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A Teia dos Povos e a universidade: agroecologia, saberes tradicionais insurgentes e descolonização epistêmica

Resumo

A partir das relações entre a Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) e a Teia dos Povos - articulação de comunidades tradicionais e movimentos sociais do campo e da cidade -, o texto propõe reflexões sobre o encontro de saberes tradicionais e conhecimentos acadêmicos como referência pedagógica de uma educação descolonizadora, tanto na universidade pública como nos territórios da Teia. Por meio de encontros com estudantes, mutirões e jornadas, acompanhados a partir do método da pesquisa-ação, a Teia dos Povos permite-nos avançar na compreensão das relações possíveis entre a agroecologia e um projeto de educação decolonial. Essa proposta da Teia, que dialoga com o conceito de ecologia dos saberes e se integra à estratégia de transição agroecológica e construção da autonomia em suas comunidades, fornece-nos subsídios para discutir como os questionamentos estabelecidos no âmbito da ecologia política conectam-se à descolonização epistêmica no âmbito de uma estratégia de luta emancipatória.

Palavras-chave:
Teia dos Povos; agroecologia; ecologia política; descolonização epistêmica; Encontro de Saberes

Abstract

Based on the relationship between the Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) and the Teia dos Povos (Peoples’ Web) - network of traditional communities and urban and peasant movements -, the text suggests reflections about the meeting of traditional and academic knowledge as a reference of a decolonizing education, both in the public university and in the Teia’s territories. Through meetings with students, task forces and workshops, followed by the action-research method, the Teia allows us to advance in understanding the possible relationships between agroecology and a decolonial education project. This proposal by the Teia, which dialogues with the concept of ecology of knowledges and is integrated with the strategy of agroecological transition and the construction of communitarian autonomy, provides us with subsidies to discuss how the questions established within the scope of political ecology are connected to epistemic decolonization within the scope of an emancipatory struggle strategy.

Keywords:
Peoples’ Web; agroecology; political ecology; epistemic decolonization; Meeting of Knowledges

Resumen

A partir de la relación entre la Universidad Federal del Sur de Bahía (UFSB) y la Teia dos Povos (Tela de los Pueblos) - articulación de comunidades tradicionales y movimientos sociales del campo y de la ciudad -, el texto propone reflexiones sobre el encuentro entre saberes tradicionales y conocimientos académicos como referencia de una educación descolonizadora, tanto en la universidad pública como en los territorios de la Teia. A través de reuniones con estudiantes, mingas y talleres, seguidos por medio de investigación-acción, buscamos avanzar en la comprensión de posibles relaciones entre la agroecología y un proyecto de educación descolonial. Esta propuesta, que dialoga con el concepto de ecología de saberes y se integra con la estrategia de transición agroecológica y la construcción de autonomía en sus comunidades, nos permite discutir cómo cuestiones establecidas por la ecología política están conectadas con la descolonización epistémica en una estrategia de lucha emancipadora.

Palabras-clave:
Tela de los Pueblos; agroecologia; ecología política; descolonización epistémica; Encuentro de Saberes

Introdução

A complexa crise do capitalismo industrial desde os anos 60, em função da insustentabilidade intrínseca de sua lógica perante o meio ambiente, ensejou esse campo de reflexões conhecido como ecologia política. Alimonda (2015ALIMONDA, Héctor. Una introducción a la Ecología Política latinoamericana (pasando por la historia ambiental). Buenos Aires: Clacso, 2015.) e Souza (2019SOUZA, Marcelo Lopes de. Territórios e ambientes: uma introdução à ecologia política. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2019.) demonstram como, em diferentes tradições acadêmicas, o termo envolveu diversas configurações, variações, ênfases. Como uma espécie de mote que dialoga com - e busca ultrapassar - o termo “economia política”, o que se destaca aqui, em síntese, é a imprescindibilidade de que se leve em conta a chamada natureza, ou recursos naturais, ao se discutirem nossas desigualdades econômicas e sociais.

No Brasil, em diálogo com esse campo, destacaram-se, pois, nos últimos 15 anos, os estudos sobre os chamados “conflitos ambientais”. Acselrad (2004) mostra como se espalham pela América Latina os exemplos de movimentos sociais cujas ações vão ao encontro do esboçado por essa proposta teórica, chamando a atenção para a necessidade de não separar natureza e economia - ao contrário do que diversos governos, empresas e outros atores no continente buscaram e buscam fazer.

Porto-Gonçalves apontou, à época, uma das decorrências desse novo cenário, em que questões sociais e ambientais já não se opõem, mas tornam-se correlacionadas: “Assim, não podemos mais pensar o indígena ou o camponês ou uma comunidade afrodescendente nos seus palenques e quilombos como o atraso a ser superado” (2006, p. 458). Tais comunidades deixam, pois, de ser vistas como grupos alheios a um debate oriundo do meio urbano, onde a tradição marxista havia apontado que estariam os protagonistas das mudanças sociais, os “coveiros” da burguesia.

Todo esse movimento dá-se em paralelo a outro - a crescente inclusão desses setores na escolarização e na vida acadêmica. No Brasil, especificamente, o período 2000-2015 é marcado pela ampliação das oportunidades para negros e indígenas, tanto na universidade pública como nas instituições privadas - seja pela criação das cotas raciais e sociais, ampliação de bolsas de estudo via programas como o Programa Universidade para todos (ProUni), auxílios para permanência de estudantes, ou mesmo financiamento estudantil.

É, pois, nesse cenário que se desenvolve a experiência a seguir relatada. O desafio de criar uma nova universidade pública federal, em uma região que abriga imensa sociobiodiversidade, mas é historicamente privada de investimentos públicos como o Sul da Bahia, é, também, o de enfrentar o “epistemicídio acadêmico” a que as populações negras e indígenas foram submetidas ao longo de décadas, pelo ensino superior tradicional, no dizer de Santos e Santos (2020, p.75).

