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Estabelecido ou outsider? Um estudo sobre a presença da obra de Niklas Luhmann no direito brasileiro

Established or outsider? A study on the presence of Niklas Luhmann’s work in Brazilian law

Resumo

O propósito do presente estudo é reflexionar sobre a presença da obra de Niklas Luhmann no Direito brasileiro. A pesquisa teve caráter bibliográfico e documental. O trabalho investiga a presença de Luhmann nas teses e dissertações, comparando a sua presença com a de outros teóricos sociais e juristas consagrados, bem como uma breve revisão da presença de Luhmann em decisões judiciais e manuais jurídicos. Posteriormente é apresentada uma breve revisão das principais obras de Luhmann a fim de reativar a compreensão dos seus conceitos mais importantes. O trabalho apresenta, então, alguns dos principais agentes responsáveis pelo ciclo de consagração de Luhmann no Brasil e uma revisão crítica da apropriação da sua obra no país.

Palavras-chave:
Niklas Luhmann; Influência; Direito Brasileiro

Abstract

The purpose of the present study is to reflect on the presence of Niklas Luhmann's work in Brazilian Law. The research was bibliographic and documentary. The paper investigates Luhmann's presence in theses and dissertations, comparing his presence with that of other established social theorists and jurists, it also shows a brief review of Luhmann's presence in judicial decisions and legal manuals. Subsequently, a brief review of Luhmann's main works is presented in order to reactivate the understanding of his most important concepts. The paper presents, then, some of the main agents responsible for the cycle of consecration of Luhmann in Brazil and a critical review of the appropriation of his work in the country.

Keywords:
Niklas Luhmann; Influence; Brazilian Law

Considerações iniciais

O presente estudo pretende reflexionar algumas questões sobre a apropriação da obra de Niklas Luhmann no Direito brasileiro, onde parece exercer notável influência, ao mesmo tempo em que - segundo os luhmannianos1 1 O termo luhmanniano não deve ser visto como elogio ou crítica, será utilizado apenas para fazer referência àqueles que contribuem para a propagação da obra de Luhmann e, sobretudo, os que orientam seus próprios trabalhos acadêmicos a partir de Luhmann. - não vêm recebendo a atenção e tendo a repercussão que mereceria. Trata-se, portanto, de investigar, a partir de dados quantitativos e qualitativos, se Luhmann seria um teórico estabelecido ou outsider entre os juristas brasileiros.

O trabalho se divide em cinco seções, além das considerações iniciais e finais: A primeira seção complementa a presente introdução e apresenta as considerações metodológicas que orientaram a presente pesquisa; a seção seguinte traz alguns dados quantitativos sobre a presença de Luhmann em teses e dissertações defendidas no Brasil; a terceira seção, já de caráter qualitativo, tece algumas considerações sobre Luhmann e sua obra, buscando elementos que justificassem a sua aceitação ou rejeição no Brasil; a quarta seção, por sua vez, trata de um obstáculo específico para a compreensão da obra de Luhmann: o seu nível de abstração; a seção posterior, fechando a abordagem qualitativa, dialoga brevemente com o trabalho de três juristas que contribuem significativamente para a aceitação da teoria luhmanniana no Brasil, buscando apontar alguns problemas na apreensão do pensamento luhmanniano. Ao final, o trabalho tenta responder se Luhmann é um estabelecido ou outsider, e apontar algumas possibilidades para um melhor desenvolvimento da sua obra no Brasil.

1 Algumas questões metodológicas

O título faz alusão a clássicos das ciências sociais, é livre e diretamente inspirado no livro de Norbert Elias e John L. Scotson (2000), e alude, também, ao conhecido livro de Howard Becker (1963______. Outsiders: studies in the sociology of deviance. New York: The Free Press, 1963.).

The established and the outsiders, publicado originalmente em 1965, foi escrito a partir da pesquisa de Elias e Scotson em uma comunidade industrial perto de Leicester, na região central da Inglaterra, entre as décadas de 1950 e 1960. Os pesquisadores constataram que entre os bairros operários havia uma igualdade em termos étnicos, nível educacional, renda, profissão etc., mas um dos bairros era mais antigo, e os moradores (estabelecidos) estavam lá há pelo menos duas gerações; enquanto no outro bairro estavam os recém-chegados (outsiders). Os estabelecidos iniciaram, então, um processo de exclusão e estigmatização dos outsiders, desenvolvendo inclusive “uma ‘ideologia’, um sistema de atitudes e crenças que enfatizavam e justificavam sua própria superioridade e que rotulavam as pessoas do loteamento [os recém-chegados] como sendo de uma categoria inferior” (Elias; Scotson, 2000, p. 18, tradução livre).

O título faz alusão, também, ao conhecido livro de Howard Becker (1963______. Outsiders: studies in the sociology of deviance. New York: The Free Press, 1963.).2 2 “Todos os grupos sociais fazem regras e tentam, em alguns momentos e sob algumas circunstâncias, aplicá-las. As regras sociais definem as situações e os tipos de comportamento apropriados a elas, especificando algumas ações como ‘certas’ e proibindo outras como ‘erradas’. Quando uma regra é aplicada, a pessoa que supostamente a infringiu pode ser vista como um tipo especial de pessoa, alguém em quem não se pode confiar que viverá de acordo com as regras acordadas pelo grupo. Ela é vista como um outsider” (Becker, 1963, p. 1, tradução livre) Também produto de pesquisas empíricas, algumas realizadas mais ou menos na mesma época que a de Elias e Scotson. O livro de Becker visa, sobretudo, compreender os processos de fabricação de regras sociais e de detecção e rotulação daqueles que as violam. Uma abordagem diferente, mas em certo sentido pode ser complementar à de Elias e Scotson.

Quando se considera a existência daquilo que poderia ser chamado de um campo acadêmico jurídico, que está inserido no mundo social mais amplo, mas que é um “espaço relativamente autônomo, um microcosmo dotado de normas próprias” (Bourdieu, 1997Bourdieu, Pierre. Les usages sociaux de la science: Pour une sociologie clinique du champ scientifique. Paris: INRA editions, 1997., p. 14, tradução livre), é possível construir um paralelo interessante com o cenário descrito nas obras acima mencionadas. Teorias, autores e obras podem ter maior ou menor aceitação, podem inclusive ser rotulados e estigmatizados, seja em seu próprio contexto de origem, seja em outro.3 3 A título de exemplo, Danilo Viana da SIlva (2015) realizou um interessante estudo sobre o ciclo de consagração de Friedrich Müller no Brasil, observando inclusive que a obra do referido autor recebeu uma acolhida melhor no Brasil do que na Alemanha. Podem, portanto, ser estabelecidos ou outsiders.

