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Breves ajustes à contribuição da sociologia histórica ao constitucionalismo latino-americano

Resumo

O objetivo principal do artigo é apresentar a sociologia histórica como método apto a gerar abordagens inovadoras para o campo do direito constitucional latino-americano. Considerando a lógica da longa duração (long durée), o artigo problematiza a necessidade de superação da dinâmica constituinte apenas como uma construção do futuro para alçar a uma estratégia de desvelamento de continuidades. A partir de elementos da realidade brasileira, o artigo apresenta dois casos em que são indicadas as potencialidades de aplicação do método da sociologia histórica para o constitucionalismo na região. O primeiro trata da permanência da legalidade autoritária a partir da atuação dos tribunais após a redemocratização da região. O segundo discorre sobre a formação normativa constitucional e infraconstitucional da administração pública brasileira. A metodologia utilizada é a do ensaio analítico e seu fundamento, para a indicação dos problemas históricos concretos apresentados, é a abertura do método da sociologia histórica à hibridação de disciplinas.

Palavras-chave:
Direito Constitucional; Sociologia Histórica; América Latina

Abstract

The main objective of the article is to present the historical sociology as a method capable of generating innovative approaches to the field of Latin American constitutional law. Considering the logic of long term (long durée), the article problematizes the need to overcome the constituent dynamics only as a construction of the future to reach a strategy of unveiling continuities. Based on elements of the Brazilian reality, the article presents two cases in which the potential for applying the method of historical sociology to constitutionalism in the region is indicated. First, the permanence of authoritarian legality through the performance of courts after the democratization of the region. Second, the normative constitutional and infra-constitutional formation of the public administration in Brazil. The methodology used is the analytical essay and its foundation, for indicating the concrete historical problems presented, is the opening of the method of historical sociology to the hybridization of disciplines.

Keywords:
Constitutional Law; Historical Sociology; Latin America

1. Introdução

O estudo sobre o constitucionalismo se dá, em geral, a partir das experiências fundacionais do Norte, especialmente as decorrentes das revoluções burguesas (inglesa, norte-americana e francesa). Já os duzentos anos de constitucionalismo na América Latina costumam ser pouco considerados e estudados nas Faculdades de Direito brasileiras. Nosso processo fundacional tende a ser ignorado com tanta naturalidade que a maioria dos estudantes chega ao final de seus cursos sem nem ao menos ter ouvido falar na Constituição de Cádiz (de 1812) e todas as suas consequências constituintes para a América Latina.

Os processos constituintes latino-americanos cumpriram um papel diferente daquele das mencionadas revoluções burguesas. Efetivamente, ao invés de contribuir para o estabelecimento de uma nova ordem, o momento fundacional latino-americano ocorreu no sentido de impedir tais rupturas, de modo que as estruturas oligárquicas vigentes fossem mantidas (ANSALDI; GIORDANO, 2012a_____. Ciudadanas incapaces: la construcción de los derechos civiles de las mujeres en Argentina, Brasil, Chile y Uruguay en el siglo XX. Buenos Aires: Teseo, 2012., t. II: 683-726). Na realidade, “la ruptura del orden [fue] producida desde el Estado mismo” (ANSALDI; GIORDANO, 2012a, t. I: 30).

Em países como o Brasil, por exemplo, o “povo” não protagonizou as grandes mudanças institucionais.1 1 O processo de independência no Brasil foi conduzido por um representante da própria família real portuguesa. Destaca Marcelo Neves (2018: 169) que o “constitucionalismo” não se afirmou por aqui, ao contrário de como se deu na Europa, em oposição ao “absolutismo”, mas “sobretudo [como] uma expressão do anticolonialismo”: “[...] ao contrário do que ocorreu na experiência norte-americana, o rompimento jurídico-político brasileiro com a dominação portuguesa (1822) de modo algum teve como consequência a formação de um Estado “soberano”, na qualidade de um sistema político que se reproduz autopoieticamente no interior de determinadas fronteiras territoriais”. Schwartz e Starling (2015: 222) destacam que “nossa emancipação não deixou de ser particular e trivial. Se o movimento foi liberal, porque rompeu com a dominação colonial, mostrou-se conservador ao manter a monarquia, o sistema escravocrata e o domínio senhorial. Além do mais, se o processo de emancipação foi deflagrado pela vinda da corte, o que explica o formato final é o movimento interno de ajustamento às pressões de dentro e de fora, e principalmente um processo de substituição de metrópoles: com o atual reinado bem na região Centro-sul do recém-fundado país. Por outro lado, se uma nova unidade política foi implantada, prevaleceu a noção estreita de cidadania, que alijou do exercício da política uma vasta parte da população e ainda mais o extenso contingente de escravizados. Com isso, noções bastante frouxas de representatividade das instituições políticas se impuseram, mostrando como a independência criou um Estado mas não uma Nação”. Também quando da Proclamação da República, as contradições se manifestaram. O responsável pela proclamação e primeiro presidente, Marechal Deodoro da Fonseca, não se notabilizava pela defesa o ideal republicano e apoiou o golpe em D. Pedro II em alguma medida influenciado por aspectos corporativos das forças armadas. De um lado, a criação do Estado precedeu a formação da sociedade civil; de outro, o Estado atuou para desagregar qualquer possibilidade de formação desta. A estratificação social existente no momento de formação estatal na América Latina foi decisiva para a constituição política de sociedades estruturadas sob a lógica pré-moderna, o que diferencia a experiência latino-americana da dos Estados do Norte, onde houve “explícita condensación o síntesis de la conflictividad de clases” (ANSALDI; GIORDANO, 2012a_____. Ciudadanas incapaces: la construcción de los derechos civiles de las mujeres en Argentina, Brasil, Chile y Uruguay en el siglo XX. Buenos Aires: Teseo, 2012., t. I: 56). Por isso, a análise de Alsaldi e Giordano é a de que na América Latina o Estado foi “un decisivo constructor de la sociedad. Más aun, dicho en otras palabras: en América Latina, la formación de la burguesía y la formación del Estado fueron un proceso simbiótico” (ANSALDI; GIORDANO, 2012a, t. I: 56).

Nas últimas décadas, contudo, o constitucionalismo na América Latina ganhou um pouco mais de notoriedade e repercussão pelos estudos do Novo Constitucionalismo Latino-Americano. Ainda assim, sem uma proposição metodológica suficientemente clara e sistematizada.

Muito embora as abordagens sociológicas no campo do direito constitucional não constituam uma inovação,2 2 Podem ser constatadas desde os primórdios da formação dessa disciplina em obras clássicas que têm início no famoso A essência da Constituição, de Ferdinand Lassalle (2001), no século XIX, passando por uma utilização mais corriqueira no século XX, como em Constitución y derecho constitucional, de Rudolf Smend (1985), Teoría de la Constitución, de Karl Loewenstein (2018) e A força normativa da Constituição, de Konrad Hesse (1991), até chegar, no século XXI, a formulações mais sistematizadas e definidoras de uma sociologia constitucional, como as de Chris Thornhill em A sociology of Constitutions (2011). No Brasil, os estudos de sociologia constitucional ainda são muito incipientes e tendem a ressaltar uma perspectiva empírica específica. Tal abordagem elege como foco principal as repercussões sociais advindas da aplicação do direito constitucional, ou seja, da atuação de instituições que manejam a Constituição. Os exemplos mais corriqueiros são aqueles vinculados às importantes análises sobre as decisões do Supremo Tribunal Federal (STF). Na América Latina, Gérman José Bidart Campos, que dedica um dos seis volumes de sua obra Tratado elemental de derecho constitucional argentino ao debate da sociología del derecho constitucional (1992), também trabalha com uma perspectiva de análise das consequências da aplicação dos textos constitucionais, sendo um dos grandes referenciais teóricos do tema. há um recorte sociológico dos processos constitucionais ainda menos explorado que essa importante vertente empírica: a sociologia histórica. Tal perspectiva pode trazer uma série de benefícios para o estudo do direito constitucional, em especial do constitucionalismo latino-americano, sobretudo pela sua vocação em permitir grandes comparações ao longo de consideráveis períodos históricos, substituindo dicotomias como passado/presente, universal/particular, centralismo/regionalismo, pela tentativa de compreensão da formação das instituições estatais e sua relação com a ação humana no tempo, como um contínuo processo em constante formação que desvela e identifica persistências, regularidades, bloqueios e potencialidades (ANSALDI; GIORDANO, 2012a_____. Ciudadanas incapaces: la construcción de los derechos civiles de las mujeres en Argentina, Brasil, Chile y Uruguay en el siglo XX. Buenos Aires: Teseo, 2012., t. I: 42).

A proposta de construção de uma metodologia comparativa integradora de análise do tema, tributária da sociologia histórica, pode significar um primeiro passo para a descoberta de categorias próprias, ainda inexploradas nessa seara, ou até mesmo a criação de novas formas de análise teórica do direito constitucional latino-americano, impactando de forma decisiva a compreensão atual de nossas crises, assim como a melhoria de nossos diagnósticos.

O objetivo do presente artigo, nesse sentido, é apresentar a sociologia histórica como uma metodologia que pode contribuir para abordagens diversificadas e inovadoras nas pesquisas em direito, propondo sua aplicação ao constitucionalismo latino-americano a partir da análise de algumas situações específicas. O método utilizado é o do ensaio analítico, na medida em que, ao considerar a abertura da hibridação de disciplinas, se discorre sobre as transformações em nível macro de cada caso com a indicação de possibilidades de análises teóricas, consideradas a partir de uma sociologia histórica do jurídico. As possíveis indicações de hipóteses interpretativas pressupõem os eixos da estrutura e da ação como parte do mesmo processo em que as continuidades podem desvelar-se como práticas institucionais e sociais de permanência.