Como tem sido identificado na Universidade Federal do Sul da Bahia, bem como em diversos outros contextos, sejam relacionados às novas universidades ou a projetos inovadores em instituições mais antigas, esse desafio é considerado, em si, parte de um projeto mais amplo de “descolonização”: epistêmica, metodológica (CRUZ, 2021CRUZ, Felipe S. M. Povos indígenas, pesquisa e descolonização. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, n. 36, p. 105, 2021. Resenha de: SMITH ,Linda Tuhiwai. Descolonizando Metodologias: Pesquisa e Povos Indígenas. Curitiba: Ed. UFPR, 2018.) ou até mesmo institucional (TUGNY; GONÇALVES, 2020TUGNY, Rosângela P.; GONÇALVES, Gustavo B. B. (org.). Universidade popular e encontro de saberes. Salvador: EDUFBA, 2020., p. 10).

Além da ampla revisão apresentada por Quintero et al. (op.cit.), destacamos, nesse sentido, as considerações de Rivera Cusicanqui (2018, p. 26-7): a discussão sobre a “descolonização” - inclusive no sentido intelectual/epistêmico - remonta, efetivamente, aos movimentos anticoloniais africanos e asiáticos no pós-guerra e tem em Frantz Fanon uma referência fundamental. Na América Latina, tais reflexões aportam, já nos anos 1960, a partir das contribuições de pensadores como Fausto Reinaga e Pablo González Casanova, entre outros.

Tendo entre seus fundadores uma série de pesquisadores próximos ao Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, a UFSB adotou como referência sobre o tema em diversos documentos internos a proposta de “ecologia de saberes”, termo associado ao sociólogo Boaventura de Sousa Santos (2007SANTOS, Boaventura de Souza. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. Novos Estudos, São Paulo, CEBRAP, n. 79, 2007.). Outra proposta conectada, também, a esse campo temático, é a de transformar a universidade em local para um “encontro de saberes” - desenvolvida, nos últimos dez anos, a partir de uma rede articulada pelo antropólogo José Jorge de Carvalho, da qual também já faziam parte diversos pesquisadores que fundaram a UFSB. Nesse contexto, o presente artigo dialogará com essas ideias reconhecendo-as como duas possíveis expressões dentro de um conjunto muito mais amplo e antigo de reflexão sobre a “descolonização” da universidade, por assim dizer. São, afinal, numerosas as iniciativas ao longo da última década em torno de uma descolonização epistêmica na prática, por todo o país, incluindo-se, por exemplo, as licenciaturas interculturais indígenas, os cursos dedicados ao ensino das relações étnico-raciais, ou às pedagogias do campo etc.

Na proposta de Santos para uma nova universidade, a monocultura da ciência moderna seria contraposta a uma “ecologia de saberes”, fundada no reconhecimento da pluralidade de conhecimentos heterogêneos (sendo um deles a ciência moderna) e em interações sustentáveis e dinâmicas entre eles sem comprometer sua autonomia (SANTOS, 2007SANTOS, Boaventura de Souza. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. Novos Estudos, São Paulo, CEBRAP, n. 79, 2007., p. 85).

Já o projeto Encontro de Saberes (ES) surgiu no âmbito do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Inclusão no Ensino e na Pesquisa (INCTI), que congrega dezenas de pesquisadores de universidades de todo o país. Inicialmente dedicado a acompanhar a implantação de ações afirmativas nas instituições de ensino superior, o instituto tem desenvolvido em diversas universidades, desde 2011, o ES, que busca promover “diálogos sistemáticos entre os conhecimentos acadêmicos e os saberes indígenas, quilombolas e de outras comunidades”, construindo uma articulação para incluir oficialmente como docentes nas universidades os “mestres e mestras que representam a rica diversidade epistemológica existente no país” (CARVALHO; ÁGUAS, 2015CARVALHO, José Jorge de; ÁGUAS, Carla. Encontro de saberes: um desafio teórico, político e epistemológico. In: Atas do Colóquio Internacional Epistemologias do Sul: aprendizagens globais Sul-Sul, Sul-Norte e Norte-Sul. Coimbra: CES, 2015., p. 1018). “Quando se englobam diversas tendências teóricas e políticas, não há garantia de acordo prévio nem de prioridade”, observam, ainda, os autores. O “giro descolonizador”, lembram-nos, a partir da experiência do ES, expõe “mútuas incomensurabilidades axiológicas” e “ideológicas” (idem, p. 1020).

O trajeto que levou a esses encontros foi percorrido tendo em mãos a referência metodológica principal da pesquisa-ação1 1 - Assumimos maior proximidade com a referência metodológica de pesquisa-ação participativa, tal como proposto originalmente por Fals Borda e Rahman (1991). O trabalho ainda inclui elementos resultantes de pesquisa etnográfica, tendo como principal referência metodológica Latour (2012). . Os dois autores trabalham em cooperação com agentes da Teia dos Povos antes mesmo de chegarem à UFSB, entre 2014 e 2015, e não apenas estiveram presentes, mas muitas vezes foram co-protagonistas, atuando, com outros sujeitos da Teia e da UFSB, em vários dos processos aqui descritos. Como em toda experiência de pesquisa-ação, trata-se, simultaneamente, de um estudo e de uma intervenção interessados, em que a intencionalidade dos sujeitos é parte intrínseca, constituinte do processo. Nosso interesse comum se conjuga à carta de fundação e princípios da UFSB e é o de constituir um projeto de educação emancipatória, que contribua para os processos de transição autonômica em construção nos territórios tradicionais e populares - além dos acadêmicos - do Sul da Bahia.

O “acolhimento às diferenças” proposto em projetos como o ES não é, como buscaremos demonstrar, um “final feliz” - é apenas o início de uma série de outros desafios para a universidade. Nesse sentido é que a experiência do encontro entre a Teia dos Povos e a UFSB nos parece apresentar-se como uma rica oportunidade de compreender melhor a dimensão da caminhada necessária rumo a um horizonte emancipatório, no que tange à relação entre a universidade pública e movimentos preocupados com temas como meio ambiente, sustentabilidade, autonomia e descolonização, tomando a busca pela educação libertadora como um de seus principais instrumentos.