Dito de outra forma, existem autores que se tornam referência obrigatória sobre um determinado assunto,4 4 Este é um fenômeno de longa data, Nelson Saldanha observa que “na Idade Média, juristas e filósofos políticos possuíam repertórios com os lugares que deviam ser mencionados” (2003, p. 21). enquanto outros não ganham a mesma aceitação. Existem autores que se tornam consagrados, enquanto outros permanecem desconhecidos, e há até mesmo os que chegam a ser proscritos, o que pode acontecer pelas mais variadas razões, como as qualidades da obra, as relações do autor etc. De toda forma, se o autor se tornou consagrado, se sua obra obteve boa aceitação, parece razoável dizer que ele está estabelecido.

Além da inspiração na obra de Elias e Scotson e na obra de Becker, a palavra outsider também parece apropriada porque é empregada para descrever algo ou alguém que seja estranho, forasteiro, de fora, que não pertença ao grupo. Então, seria possível chamar de outsider um autor ou obra que não obteve a adequada aceitação em um determinado campo cultural - no caso do presente estudo, o campo acadêmico jurídico -, o termo, além disso, me pareceu mais apropriado do que as alternativas que me ocorreram, tais como autor proscrito, obra marginal, obra desprezada (etc.). Outsider parece captar melhor o fenômeno que eu tento descrever.

A proposta consiste, portanto, em investigar se a teoria dos sistemas autopoiéticos de Luhmann tem boa acolhida no mainstream acadêmico e ele poderia ser considerado um estabelecido, ou se, pelo contrário, sua teoria estaria sendo, em alguma medida, estigmatizada, rotulada como desviante, o que tornaria Luhmann um teórico outsider.

A escolha da obra de Luhmann se deve basicamente a três razões: A primeira se deu a partir da realização de pesquisa etnográfica no campo das faculdades de Direito em uma capital brasileira, onde é possível perceber uma forte presença do pensamento luhmanniano.5 5 Os dados obtidos na ocasião não foram suficientes, entretanto, para construção do presente trabalho, o que acarretou a necessidade de estabelecer outros caminhos a serem percorridos na obtenção dos dados, o que aconteceu, sobretudo, a partir de uma pesquisa bibliográfica e documental. A segunda razão diz respeito à obra de Luhmann em si, porquanto ela foge a alguns padrões: em uma época supostamente marcada pelo fim das grandes narrativas,6 6 “Simplificando ao extremo, entende-se por pós-moderna a incredulidade em relação às metanarrativas” (Lyotard, 1979, p. 7, tradução livre). quando o fracasso das investidas teóricas anteriores e o advento de uma sociedade global hipercomplexa parecia ter inviabilizado as teorias gerais, e a maioria dos teóricos sociais se dedicava a reflexões mais modestas, Luhmann se propõe a construir uma grande narrativa teórica capaz de explicar toda a sociedade.7 7 Hans-Georg Moeller apresenta as semelhanças entre a superteoria luhmanniana e a metanarrativa: “Como a metanarrativa hegeliana, a superteoria de Luhmann afirma ser integralmente conceitualizada e recursiva ao seu fundamento — em outras palavras, um todo coerente em vez de um argumento linear. Como uma metanarrativa, uma superteoria também afirma ser capaz de lidar com praticamente tudo” (Moeller, 2006, p. 200, tradução livre). Interessante observar que Lyotard faz uma crítica que parece endereçada à Luhmann: “Para os teóricos alemães de hoje em dia, a Systemtheorie é tecnocrática, até mesmo cínica, para não dizer desesperada” (Lyotard, 1979, p. 25, tradução livre). A terceira razão é a queixa dos luhmannianos - que será detalhada na próxima seção - no sentido de que Luhmann não receberia o devido reconhecimento no Brasil, o que é intrigante, pois é possível encontrar menções elogiosas à sua obra em trabalhos acadêmicos, manuais, decisões judiciais etc., o que sugere uma boa aceitação, pelo menos no direito brasileiro. A partir dessa percepção, veio a necessidade de investigar objetivamente se, afinal, ele é um estabelecido ou outsider.

A pesquisa partiu de uma reflexão metódica sobre as técnicas que poderiam ser utilizadas, suas condições de utilização e os seus limites, a fim de atingir o objetivo delineado.8 8 "É preciso estar ciente de que qualquer objeto propriamente científico é cientificamente e metodicamente construído para saber como construir o objeto e conhecer o objeto que se está construindo, e é necessário saber tudo isso para questionar sobre as técnicas de construção das questões colocadas para o objeto." (Bourdieu; Chamboredon; Passeron, 1983, p. 71, tradução livre). Sua realização se deu em duas etapas sucessivas, a primeira predominantemente qualitativa, e a segunda predominantemente quantitativa.

A primeira etapa consistiu em reler as principais obras de Luhmann a fim de reativar a compreensão dos seus lineamentos gerais. Posteriormente, ainda com um viés qualitativo, foi feita a identificação dos principais agentes responsáveis pelo ciclo de consagração de Luhmann no Brasil, grosso modo, aqueles que contribuíram de forma pioneira para a repercussão da sua obra. A partir dessa identificação, e de uma leitura da produção desses autores,9 9 Esta foi uma etapa particularmente difícil. Os critérios utilizados foram o pioneirismo e continuidade na repercussão da obra luhmanniana, e a posição de domínio no ambiente acadêmico brasileiro, o que implicou a necessidade de fazer algumas escolhas difíceis, André Fernando dos Reis Trindade (2008), por exemplo, publicou o que parece ter sido o primeiro livro introdutório sobre a obra de Luhmann no Brasil mas, a despeito de ter conquistado boas colocações profissionais, não se tornou orientador de um programa de pós-graduação stricto sensu. João Maurício Adeodato, por seu turno, embora seja, talvez, o filósofo do direito mais consagrado da sua geração e tenha orientado mais de uma centena de teses e dissertações, publicou um artigo “com vários anos de antecedência o primeiro sobre Luhmann no Brasil” (Adeodato. 2002, p. 6), mas não parece ter se tornado, ele próprio, um luhmanniano, já que desenvolve seus trabalhos em uma perspectiva retórica e não sistêmica. foi possível perceber os entraves na apropriação da obra de Luhmann no Brasil, os quais serão discutidos oportunamente. O resultado encontrado foi aparentemente contraditório. Houve a confirmação de que muitos luhmannianos, ao mesmo tempo em que elogiam e difundem a obra de Luhmann, se queixam da sua rejeição no Brasil.

