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Prestar serviço sem alterar o equilíbrio ecológico do conhecimento: a sustentabilidade das revistas ibero-americanas de enfermagem

Quando se fala em sustentabilidade, desde a economia ou ecologia, referimo-nos à capacidade de produzir bens e serviços sem esgotar recursos ou agredir o meio ambiente. Se aplicarmos o conceito ao campo da publicação científica, sustentabilidade poderia se referir à possibilidade de manter uma infraestrutura de publicações capaz de disseminar o conhecimento produzido por uma área do saber, com recursos editoriais independentes e autônomos e sem prejudicar o ambiente natural da disciplina que representa. A publicação científica é um bem em si na medida em que contribui para o desenvolvimento da ciência, mas, para ser sustentável, deve haver um equilíbrio em sua dimensão ecológica, econômica e social(11 Artaraz M. Teoría de las tres dimensiones de desarrollo sostenible. Ecosistemas 2002;11(2). https://doi.org/10.7818/ECOS.614
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). A partir daqui, surge a pergunta: a enfermagem ibero-americana tem um suporte para a publicação científica sustentável? Para dar uma resposta o mais objetiva possível, convém apoiá-la com dados.

A enfermagem ibero-americana possui uma base de publicações periódicas que se consolidou nas últimas décadas. Se nos atermos às informações fornecidas por Cuiden, a plataforma que incorpora a maior parte da produção ibero-americana da enfermagem(22 Amezcua M, Amezcua González A, Pozuelo Zurera S, Collado García JC, Herrera Justicia S. Recursos documentales CUIDEN y su utilidad para la evaluación del conocimiento en Cuidados de Salud. Index Enferm [Internet]. 2019[cited 2021 Feb 02];28(3):157-62. Available from: http://scielo.isciii.es/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1132-12962019000200014&lng=es&nrm=iso&tlng=es
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), desde o início dos anos 1990, podem ser identificados 157 periódicos (Catálogo REHIC), a maioria produzidos na Espanha (47%) e no Brasil (30%). Mas apenas um terço deles registrou impacto bibliométrico em 2019 de acordo com Cuiden Citación(33 Amezcua M, Pozuelo Zurera S, Collado García JC, Amezcua González A, Herrera Justicia S. Ranking Cuiden Citación de Revistas de Enfermería más citadas en Iberoamérica: resultados del año 2019. Index Enferm [Internet]. 2020[cited 2021 Feb 02];29(1-2):96-9. Available from: https://ciberindex.com/index.php/ie/article/view/e52912
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). As revistas de enfermagem do Espaço Científico Ibero-Americano (ECI) publicaram, em média, pouco mais de 5.000 documentos por ano na última década, apresentando sinais de declínio nos últimos cinco anos. No mesmo ano, pouco mais de 85% da produção de enfermagem da ECI se concentrava entre Brasil e Espanha, exercendo uma posição de clara liderança na região. O ambiente de publicação em ambos os países é substancialmente diferente. No Brasil, as revistas de enfermagem são produzidas, principalmente, em contextos universitários, enquanto que, na Espanha, as publicações de sociedades científicas e organismos profissionais são mais frequentes. Ambos os modelos têm em comum o fato de preconizarem o acesso aberto, ao contrário do dominante no contexto anglo-saxão, altamente comercializado por editoras sólidas.

Há apenas duas décadas, enfermeiras ibero-americanas faziam poucas referências a revistas produzidas fora do próprio país(44 Gálvez Toro A, Hueso Montoro C, Amezcua M. Consumo de información de las revistas de Enfermería del área lingüística del Español y del Portugués (año 2002). Desarrollo Científ Enferm. 2004;12(3):69-76.). Mas o uso de ferramentas de gestão do conhecimento de ECI como o SciELO(55 Nassi-Calò L. El Acceso Abierto como alternativa de sustentabilidad en la comunicación científica [Internet]. SciELO en Perspectiva, 2016[cited 2021 Feb 02]. Available from: https://blog.scielo.org/es/2016/01/14/el-acceso-abierto-como-alternativa-de-sustentabilidad-en-la-comunicacion-cientifica/
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), bem como outras de caráter disciplinar como o Cuiden(22 Amezcua M, Amezcua González A, Pozuelo Zurera S, Collado García JC, Herrera Justicia S. Recursos documentales CUIDEN y su utilidad para la evaluación del conocimiento en Cuidados de Salud. Index Enferm [Internet]. 2019[cited 2021 Feb 02];28(3):157-62. Available from: http://scielo.isciii.es/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1132-12962019000200014&lng=es&nrm=iso&tlng=es
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), vem produzindo uma mudança em suas diretrizes de citação, passando a ser reconhecido em seu potencial para compartilhar conhecimentos contextualizados social e culturalmente. Isso não significa que os enfermeiros da ECI vivam atrás do que acontece fora de sua região. Nos últimos anos, um novo fenômeno vem tomando conta do cenário da publicação científica, a fuga do conhecimento para espaços linguísticos e disciplinares exógenos. Muitos enfermeiros acadêmicos e pesquisadores de ECI preferem publicar em periódicos biomédicos em inglês, porque isso lhes confere maior valor curricular em um contexto onde o valor do impacto bibliométrico se impõe sobre o social. Os enfermeiros clínicos, por outro lado, consomem, principalmente, informações científicas em sua própria língua e em periódicos de sua área disciplinar mais próxima.