Teia de ideias

A Teia dos Povos e a Universidade Federal do Sul da Bahia nascem e se encontram no mesmo espaço-tempo do Sul da Bahia, ambas gestadas por volta do ano de 2012. A Teia dos Povos foi criada como uma articulação das comunidades tradicionais, trabalhadores, movimentos e organizações sociais que se reuniram para realizar a I Jornada de Agroecologia da Bahia, de 26 de novembro e 1 dezembro de 2012, no Assentamento Terra Vista do MST, em Arataca (BA), em plena zona cacaueira. A produção de cacau e chocolate em regime agroecológico no Terra Vista, além de um conhecido processo de recuperação florestal, é, até hoje, fator que atrai a atenção de interessados na agroecologia para esse local (cf. OLIVEIRA, 2017OLIVEIRA, Ernesto G. B. Soberania alimentar e o direito a uma alimentação adequada: uma análise das políticas públicas voltadas para o Assentamento Terra Vista, no município de Arataca-BA. Trabalho de conclusão de curso (Bacharelado em Direito). UNEB, Salvador, 2017.; SANTOS, 2016SANTOS, Solange Brito. História do assentamento Terra Vista. Trabalho de conclusão de curso (Licenciatura em História) - UESC, Ilhéus, 2016.).

Com o tema Agroecologia - Uma Proposta de Soberania do Território Baiano, a Jornada contou com a presença dos povos Tupinambá, Pataxó e Pataxó Hã-hã-hãe, comunidades quilombolas e pesqueiras, representantes de assentamentos rurais e outras comunidades camponesas, movimentos e organizações do campo e da cidade, além de, desde o início ter chamado a atenção do público universitário. A aliança foi criada com o objetivo de promover a “união dos povos e saberes” em torno da luta por terra e território, alinhada com os princípios da agroecologia, para construção do bem viver.2 2 - O “bem viver” aqui referido é uma interpretação do princípio andino do sumak kawsay que chega à Teia a partir dos indígenas da região e de entidades como o Conselho Indígena Missionário (Cimi). A Jornada de 2012 contou com a participação da agrônoma Ana Maria Primavesi, referência da agroecologia no Brasil, e foi inspirada nas Jornadas de Agroecologia do Paraná, que já chegaram à 18ª edição em 2019 (cf. TEIXEIRA et al., 2018TEIXEIRA, C.A.; SANTOS, S. O.; OLIVEIRA, J.F.; BRITO, S. S. As Jornadas de Agroecologia da Bahia como importante instrumento no avanço do debate e prática da agroecologia no estado. In: ANAIS DO VI CLAA, X CBA e V SEMDF. Cadernos de Agroecologia vol. 13, n. 1, Jul. 2018.b). Em sua primeira manifestação pública, a Teia dos Povos deixou explícita a ambição de vincular sua luta política a outro modelo de educação:

Afirmamos então, nossa capacidade de resistência, apresentando com nossas vidas e nossos esforços nos aprendizados cotidianos, outra forma de desenvolvimento baseado no modelo agroecológico e de uma educação libertadora, construtora de outro modelo de pensamento, produzindo, trocando e comercializando alimentos de qualidade, sem agrotóxico, fortalecendo a organização, o associativismo, respeitando as diferenças étnicas, de gênero e geração, valorizando a cultura e a arte do nosso povo (TEIA DOS POVOS, 2012).

À primeira Jornada de Agroecologia da Bahia, seguiram-se outras cinco, em 2013, 2014, 2015, 2017 e 2019, com presença crescente de pessoas, movimentos e organizações sociais, que se juntaram aos povos indígenas e comunidades tradicionais e rurais da região. Até 2015, os eventos aconteceram no Assentamento Terra Vista. Em 2017, a V Jornada foi realizada em Porto Seguro, e, em 2019, nas terras do povo Payaya, em Utinga (BA), na Chapada Diamantina. Ao final de cada uma das jornadas, a Teia dos Povos se manifesta por meio de uma carta, proporcionando-nos um conjunto de documentos que podem servir como um roteiro para compreensão da evolução e ampliação da aliança.

A II Jornada foi realizada em dezembro de 2013, ainda no Assentamento Terra Vista, com o tema Agroecologia: unindo povos e saberes. A carta final do evento 3 3 - Os relatos e Cartas das Jornadas de Agroecologia podem ser encontrados no endereço <http://teiadospovos.org/>, acesso em 21 jan. 2022. faz a defesa das origens populares e princípios tradicionais da Agroecologia, bem como a crítica ao Estado, o agronegócio, e à própria ciência. Também explicita os objetivos de buscar “autonomia política e financeira” das comunidades, por meio do “fortalecimento das experiências agroecológicas em cada território que compõe a Teia, na busca de autogestão e do autofinanciamento”.

O sistema de produção do campo imposto pelo capitalismo, o agronegócio, nos violenta a cada dia e não para, ele acumula um histórico de extermínio cultural e territorial, se apropriando de nossos saberes, de nossa ciência e de nossa cultura para fins de dominação. A [...] Teia de Agroecologia dos Povos da Cabruca e da Mata Atlântica 4 4 - Primeiro nome da aliança, depois sintetizado como Teia dos Povos, nome que hoje utilizam. [... atua como] uma rede que reconstrói a solidariedade entre os povos negros, indígenas, assentados, juventude e crianças e dá um sentido mais amplo à agroecologia, tão distorcida pelo excesso de academicismo, teoricismos e tão pouca prática. Nós, da Teia, rompemos o tecnicismo perigoso para defender uma agroecologia que une os povos e saberes para garantir saúde para nossos alimentos, solos e águas, saúde para as nossas relações sociais, para nossa identidade cultural, espiritualidade e ancestralidade (TEIA DOS POVOS, 2013).