Foi feita, então, a etapa seguinte, com um viés quantitativo, investigando a presença de Luhmann nas teses e dissertações produzidas nos Programas de Pós-Graduação em Direito,10 10 Aqui a escolha tem duas razões, a primeira é que são nesses espaços que opera a intelligentsia jurídica brasileira, a segunda, de ordem mais prática, é que a Biblioteca Digital de Teses e Dissertações possibilita um acesso amplo ao que vem sendo produzido pelos referidos Programas. e comparando a sua presença com a de outros teóricos sociais e com juristas consagrados. Houve, também nesta etapa, uma breve abordagem qualitativa, na medida em que adentramos no conteúdo de algumas teses e dissertações, o que complementa a etapa qualitativa anterior, com base no diálogo com as obras dos juristas consagrados e/ou que ocupam uma posição de destaque no campo, e que contribuem para a divulgação de Luhmann no Brasil.11 11 Isso porque o fato de uma teoria ser abraçada em nível de pós-graduação é um indicativo, mas não necessariamente significa que ela de fato goza de aceitação entre os operadores do direito.

Ao final, em caráter complementar, houve a tentativa de identificar a presença de Luhmann em decisões judiciais e manuais empregados na graduação, ainda tentando avaliar se suas teorias são bem recebidas, se estão bem estabelecidas, ou se sofrem rejeição.

Por fim, algumas observações quanto à escrita. O trabalho ficou mais apresentável e coerente com a apresentação dos dados quantitativos em um primeiro momento. A escrita acabou fluindo melhor em primeira pessoa, o que para muitos é criticável, mas tornou o trabalho mais acessível ao leitor. As citações em língua estrangeira foram traduzidas e a versão original foi retirada das notas de rodapé a fim de que o texto se tornasse mais fluido e acessível.

2. LUHMANN É MESMO UM OUTSIDER? O QUE DIZEM OS DADOS QUANTITATIVOS

Como já foi dito, os apologistas de Luhmann, ao mesmo tempo em que elogiam sua obra e o apontam como um dos teóricos europeus mais importantes do séc. XX, se queixam sobre a sua recepção no Brasil, que estaria aquém do merecido. Marcelo Neves (2009______. Niklas Luhmann: “eu vejo o que tu não vês”. In: Jorge de Almeida; Wolfgang Bader. Penamento alemão no século XX: grandes protagonistas e recepção das obras no Brasil. Vol I. São Paulo: Cosac Naify, 2009, p. 257-273., p. 259), por exemplo, diz que “A teoria dos sistemas sociais do sociólogo alemão Niklas Luhmann não teve, até hoje, muita penetração nos estudos sociológicos brasileiros. No entanto, sua teoria é uma das construções teóricas mais complexas e abrangentes”.

Orlando Villas Bôas Filho e Guilherme Leite Gonçalves (2013Bôas Filho, Orlando Villas; Gonçalves, Guilherme Leite. Teorias dos sistemas sociais. São Paulo: Saraiva, 2013. Não paginado (eBook Kindle).) dizem que: “Se é verdade que o português figura entre as línguas em que já se traduziram algumas obras de Niklas Luhmann, não é menos certo que a difusão de seu pensamento, nos países desse idioma, foi aquém da importância que possui.”

Clarissa Neves (2017______. Prefácio. In: Léo Peixoto Rodrigues; Fabrício Monteiro Neves. A sociologia de Niklas Luhmann. Petrópolis: Vozes, 2017.) registra que “Ao contrário de outros países latino-americanos, como México e Chile, nos quais a Nova Teoria de Sistemas, proposta por Niklas Luhmann, vem sendo amplamente difundida e discutida, no Brasil, ainda é incipiente a publicação de obras de Luhmann ou sobre Luhmann”.

David Barbosa de Oliveira e Vinicius Madureira Maia, por sua vez, fazendo uma digressão “acerca da importância e, sobretudo, da rejeição” a Luhmann, elencam três oposições à teoria dos sistemas luhmanniana: 1) seria uma espécie de herdeira radical do positivismo, uma teoria conservadora de tendência tecnocrata; 2) colocaria o homem fora da sociedade; 3) seu artefato teórico seria demasiadamente abstrato. Para os autores esses seriam os três principais motivos que fariam com que Luhmann “permanece carente de pesquisadores que dialoguem com sua teoria” (Oliveira; Maia, 2018, p. 158).

Ao propor uma reflexão sobre a recepção da obra de Luhmann, o presente trabalho pretende testar a validade dessas queixas a partir das seguintes perguntas: Será que Luhmann é realmente pouco estudado no Brasil? Quais seriam os obstáculos para a recepção da sua obra no campo acadêmico brasileiro?

Quanto à primeira pergunta, em um primeiro momento a resposta parece ser negativa. Germano Schwartz e Douglas Ribeiro, por exemplo, dizem que a teoria dos sistemas sociais autopoiéticos é “muito debatida e criticada” (Schwartz; Ribeiro, 2017, p. 207, não paginado).12 12 Os autores registram, entretanto, que “se percebe haver, demasiadamente, uma rejeição sumária sobre a teoria de Luhmann”. Isso se refere à segunda pergunta e será discutido oportunamente. Falando sobre a boa recepção do seu livro sobre Luhmann, Leonel Severo Rocha, Germano Schwartz e Jean Clam registram que “a teoria de Luhmann possui um número consideravelmente amplo de interessados no Brasil” (Rocha; Schwartz; Clam, 2013).