Para tanto, o artigo é dividido em duas partes. Na primeira, será realizado um recorrido histórico da metodologia proposta, desde seu reconhecimento inicial na década de 1950, nos Estados Unidos, passando pelas sucessivas “ondas” de desenvolvimento. Na segunda parte, indicaremos a potencialidade de algumas contribuições da sociologia histórica para o direito constitucional em situações concretas que apontam possíveis caminhos a serem trilhados: (1) a atuação dos tribunais em relação à legalidade autoritária e (2) a formação normativa constitucional e infraconstitucional da administração pública brasileira.

2. Notas sobre o método da sociologia histórica

A sociologia histórica3 3 Há uma diferença de nomenclatura que parece derivar mais do campo do conhecimento de origem do analista do que propriamente de diferenças existentes na prática. Nos referimos aos termos “sociologia histórica” e “neoinstitucionalismo” e, mais especificamente, ao “neoinstitucionalismo histórico”. Com efeito, as fontes oriundas da sociologia costumam adotar o primeiro nome, ao passo que àquelas originadas na ciência política, o segundo. Como exemplo do exposto, verifica-se que os autores representantes do paradigma identificados por cada campo são os mesmos, como são os casos de Charles Tilly e Theda Skocpol, para ficar apenas em duas referências. Ademais, segundo a classificação apresentada por Adams, Clemens e Orloff (2005), o institucionalismo é uma das vertentes da terceira onda. Considerando que as mais importantes referências latino-americanas (especialmente Waldo Ansaldi e Veronica Giordano) empregam a expressão “sociologia histórica”, esta será privilegiada no presente trabalho, embora o segundo termo possa eventualmente constar em alguma citação direta. De todo modo, entendemos não haver prejuízo para uma adequada compreensão dos aspectos centrais da metodologia. começou a ser reconhecida com esse nome no final da década de 1950, nos Estados Unidos, consolidando-se definitivamente a partir dos anos 1970, como uma tentativa de recuperar os autores clássicos da sociologia na análise das transformações políticas, sociais e econômicas em grande escala (ANSALDI; GIORDANO, 2012a_____. Ciudadanas incapaces: la construcción de los derechos civiles de las mujeres en Argentina, Brasil, Chile y Uruguay en el siglo XX. Buenos Aires: Teseo, 2012., t. I: 39).

Em 2005, Julia Adams, Elisabeth Clemens e Ann Shola Orloff publicaram um livro intitulado Remaking modernity: politics and processes in historical sociology (2005) em que, na introdução, formularam uma arqueologia da sociologia histórica, dividindo-a em três fases, chamadas pelas autoras de “ondas”.4 4 A classificação das autoras não é um consenso entre os estudiosos da área, como mostram Ansaldi e Giordano: “A propósito de las ‘olas’ de sociología histórica que proponen Adams, Clemens y Orloff, hay que decir que varios académicos han rechazado la existencia de una ‘tercera ola’, aduciendo que los trabajos que supuestamente se inscriben en ella no se diferencian sustantivamente de los producidos por la ‘segunda ola’, puesto que no se han acuñado conceptos propios y nuevos de historicidad, cambio histórico o causación” (ANSALDI; GIORDANO, 2012a, t. I: 44). Contudo, reconhecemos a importância dessa sistematização. Mesmo sem o consenso em relação à terceira onda, a existência da divergência em relação a tal classificação unida à ausência de outra que a possa substituir, a coloca como item relevante no resgate histórico dos debates acerca do método. A primeira onda seria aquela constituída pelos próprios “pais fundadores” da sociologia - em especial Karl Marx, Émile Durkheim e Max Weber - cujo questionamento central buscava compreender os processos de acordo com os quais ocorreu a transição das sociedades “tradicionais” para as sociedades reconhecidamente “modernas”. As autoras chamam a atenção para duas observações necessárias: a primeira diz respeito ao fato de que as sociedades estudadas eram, em geral, europeias e, a segunda, de que, evidentemente, o sentido do que era compreendido como “moderno” variava de autor para autor (ADAMS; CLEMENS; ORLOFF, 2005ADAMS, Julia; CLEMENS, Elisabeth; ORLOFF, Ann Shola. Introduction: social theory, modernity and the three waves of historical sociology. In: ADAMS, Julia; CLEMENS, Elisabeth; ORLOFF, Ann Shola (eds.). Remaking modernity: politics and processes in historical sociology. London: Duke University, 2005.: 03).

Após um período em que as pesquisas nas ciências sociais foram dominadas por análises a-históricas, a segunda onda reuniu, entre as décadas de 1970 e 1980, um grupo de teóricos nutridos pela interdisciplinaridade e pela disseminação de métodos históricos, que assumiram uma vertente de análise “macrossociológica comparada” das grandes estruturas estatais contextualizadas em um longo período de tempo. Nessa onda encontram-se grandes nomes da sociologia histórica como Barrington Moore Jr., Reinhard Bendix, Neil Smelser, Charles Tilly e Theda Skocpol. Ainda que nem todos os autores fossem marxistas - o movimento era eclético -, o marxismo inspirou a definição das perguntas de pesquisa: “revolução”, “industrialização”, “formação dos estados” e “formação das classes” (dentre outras). Finalmente, embora, nem todos os acadêmicos que se filiaram a esta perspectiva da sociologia histórica tenham lançado mão do método comparativo, esse foi se consolidando como de grande relevância e eficácia aos propósitos da sociologia histórica dessa fase por apresentar alternativas às análises funcionalistas e estruturalistas (ADAMS; CLEMENS; ORLOFF, 2005ADAMS, Julia; CLEMENS, Elisabeth; ORLOFF, Ann Shola. Introduction: social theory, modernity and the three waves of historical sociology. In: ADAMS, Julia; CLEMENS, Elisabeth; ORLOFF, Ann Shola (eds.). Remaking modernity: politics and processes in historical sociology. London: Duke University, 2005.: 05-08).

Finalmente, a terceira onda, que não possui a mesma coerência tópica e teórica da segunda. Podem ser identificadas pelo menos cinco “comunidades” de sociólogos históricos: institucionalistas (preocupados com a formação e a evolução das instituições políticas e sociais), teóricos da escolha racional (estudiosos das decisões estratégicas dos indivíduos face as restrições do jogo político; em outros termos, foco na análise das regras de tomada de decisão pelos indivíduos), culturalistas (que concebem as instituições como práticas culturais), feministas (que incluem o gênero como dimensão de análise das instituições) e aqueles vinculados a estudos coloniais e pós-coloniais (extrapolam a experiência europeia, a partir do estudo da América Latina e Oriente) (ADAMS; CLEMENS; ORLOFF, 2005ADAMS, Julia; CLEMENS, Elisabeth; ORLOFF, Ann Shola. Introduction: social theory, modernity and the three waves of historical sociology. In: ADAMS, Julia; CLEMENS, Elisabeth; ORLOFF, Ann Shola (eds.). Remaking modernity: politics and processes in historical sociology. London: Duke University, 2005.: 32-63). Mesmo diante do reconhecimento de todas as diferenças que possam existir na adoção de uma perspectiva metodológica comparativa como a da sociologia histórica, existe um consenso de que sua escolha permite escapar das dicotomias como passado/presente, nomotético/ideográfico, universal/particular, estrutura/ação (ANSALDI; GIORDANO, I, 2012a_____. Ciudadanas incapaces: la construcción de los derechos civiles de las mujeres en Argentina, Brasil, Chile y Uruguay en el siglo XX. Buenos Aires: Teseo, 2012.: 42).

As possibilidades metodológicas de desenvolvimento da sociologia histórica podem ter uma grande variação entre os acadêmicos que a adotam. Theda Skocpol (1984SKOCPOL, Theda. Emerging agendas and recurrent strategies in historical sociology. In: SKOCPOL, Theda. Vision and method in historical sociology. Cambridge: Cambridge University, 1984.) discorre sobre as três estratégias mais recorrentes. A primeira utiliza a comparação para a validação de uma teoria geral mediante a sua aplicação a casos históricos. Recorrente nos anos cinquenta e sessenta do século passado - quando a sociologia presumia ser capaz de formular uma teoria geral da sociedade universalmente aplicável e quando os sociólogos pressupunham que a história consistia em um conjunto de pesquisadores dedicados a recompilar nos arquivos “fatos” ocorridos em diferentes épocas e lugares no passado - “the application of a general model to one or more historical instances was the kind of sociology most likely to be recognized as empirically rigorous and theoretically relevant in mainstream disciplinary circles”5 5 “[...] a aplicação de um modelo geral a um ou mais exemplos históricos era o tipo de sociologia que mais possibilidades tinha de ser reconhecida como empiricamente rigorosa e teoricamente relevante nos círculos hegemônicos da disciplina” (tradução nossa). (SKOCPOL, 1984SKOCPOL, Theda. Emerging agendas and recurrent strategies in historical sociology. In: SKOCPOL, Theda. Vision and method in historical sociology. Cambridge: Cambridge University, 1984.: 362-363).

Skocpol utiliza como exemplo o livro Social change in the industrial revolution, de Neil Smelser (2011SMELSER, Neil. Social change in the industrial revolution: an application of theory to the British cotton industry. Whitefish: Literary Licensing, 2011.), em que o autor aplica os pressupostos de sua teoria geral sobre transformações sociais a duas situações concretas e distintas ocorridas na Inglaterra do século XIX, de modo que, com a ajuda da historiografia, tornou-se possível a demonstração empírica de sua validade. Se, por um lado, essa estratégia é interessante porque leva o pesquisador a especificar e a operacionalizar o que seriam, a priori, os modelos teóricos de interpretação adotados (conjunto de conceitos e proposições abstratas), por outro, não afasta o risco de que a escolha dos casos históricos acabe sendo arbitrária e deixe de lado importantes fatos que poderiam depor contra os pressupostos da teoria geral colocados à prova (SKOCPOL, 1984SKOCPOL, Theda. Emerging agendas and recurrent strategies in historical sociology. In: SKOCPOL, Theda. Vision and method in historical sociology. Cambridge: Cambridge University, 1984.: 366).