À III Jornada de Agroecologia da Bahia, em dezembro de 2014, 1200 participantes, segundo a Teia, vieram “[...] de todas as partes chocalhando seus maracás, tocando seus tambores e atabaques, percutindo seus berimbaus e caxixis, dedilhando seus violões e acordeons e soprando suas flautas e gaitas [...]” (TEIA DOS POVOS, 2014). Sob o tema Sementes, ciência e tecnologia agroecológica, para mudar a realidade das comunidades no campo e na cidade, e com a presença de instituições de educação superior (como UESC, UNEB, UFRB e UFBA, entre outras) foram realizadas mesas e oficinas temáticas, feira de trocas de sementes crioulas, minicursos, práticas e celebrações.

Num ano marcado por violentos conflitos na Terra Indígena Tupinambá de Olivença, situada a poucos quilômetros do Assentamento Terra Vista, a Teia dos Povos, ainda chamada de “Teia Agroecológica”, participou, em março, de marcha de apoio aos Tupinambá da Serra do Padeiro, em movimento que juntou mais de 40 entidades, nacionais e internacionais.5 5 - http://www.global.org.br/blog/carta-final-da-marcha-dos-povos-da-cabruca-e-da-mata-atlantica-em-defesa-das-terras-sagradas-dos-tupinamba/ . Acesso em 07 mai. 2020. A carta da jornada desse ano reflete o momento marcado pelas ameaças e agressões aos povos indígenas, fazendo defesa veemente dos processos demarcatórios de terras indígenas e outros territórios tradicionais, ao lado da luta pela reforma agrária e dos princípios da agroecologia.

O alargamento das alianças promovidas pela Teia também se reflete na carta com a incorporação de temas como a reforma urbana, o feminismo, a espiritualidade negra e indígena, o combate ao chamado “capitalismo verde”, entre outros temas. O documento menciona, especificamente, o tema da decolonialidade: “Lutaremos sempre por uma educação descolonial, não patriarcal, antirracista e libertadora, que nos leve a concretizar o nosso Bem Viver” (TEIA DOS POVOS, 2014).

Posteriormente, entre 2015 e 2019, a Teia dos Povos continua associando os temas da descolonização com a educação e a agroecologia e a luta pelo território. Simbolicamente, em 2017, a rede organiza sua V Jornada em Porto Seguro, com o tema Terra e Território - Natureza, Educação e Bem Viver. “Aqui viemos para afirmar em alto e bom som: esta não é a Costa do Descobrimento, é a Costa da Invasão! Estas terras tinham e têm dono”, afirma carta do evento (TEIA DOS POVOS, 2017).

Adicionalmente ao envolvimento dos participantes da Teia com a educação - vários deles atuam formalmente como professores em suas comunidades, outros são mestres dos saberes tradicionais, e alguns, como a professora pataxó hãhãhãe Maria Muniz ou os integrantes do Terreiro Caxuté, de Valença, ocupam ambas as posições -, desde 2016, diversos participantes da Teia dos Povos têm publicado artigos ou monografias que dialogam com a experiência de formação da rede. Alguns desses trabalhos (VIANA, 2017VIANA, Carlos dos Santos. As Jornadas de Agroecologia da Bahia: espaço de educação não formal da Teia dos Povos. Trabalho de conclusão de curso (Licenciatura em Ciências Sociais) - UESC, Ilhéus, 2017., por exemplo) demonstram a plena consciência dos integrantes da Teia de que os próprios eventos que a rede realiza são, em si, parte de um processo de educação não formal.

Nesse sentido, vejamos como a Teia dos Povos passou a integrar-se ao processo de criação de uma universidade federal, a UFSB, e como buscou levar seus princípios para a nova instituição.

O bom encontro

Poucos dias após a I Jornada de Agroecologia promovida pela Teia, em 17 de dezembro de 2012, era publicada a primeira versão do Plano Orientador da UFSB, fruto de uma rodada de seminários acadêmicos de planejamento nos institutos e universidades públicas estaduais e federais existentes até então nas regiões Sul e Extremo Sul da Bahia.6 6 - Depois, o projeto ainda incorporou contribuições coletadas em consulta pública aberta na internet e em reuniões públicas realizadas nas prefeituras das três cidades sede, Itabuna, Porto Seguro e Teixeira de Freitas (UFSB, 2014, p. 15). No ano seguinte, em junho de 2013, foi fundada a UFSB, trazendo, entre outras propostas, a de enfrentar as ambiguidades do sistema de ensino superior brasileiro, ao declarar-se “tradicional e inovadora, elitista e emancipadora” (UFSB, 2014, p. 28) e afirmando compromisso ético com o território onde se instalava, com a educação básica e com a diversidade dos povos e saberes da região, por meio de princípios educacionais que já então a aproximavam - potencialmente - do que era, naquele momento, promulgado pela Teia dos Povos.

“A UFSB compreende a educação como tarefa civilizatória e emancipatória primordial, a um só tempo formadora e transformadora do ser humano”, declara seu Plano Orientador (UFSB, 2014, p. 6). O documento também explicita a conexão teórica com a “ecologia de saberes” e o compromisso com uma “revolução epistemológica”, promovendo uma “extensão ao contrário” ao trazer o conhecimento de fora para dentro da universidade, sem impor aos detentores desses outros saberes uma posição “subordinada exclusivamente como aprendizes”:

A ecologia de saberes, metodologicamente, significa um aprofundamento do conceito de pesquisa-ação. [...] Compreende, enfim, a promoção de diálogos entre saberes científicos ou humanísticos, que a universidade produz, e saberes leigos, populares, tradicionais, urbanos, camponeses, das favelas, provindos de culturas não ocidentais (indígenas, de origem africana, oriental etc.) [...] (UFSB, 2014, p. 25).