Luhmann parece estar longe de ser um proscrito pela intelligentsia jurídica nacional. Ele é um dos autores mais citados nas pesquisas jurídicas no Brasil, sobretudo no stricto sensu (mestrado e doutorado). Um rápido levantamento na biblioteca digital de teses e dissertações do IBICT realizado em 04 de fevereiro de 2022 revela alguns dados interessantes, utilizando a pesquisa avançada e buscando por “Direito” e “Luhmann” entre os assuntos das teses e dissertações, foram obtidas 22 teses e dissertações, o que não parece muito, mas, a título de comparação, quando se busca por “Direito” e “Foucault”, por exemplo, o sistema retorna apenas 19 resultados.

A opção pela busca nos assuntos - e não em outros campos, como o título, ou resumo, ou tentar buscar no corpo do trabalho - se justifica na medida em que o assunto geralmente coincide com as palavras-chave da tese ou dissertação, e se o autor aparece nas palavras-chave, sua obra está, de fato, sendo discutida na tese ou dissertação. Não se trata de uma menção que pode estar descontextualizada.

De qualquer forma, diante dos resultados, seria possível especular que isso se deveria mais a uma rejeição dos juristas a Foucault do que propriamente uma aceitação da obra de Luhmann, então pareceu necessário colocar isso à prova, comparando os resultados com outros sociólogos e teóricos da sociedade tidos como relevantes, tais como Habermas, Bourdieu, Giddens, Parsons, Merton, e até mesmo os pais fundadores da sociologia: Durkheim, Marx e Weber. O resultado foi ainda mais surpreendente: entre os autores reconhecidos como sociólogos ou teóricos da sociedade, apenas Habermas retorna mais resultados que Luhmann, conforme se pode observar na tabela abaixo:

Termos pesquisados Quantidade de teses/dissertações Habermas + Direito 47 Luhmann + Direito 26 Foucault + Direito 22 Marx + Direito 18 Weber + Direito 15 Bourdieu + Direito 5 Norbert Elias + Direito 1 Giddens + Direito 1 Durkheim + Direito 1 Bauman + Direito Nenhuma Goffman + Direito Nenhuma Parsons + Direito Nenhuma Merton + Direito Nenhuma Fonte: pesquisa realizada em https://bdtd.ibict.br/vufind/Search/Advanced em 04/02/2022

O resultado se torna ainda mais interessante quando se compara os resultados de Luhmann - que é reconhecido pelos juristas como um sociólogo - com autores reconhecidos como juristas, tais como Kelsen, Dworkin e Alexy. Nesse caso, Dworkin aparece como o assunto mais frequente e Luhmann fica na segunda colocação, empatado com Kelsen e à frente de Alexy:

Termos pesquisados Quantidade de teses/dissertações Dworkin + Direito 51 Luhmann + Direito 26 Kelsen + Direito 26 Alexy + Direito 25 Fonte: pesquisa realizada em https://bdtd.ibict.br/vufind/Search/Advanced em 04/02/2022

A título de curiosidade, a busca pelo nome dos autores em todos os campos (título, autor, assunto, resumo) retorna proporções não muito diversas. Dworkin novamente aparece em primeiro lugar, sendo 340 teses e dissertações nas quais ele é referido. Luhmann continua em segundo, aparecendo em 294 teses e dissertações, abrindo vantagem sobre Kelsen, cujo nome retorna 243 trabalhos, e Alexy continua na última posição: 241 trabalhos, entre teses e dissertações.

Claro que o fato de um autor ser citado em um trabalho acadêmico não significa que suas ideias tenham aceitação. Ele pode estar sendo criticado, e ainda que fosse inusitado supor que todas essas teses e dissertações se destinassem a atacar Luhmann, já que o objetivo do presente trabalho é identificar se sua obra é estabelecida ou outsider no Direito brasileiro, ainda que não seja viável realizar a leitura minuciosa de tantos trabalhos, é interessante trazer alguma informação qualitativa. E neste ponto há um fenômeno que chama atenção, muitos dos referidos trabalhos propõem uma leitura de algum instituto ou aspecto do direito a partir de Luhmann.

Uma mirada rápida permite identificar uma série de trabalhos realizados ao longo da última década, em diferentes regiões do Brasil e em várias temáticas relacionadas ao Direito. Apenas a título de exemplo: Uma tese de doutorado faz uma análise de uma sentença que repercussão nacional a partir da teoria sociológica de Luhmann (Costa, 2021Costa, Marcos Gonçalves do Nascimento. Autonomia e diferenciação do processo judicial: análise da sentença de primeiro grau no processo judicial ação penal nº 5046512-94.2016.4.04.7000/PR a partir da teoria sociológica do direito de Niklas Luhmann. Tese (Doutorado em Direito). Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2021.); outra tese trata do princípio da Justiça Fiscal a partir da teoria sistêmica luhmanniana (Braga, 2020Braga, Tiago Musser dos Santos. Elogio crítico ao princípio da justiça fiscal: uma abordagem a partir dos pressupostos da Teoria Sistêmica de Niklas Luhmann. 2020. 241 f. Tese (Doutorado em Direito) - Programa de Pós-Graduação em Direito, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2020.); uma terceira propõe uma sociologia do direito penal militar, também à luz de Luhmann13 13 Esta é digna de nota porquanto trata-se de uma tese de doutorado em sociologia, o que sugere que a perspectiva luhmanniana sobre o Direito pode ter alguma aceitação até mesmo em outras áreas. (Diógenes, 2017Diógenes, José Lenho Silva. O subsistema penal militar e suas contingências: uma sociologia do crime militar à luz de Niklas Luhmann. 2017. 189f. - Tese (Doutorado em Sociologia) - Universidade Federal do Ceará, Centro de Humanidades, Programa de Pós-graduação em Sociologia, Fortaleza (CE), 2017.); uma quarta tese trata do direito à saúde - com ênfase na questão dos medicamentos - a partir da teoria de Luhmann (Kölling, 2018Kölling, Gabrielle Jacobi. Direito aos medicamentos seguros, eficazes e de qualidade: interações entre os sistemas do direito, da saúde e da economia a partir da teoria dos sistemas sociais de Niklas Luhmann. Tese (Doutorado em Direito) - Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Programa de Pós-Graduação em Direito, São Leopoldo, 2018.); uma dissertação aborda as audiências públicas à luz da teoria dos sistemas de Luhmann (Silva, 2019Silva, Danilma Melo da. As expectativas cognitivas na sociedade hipercomplexa: uma leitura das audiências públicas à luz da teoria dos sistemas de Niklas Luhmann. 2019. 115 f. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-graduação em Direito, Universidade Católica de Pernambuco, Recife, 2019.); uma segunda dissertação propõe uma análise dos Tribunais de Contas brasileiros a partir das balizas teóricas estabelecidas pela Teoria dos Sistemas Sociais de Luhmann (Barbosa, 2015Barbosa, Rafael Barros Silva de Pedreira. Os tribunais de contas e o combate à impunidade no Brasil: uma análise a partir da teoria dos sistemas de Niklas Luhmann. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-Graduação em Direito, Universidade Federal da Bahia, 2015.); e uma terceira, propõe uma análise do direito na teoria de Luhmann14 14 Esta foi defendida em um Programa de Pós-Graduação em Filosofia, o que reforça a percepção registrada na nota anterior. (Machado, 2012Machado, Mateus Renard. Do sujeito ao sistema: uma análise do direito na teoria dos sistemas de Niklas Luhmann. 2012. 72 f. Dissertação (Mestrado em Filosofia) - Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, 2012.).