Em sociedades com processos históricos diversificados, como é o caso da América Latina, a utilização dessa estratégia pode negligenciar exatamente o que nos difere em termos de conceitos teóricos generalizantes e nos aproxima em termos experiência histórica empiricamente situada, sem que isso indique necessariamente uma falha da aplicação de modelos teóricos.

A segunda estratégia é aquela que usa conceitos sociológicos para desenvolver uma interpretação histórica “significativa” (SKOCPOL, 1984SKOCPOL, Theda. Emerging agendas and recurrent strategies in historical sociology. In: SKOCPOL, Theda. Vision and method in historical sociology. Cambridge: Cambridge University, 1984.: 368). Em geral, os sociólogos históricos interpretativos são céticos quanto à utilidade de aplicar modelos teóricos gerais à história ou usar uma abordagem de testar hipóteses para estabelecer generalizações causais sobre estruturas de grande escala e padrões de mudança. Ao contrário, esses estudiosos buscam interpretações “significativas” da história em dois sentidos. Primeiro, uma especial atenção é dada às questões culturais incorporadas por atores individuais ou pertencentes a grupos nas configurações históricas investigadas. Segundo, tanto o tópico escolhido para o estudo histórico quanto os tipos de argumentos desenvolvidos sobre ele devem ter um significado cultural ou político no presente; isto é, precisam fazer parte de um léxico comum para o público em geral, devem ser “significativos”. Busca-se, assim, preservar o máximo possível o sentido de particularidade histórica.

O exemplo utilizado por Skocpol é a obra de E. P. Thompson, The Making of the English Working Class (2013THOMPSON, E. P. The Making of the English Working Class. Londres: Penguin, 2013.), na qual o autor consolida a análise do conceito de classe como fenômeno histórico (em polêmica oposição à visão econômica determinista) e, portanto, parte de um processo ativo de condicionamentos estruturais e culturais. Posteriormente, Thompson utiliza tal conceito para ordenar narrativas e selecionar eventos ocorridos no início do século XIX na Inglaterra, procedendo a uma interpretação histórica por meio de uma categoria já significativa no presente (SKOCPOL, 1984SKOCPOL, Theda. Emerging agendas and recurrent strategies in historical sociology. In: SKOCPOL, Theda. Vision and method in historical sociology. Cambridge: Cambridge University, 1984.: 369). A grande crítica a essa estratégia é que ela corre o risco de tornar-se sempre muito determinista.

Por fim, a última estratégia, que Skocpol assume como sua, ao lado de Barrington Moore Jr., pode ser definida como a análise de regularidades causais na história. Trata-se de uma perspectiva analítica em que os investigadores visitam passado e presente analisando casos históricos, considerando todas as oportunidades disponíveis e assumindo a validade de hipóteses alternativas como modo de ajudar a reconhecer ou não regularidades. A principal característica dessa estratégia, segundo Skocpol, é que não há nenhum esforço para analisar fatos históricos desde uma perspectiva de modelos gerais: não há o compromisso com uma ou outra teoria, mas o esforço para se descobrir as razões concretas que explicam os processos históricos relevantes. Hipóteses alternativas que contradigam a priori o significado de determinados fatos históricos são sempre bem-vindas para a verificação ou não de regularidades causais, posto que a ausência de regularidades também se constitui como um resultado válido.

Nesse sentido, uma das grandes contribuições dessa estratégia é o enfrentamento que faz em relação ao dogma da universalidade, já que as generalizações podem apresentar-se como relativas diante de algum evento histórico. Diferentemente dos sociólogos interpretativos, preocupados em saber “o que se passou” (desde uma perspectiva significativa), os sociólogos analíticos, que utilizam essa terceira estratégia, buscam saber “porque se passou” (SKOCPOL, 1984SKOCPOL, Theda. Emerging agendas and recurrent strategies in historical sociology. In: SKOCPOL, Theda. Vision and method in historical sociology. Cambridge: Cambridge University, 1984.: 376). Para Ansaldi e Giordano (2012a_____. Ciudadanas incapaces: la construcción de los derechos civiles de las mujeres en Argentina, Brasil, Chile y Uruguay en el siglo XX. Buenos Aires: Teseo, 2012., t. I: 44), a grande vantagem das duas últimas estratégias é que elas retomam análises que conseguem reconciliar estrutura e ação ou estrutura e cultura, possibilitando interpretações ainda não cogitadas.6 6 Importante salientar que o uso de uma ou outra estratégia não é rígido, sendo comum a realização de combinações criativas (SKOCPOL, 1984).

Na América Latina, a consolidação dos debates sobre a sociologia histórica despontou com a inovadora obra de Cardoso e Faletto, Dependência e desenvolvimento na América Latina (1975CARDOSO, Fernando Henrique; FALETTO, Enzo. Dependência e desenvolvimento na América Latina: ensaio de interpretação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1975.), escrita em meados da década de 1960. A primeira novidade metodológica do livro foi combater o binarismo dos conceitos de “tradicional” e “moderno”. Segundo os autores, esses conceitos “[...] não são bastante amplos para abranger de forma precisa todas as situações sociais existentes, nem permitem distinguir entre elas os componentes estruturais que definem o modo de ser das sociedades analisadas [...]” (CARDOSO; FALETTO, 1975CARDOSO, Fernando Henrique; FALETTO, Enzo. Dependência e desenvolvimento na América Latina: ensaio de interpretação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1975.: 17). Muito próximos à segunda onda descrita por Adams, Clemens e Orloff (2005ADAMS, Julia; CLEMENS, Elisabeth; ORLOFF, Ann Shola. Introduction: social theory, modernity and the three waves of historical sociology. In: ADAMS, Julia; CLEMENS, Elisabeth; ORLOFF, Ann Shola (eds.). Remaking modernity: politics and processes in historical sociology. London: Duke University, 2005.), Cardoso e Faletto trouxeram como a grande inovação para a academia latino-americana a proposição de uma comparação que, longe de adotar os critérios funcionalistas e estruturalistas em voga, elegia como unidade de análise os Estados-Nação (GIORDANO, 2014_____. La sociología histórica y la sociología latinoamericana. La compasión en nuestras ciencias sociales. Revista de la Red Intercátedras de Historia de América Latina Contemporánea (Segunda Época), Córdoba, año 1, n. 1, Diciembre 2013-Mayo 2014.: 24).

Esse tipo de método comparativo foi denominado “comparação integrada” e, de acordo com Giordano, sua importância reside no fato de que “la investigación comparativa integrada y reflexiva permite captar las especificidades nacionales a la vez que el cuadro de conjunto de América Latina en el mundo como problemas teóricos” (GIORDANO, 2014_____. La sociología histórica y la sociología latinoamericana. La compasión en nuestras ciencias sociales. Revista de la Red Intercátedras de Historia de América Latina Contemporánea (Segunda Época), Córdoba, año 1, n. 1, Diciembre 2013-Mayo 2014.: 27), isto porque “la comparación integrada supone que esta es parte inseparable de la selección del objeto de investigación. No se trata de usar la comparación para ilustrar una teoría, sino de usar la comparación para resolver un problema teórico” (GIORDANO, 2014: 25).

Atualmente, uma das principais pesquisadoras latino-americanas dedicada ao aprofundamento do método comparativo da sociologia histórica é a argentina Verónica Giordano, cuja vasta obra é de fundamental relevância para o desenvolvimento da sociologia histórica na região. Giordano tenta enfrentar críticas que foram feitas à tentativa de articulação entre sociologia e história por meio do que chama de “projeto intelectual de hibridação de disciplinas” inspirado por Mattei Dogan e Robert Pahre, em Las nuevas ciencias sociales: la marginalidad creadora (1993DOGAN, Mattei; PAHRE, Robert. Las nuevas ciencias sociales: la marginalidad creadora. México, D. F.: Grijalbo, 1993.). Esse projeto está em pleno desenvolvimento e, “[...] el estado actual de la sociología histórica, visto desde esta perspectiva, puede ser entonces leído como una incipiente hibridación de la sociología histórica (la de ‘segunda ola’) con otras áreas como historia cultural, estudios de género, etc” (ANSALDI; GIORDANO, 2012a_____. Ciudadanas incapaces: la construcción de los derechos civiles de las mujeres en Argentina, Brasil, Chile y Uruguay en el siglo XX. Buenos Aires: Teseo, 2012., t. I: 45).

Como visto anteriormente, essa comparação não pretende demonstrar pressupostos teóricos, mas a existência de problemas teóricos a serem enfrentados e resolvidos. Por esta razão, “propone tomar como objeto de estudio a los procesos de cambio social en gran escala y estudiarlos a partir del planteo de problemas históricos concretos, analizando y documentando los hechos ‘en la menor escala posible’” (GIORDANO, 2011GIORDANO, Verónica. Alegato a favor de una Sociología Histórica Comparada para América Latina, Trabajo y Sociedad: Sociología del trabajo - Estudios culturales - Narrativas sociológicas y literarias, Santiago del Estero, v. XV, n. 17, p. 41-48, 2011.: 44).

A estratégia de abordagem utilizada por ela é a analítica, de modo que a análise histórica leva em consideração não só o resultado de determinado processo social, mas também de todas as alternativas que estavam disponíveis e que, por algum motivo não tiveram êxito. A verificação de causas regulares é permeada, nesse sentido, por uma interpretação que inclui processos não vitoriosos. A adoção da comparação é inevitável, sobretudo, porque a estratégia analítica se propõe a superar a dicotomia estrutura e ação, considerando as duas como parte do mesmo processo.