Antes mesmo da aula inaugural da UFSB, em setembro de 2014 pelo professor Boaventura de Sousa Santos, um dos autores que estruturam a matriz teórica dessa universidade,7 7 - O Plano Orientador da UFSB inclui ainda referências a autores como Anísio Teixeira, Paulo Freire, Milton Santos e Pierre Lévy (UFSB, 2014, p. 20). uma comitiva composta pelo reitor pro-tempore da UFSB, professor Naomar de Almeida Filho, e uma equipe de docentes e pesquisadores percorreu em caravana o território de abrangência da nova universidade para estabelecer contatos com os povos, comunidades e movimentos e organizações sociais do Sul e Extremo Sul da Bahia. Além de apresentar a nova universidade, a caravana buscou definir diretrizes preliminares para uma atuação conjunta com a sociedade na região, apresentando uma primeira “versão” do Conselho Estratégico Social (CES), previsto no Estatuto da nova universidade.

O CES e o Conselho Universitário (Consuni) foram concebidos como os dois Conselhos Superiores estatutários da UFSB, sendo que o primeiro atuaria como “órgão consultivo [... da] Universidade na discussão de suas políticas gerais e planos globais de expansão do ensino, pesquisa, criação, inovação e extensão” (UFSB, 2013, p. 12). Sua primeira composição, pro tempore, incluía membros indicados pela Reitoria - representantes de movimentos sociais do campo e da cidade, povos e comunidades tradicionais, reitores de institutos e universidades públicas da região, prefeitos das cidades sede e organizações sociais parceiras. Além de exercer essa função consultiva, o CES indicaria um membro para o Consuni, sendo também corresponsável pela organização do I Fórum Social da UFSB. Esse fórum foi projetado como um grande encontro de povos e segmentos sociais do Sul da Bahia, com objetivo de estabelecer prioridades e consolidar diretrizes para atuação conjunta da universidade com a sociedade.

Um dos principais articuladores da Teia dos Povos, o coordenador do Assentamento Terra Vista do MST Joelson Ferreira de Oliveira, representante dos trabalhadores rurais no CES, foi indicado pelos demais conselheiros para o Consuni. Ali marcou sua atuação pela defesa de uma universidade pública democrática e enraizada no território, que buscasse atuar em benefício dos setores historicamente excluídos da vida universitária. Por um lado, demandava que pesquisadores e projetos da UFSB firmassem um forte compromisso com os territórios tradicionais e movimentos populares, não apenas com as corporações e o capital, situação comum a diversas universidades públicas, conforme sua crítica. Por outro lado, não apenas os estudantes das comunidades tradicionais e setores populares deveriam ter acesso e apoio para permanência, mas também os conhecimentos tradicionais e populares presentes nessas comunidades, por meio da atuação de seus mestres de saberes nas atividades acadêmicas. Em aula inaugural que ministrou em 2017 na UFSB, Oliveira voltou a essa questão:

Nós todos pagamos para ter um conhecimento social, geral, para todos, mas a universidade pública se tornou cada vez mais privada. Ela está a serviço do interesse privado, está a serviço da alienação. [...] Nós temos que estudar aqui técnicas de conhecimento, para voltar para nosso local, de onde a gente veio, e transformar isso em força, em verdadeiro conhecimento de lá, e testar ele para ver se é verdade mesmo, se o conhecimento deu certo. [...] Precisamos começar a dialogar com os mais velhos, aprender com nossos antepassados. [...] Ficamos 12 mil anos aqui, e o pessoal que veio de fora chegou e encontrou um paraíso, uma beleza, uma coisa extraordinária... Esse povo que estava aqui não tinha ciência? Esse povo não tinha conhecimento? (OLIVEIRA, 2020OLIVEIRA, Joelson Ferreira. Movimentos sociais e conhecimento. In: TUGNY, R. P.; GONÇALVES, G. B. B. (org.). Universidade popular e encontro de saberes. Salvador: EDUFBA, 2020. p. 159-174., p. 160).

Em consonância com essa proposta, já em seu primeiro ano de atuação efetiva, a nova universidade abrigou o projeto Encontro de Saberes na UFSB, com apoio do INCTI. Os anos de 2014 e 2015 foram de intensa mobilização de docentes dos três campi da UFSB para identificação de mestras e mestres dos saberes tradicionais no território de abrangência da universidade. A partir desse movimento, 14 mestres e mestras, das mais diversas matrizes de saberes,8 8 - A lista de docentes incluiu mestres da região vindos de comunidades indígenas, quilombolas e de pescadores, entre outros. Para uma relação completa e uma análise da experiência, ver Tugny (2020). foram convidados, em 2015, para ministrar aulas no primeiro ano dos cursos interdisciplinares, recebendo pelo trabalho o mesmo valor que recebiam professores substitutos com doutorado. Enquanto esse primeiro projeto se desenvolvia, o Conselho Universitário da UFSB aprovou resolução que permite o reconhecimento de mestres e mestras dos conhecimentos tradicionais e populares com o título de Notório Saber.

Esse primeiro movimento de enraizamento da nova universidade em seu território serviu como base para um salto, ainda em 2015, com a realização do I Fórum Social da UFSB. O evento reuniu mais de duas mil pessoas em três etapas regionais, realizadas em Itabuna, Porto Seguro e Teixeira de Freitas, com 18 segmentos sociais representados, incluindo povos indígenas; povos de terreiro, quilombolas e negrodescendentes; comunidades extrativistas marinhas; trabalhadores do campo; além de outras categorias urbanas.9 9 - A relação completa pode ser vista em UFSB (2015).