Esses trabalhos sugerem que a teoria dos sistemas autopoiéticos de Luhmann possui uma boa aceitação nos estudos jurídicos mais avançados, e que em muitos locais pode ser um caminho relativamente seguro para o estudante desenvolver a sua pesquisa a partir deste referencial. Existe uma boa chance de sua pesquisa ser selecionada e, após concluída, ser devidamente aprovada.

Luhmann não se faz presente apenas na pós-graduação, sendo possível encontrá-lo também nos manuais dedicados à graduação - inclusive os mais introdutórios e simplificados - e em obras dedicadas aos operadores do direito. Não serão citados todos os manuais encontrados, até porque a lista seria interminável, mas é fácil verificar que o nome de Luhmann se faz presente hoje em todos os ramos do direito. Apenas a título de exemplo, ele é mencionado em obras de Introdução ao Estudo do Direito (Ferraz Junior, 2003Ferraz, Junior, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. São Paulo: Atlas, 2003.; Dimoulis, 2011Dimoulis, Dimitri. Manual de introdução ao estudo do direito. 4 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.), Direito Administrativo (Carvalho, 2016Carvalho, Matheus. Manual de direito administrativo. Salvador: Jus Podivm, 2016.), Direito Civil (Gagliano; Pamplona Filho, 2017Gagliano, Pablo Stolze; Pamplona Filho, Rodolfo. Novo curso de direito civil: Vol 4 - tomo II - contratos em espécie. 10 ed. São Paulo: Saraiva, 2017.), Direito Constitucional (Lenza, 2019Lenza, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 23. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019.), Direito Financeiro e Tributário (Torres, 2011Torres, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário. 18 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2011.), Direito Penal (Bitencourt, 2012Bitencourt, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral, 1. 17 ed. São Paulo: Saraiva, 2012.), Filosofia do Direito (Bittar; Almeida, 2021Bittar, Eduardo C. B.; Almeida, Guilherme Assis de. Curso de filosofia do direito. 15 ed. São Paulo: Atlas, 2021.), Processo Administrativo (Couto, 2014Couto, Reinaldo Curso prático de processo administrativo disciplinar e sindicância. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2014.), Processo Civil (Dinamarco, 2020Dinamarco, Pedro da Silva. Comentários ao Código de Processo Civil: vol. IV: artigos 188 a 235 - da forma, do tempo e do lugar dos atos processuais. São Paulo: Saraiva Educação, 2020.), Processo Penal (Lopes Junior; Gloeckner, 2014Lopes Junior, Aury Celso Lima; Gloeckner, Ricardo Jacobsen. Investigação preliminar no processo penal. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2014.), Sociologia Jurídica (Oliveira, 2015Oliveira, Luciano. Manual de sociologia jurídica. Petrópolis: Vozes, 2015.), Teoria Geral do Direito (Camillo, 2019Camillo, Carlos Manual da teoria geral do direito. São Paulo: Almedina, 2019.) etc.

Claro que seria possível questionar se tais obras, que contribuem para (re)produzir a cultura e os valores dos juristas, não estariam criticando Luhmann. Não é esse o caso. As obras recorrem a ele como argumento de autoridade, recorrem às suas contribuições teóricas e, não raro, o mencionam de forma elogiosa. Apenas a título de exemplo, um didático manual de pesquisa jurídica registra que: “O pensamento de Luhmann, com efeito, tem ocupado lugar de destaque entre as teorias sociológicas contemporâneas, apresentando-se como modelo de tratamento novo e extremamente original de antigas e novas temáticas da área” (Mezzaroba; Monteiro, 2009Mezzaroba, Orides; Monteiro, Cláudia Sevilha. Manual de metodologia da pesquisa no direito. São Paulo: Saraiva, 2009., p. 83-84). Uma obra sobre constitucionalismo social registra que: “A teoria dos Sistemas Sociais desenvolvida por Luhmann é um passo considerável na compreensão do pensamento sociológico contemporâneo” (Rocha; Costa, 2018aRocha, Leonel Severo; Costa, Bernardo Leandro Carvalho. Constitucionalismo social: constituição na globalização. Curitiba: Appris, 2018a.).

Como foi visto, a teoria de Luhmann parece ter uma boa aceitação no Direito brasileiro, seja no âmbito da pós-graduação stricto sensu, seja nas obras destinadas a um público mais amplo - estudantes, advogados etc. - e é notável que algumas pesquisas realizadas a partir do referencial luhmanniano também parecem transitar bem entre as duas áreas. Continuando o flerte com a abordagem qualitativa, é possível exemplificar com a dissertação de Ulisses Viana, que analisa a repercussão geral sob a ótica da teoria de Luhmann. Foi defendida em 2008 e posteriormente publicada como livro em uma grande editora jurídica (Viana, 2010).