No conjunto da obra de Giordano, a comparação elege como objeto principal as transformações sociais e, por isso mesmo, é nutrida pelas teorias sociológicas que se dedicam a identificar processos de transformações nas sociedades a partir dos dois eixos articuladores e possibilitadores da superação da dicotomia estrutura e ação: a construção do poder e o papel das classes sociais. De acordo com Ansaldi e Giordano, o poder se constitui sob a forma de ordem e

[...] el orden se organiza como Estado: el orden y su institucionalidad son los de los vencedores. Su capacidad de dejar abierto un espacio para canalizar los reclamos de los vencidos depende de condiciones históricas variadas y cambiantes, de la combinación de coerción y consenso, dominación y hegemonía. Ese proceso de construcción y conservación del orden, complejo, tortuoso y nunca del todo acabado, incluye tanto las confrontaciones entre bloques de clase dominante como las resistencias y oposiciones - y en algunos casos los proyectos alternativos - de las clases subalternas (ANSALDI; GIORDANO, 2012a_____. Ciudadanas incapaces: la construcción de los derechos civiles de las mujeres en Argentina, Brasil, Chile y Uruguay en el siglo XX. Buenos Aires: Teseo, 2012., t. I: 30).

Conforme já referido, um dos aspectos característicos da sociologia histórica, sobretudo em sua vertente latino-americana, é a hibridização de disciplinas, “recombinando” suas fronteiras de modo a lançar um novo olhar sobre o objeto de estudo. Com efeito, a sociologia histórica “guarda un compromiso con las particularidades teóricas y metodológicas de cada una de las disciplinas, pues comparar lleva siempre consigo un doble trabajo de conocimiento minucioso del hecho histórico concreto y de conceptualización a partir del material histórico” (GIORDANO, 2011GIORDANO, Verónica. Alegato a favor de una Sociología Histórica Comparada para América Latina, Trabajo y Sociedad: Sociología del trabajo - Estudios culturales - Narrativas sociológicas y literarias, Santiago del Estero, v. XV, n. 17, p. 41-48, 2011.: 44).

Assim, para compreender as ações dos atores políticos e superar a dicotomia entre ação e estrutura, é necessário identificar o contexto histórico e cultural em que a instituição se originou, se manteve e se adaptou (SANDERS, 2006SANDERS, Elizabeth. Historical Institutionalism. In: RHODES, A.; BINDER, S.; ROCKMAN, B. (eds.). Oxford Handbook of Political Institutions. Oxford: Oxford University Press, 2006.: 39). Afinal, “se os homens quiserem chegar a quebrar as cadeias do presente, terão de compreender as forças que as forjaram” (MOORE JR., 1957: 581). Em nosso caso, trata-se de “remontarse en la historia al proceso mismo de formación de una peculiar modernidad latina, la modernidad del Sur” (ÁLVAREZ-URÍA, 2015ÁLVAREZ-URÍA, Fernando. El reconocimiento de la humanidad: España, Portugal y America Latina em la genesis de la modernidad. Madrid: Morata, 2015.: 14), em que a sociologia histórica possibilita que se identifiquem “regularidades y singularidades históricas y, a partir de ellas, realizar diagnósticos que eventualmente sirven para decidir con mayor conocimiento de causa, y para orientar la acción colectiva de forma más reflexiva y crítica” (ÁLVAREZ-URÍA, 2015: 13).

A proposta metodológica que ora é apresentada acrescenta às duas mencionadas disciplinas uma terceira, o direito - uma sociología histórica de lo jurídico (GIORDANO, 2012_____. Ciudadanas incapaces: la construcción de los derechos civiles de las mujeres en Argentina, Brasil, Chile y Uruguay en el siglo XX. Buenos Aires: Teseo, 2012.: 15). Busca-se, assim, inovar no campo de estudo (constitucionalismo latino-americano), sem deixar, evidentemente, de respeitar as suas próprias especificidades. Não se quer, por exemplo, abandonar as análises sobre hermenêutica ou as relações entre norma e efetivação do texto constitucional ou, ainda, o funcionamento da jurisdição constitucional, para pensar em abordagens muito difundidas nas últimas décadas. O que se quer é tentar fazê-las considerando o quadro histórico de transformações dos Estados latino-americanos com todas as suas regularidades e persistências para tentar problematizar o campo jurídico-constitucional de forma diferenciada e direcionada à compreensão das razões concretas que explicam os processos históricos e, consequentemente, os constituintes. São, pois, enormes os desafios propostos, mas cujos resultados podem compensar o esforço.

A perspectiva da sociologia histórica aqui escolhida é aquela, portanto, que a partir da hibridação de disciplinas, adota como estratégia o método analítico da comparação integrada para investigar os processos de transformação das sociedades no tempo, tendo como unidade básica de comparação o Estado-Nação, considerado em seus dois eixos relacionais: a estruturação do poder e a ação humana (individual ou coletiva). O estudo do passado não como um fetiche acadêmico, mas como um processo que possibilita melhor compreender a conformação do presente e a preparação do futuro.

Diante do quadro apresentado e da compreensão da sociologia histórica como uma metodologia apropriada para tratar da análise comparada de grandes estruturas, como a dos Estados-Nação e de suas instituições, submetidas a constantes processos de transformação social em um longo período de tempo (de modo que se possa compreender a relação entre a ação humana e a organização social como algo que se constrói de forma contínua no tempo), é possível indicar dois pressupostos para o uso dessa metodologia no âmbito do constitucionalismo latino-americano.

O primeiro deles é a consideração do constitucionalismo como um fenômeno que não se esgota na produção das cartas constitucionais, mas que se expande em diversas outras perspectivas jurídicas e sociológicas, apresentando todas as condições teóricas necessárias para ser abordado de forma inovadora pelo método da sociologia histórica.

O segundo seria a compreensão dos processos constituintes na América Latina não tanto pelos seus resultados normativos em sentido estrito, mas pelas condições de produção desses “pactos”, ou seja, pela identificação das dinâmicas, articulações e contraposições das forças e projetos disponíveis ao longo do processo.

Acredita-se, com isso, que a adoção do método para o campo do constitucionalismo latino-americano pode contribuir para uma análise diferenciada das constituições, concebendo-as não mais como instituições stricto sensu, mas como resultado de um processo social que não se esgota em si mesmo e que abre a possibilidade de construção de novos problemas de pesquisa ainda não pensados ou a recolocação de velhos problemas a partir de novas perguntas.

3. Problematizações a partir do método da sociologia histórica

O primeiro tema aqui tratado em que se vislumbra a contribuição da sociologia histórica na análise do direito constitucional é o modo como os tribunais lidam com a legalidade autoritária e o impacto dessa relação nas dinâmicas institucionais.

De um modo geral, um caminho teórico trilhado sobre as repercussões da relação entre democracia e autoritarismo nas instituições jurídicas pressupõe a existência de uma cultura autoritária como uma marca que nos acompanha historicamente. Não há dúvidas de que as experiências autoritárias da segunda metade do século XX precisam ser concebidas, refletidas e tratadas analiticamente como fruto de sociedades que se constituíram ao longo da dominação colonial como uma ordem hierarquicamente estruturada, intolerante e geradora de autoritarismos ao longo dos séculos XIX e XX (ANSALDI; GIORDANO, 2012a_____. Ciudadanas incapaces: la construcción de los derechos civiles de las mujeres en Argentina, Brasil, Chile y Uruguay en el siglo XX. Buenos Aires: Teseo, 2012., t. I: p. 19).

Considerar as experiências latino-americanas desse período a partir dos aportes teóricos da sociologia histórica significaria, por exemplo, analisar tais experiências em seu conjunto e considerar os papéis das cortes de um modo comparativo-integrado, explorando um potencial de identificação mais preciso sobre possibilidades de ruptura ou continuidades (específicas e comuns) entre tais experiências, ao invés de apenas considerar como suporte fático suficiente as relações históricas de causa e efeito entre passado e presente.

Se é verdade que os processos transicionais implicaram em alterações de reestruturação institucional, é preciso analisar de que modo as cortes superiores sofreram alterações a partir das diversas experiências de transição para a democracia sem necessariamente atribuir um peso totalizante a essas transformações de modo que permaneçam obscuros outros elementos importantes como, por exemplo, os processos não vitoriosos que, em geral, indicariam a necessidade de uma análise sobre disputas de projetos políticos transicionais, inclusive para as cortes.

Se, por um lado, a existência de propostas diversas para a composição das cortes, por parte das forças políticas em disputa, demonstra a importância desses espaços para as definições do formato institucional do Estado, e a análise das teses vencedoras podem indicar rupturas ou permanências, por outro a ausência de propostas e alternativas de mudança por parte de alguns grupos também diz algo.

O encerramento de um período autoritário não necessariamente se dá com a transição para um regime democrático, compreendido aqui, como o reestabelecimento de regras básicas para o exercício de uma democracia formal, no sentido desenvolvido por Anthony Pereira sobre a existência de governos limitados constitucionalmente (PEREIRA, 2010PEREIRA, Anthony W. Ditadura e repressão: autoritarismo e o estado de direito no Brasil, no Chile e na Argentina. São Paulo: Paz e Terra, 2010.: p. 26). Alguns avançam mais e outros nem tanto. Contudo, identificar as transições políticas em termos de enfrentamento dos legados autoritários com as dificuldades institucionais do presente em avançar com uma agenda democrática, tanto no campo da política quanto no campo da garantia de direitos, pode representar uma saída logicamente aceitável e parcialmente verídica, mas incompleta, porque se atrela a uma dicotomia entre passado e presente que oblitera os processos de transformação como parte da mesma história. Isso significa não estabelecer pressuposições necessárias entre os avanços das transições políticas nas diversas experiências latino-americanas e o nível de desenvolvimento democrático de suas instituições a posteriori.

Uma pesquisa de excelência que analisa processos transicionais de forma integrativa, superando as relações históricas de causa e efeito é a tese de Diego Werneck Arguelhes, Old Courts, new beginnings: judicial continuity and constitutional transformation in Argentina and Brazil (2014). A partir da análise dos processos transicionais na Argentina e no Brasil, o autor conclui que apesar das enormes diferenças nas transições políticas entre os dois países, as cortes não avançaram na superação dos legados históricos de um modo mais ou menos semelhante. A identificação de que a Argentina teve um processo transicional muito mais profícuo, no que tange ao enfrentamento das mazelas autoritárias, alcançando transformações institucionais importantes, como a própria reformulação da Corte Suprema, não foi suficiente para garantir uma atuação capaz de superar permanências e regularidades institucionais anteriores.