Nestas etapas regionais, os participantes apontaram prioridades para atuação da Universidade, além de eleger delegados, ou porta-vozes, que se reuniriam no Encontro Geral, realizado em setembro de 2015, em Porto Seguro. No Encontro Geral, os cerca de 300 delegados/porta-vozes foram responsáveis pela consolidação de linhas de atuação conjunta com a Universidade, além da definição da nova composição do CES e eleição de seus novos membros. Eleito e empossado, o Conselho passou a cumprir o papel de consolidar este trabalho a partir da construção conjunta de programas de ensino, pesquisa e extensão de interesse dos segmentos sociais que representavam. Muitos dos participantes do Fórum Social, e alguns conselheiros eleitos para o CES, eram também articuladores da Teia dos Povos, atentos ao potencial da UFSB.

A criação do CES simbolizou, de certa forma, a boa vontade dos movimentos da região para com a chegada da nova universidade e a disposição de ocupá-la e disputá-la. Entre 2015 e 2019, foram inúmeras as aulas, palestras e visitas mútuas entre as turmas da UFSB e as comunidades da região. Mestres dos saberes tradicionais foram responsáveis por diversas atividades, sendo inclusive remunerados por isso. Estudantes negros e indígenas também conquistaram espaço para desenvolver seus projetos de pesquisa e extensão - destaque-se a criação do Programa de Pós-Graduação em Ensino das Relações Étnico-Raciais (PPGER), em 2016, além da ocupação profusa dos diversos espaços da universidade por esses atores.

Benincá e Neves (2020BENINCÁ, Dirceu; NEVES, Frederico M. Extensão universitária popular e integração social na Feira da Agricultura Familiar. In TUGNY, R. P.; GONÇALVES, G. B. B. (org.). Universidade popular e encontro de saberes. Salvador: EDUFBA, 2020, p. 463-74.), afinados com os movimentos de luta pela agroecologia na região, foram responsáveis pela integração de aulas dadas a todos os alunos do 1º ano do campus de Teixeira de Freitas (por meio da chamada “formação geral”, que integra os currículos de todos os cursos de graduação) à realização semanal de uma feira agroecológica no próprio campus, em articulação que posteriormente gerou a criação de um curso de especialização.

Como já foi dito, eventos como as Jornadas de Agroecologia da Teia dos Povos são reivindicados como um espaço de formação pelos próprios movimentos sociais (VIANA, 2017VIANA, Carlos dos Santos. As Jornadas de Agroecologia da Bahia: espaço de educação não formal da Teia dos Povos. Trabalho de conclusão de curso (Licenciatura em Ciências Sociais) - UESC, Ilhéus, 2017.). Diversas comunidades ligadas à Teia dos povos têm em comum o costume de criar eventos diretamente denominados como espaços de reflexão que disputam com o ambiente acadêmico. É o caso dos Carurus de Ibeji e as Pedagogingas, série anual de eventos realizados pela Casa do Boneco de Itacaré,10 10 - O evento teve sua 19ª edição em 2020 realizada de forma online, devido à pandemia. “Pedagoginga” é um conceito afrodescendente que disputa/problematiza o conceito ocidental de pedagogia, questionando a divisão cartesiana entre mente e corpo (cf. ROSA, 2013). ou as diversas atividades de acolhimento a estudantes e pesquisadores realizadas por comunidades como o Assentamento Terra Vista e o Terreiro Caxuté (de Valença).

Um volume recentemente lançado (TUGNY e GONÇALVES, 2020TUGNY, Rosângela P.; GONÇALVES, Gustavo B. B. (org.). Universidade popular e encontro de saberes. Salvador: EDUFBA, 2020.) recolhe uma série de relatos e análises de professores, estudantes e técnicos que viveram os primeiros anos da UFSB. É possível conferir impressões sobre os alcances e limites do projeto, no que tange à chamada “descolonização da universidade”. Como se pode verificar, sobretudo, nos relatos de alunos e ex-alunos da instituição, o reconhecimento do caráter efetivamente inovador do projeto não o isenta de críticas (por exemplo, MIRANDA e BELIZÁRIO, 2020MIRANDA, Victor. A.M.; BELIZÁRIO, Ana B. Q. Caminhos pluriepistêmicos para educação e prática em saúde. In TUGNY, R. P.; GONÇALVES, G. B. B. (org.). Universidade popular e encontro de saberes. Salvador: EDUFBA, 2020. p. 605-22.; PIMENTEL et al., 2020PIMENTEL, Spensy K. et al. A experiência de ingresso na UFSB como exercício de conscientização cidadã. In: TUGNY, R. P.; GONÇALVES, G. B. B. (org.). Universidade popular e encontro de saberes. Salvador: EDUFBA, 2020, p. 359-82.).

Em 2015, o Conselho Estratégico Social consolidou, a partir do Fórum Social, a seguinte síntese com 16 propostas de ação a serem construídas com a sociedade, às quais se somavam 11 ações já em processo de implementação:11 11 - Para o detalhamento deste processo institucional, bem como os resultados completos do Fórum Social, ver: UFSB, 2015; MENEZES; GOES, 2020.

Tabela 1
Propostas do Fórum Social sintetizadas pelo Conselho Estratégico Social da UFSB

O trajeto de aproximação entre UFSB e Teia veio a desaguar, em 2017, em acordo de cooperação técnica e científica entre a Universidade e a Teia dos Povos, representada pela Associação Regional de Agroecologia dos Povos da Cabruca e da Mata Atlântica (UFSB, 2017).

Em termos gerais o acordo prevê o apoio a atividades conjuntas, bem como “desenvolvimento e execução de programas, projetos e o intercâmbio em assuntos educacionais, científicos, tecnológicos e de pesquisa” (UFSB, 2017, p.1). Entre as linhas de ação previstas, estão o apoio aos eventos da Teia, o credenciamento de mestres dos saberes tradicionais e populares, a articulação de programas de pós-graduação a serem executados nos territórios e comunidades tradicionais e rurais, bem como a elaboração de projetos associados ao desenvolvimento local sustentável - abrangendo temas como a agroecologia e as atividades de base florestal - além da “mobilização social na região para consolidação da política de integração social da UFSB, em defesa de seu caráter popular, republicano, inclusivo, interdisciplinar e multiepistêmico” (UFSB, 2017, p. 6).