A distância entre enfermeiros que produzem e enfermeiros que consomem está se ampliando e coloca os editores em um dilema quanto à missão que devem desenvolver. Qual deve ser a sua prioridade? A divulgação de descobertas ou a promoção de pesquisadores? Colocam-se a serviço da enfermagem como disciplina científica que precisa aumentar sua visibilidade ou dos autores em sua urgente necessidade de publicar? Muitas revistas científicas mudaram seu modelo de negócios nos últimos anos, obtendo maior lucratividade ao cobrar dos autores pela publicação ao invés dos leitores pelo consumo. Trata-se de uma prática que, incompreensivelmente, está sendo adotada de forma oportunista pelos enfermeiros editores da ECI, apesar de a maioria dos periódicos serem patrocinados por órgãos públicos ou sem fins lucrativos e apoiados por trabalhos voluntários.

A descoberta e a publicação são dois exercícios consequentes que se apoiam reciprocamente e são necessários para garantir o progresso do conhecimento científico(66 Amezcua M. From production to discovery: looking for the social impact of publications. Texto Contexto Enferm. 2015;24(2):299-300.). Em contraste, publicar sem descoberta apenas produz ruído e não contribui para o efeito transformador esperado da ciência. Publicar por publicar significa esgotar as energias dos pesquisadores para uma finalidade individual,

deixando de contribuir para o bem coletivo. As disciplinas que caem nessa armadilha deixarão de ser sustentáveis por não poderem renovar seu capital intelectual.

Infelizmente, em muitos países da ECI, são impostos sistemas de avaliação de ciências que transformam a equação descobrir = publicar em outra que dê sentido e valor à própria publicação, usando critérios anacrônicos que modificam artificialmente os usos entre os pesquisadores. O mais conhecido e mais criticado é aquele que determina a importância de um artigo a partir das citações recebidas pela revista onde é publicado(77 Aleixandre Benavent R, Valderrama Zurián JC, González de Dios J, Granda Orive JI, Miguel-Dasit A. El factor de impacto: un polémico indicador de calidad científica. Rev Esp Econ Salud, 2004;3:242-52.). Quando o Fator de Impacto e sua conhecida linguagem e preconceitos territoriais são adotados como um indicador da qualidade da atividade de pesquisa, o equilíbrio ecológico da ciência é alterado. Ambientes de publicação hegemônicos são criados ao mesmo tempo que práticas predatórias são encorajadas (entre autores e editoras), mas também compromete a sustentabilidade dos periódicos de disciplinas aplicadas como a enfermagem, que têm seu próprio ciclo natural de produção e consumo de conhecimento, sendo até marginalizados se não aderirem a esse novo falso ciclo.

De forma recorrente, grupos de cientistas se posicionam diante da necessidade de adotar critérios de avaliação mais adequados às particularidades de cada disciplina para incorporar indicadores que reflitam o impacto social da pesquisa. A crescente aversão à comunidade científica tem sido expressa por organizações, como a International Council for Science, e por meio de declarações coletivas, como Dora ou o Manifesto de Leiden, ou Degra, na área da enfermagem(88 Reina Leal LM, Amezcua M, Red Internacional de Centros Colaboradores de la Fundación Index. Comentarios a DEGRA: Declaración de Granada sobre Conocimiento Enfermero. Index Enferm. 2013;22(4):246-7. https://doi.org/10.4321/S1132-12962013000300013
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). Se os periódicos científicos ignoram as demandas emergentes que demandam maior visibilidade do produto científico e optam por se agarrar ao negócio das expectativas de autores desesperados para se promoverem, mais cedo ou mais tarde serão substituídos por outras formas de

comunicação e se tornarão uma coisa do passado. Eles deixarão de ser sustentáveis.

Felizmente, encontramos alguns reflexos de não conformidade que podem ser esperançosos. Um grupo de editores de periódicos de enfermagem da área ibero-americana vem trabalhando na adoção de práticas editoriais responsáveis, para dar maior visibilidade ao conhecimento em enfermagem(9). Os princípios que eles assumem nos ajudam a determinar como ajudar a garantir a sustentabilidade das publicações. Entre eles, maior profissionalização das equipes editoriais, reconhecimento e incentivo aos revisores, transparência nos processos de avaliação, cooperação entre editores e, em geral, a adoção de boas práticas na comunicação científica(9). Também alude à necessidade de preservação do ambiente natural em que o conhecimento de enfermagem é produzido, evitando a incorporação de práticas que alterem seu equilíbrio ecológico, com especial referência ao cuidado da língua, promovendo a utilização das línguas vernáculas como meio de partilha de conhecimentos entre investigadores e cidadãos.

A responsabilidade de tornar os periódicos de enfermagem ECI sustentáveis recai, em grande parte, sobre os próprios editores, dependendo de onde colocamos as prioridades. Podemos navegar a reboque de práticas exógenas, que apenas contribuem para obscurecer ainda mais o conhecimento da enfermagem em prol de uma ciência supostamente universal que só existe em mentalidades dominantes, ou podemos retomar a tradição secular da evolução do conhecimento da enfermagem e legitimar os processos naturais que dão origem a essa grande herança intelectual de nossa disciplina, pois, ao fazê-lo, contribuiremos para ampliar o panorama heterogêneo da ciência, para o qual convergem as diversidades de correntes que a tornam forte e socialmente útil. A enfermagem é, sem dúvida, uma delas.

REFERENCES

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    » http://scielo.isciii.es/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1132-12962019000200014&lng=es&nrm=iso&tlng=es
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    Amezcua M, Pozuelo Zurera S, Collado García JC, Amezcua González A, Herrera Justicia S. Ranking Cuiden Citación de Revistas de Enfermería más citadas en Iberoamérica: resultados del año 2019. Index Enferm [Internet]. 2020[cited 2021 Feb 02];29(1-2):96-9. Available from: https://ciberindex.com/index.php/ie/article/view/e52912
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    2021
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