Os processos transicionais das experiências autoritárias para regimes de democracia formal foram determinantes para os modos de estruturação do poder do Estado que passaram a indicar as condições institucionais de ruptura ou continuidade dos padrões autoritários. Os poderes judiciais, especialmente as cortes superiores, integram parte fundamental na montagem desses novos mecanismos institucionais. Contudo, a existência de novos mecanismos institucionais não é suficiente para determinar uma atuação judicial que importará em rupturas que indiquem avanços no processo democrático ou em repetições que, ofuscadas pelo manejo das doutrinas jurídicas, poderão representar estruturas de manutenção de práticas que podem ameaçar o sucesso da implementação de uma democracia constitucional.

Nesse cenário, o tratamento dispendido pelas cortes em relação às normas autoritárias produzidas antes das transições para a democracia pode enriquecer ainda mais a quantidade de elementos trazidos à análise do impacto da atuação das cortes para a consolidação de processos de democratização das instituições. Com efeito, um dos principais desafios que se coloca às experiências transicionais é como lidar com a produção da legalidade anterior ao estabelecimento do consenso constitucional, já que a continuidade da aplicação e submissão a normas contrárias ao texto constitucional é um fator decisivo para o enfraquecimento da “força normativa da Constituição” e a permanência cultural de um modus operandi construído sobre as bases de um governo autoritário. Análises sobre esse tipo de atuação podem dizer muito sobre a manutenção da cultura autoritária, já que a escolha pelo modo de recepção de normas anteriores à redemocratização são um indicativo sobre a disposição das cortes em decidir pela ruptura ou continuidade da experiência anterior.

Nesse sentido, a utilização da estratégia interpretativa (a segunda identificada por Skocpol e descrita na primeira parte do texto), poderia ter o sucesso de verificar se a própria categoria de legalidade autoritária tem potencial para a produção de uma interpretação que tenha um significado culturalmente relevante (interpretação significativa) para a dinâmica social e institucional existente nos dias de hoje.

Ainda sobre a construção da legalidade autoritária, outra possibilidade de aplicação do método que importa para as questões constitucionais, sobretudo no que toca à execução de sua parte orgânica, se refere ao estudo do processo de criação e consolidação de instituições da administração pública, considerando-se a alternância entre normalidade política e períodos de exceção. Ou ainda, sobre como os períodos autoritários incidiram na produção das normas que regem a atuação do Estado, e quais marcas deixaram. Esse estudo se afasta da atuação dos tribunais e tem como foco a legalidade infraconstitucional que tem o condão de colocar em prática os pressupostos de organização do Estado além de determinar e consolidar práticas importantes de atuação da administração pública que podem impulsionar ou bloquear o texto constitucional.

A administração pública importa diretamente no modus operandi governamental que, ao longo do século XX, sofreu um forte movimento de constitucionalização, sobretudo depois da redemocratização da região. Por isso, falar em “administração pública”, tema tradicionalmente do campo do direito administrativo, em um texto que sugere a aplicação da sociologia histórica no constitucionalismo latino-americano pode indicar chaves de interpretação inovadoras sobre a dinâmica constitucional instituída na região.

O foco aqui é o Brasil, mas o grande número de países latino-americanos que passaram por experiências autoritárias ao longo do século XX, período em que se consolidou o modelo de burocracia moderna, permite cogitar não se tratar de experiência isolada. Para esse fim, por exemplo, o uso do método comparativo integrador possibilitaria compreender os modos como os diferentes países enfrentaram a questão do manejo de mecanismos de manutenção ou não de regularidades históricas.

Ansaldi e Giordano (2012b_____. Ciudadanas incapaces: la construcción de los derechos civiles de las mujeres en Argentina, Brasil, Chile y Uruguay en el siglo XX. Buenos Aires: Teseo, 2012.: p. 58-60), em trabalho no qual abordam os “presupuestos teórico-metodológicos para el análisis socio-histórico del proceso de formación de los estados latinoamericanos”, trabalham com o modelo interpretativo de Göran Therborn, que ajuda a delimitar o estudo das instituições da Administração Pública a partir da análise das funções do Estado e suas respectivas estruturas: governativa, administrativa, judicial e repressiva.

A estrutura “governativa” compreende o que poderíamos delimitar como a organização dos poderes (em especial a relação entre Legislativo e Executivo, ou seja, o sistema de governo - parlamentarista ou presidencialista) e a organização do Estado (sistema de repartição de competências ou forma do Estado - unitário ou federal). A estrutura “administrativa” é aquela constituída pela burocracia estatal e relacionada à anterior, mas não dependente inteiramente do governo. Ainda que suas linhas gerais possam ser traçadas na constituição - no Brasil isso é verdadeiro, mais ainda em relação a algumas estruturas que outras -, seu desenho é feito pelos poderes constituídos, em âmbito infraconstitucional. Em terceiro lugar, a estrutura “judicial” é responsável pela administração da justiça. Por fim, a estrutura “repressiva” se vincula ao exercício do monopólio da violência considerada legítima, que inclui a formação das forças armadas, das polícias e do sistema penitenciário.

Especificamente nesse artigo, interessa abordar a formação da estrutura administrativa,7 7 Cabe destacar que os estudos sobre as estruturas governativa, judicial e repressiva são bastantes desenvolvidos, especialmente nos campos da Sociologia e da Ciência Política, mas também no Direito. considerando a necessidade de aprofundar o conhecimento dos efeitos dos desenhos constitucional e institucional sobre os órgãos administrativos, já que, como foi mencionado na primeira parte deste texto, a ordem se organiza como Estado e suas instituições refletem as teses vencedoras. Especificamente em relação ao caso do Brasil, Gustavo Binenbojm (2014BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo: direitos fundamentais, democracia e constitucionalização. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2014.: 2-3) refere que, ao mesmo tempo em que se produz uma mudança paradigmática na normatividade a partir da constitucionalização do direito administrativo, com o advento da Carta Constitucional de 1988, a teoria de apoio a este campo seguiu permeada pelo que o autor identificou como três características principais: sua (1) inconsistência, seu (2) autoritarismo e sua (3) ineficiência. Uma hipótese é que tais características, aqui consideradas dentro de uma análise de longa duração, incidem diretamente na construção da estrutura administrativa brasileira e são indicativas de permanências da cultura jurídica originada ainda no período imperial e que atuam contemporaneamente como geradoras de bloqueios e processos de resistência ao atual texto constitucional.

A (1) inconsistência da doutrina está vinculada a uma contradição lógico-conceitual entre a versão da origem do direito administrativo como resultante da sujeição da burocracia à lei e ao advento da separação de poderes, ao mesmo tempo que seus institutos são o resultado da ação de um órgão administrativo - o Conselho de Estado francês - e não de uma decisão do Poder Legislativo. O (2) autoritarismo se refere à raiz monárquica responsável pela consolidação de uma “lógica da autoridade”, e não de uma “lógica cidadã”, ainda que o direito administrativo também esteja vinculado ao surgimento do Estado liberal de direito. Finalmente, a terceira característica - a (3) ineficiência - decorre do baixo grau de racionalidade do regime jurídico-administrativo.

O Brasil constitui “un caso descollante de temprana constitución de un aparato administrativo poscolonial, como consecuencia de la continuidad entre la situación colonial y la proclamación del Imperio independiente” (ANSALDI; GIORDANO, 2012b_____. Ciudadanas incapaces: la construcción de los derechos civiles de las mujeres en Argentina, Brasil, Chile y Uruguay en el siglo XX. Buenos Aires: Teseo, 2012.: 59). O modelo implantado a partir da tradição francesa se institucionalizou e se legitimou em consonância com uma tradição que vê a relação entre administração e administrado como essencialmente desigual, conferindo a lei à primeira uma posição de supremacia em relação aos direitos individuais dos últimos (BINENBOJM, 2014BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo: direitos fundamentais, democracia e constitucionalização. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2014.: 16-17).

Ainda que para uma análise de longa duração, o estudo da estrutura administrativa do Império possa trazer importantes chaves interpretativas, para a problematização aqui proposta importam as transformações ocorridas a partir da década de 1930, período em que a doutrina administrativista identifica a consolidação do modelo burocrático de administração no país. Para tanto, dois conjuntos de eventos sã importantes: (1) as mudanças de regime, demarcadas pela edição de novas constituições no período republicano, e (2) as grandes reformas administrativas ocorridas no Brasil.

Em relação às (1) mudanças de regime, se adota uma perspectiva minimalista de democracia, a partir da observação de três regras: (a) a possibilidade de os eleitores escolherem livremente o chefe do Poder Executivo, (b) a possibilidade de os eleitores escolherem livremente os membros do Poder Legislativo e (c) a existência de mais de um partido político. Uma quarta variável (4) é o fato de o regime, além de atender positivamente aos três primeiros critérios, ter passado por uma mudança de governo, com a eleição de um partido de oposição (ALVAREZ et al., 1996ALVAREZ, Mike; CHEIBUB, José Antonio; LIMONGI, Fernando; PRZEWORSKI, Adam. Classifying political regimes, Studies in comparative international development, 31(2), p. 3-36, 1996.). A classificação minimalista parece adequada para o objetivo de identificação dos períodos de democracia e não-democracia no Brasil.8 8 Não se ignora a existência de outras concepções mais substantivas de democracia, que poderão ser relevantes em outros momentos da pesquisa. Nesse sentido, os períodos 1930-1945 e 1964-1988 são considerados não democráticos, ao passo que 1946-1964 e após 1988, democráticos.9 9 Estas mudanças, desde a Proclamação da República, em período inferior a cem anos, produziram “sete” as cartas constitucionais (promulgadas ou outorgadas): Constituição de 1891 (que consolidou a mudança na forma de governo, de monarquia para república), Constituição de 1934 (promulgada durante o Governo Provisório de Getúlio Vargas), Constituição de 1937 (que instituiu o Estado Novo), Constituição de 1946 (que marcou a redemocratização do país), Constituição de 1967 (pós-golpe de 1964, no contexto da Ditadura Militar), Constituição de 1969 (que aprofundou o caráter ditatorial do regime) e, finalmente, a Constituição de 1988 (a “Constituição Cidadã”).