Entre 2017 e 2018 a UFSB passou por transição em sua gestão. O acordo firmado com a Teia continua vigente até 2022. A universidade deu apoio - limitado - à realização da V Jornada de Agroecologia, em Porto Seguro, em 2017, incluindo a participação de alunos como monitores. Na VI Jornada, em 2019, conseguiu, de última hora, em função dos contingenciamentos impostos pelo governo federal, aportar um apoio mínimo à ida de uma comitiva formada por alunos. Professores mobilizaram-se para participar do evento com seus próprios recursos. Como mencionado, um curso interinstitucional de especialização em Agroecologia e Educação do Campo foi lançado, em 2019, no campus Paulo Freire, em Teixeira de Freitas, em parceria com alguns movimentos da região, mas ainda não se conseguiu chegar ao desenho institucional sugerido no acordo de 2017.

Paralelamente, a Teia mantém parcerias com outras universidades da região, mas numa compreensão de que elas mantêm uma estrutura inadequada a um processo de descolonização mais pleno - limitando as eventuais parcerias a grupos pontuais dentro dessas instituições. Por outro lado, a própria UFSB, hoje, não mantém o apoio inicialmente esboçado para o CES, nem mesmo à realização do II Fórum Social, quando haveria renovação desse Conselho, assim como a indicação de seu novo representante no Conselho Universitário. Contrariamente aos princípios orientadores dos primeiros anos da UFSB, hoje não há nem mesmo representação da sociedade em seu sistema de gestão, cabendo à iniciativa própria de grupos de pesquisa e coletivos de professores e estudantes a continuidade da cooperação com a Teia dos Povos.

Conclusões

A experiência do encontro entre a Teia dos Povos e a UFSB oferece-nos uma série de elementos que nos ajuda a entender, de fato, toda a extensão do desafio implicado no ideal de “descolonização” da universidade. Como evidenciaram exercícios de diálogo como o Fórum Social da UFSB, a descolonização efetiva da universidade está condicionada, de forma muito evidente para os atores sociais mais variados, a um aporte significativo de recursos materiais oriundos do orçamento público, sem o qual não há “transição epistêmica” que possa se efetivar.

Os obstáculos, tanto para os estudantes como para os potenciais professores oriundos das comunidades negras e indígenas numa região como o Sul da Bahia, historicamente excluída dos investimentos públicos, passam, de maneira incontornável, pela necessidade de apoio que possibilite, de fato, que seus corpos e vozes estejam presentes nas universidades. Nesse sentido, os cortes orçamentários sofridos pelas universidades públicas desde 2016 tornam-se um obstáculo de difícil transposição.

Em novembro de 2017, durante greve da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, após atraso nos salários e verbas de custeio, em função de violento arrocho orçamentário que o estado do Rio sofria à época, Boaventura de Souza Santos enviou mensagem em vídeo aos trabalhadores e estudantes da instituição, na qual que resumia o drama vivido pelas universidades nesse momento histórico. Para ele, as universidades públicas, originalmente criadas para formar os jovens das elites, deixaram, ao longo do século XX, de cumprir essa função, em função da internacionalização das classes dirigentes, com a globalização neoliberal. Liberadas desse papel, elas começam a ser tratadas com cada vez menos prioridade e, nos últimos anos, passam mesmo a incomodar, em função de produzirem conhecimento livre e crítico. Vivem, então, o seguinte desafio:

As universidades perderam os privilégios que tinham por seus contatos com as elites, e esse é o drama das universidades públicas. É que, como perderam o apoio das elites, têm que reconstruir outros apoios, e esses apoios só podem ser das classes médias e das classes populares. As universidades públicas têm que lutar por outras alianças. E as universidades públicas durante muito tempo foram arrogantes para essas classes populares, porque as consideravam ignorantes, porque não tinham conhecimento científico [...]. É preciso descolonizar as universidades.12 12 - Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=rVHCMXvrS0w. Acesso em: 06 mai 2020.

Tal é nosso paradoxo atual: como fazer essas alianças se, para incluir alunos e mestres das comunidades, tanto em grandes cidades como em regiões como o Sul da Bahia, nos vemos frente à necessidade de buscar suporte financeiro com o qual, hoje, mal podemos contar para a própria manutenção básica das instituições?

Neste momento, atua-se, prioritariamente, em frentes menos dependentes de recursos financeiros. Mesmo assim, o processo de inclusão de mestres dos saberes tradicionais prossegue a passos lentos na UFSB: até hoje, nenhum título de notório saber foi aprovado pela universidade. Desde 2019, integrantes da Teia também têm participado de novas ações do projeto Encontro de Saberes, e ao menos quatro dossiês de mestres participantes da rede da Teia são produzidos atualmente no âmbito da UFSB.

Esforços no sentido da inclusão de alunos oriundos de comunidades rurais e tradicionais esbarram ainda nos cortes nos programas de apoio à permanência estudantil e nas bolsas de pesquisa e extensão. A abertura de novos Colégios Universitários vinha sendo adiada, e o futuro desses espaços é, atualmente, uma incógnita. Em 2019, a UFSB ganhou notoriedade nacional como a instituição federal de ensino superior que sofreu o maior contingenciamento de verbas, proporcionalmente a seu orçamento.13 13 - Foram aproximadamente 54% dos recursos para custeio e investimento bloqueados de maio a outubro. Cf. https://bityli.com/RbSbU. Acesso em: 07 mai 2020. A “transição epistêmica” prevista, anos atrás, no Plano Orientador da UFSB está, dessa forma, comprometida.

Há uma série de outros desafios, que não cabem no espaço deste artigo e não estão, necessariamente, ligados a demandas específicas da Teia dos Povos e movimentos associados. Por exemplo, a adoção da política de cotas em um índice de 75%,14 14 - A resolução 10/2018 do Conselho Universitário da UFSB formaliza essa política de ações afirmativas. tem sofrido contestações judiciais por parte de alunos acusados de fraudar a política. Decisões liminares em 1ª instância têm mantido a tensão em relação às vagas do curso de Medicina, o mais concorrido da instituição, com aulas iniciadas em 2018.

