônimos pelas leituras, sugestões e referências. A pesquisa do artigo recebeu apoio da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro, ARC2019 – 211.591/2019. O autor dedica esse artigo ao Dr. Otto Carlos M. B. Duarte, seu pai e grande professor.

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NOTAS

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    27 Mar 2020
  • Revisado
    14 Abr 2021
  • Aceito
    14 Set 2021
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