Inserida como um importante marcador de mudança de regime na história brasileira, a Constituição de 1988 é um exemplo de marco legal que traz consigo uma promessa de maior estabilização dos institutos do direito administrativo, já que é a primeira em nossa história a conter um capítulo dedicado exclusivamente à administração pública. Muito embora o relativamente elevado número de emendas aprovadas nos últimos trinta anos, é evidente que os requisitos formais previstos no art. 60 dificultam a modificação do texto constitucional.

Ocorre que, contraintuitivamente, a constitucionalização do direito administrativo não assegurou uma mudança cultural a ponto de representar uma ruptura na teoria do direito administrativo, como destacou Binenbojm (2014BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo: direitos fundamentais, democracia e constitucionalização. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2014.), não convertendo necessariamente o administrado em cidadão. A compreensão desse processo passa por uma característica na história latino-americana que remonta a uma dinâmica estabelecida nos processos de constitucionalização.

O conceito de constituição provém do ideário político. Desde o célebre art. 16 da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, as constituições têm sido definidas a partir de dois elementos principais: a organização política do Estado, de um lado; e o reconhecimento de um conjunto de direitos fundamentais, de outro. Na experiência latino-americana, enquanto a parte orgânica das constituições (relativa à organização do Estado) tem apresentado nítido caráter conservador, a parte dogmática (relativa aos direitos), têm tido maior influência liberal (GARGARELLA, 2014GARGARELLA, Roberto. Sala de máquinas de la Constitución: dos siglos del constitucionalismo en América Latina (1810-2010). Buenos Aires: Katz, 2014.).

As normas relativas à organização das instituições políticas funcionam relativamente bem para a manutenção do status quo, ao passo que as normas definidoras de direitos fundamentais foram sempre postergadas para um futuro indeterminado, distante e nunca alcançado. Com efeito, a concretização destas costuma ser bloqueada ou distorcida, cumprindo muito mais uma função “simbólico-ideológica” (NEVES, 2018NEVES, Marcelo. Constituição e direito na modernidade periférica: uma abordagem teórica e uma interpretação do caso brasileiro. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2018.: 196). Ainda que se tenha um rol extenso de direitos fundamentais, situando indiscutivelmente nossa constituição como a de um Estado social de direito, a organização do Estado segue conservadora e resistente a muitos dos avanços constitucionais.10 10 “Se observadores se limitassem a ler o documento constitucional, poderiam sugerir a ilusória noção de um Estado democrático e social de direito ou, pelo menos, de “boas intenções” dos detentores do poder. A observação da respectiva realidade constitucional decepcioná-los-ia profundamente: não há democracia como circulação de poder entre política, administração e o público, muito menos como integração de uma esfera pública pluralista no sistema constitucional. [...] Não há até o momento uma perspectiva segura para a realização do Estado de direito democrático sugerido no documento constitucional” (NEVES, 2018: 208).

O segundo conjunto de processos a serem observados são (2) as três grandes reformas administrativas brasileiras realizadas a partir da década de 1930. A doutrina especializada costuma representar cada uma dessas reformas a partir dos seguintes marcos normativos: o Decreto-lei n.º 579, de 30 de julho de 1938 (reforma burocrática11 11 O modelo burocrático de administração remete ao tipo-ideal da autoridade racional-legal, cuja legitimidade é oriunda da ordem jurídica (WEBER, 1999). Dentre seus atributos, podemos destacar o funcionamento conforme o domínio da lei (legalidade), o caráter formal das comunicações (impessoalidade), atuação conforme rotinas e procedimento (formalismo), a previsibilidade do funcionamento (das instituições), a existência de um corpo de servidores profissionais (selecionados por meios de concurso público e organizados em carreira), a divisão do trabalho (especialização) e a hierarquia da autoridade. São hoje corolários desse modelo de administração os princípios constitucionais da legalidade, da impessoalidade, da publicidade e da moralidade, expressamente previstos no art. 37 da Constituição Federal. , cujo símbolo é a criação do Departamento Administrativo do Serviço Público - Dasp)12 12 Ainda que focada na figura de Getúlio Vargas, a trilogia de Lira Neto (2012; 2013; 2014), em especial o primeiro volume — que abrange o período desde a sua infância até a ascensão à presidência, em 1930 — bem retrata a fragilidade das instituições administrativas brasileiras na Primeira República, bem como o quadro político e social marcado pelas relações patrimonialistas e coronelistas. Getúlio Vargas buscou, a partir de um conjunto de medidas, como a instituição da regra da seleção de pessoal por meio de concurso público e a estruturação dos cargos em carreiras, profissionalizar a administração pública. , o Decreto-lei n.º 200, de 25 de fevereiro de 1967 (que objetivava descentralizar a atuação da Administração Pública, com a expansão da Administração Pública indireta)13 13 Cabe ressaltar que o Decreto-Lei n.º 200/1967 ainda hoje estabelece alguns parâmetros gerais de organização da administração pública no Brasil. e a Emenda Constitucional n.º 19, de 04 de junho de 1998 (reforma gerencial, com ênfase no princípio da eficiência)14 14 A partir da década de 1980 surge, em países como a Inglaterra (sob o governo de Margareth Thatcher) e os Estados Unidos da América (sob a presidência de Ronald Reagan), um movimento no sentido de transferir para o setor privado atividades consideradas não essencialmente estatais. O “movimento recebe nomes diversos” como “reforma do Estado, redução do setor público, desestatização, desregulamentação, privatização” (MEDAUAR, 2013: 108). São várias as fórmulas aplicadas, dentre as quais Odete Medauar (2013: 108) ressalta a “quebra de monopólios estatais, o aumento do número de concessões e permissões de serviço público e a venda de estatais ao setor privado”. (NOHARA, 2012NOHARA, Irene Patrícia. Reforma administrativa e burocracia: impacto da eficiência na configuração do Direito Administrativo brasileiro. São Paulo: Atlas, 2012.).

Como é possível perceber, as duas primeiras reformas foram realizadas durante períodos autoritários (Estado Novo e ditadura militar) e a última, foi levada a cabo durante a Nova República - demarcada pela atual Constituição - e teve como resultado mais evidente (embora se possa debater sobre a extensão de seus objetivos) a fragilização do papel do Estado no que tange à realização de justiça social - contrapondo, em alguma medida, o pacto social concebido pelo constituinte na Carta Maior.

Como já visto na análise anterior sobre a relação entre processos transicionais e avanços democráticos, uma inferência dedutiva e lógica para o tema seria a de que esse protagonismo ditatorial na regulação da produção da normativa administrativa legou uma boa dose de autoritarismo à matéria. Afinal, como a própria Giordano (2011GIORDANO, Verónica. Alegato a favor de una Sociología Histórica Comparada para América Latina, Trabajo y Sociedad: Sociología del trabajo - Estudios culturales - Narrativas sociológicas y literarias, Santiago del Estero, v. XV, n. 17, p. 41-48, 2011.: 46) afirma o padrão latino-americano é “la institucionalización (y bien puede decirse, la política) fue burocrático-autoritaria, esto es, no democrática”.

Contudo, há algo que pode causar perplexidade nessa análise: a observação de que os períodos de exceção na história republicana brasileira foram especialmente férteis no que tange à criação e consolidação de muitos institutos do direito administrativo e instituições da administração pública com um caráter mais “progressista”.15 15 Nesse sentido, pode-se rapidamente elencar o Decreto-lei n.º 25, de 30 de novembro de 1937 (que organiza a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional), o Decreto-lei n.º 3.365, de 21 de junho de 1941 (Lei Geral de Desapropriações), a Lei n.º 4.717, de 29 de junho de 1965 (que regula a ação popular, sendo norma base para a identificação dos elementos do ato administrativo) e a Lei n.º 7.347, de 24 de julho de 1985 (Lei da Ação Civil Pública). Com exceção da última norma — promulgada pelo já Presidente José Sarney, embora ainda sob a égide da constituição autoritária —, todas as demais foram publicadas durante períodos não democráticos. É de se questionar em que medida o autoritarismo não esteja impregnado, muito embora, por outro lado, é duvidoso que, pós-Constituição de 1988, a proteção ao patrimônio histórico, por exemplo, mereceria semelhante zelo do legislador do que o concedeu Getúlio Vargas.

O fato de que essas normas tenham sido elaboradas em períodos autoritários não implica em sua automática rejeição. Ao contrário, a partir de uma perspectiva valorativa, é curioso observar que relevantes normas elaboradas em períodos não democráticos sejam tão ou mais “progressistas” do que, em certos casos, se observa em períodos de democracia. Estes têm se notabilizado mais pela flexibilização de direitos, como demonstram as privatizações e reformas como as realizadas na previdência. Estabelecer reflexões sobre constatações dessa natureza torna-se imprescindível para compreender as dinâmicas que historicamente se estabeleceram entre administração e administrado e, também, em relação aos próprios avanços e retrocessos do processo de constitucionalização do direito administrativo brasileiro.

As análises de rechaço ou valorização destas legislações, desde a perspectiva da sociologia histórica, não podem deixar de investigar todas as propostas vencidas em cada um dos períodos de formulações legislativas para avaliar com profundidade suas vinculações com o projeto de administração pública dominante como estrutura da ordem do Estado brasileiro. É dizer, tanto o rechaço imediato como a consideração restrita sobre as legislações aprovadas não contribuem para explicar os motivos pelos quais essas legislações foram aprovadas nesses períodos. O esclarecimento das disputas políticas em cada um dos casos de mudança normativa é essencial para indicar ou não rupturas e continuidades ou até mesmo originalidades do processo.