Vale observar, por outro lado, que os próprios movimentos e comunidades participantes da Teia dos Povos não estão imóveis, dependentes de uma ação benevolente das instituições públicas e do Estado brasileiro. A descolonização epistêmica, nesse sentido, é um projeto ativo que emana das bases sociais de uma região tão sociodiversa como o Sul da Bahia.

Mesmo com dificuldades políticas e econômicas, a Teia dos Povos mantém certo volume de ações, como mutirões e reuniões de formação, discutindo a necessidade da constituição de uma base econômica para autonomia de seus territórios. Nesse sentido desenharam e iniciaram a implementação de um ambicioso projeto de restauração de florestas produtivas, seja para produção de cacau orgânico no sistema cabruca, seja em outros sistemas agroflorestais, correspondentes à diversidade cultural e ecológica destes territórios, para o qual buscam investidores internacionais.

Há, ainda, novidades no campo da comunicação. Desde 2020, em meio à pandemia relacionada ao coronavírus, a Teia lançou no portal de vídeos Youtube o canal Diálogo com os Povos e passou a produzir programas ao vivo (as chamadas lives) com alguns dos principais mestres dos saberes tradicionais e populares que se conectaram à aliança nos últimos anos.

Em 2017, em entrevista realizada por um dos autores deste artigo, o mestre Joelson F. Oliveira sintetizou sua visão sobre o momento de crise da seguinte forma:

Se a universidade se fechar em si e ficar preocupada com a crise e não quiser resolver a crise, ela vai entrar em crise total, e aí não vai responder aos dilemas da sociedade regional. [...] Mas, se a universidade colocar para a sociedade os problemas que estão acontecendo e chamar a sociedade para dentro, e convocar a sociedade para ajudar a construir a universidade, eu tenho certeza que a universidade vai sair desse processo mais forte e mais robusta e com mais capacidade, e com mais integração da sociedade. [...] [A universidade] tem que entender que tem uma sociedade que ela tem que estar a serviço, e a sociedade a serviço da universidade. [...] se ela se fechar em si, ela pode morrer em si antes de nascer.

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  • ________. Acordo de cooperação técnica que entre si celebram a Universidade Federal do Sul da Bahia e a Associação Regional de Agroecologia dos Povos da Cabruca e da Mata Atlântica. Itabuna: UFSB, 2017. Disponível em <https://www.ufsb.edu.br/images/TEIA_DOS_POVOS.PDF>. Acesso em 05 mai 2020.
    » https://www.ufsb.edu.br/images/TEIA_DOS_POVOS.PDF
  • VIANA, Carlos dos Santos. As Jornadas de Agroecologia da Bahia: espaço de educação não formal da Teia dos Povos. Trabalho de conclusão de curso (Licenciatura em Ciências Sociais) - UESC, Ilhéus, 2017.
  • 1
    - Assumimos maior proximidade com a referência metodológica de pesquisa-ação participativa, tal como proposto originalmente por Fals Borda e Rahman (1991). O trabalho ainda inclui elementos resultantes de pesquisa etnográfica, tendo como principal referência metodológica Latour (2012).
  • 2
    - O “bem viver” aqui referido é uma interpretação do princípio andino do sumak kawsay que chega à Teia a partir dos indígenas da região e de entidades como o Conselho Indígena Missionário (Cimi).
  • 3
    - Os relatos e Cartas das Jornadas de Agroecologia podem ser encontrados no endereço <http://teiadospovos.org/>, acesso em 21 jan. 2022.
  • 4
    - Primeiro nome da aliança, depois sintetizado como Teia dos Povos, nome que hoje utilizam.
  • 5
    - http://www.global.org.br/blog/carta-final-da-marcha-dos-povos-da-cabruca-e-da-mata-atlantica-em-defesa-das-terras-sagradas-dos-tupinamba/ . Acesso em 07 mai. 2020.
  • 6
    - Depois, o projeto ainda incorporou contribuições coletadas em consulta pública aberta na internet e em reuniões públicas realizadas nas prefeituras das três cidades sede, Itabuna, Porto Seguro e Teixeira de Freitas (UFSB, 2014, p. 15).
  • 7
    - O Plano Orientador da UFSB inclui ainda referências a autores como Anísio Teixeira, Paulo Freire, Milton Santos e Pierre Lévy (UFSB, 2014, p. 20).
  • 8
    - A lista de docentes incluiu mestres da região vindos de comunidades indígenas, quilombolas e de pescadores, entre outros. Para uma relação completa e uma análise da experiência, ver Tugny (2020).
  • 9
    - A relação completa pode ser vista em UFSB (2015).
  • 10
    - O evento teve sua 19ª edição em 2020 realizada de forma online, devido à pandemia. “Pedagoginga” é um conceito afrodescendente que disputa/problematiza o conceito ocidental de pedagogia, questionando a divisão cartesiana entre mente e corpo (cf. ROSA, 2013).
  • 11
    - Para o detalhamento deste processo institucional, bem como os resultados completos do Fórum Social, ver: UFSB, 2015; MENEZES; GOES, 2020.
  • 12
    - Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=rVHCMXvrS0w. Acesso em: 06 mai 2020.
  • 13
    - Foram aproximadamente 54% dos recursos para custeio e investimento bloqueados de maio a outubro. Cf. https://bityli.com/RbSbU. Acesso em: 07 mai 2020.
  • 14
    - A resolução 10/2018 do Conselho Universitário da UFSB formaliza essa política de ações afirmativas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    04 Jun 2020
  • Aceito
    22 Set 2021
ANPPAS - Revista Ambiente e Sociedade Anppas / Revista Ambiente e Sociedade - São Paulo - SP - Brazil
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