Diante desses dados, ficam as perguntas: por que então os luhmannianos se queixam da rejeição à obra de Luhmann? Estariam equivocados? Não dá para responder sem uma pesquisa que analise as percepções dos próprios luhmannianos, mas é possível levantar uma hipótese, ainda que precária: Talvez estejam tão enredados no estudo da teoria dos sistemas autopoiéticos que tenham, de fato, a percepção subjetiva de que Luhmann não recebe a atenção que merece, uma percepção que é retroalimentada pela maior aceitação de Habermas, o seu grande adversário intelectual.15 15 Além dos resultados que já foram citados, a busca apenas por “Luhmann” na BDTD retorna 265 resultados — em todas as áreas — mas a busca por “Habermas” retorna 996 resultados, quase quatro vezes mais. Orlando Villas Bôas Filho e Guilherme Leite Gonçalves (2013) observam que apontam que no Brasil, assim como em diversos outros lugares, a recepção da obra de Luhmann “parece ter sido mediada pela crítica que lhe foi feita por Habermas, cuja obra é indiscutivelmente mais influente e disseminada”.

Luhmann e Habermas foram o que se pode chamar de adversários cúmplices, que em seu antagonismo, contribuíram para estabelecer o espaço da discussão legítima, a própria ordem do discurso, e, claro, para a notoriedade um do outro. É bastante conhecido o potencial das polêmicas, nos campos de produção cultural (científico, artístico, literário etc.) para a construção da notoriedade e consagração daqueles que nelas se envolvem.16 16 Isso pode sintetizado na reflexão de Haradja Torrens sobre a polêmica entre Dworkin e Hart, quando ela diz que “se torna difícil avaliar a repercussão da obra de Hart sem a crítica de Dworkin ou a importância da teoria de Ronald Dworkin sem o prévio desenvolvimento ‘neo-positivista’ de Herbert Hart” (Torrens, 2003, p. 2) — e, seria possível acrescentar, sem a repercussão que lhe foi dada pelos hartianos. Quando se considera a existência de um campo acadêmico jurídico, espaço no qual os juristas que se fizeram acadêmicos17 17 A frase não pretende ser crítica, apenas constata que algumas pessoas são juristas de formação e enveredam pela carreira acadêmica. Luhmann, aliás, é um grande exemplo disso. realizam suas pesquisas, publicam, debatem etc., tentando obter reconhecimento e repercussão para sua produção intelectual, fica claro como a polêmica contribui para fazer os autores e obras reconhecidos, ainda mais quando a partir dela surgem partidários de um ou de outro autor. Mesmo quando se considera o campo jurídico, onde o que está em disputa é o poder de dizer o direito, as polêmicas e divergências - em torno de institutos jurídicos e suas classificações, por exemplo - também contribuem para dar maior projeção a autores e obras. Em quaisquer casos, as polêmicas têm o potencial de colocar a obra e o autor sob os holofotes.

Essas polêmicas contribuem, ainda, para condicionar a forma como os partidários de um ou de outro autor - ou teoria - se posicionam, como percebem, compreendem e agem. Assim, ainda que se possa entender que um luhmanniano defenda que Luhmann deveria ser ainda mais estudado e conhecido, ainda mais diante da maior aceitação da obra de Habermas, a verdade é que, embora não seja o autor cuja obra é debatida ou fundamenta o maior número de trabalhos, Luhmann não parece ser um outsider. Como já foi dito e os números demonstram, trata-se de um autor que tem uma presença considerável no campo acadêmico jurídico brasileiro e, ainda que não seja o mais citado, já se estabeleceu, também, no campo jurídico propriamente dito, sendo utilizado para fundamentar decisões do Supremo Tribunal Federal,18 18 Vide, dentre outras, a ementa do HC 137888, o voto de Ricardo Lewandowski na ADI 3741 etc. do Superior Tribunal de Justiça19 19 Vide, dentre outros, o REsp 1556803, o HC 378643, o AREsp 1837815, o REsp 1505186 (etc.), este último, a propósito, tem uma passagem digna de nota: “Nesse ponto a sanção que se deve impor é a desconsideração da prova. Essa solução, sim, guarda sintonia com a doutrina de Kelsen e, também, com a Teoria dos Sistemas Sociais, de Luhmann.” Ainda que seja apenas um julgado, é notável que Luhmann, ao lado de Kelsen, tenha sido utilizado, em um Tribunal Superior, para justificar a escolha de uma sanção. Isso parece atestar o prestígio que sua teoria goza. e outros tribunais.20 20 No Tribunal Superior do Trabalho Luhmann aparece fundamentando decisões pelo menos desde 2008 (vide a RR - 95900-63.2006.5.10.0012). No Tribunal Superior Eleitoral aparece na Consulta nº 060025218 e no Recurso Especial Eleitoral (11549) Nº 0601317-90.2018.6.20.0000. Nos Tribunais de Justiça estaduais, Tribunais Regionais Federais e nos juízos de primeira instância também é citado. Apenas a título de exemplo: No TJCE é mencionado, dentre outros, no Processo: 0184402-21.2016.8.06.0001/50000 - Agravo; No TJPE é referenciado no Agravo Interno Cível 302464-80010381-02.2012.8.17.0001.

Concluída esta abordagem predominantemente quantitativa, podemos adentar à obra de Luhmann em si e apresentar alguns dados qualitativos quanto à sua recepção no Brasil.

3. OBSTÁCULOS AUTOPOIÉTICOS? O HOMEM, A OBRA E AS DIFICULDADES QUE ELA SUSCITA

Um primeiro sentimento possível ao se deparar com a obra de Luhmann, é: se a pessoa gosta de estudar, provavelmente não poderá deixar de se identificar com a história de Niklas Luhmann. O teórico que dedicou sua vida a estudar e a escrever, tentando elaborar uma grande teoria que pudesse explicar a sociedade contemporânea em toda a sua complexidade. Luhmann representaria, portanto, um ideal para muitos: uma vida dedicada aos estudos e escreveu uma obra monumental, ainda que a maioria não tenha tempo ou capital cultural para fazer igual. Além disso, é muito comum associar a imagem de Luhmann a de um senhor simpático em meio a livros e anotações. Não parece haver, à primeira vista, nenhuma razão para antipatizar com ele, a pessoa dele não contribuiria, portanto, para torná-lo um outsider. Mas se, por um lado, isso ajuda a compreender a afeição que ele poderia despertar, por outro, gera a indagação: como isso aconteceu? Como se criou o grande teórico da sociedade?