Assim, o modelo de administração burocrática nasce no Brasil em um momento em que a democracia estava em suspenso. Sua consolidação se dá novamente durante uma ditadura. E, se a reforma da década de 1990 ocorreu durante a vigência de uma democracia, o modelo da administração pública é herdeiro da estrutura montada durante a ditadura, da qual tem dificuldades de se desvincular. De todo modo, seria de se esperar que a democratização do regime contaminasse o modo de autuação da administração pública provocando alterações significativas nessa seara. Ao contrário disso, a lógica que permeou a dinâmica de avanços é que a democracia não é necessária e pode até “atrapalhar”, como demonstra a elucidativa manifestação do então Presidente-Ditador Getúlio Vargas:

O período ditatorial tem sido útil, permitindo a realização de certas medidas salvadoras, de difícil ou tardia execução dentro da órbita legal. A maior parte das reformas iniciadas e concluídas não poderia ser feita em um regime em que predominasse o interesse das conveniências políticas e das injunções partidárias (NETO, 2013_____. Getúlio: do Governo Provisório à ditadura do Estado Novo (1930-1945). São Paulo: Companhia das Letras, 2013.: 5).

Corroborando com a constatação acima, o estudo presente na tese de Doutorado de Verónica Giordano (2012_____. Ciudadanas incapaces: la construcción de los derechos civiles de las mujeres en Argentina, Brasil, Chile y Uruguay en el siglo XX. Buenos Aires: Teseo, 2012.) apresenta um conjunto de dados relativos ao reconhecimento da capacidade civil plena das mulheres na América Latina. Em particular, a autora chama a atenção sobre o que ocorreu em países como Argentina, Brasil, Chile e Uruguai: a promulgação de direitos que objetivaram a autonomia e a emancipação das mulheres se deu, em grande medida, durante períodos politicamente autoritários (em suas palavras, durante “dictaduras institucionales”).

Para Giordano, o paradoxo acima referido pode ser explicado a partir da constatação de que as ditaduras latino-americanas, para se legitimarem, necessitaram criar instituições. Isso se devia à tentativa de perpetuação desses regimes no poder, bem como em decorrência das mudanças econômicas, políticas e ideológicas pretendidas. Salienta que a ampliação de direitos civis durante os regimes autoritários não constitui qualquer singularidade histórica, ao menos não no continente, “donde la dictadura es una forma de dominación que atraviesa todo el proceso de construcción de un orden democrático” (GIORDANO, 2011GIORDANO, Verónica. Alegato a favor de una Sociología Histórica Comparada para América Latina, Trabajo y Sociedad: Sociología del trabajo - Estudios culturales - Narrativas sociológicas y literarias, Santiago del Estero, v. XV, n. 17, p. 41-48, 2011.: 46). Com efeito, a construção da ordem democrática na América Latina, e no Brasil em particular, é permeada por períodos autoritários, cujos efeitos não foram totalmente superados.

Considerando esses dados de regularidades históricas a partir da captação de indícios fornecidos pela sociologia histórica, o estudo da formação e desenvolvimento das instituições administrativas que regem a organização e o funcionamento da administração pública e regulam as relações entre a Administração e os administrados, também constitui campo privilegiado para explorar as conexões entre o autoritarismo e a construção da ordem democrática.

4. Considerações finais

A aplicação das categorias teóricas da sociologia histórica ao constitucionalismo latino-americano requer o impulsionamento de uma combinação de fronteiras temáticas. A vantagem da utilização desse método em campos diversos de investigação é a abertura que este proporciona por meio do hibridismo de disciplinas. Como vimos a partir de autores como Tilly, Adams, Clemens, Orloff, Ansaldi e Giordano, o tipo de pesquisa não precisa ser definindo a priori, mas durante o processo de pesquisa, a partir dos casos selecionados, podendo se fazer uso de mais de um método em uma mesma pesquisa. A essência do método indica que o caminho a ser percorrido deve ser definido antes por suas perguntas de pesquisa do que por metodologias e epistemologias preconcebidas ou que representem um engessamento às possibilidades de análise. Isso confere certa liberdade no desenho das pesquisas, mas implica, por outro lado, em um redobrado cuidado na justificação das escolhas metodológicas realizadas.

No presente artigo buscamos apresentar algumas das possibilidades de utilização da sociologia histórica no constitucionalismo latino-americano para apontar, a partir de exemplos, caminhos de pesquisas ainda em andamento e possibilidades a serem trilhadas. As análises foram apresentadas de modo a demonstrar que a adoção de estratégias metodológicas como a comparação integrada entre países latino-americanos pode, por exemplo, recolocar pressuposições fáticas e teóricas de uma nova maneira, ensejando uma abertura para abordagens diferenciadas e inovadoras.

Como vimos, uma estratégia metodológica da sociologia histórica é a comparação, situada no marco das grandes transformações dos Estados latino-americanos, e que tem o condão de colocar à prova situações que, a priori aparentam rupturas quando tratadas de modo isolado, mas que podem estar identificadas com algumas regularidades próprias da formação dos Estados na região. A comparação entre as transições políticas feitas na segunda metade do século XX é um bom exemplo sobre essa situação.

Para o caso brasileiro, a tímida transição política controlada pelo regime militar, quando colocada ao lado do processo transicional argentino, nos remete facilmente a buscar nesse fato histórico a justificativa de nossas mazelas autoritárias. Com efeito, o nosso processo transicional foi determinante para a manutenção de uma série de regularidades históricas óbvias. Contudo, para o caso argentino, uma transição com amplo enfrentamento das violações cometidas pelo regime ditatorial não foi o suficiente para a superação de algumas práticas consolidadas antes da queda do regime. Quando incluímos nessa análise o comportamento das cortes podemos verificar que há muitas permanências nas duas transições e, nesse sentido, a cultura autoritária pode se tornar um pressuposto genérico e pouco explorado. Se os poderes judiciários mantiveram muitas de suas regularidades em termos de práticas institucionais, como desvelar tais regularidades no cotidiano dessas cortes? Se, quando consideradas determinadas práticas e atuações institucionais específicas, os processos transicionais não explicam integralmente ou não indicam o alcance de uma ruptura de fato, o que sustenta de modo tão regular essa cultura autoritária?

Nessa mesma linha, se algumas temáticas progressistas da seara administrativa avançaram, em termos de produção normativa, em períodos autoritários mais do que em períodos de regularidade democrática, há algumas dinâmicas institucionais que precisam ser compreendidas dentro do cenário de complexidade do próprio processo de formação do Estado brasileiro, distanciando-se da pressuposição de que tais legislações são autoritárias pelo simples fato de terem sido produzidas em períodos autoritários. Também precisa ser mais bem investigada a inferência de que a existência de tais legislações indicam que os regimes democráticos podem ser menos favoráveis para a construção institucional de determinados projetos políticos. Qual o efeito institucional de ideias desse tipo? Se há, de fato, dificuldades em avançar nas garantias de direitos nos períodos democráticos, que dinâmicas institucionais sustentam essa situação?

O encerramento desse texto com considerações finais que formulam ainda mais problematizações demonstra o tamanho do desafio em assumir uma análise de disciplinas híbridas. Para o campo jurídico, em especial, a manutenção de categorias clássicas como, por exemplo, a diferença entre ser e dever ser não pode ser desconsiderada. As constituições permanecerão sendo pactos sociais indicativos de um lugar ao qual se pretende chegar. E, essa marca indelével da chegada de um novo texto constitucional talvez seja o maior desafio para a aplicação de um método como o da sociologia histórica, já que há uma tendência a conceber para cada nova ordem um novo começo. Se a utilização das categorias da sociologia histórica servir ao menos para problematizar essa dicotomia entre passado e futuro, que parece ser o pressuposto naturalizado como ponto de partida dos estudos constitucionais, desvelando o contínuo processo em constante formação do Estado e da sociedade, já terá sido um avanço.

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  • 1
    O processo de independência no Brasil foi conduzido por um representante da própria família real portuguesa. Destaca Marcelo Neves (2018NEVES, Marcelo. Constituição e direito na modernidade periférica: uma abordagem teórica e uma interpretação do caso brasileiro. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2018.: 169) que o “constitucionalismo” não se afirmou por aqui, ao contrário de como se deu na Europa, em oposição ao “absolutismo”, mas “sobretudo [como] uma expressão do anticolonialismo”: “[...] ao contrário do que ocorreu na experiência norte-americana, o rompimento jurídico-político brasileiro com a dominação portuguesa (1822) de modo algum teve como consequência a formação de um Estado “soberano”, na qualidade de um sistema político que se reproduz autopoieticamente no interior de determinadas fronteiras territoriais”. Schwartz e Starling (2015SCHWARTZ, Lilia Moritz; STARLING, Heloísa Murgel. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.: 222) destacam que “nossa emancipação não deixou de ser particular e trivial. Se o movimento foi liberal, porque rompeu com a dominação colonial, mostrou-se conservador ao manter a monarquia, o sistema escravocrata e o domínio senhorial. Além do mais, se o processo de emancipação foi deflagrado pela vinda da corte, o que explica o formato final é o movimento interno de ajustamento às pressões de dentro e de fora, e principalmente um processo de substituição de metrópoles: com o atual reinado bem na região Centro-sul do recém-fundado país. Por outro lado, se uma nova unidade política foi implantada, prevaleceu a noção estreita de cidadania, que alijou do exercício da política uma vasta parte da população e ainda mais o extenso contingente de escravizados. Com isso, noções bastante frouxas de representatividade das instituições políticas se impuseram, mostrando como a independência criou um Estado mas não uma Nação”. Também quando da Proclamação da República, as contradições se manifestaram. O responsável pela proclamação e primeiro presidente, Marechal Deodoro da Fonseca, não se notabilizava pela defesa o ideal republicano e apoiou o golpe em D. Pedro II em alguma medida influenciado por aspectos corporativos das forças armadas.
  • 2
    Podem ser constatadas desde os primórdios da formação dessa disciplina em obras clássicas que têm início no famoso A essência da Constituição, de Ferdinand Lassalle (2001LASSALLE, Ferdinand. A essência da Constituição. 6. ed. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2001.), no século XIX, passando por uma utilização mais corriqueira no século XX, como em Constitución y derecho constitucional, de Rudolf Smend (1985SMEND, Rudolf. Constitución y derecho constitucional. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1985.), Teoría de la Constitución, de Karl Loewenstein (2018LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la Constitución. Barcelona: Ariel, 2018.) e A força normativa da Constituição, de Konrad Hesse (1991HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1991.), até chegar, no século XXI, a formulações mais sistematizadas e definidoras de uma sociologia constitucional, como as de Chris Thornhill em A sociology of Constitutions (2011THORNHILL, Chris. A sociology of Constitutions: constitutions and state legitimacy in historical-sociological perspective. Cambridge: Cambridge University, 2011.). No Brasil, os estudos de sociologia constitucional ainda são muito incipientes e tendem a ressaltar uma perspectiva empírica específica. Tal abordagem elege como foco principal as repercussões sociais advindas da aplicação do direito constitucional, ou seja, da atuação de instituições que manejam a Constituição. Os exemplos mais corriqueiros são aqueles vinculados às importantes análises sobre as decisões do Supremo Tribunal Federal (STF). Na América Latina, Gérman José Bidart Campos, que dedica um dos seis volumes de sua obra Tratado elemental de derecho constitucional argentino ao debate da sociología del derecho constitucional (1992), também trabalha com uma perspectiva de análise das consequências da aplicação dos textos constitucionais, sendo um dos grandes referenciais teóricos do tema.
  • 3
    Há uma diferença de nomenclatura que parece derivar mais do campo do conhecimento de origem do analista do que propriamente de diferenças existentes na prática. Nos referimos aos termos “sociologia histórica” e “neoinstitucionalismo” e, mais especificamente, ao “neoinstitucionalismo histórico”. Com efeito, as fontes oriundas da sociologia costumam adotar o primeiro nome, ao passo que àquelas originadas na ciência política, o segundo. Como exemplo do exposto, verifica-se que os autores representantes do paradigma identificados por cada campo são os mesmos, como são os casos de Charles Tilly e Theda Skocpol, para ficar apenas em duas referências. Ademais, segundo a classificação apresentada por Adams, Clemens e Orloff (2005ADAMS, Julia; CLEMENS, Elisabeth; ORLOFF, Ann Shola. Introduction: social theory, modernity and the three waves of historical sociology. In: ADAMS, Julia; CLEMENS, Elisabeth; ORLOFF, Ann Shola (eds.). Remaking modernity: politics and processes in historical sociology. London: Duke University, 2005.), o institucionalismo é uma das vertentes da terceira onda. Considerando que as mais importantes referências latino-americanas (especialmente Waldo Ansaldi e Veronica Giordano) empregam a expressão “sociologia histórica”, esta será privilegiada no presente trabalho, embora o segundo termo possa eventualmente constar em alguma citação direta. De todo modo, entendemos não haver prejuízo para uma adequada compreensão dos aspectos centrais da metodologia.
  • 4
    A classificação das autoras não é um consenso entre os estudiosos da área, como mostram Ansaldi e Giordano: “A propósito de las ‘olas’ de sociología histórica que proponen Adams, Clemens y Orloff, hay que decir que varios académicos han rechazado la existencia de una ‘tercera ola’, aduciendo que los trabajos que supuestamente se inscriben en ella no se diferencian sustantivamente de los producidos por la ‘segunda ola’, puesto que no se han acuñado conceptos propios y nuevos de historicidad, cambio histórico o causación” (ANSALDI; GIORDANO, 2012a_____. Ciudadanas incapaces: la construcción de los derechos civiles de las mujeres en Argentina, Brasil, Chile y Uruguay en el siglo XX. Buenos Aires: Teseo, 2012., t. I: 44). Contudo, reconhecemos a importância dessa sistematização. Mesmo sem o consenso em relação à terceira onda, a existência da divergência em relação a tal classificação unida à ausência de outra que a possa substituir, a coloca como item relevante no resgate histórico dos debates acerca do método.
  • 5
    “[...] a aplicação de um modelo geral a um ou mais exemplos históricos era o tipo de sociologia que mais possibilidades tinha de ser reconhecida como empiricamente rigorosa e teoricamente relevante nos círculos hegemônicos da disciplina” (tradução nossa).
  • 6
    Importante salientar que o uso de uma ou outra estratégia não é rígido, sendo comum a realização de combinações criativas (SKOCPOL, 1984SKOCPOL, Theda. Emerging agendas and recurrent strategies in historical sociology. In: SKOCPOL, Theda. Vision and method in historical sociology. Cambridge: Cambridge University, 1984.).
  • 7
    Cabe destacar que os estudos sobre as estruturas governativa, judicial e repressiva são bastantes desenvolvidos, especialmente nos campos da Sociologia e da Ciência Política, mas também no Direito.
  • 8
    Não se ignora a existência de outras concepções mais substantivas de democracia, que poderão ser relevantes em outros momentos da pesquisa.
  • 9
    Estas mudanças, desde a Proclamação da República, em período inferior a cem anos, produziram “sete” as cartas constitucionais (promulgadas ou outorgadas): Constituição de 1891 (que consolidou a mudança na forma de governo, de monarquia para república), Constituição de 1934 (promulgada durante o Governo Provisório de Getúlio Vargas), Constituição de 1937 (que instituiu o Estado Novo), Constituição de 1946 (que marcou a redemocratização do país), Constituição de 1967 (pós-golpe de 1964, no contexto da Ditadura Militar), Constituição de 1969 (que aprofundou o caráter ditatorial do regime) e, finalmente, a Constituição de 1988 (a “Constituição Cidadã”).
  • 10
    “Se observadores se limitassem a ler o documento constitucional, poderiam sugerir a ilusória noção de um Estado democrático e social de direito ou, pelo menos, de “boas intenções” dos detentores do poder. A observação da respectiva realidade constitucional decepcioná-los-ia profundamente: não há democracia como circulação de poder entre política, administração e o público, muito menos como integração de uma esfera pública pluralista no sistema constitucional. [...] Não há até o momento uma perspectiva segura para a realização do Estado de direito democrático sugerido no documento constitucional” (NEVES, 2018NEVES, Marcelo. Constituição e direito na modernidade periférica: uma abordagem teórica e uma interpretação do caso brasileiro. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2018.: 208).
  • 11
    O modelo burocrático de administração remete ao tipo-ideal da autoridade racional-legal, cuja legitimidade é oriunda da ordem jurídica (WEBER, 1999WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília: Universidade de Brasília, 1999.). Dentre seus atributos, podemos destacar o funcionamento conforme o domínio da lei (legalidade), o caráter formal das comunicações (impessoalidade), atuação conforme rotinas e procedimento (formalismo), a previsibilidade do funcionamento (das instituições), a existência de um corpo de servidores profissionais (selecionados por meios de concurso público e organizados em carreira), a divisão do trabalho (especialização) e a hierarquia da autoridade. São hoje corolários desse modelo de administração os princípios constitucionais da legalidade, da impessoalidade, da publicidade e da moralidade, expressamente previstos no art. 37 da Constituição Federal.
  • 12
    Ainda que focada na figura de Getúlio Vargas, a trilogia de Lira Neto (2012NETO, Lira. Getúlio: dos anos de formação à conquista do poder (1882-1930). São Paulo: Companhia das Letras, 2012.; 2013; 2014), em especial o primeiro volume — que abrange o período desde a sua infância até a ascensão à presidência, em 1930 — bem retrata a fragilidade das instituições administrativas brasileiras na Primeira República, bem como o quadro político e social marcado pelas relações patrimonialistas e coronelistas. Getúlio Vargas buscou, a partir de um conjunto de medidas, como a instituição da regra da seleção de pessoal por meio de concurso público e a estruturação dos cargos em carreiras, profissionalizar a administração pública.
  • 13
    Cabe ressaltar que o Decreto-Lei n.º 200/1967 ainda hoje estabelece alguns parâmetros gerais de organização da administração pública no Brasil.
  • 14
    A partir da década de 1980 surge, em países como a Inglaterra (sob o governo de Margareth Thatcher) e os Estados Unidos da América (sob a presidência de Ronald Reagan), um movimento no sentido de transferir para o setor privado atividades consideradas não essencialmente estatais. O “movimento recebe nomes diversos” como “reforma do Estado, redução do setor público, desestatização, desregulamentação, privatização” (MEDAUAR, 2013MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. 17. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.: 108). São várias as fórmulas aplicadas, dentre as quais Odete Medauar (2013MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. 17. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.: 108) ressalta a “quebra de monopólios estatais, o aumento do número de concessões e permissões de serviço público e a venda de estatais ao setor privado”.
  • 15
    Nesse sentido, pode-se rapidamente elencar o Decreto-lei n.º 25, de 30 de novembro de 1937 (que organiza a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional), o Decreto-lei n.º 3.365, de 21 de junho de 1941 (Lei Geral de Desapropriações), a Lei n.º 4.717, de 29 de junho de 1965 (que regula a ação popular, sendo norma base para a identificação dos elementos do ato administrativo) e a Lei n.º 7.347, de 24 de julho de 1985 (Lei da Ação Civil Pública). Com exceção da última norma — promulgada pelo já Presidente José Sarney, embora ainda sob a égide da constituição autoritária —, todas as demais foram publicadas durante períodos não democráticos. É de se questionar em que medida o autoritarismo não esteja impregnado, muito embora, por outro lado, é duvidoso que, pós-Constituição de 1988, a proteção ao patrimônio histórico, por exemplo, mereceria semelhante zelo do legislador do que o concedeu Getúlio Vargas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2023

Histórico

  • Recebido
    18 Set 2021
  • Aceito
    24 Jan 2022
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