Quando jovem, Luhmann serviu brevemente à Luftwaffe - a força aérea nazista - e com o fim da guerra foi prisioneiro de guerra dos aliados, quando, segundo ele, foi espancado e roubaram seu relógio. Jurista de formação, Luhmann tornou-se servidor público nos anos 1950, quando deu início ao seu célebre Zettelkasten. Posteriormente deixou sua carreira no serviço público para se tornar professor (cp. Borch, 2011Borch, Christian. Niklas Luhmann. Abingdon: Routledge, 2011.; Cubeiro, 2013Cubeiro, Manuel Torres. Niklas Luhmann. Coruña: Baía Edicións, 2013. Não paginado (eBook Kindle). e Stamford, 2016Stamford, Artur. Entrevista com Prof. Artur Stamford. A Barriguda. 23 ago. 2016. Disponível em <http://www.abarriguda.org.br/site/entrevista-com-prof-artur-stamford/>. Acesso em 26 set. 2020.
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).

Após ganhar uma bolsa para estudar em Harvard, Luhmann passou um ano estudando com Talcott Parsons, e quando voltou à Alemanha ingressou na carreira acadêmica, obtendo o título de doutor e começando a lecionar. Luhmann se torna, então, professor da recém-criada Universität Bielefeld, quando aconteceu um fato interessante que ele próprio conta:

Quando fui admitido na Faculdade de Sociologia da Universidade de Bielefeld, fundada em 1969, me deparei com o pedido de nomear o projeto de pesquisa em que estava trabalhando. Meu projeto, desde então, tem sido: Teoria da Sociedade; Duração: 30 anos; Custo: nenhum. (Luhmann, 1997______. Die Gesellschaft der Gesellschaft. Frankfurt: Suhrkamp, 1997., p. 11, tradução livre).

Para Luhmann inexistia “uma descrição teórica, coerente, sobre o estado dos problemas da sociedade contemporânea” (1996, p. 27, tradução livre), e se propôs a suprir tal lacuna. Quando faleceu aos 70 anos em 1998, havia publicado mais de 14.000 páginas - apenas Die Gesellschaft der Gesellschaft tem mais de mil páginas - em um monumento teórico, muito bem elaborado e nem sempre facilmente compreendido.

Como conseguiu escrever tanto? Com certeza foi de fundamental importância ser “só professor”, largar a vida de servidor público e se dedicar apenas ao estudo e à docência e, principalmente, estar em uma universidade europeia, dando poucas aulas semanais, tendo tempo para estudar e ter uma vida digna, para si e para sua família - algo impensável para tantos professores brasileiros que precisam lecionar anualmente em dezenas de turmas, acumular tarefas administrativas etc. As condições materiais são, em suma, fundamentais.

Por outro lado, existem muitos professores europeus e nem todos escrevem tanto quanto Luhmann escreveu, e aqui entra outra curiosidade: o já mencionado Zettelkasten. Um imenso arquivo de fichas de leitura, com as referências, anotações e reflexões sobre tudo o que leu, formando assim uma imensa teia de referências que facilitava consultas posteriores. Luhmann chega a dizer que “seu maior trabalho é com o Zettelkasten, porque os livros se escrevem sozinhos” (Rodríguez, 2005Rodríguez, Darío. Invitación a la sociología de Niklas Luhmann. In: Niklas Luhmann. El derecho de la sociedad. Mexico: Herder, 2005, p. 23-56., p. 26).

Compreender realmente a obra de Luhmann não é algo fácil. Uma primeira dificuldade reside na forma como ele escreve, pois como observa Manuel Torres Cubeiro, a escrita de Luhmann é muito teórica, marcada pelas repetições e pela ironia (Cubeiro, 2013). Isso faz com que a leitura possa ser cansativa e nem sempre o leitor consegue captar tudo o que está sendo dito.

Uma segunda dificuldade reside nas próprias correntes teóricas das quais Luhmann é herdeiro e provavelmente o expoente máximo. A teoria dele não se filia apenas às correntes sociológicas ocidentais tradicionais. Ela tenta romper com essas correntes, e se insere em perspectivas epistemológicas bastante peculiares, cuja origem remonta à teoria geral dos sistemas de Ludwig von Bertalanffy e à cibernética de Norbert Wiener, além, claro, de outros teóricos das célebres Macy Conferences, ou por eles influenciados, como Humberto Maturana e Francisco Varela. Outro pilar fundamental da obra de Luhmann está na matemática filosófica de Spencer-Brown (leis da forma), que também influenciou outros pensadores sistêmicos (como Heinz von Foerster), os quais também foram importantes para Luhmann.21 21 Javier Torres Nafarrate (2015) observa que “a vastíssima obra de Luhmann não tem outro propósito que o de retomar, com instrumentos modernos, a mesmíssima exigência metodológica durkheimiana: ‘conformar a sociologia como ciência’.” Tenho para mim, entretanto, que a obra de Luhmann seria epistemologicamente possível sem Durkheim, mas não sem o pensamento sistêmico/cibernética e as leis da forma de Spencer-Brown.

A partir desses e de outros fundamentos, Luhmann constrói uma teoria da sociedade que pretende romper com toda a tradição sociológica - e com boa parte do pensamento ocidental - que seria, segundo ele, ontológica. Rompendo com esse ontologismo, a teoria de Luhmann pretende ser uma teoria da diferença e dar conta de explicar o mundo atual, em toda a sua complexidade.

Luhmann entende que “a sociedade consiste apenas em comunicações” (Luhmann, 1991______. Soziale Systeme: Grundriss einer allgemeinen Theorie. Frankfurt: Suhrkamp, 1991., p. 249), a comunicação é a “célula da sociedade” (Stamford, 2016Stamford, Artur. Entrevista com Prof. Artur Stamford. A Barriguda. 23 ago. 2016. Disponível em <http://www.abarriguda.org.br/site/entrevista-com-prof-artur-stamford/>. Acesso em 26 set. 2020.
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, p. 51) e a sociedade é um sistema social autopoiético (autopoietischen Sozialsystems, cp. Luhmann, 1997, p. 171). Mas o que isso significa? O que, afinal, é autopoiese? Esse é um conceito fundamental e que pode causar algum estranhamento em quem está iniciando os estudos sobre a teoria de Luhmann. O termo foi cunhado pelos biólogos chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela para descrever a autonomia e capacidade de autorreprodução de um organismo vivo, conforme explica Maturana na introdução do livro Autopoiesis and Cognition de 1980:

O segundo ensaio incluído neste livro foi escrito em 1972, como uma expansão da seção sobre ‘Sistemas Vivos’ na ‘Biologia da Cognição’. A escrita desse ensaio foi, de fato, desencadeada por uma conversa que Francisco Varela e eu tivemos na qual ele disse: “Se de fato a organização circular é suficiente para caracterizar os sistemas vivos como unidades, então deve ser possível colocá-la em termos mais formais.” Concordei, mas disse que a formalização só poderia vir após uma descrição linguística completa, e imediatamente começamos a trabalhar nessa descrição completa. No entanto, não estávamos satisfeitos com a expressão ‘organização circular’ e queríamos uma palavra que por si só transmitisse a característica central da organização dos vivos, que é a autonomia. Foi nessas circunstâncias que um dia, enquanto conversava com um amigo (José Bulnes) sobre um ensaio seu sobre Dom Quixote de la Mancha, em que analisava o dilema de Dom Quixote de seguir o caminho das armas (práxis, ação) ou o caminho das letras (poiesis, criação, produção), e sua eventual escolha do caminho da práxis adiando qualquer tentativa de poiesis, compreendi pela primeira vez o poder da palavra ‘poiesis’ e inventei a palavra de que precisávamos: autopoiese. Era uma palavra sem história, palavra que poderia significar diretamente o que se passa na dinâmica da autonomia própria dos sistemas vivos. De forma curiosa, mas não surpreendente, a invenção dessa palavra provou ser de grande valor. Simplificou enormemente a tarefa de falar sobre a organização dos seres vivos, sem cair na armadilha sempre aberta de não dizer nada de novo porque a linguagem não o permite. Não poderíamos deixar de estar imersos em uma tradição, mas com uma linguagem adequada poderíamos nos orientar de forma diferente e, talvez, a partir de uma nova perspectiva, gerar uma nova tradição (Maturana, 1980Maturana, Humberto. Introduction. In: Humberto Maturana; Francisco Varela. Autopoiesis and cognition: the realization of the living. Dordrecht: D. Reidel Publishing Company, 1980., p. xvii, tradução livre).

Luhmann se apropria do conceito de autopoiese para tentar resolver um dos maiores problemas da teoria dos sistemas: o limite entre sistema e entorno. Para entender isso, vale a pena traçar um paralelo com Bertalanffy, para quem o sistema pode ser compreendido como “conjuntos de elementos que estão em interação” (Bertalanffy, 1969, p. 38, tradução livre), compondo um todo integrado cujas propriedades não podem ser reduzidas às propriedades dos referidos elementos; o sistema é, portanto, a soma das partes e algo além disso, decorrente do todo, de forma que as propriedades sistêmicas são destruídas caso ele seja dissecado; embora as características do sistema possam se manter em caso de substituição de elementos (cp. Bertalanffy, 1969 e Vasconcellos, 2002Vasconcellos, Maria José Esteves de. Pensamento Sistêmico: O novo paradigma da ciência. Campinas: Papirus, 2002.).

Nesse nível de discussão, um novo momento é constituído pela contribuição de Humberto Maturana, que elaborou o conceito de autopoiese. Os sistemas autopoiéticos são sistemas que produzem a si próprios, não apenas as suas estruturas, mas também os elementos de que são compostos, precisamente na rede desses elementos. Os elementos - que no plano temporal são operações - com os quais os sistemas autopoiéticos são constituídos não têm uma existência independente: eles podem simplesmente ser encontrados; eles não estão simplesmente ligados. São antes produzidos no sistema e precisamente porque (seja qual for a base energética ou material) são usados como distinções. Elementos são informações, são distinções que fazem a diferença no sistema. E, nesse sentido, são unidades de uso para a produção de unidades de uso, para as quais não há correspondência no ambiente. (Luhmann; De Giorgi, 2008Luhmann, Niklas; De Giorgi, Raffaele. Teoria della società. 13 ed. Milano: Franco Angeli, 2008., p. 21, tradução livre).

Os sistemas autopoiéticos são, portanto, sistemas que se autorreproduzem, em suas estruturas e nos seus próprios elementos. Isso permite compreender a diferença entre sistema e entorno e permite, também, compreender outra questão fundamental da teoria da sociedade de Luhmann que costuma gerar uma certa rejeição: a de que a sociedade não é feita de pessoas, mas de comunicação. Nesse sentido, Jorge Galindo Monteagudo observa que “Luhmann é um autor fortemente estigmatizado. Sua decisão de colocar o ser humano no ambiente da sociedade lhe rendeu inimizades”. E adiante acrescenta que “a teoria de Luhmann foi rotulada por seus críticos como anti-humanista e conservadora” (Monteagudo, 2006, p. XXXIV, tradução livre). O próprio Luhmann entendia que era um obstáculo epistemológico aquilo que ele chamava de preconceito humanista: “a hipótese de que a sociedade é feita por seres humanos ou de relações entre eles” (Luhmann, 1998, p. 52, tradução livre).

Luhmann considera que existem, basicamente, quatro tipos de sistema: as máquinas, os organismos, os sistemas psíquicos e os sistemas sociais (Luhmann, 1991, p. 15-16). Os sistemas psíquicos, por exemplo, têm como autorreferência22 22 “O conceito de autorreferência indica o fato que existem sistemas que se referem a si mesmos mediante cada uma de suas operações […]. Trata-se de sistemas (orgânicos, psíquicos e sociais) que podem observar a realidade apenas por autocontato […] Os sistemas constituídos de modo autorreferencial devem ser capazes de distinguir entre o que é próprio do sistema (suas operações) e o que se atribui ao entorno” (Corsi; Esposito; Baraldi, 1996, p. 35, tradução livre). - e operação constitutiva - a consciência (Bewußtsein), enquanto seleção de pensamentos possíveis. De acordo com Luhmann, os sistemas psíquicos não se comunicam, uma consciência não pensa dentro de outra, ou, dito de outra forma, uma pessoa não tem acesso direto à consciência de outra pessoa nem consegue dar a ela pessoa acesso direto à sua consciência. Os sistemas sociais, por sua vez, não conseguem pensar. Os sistemas psíquicos estão, portanto, no entorno dos sistemas sociais.

Interessante observar que os sistemas psíquicos dependem dos organismos - sistemas vivos - para existir, mas, ao mesmo tempo, os organismos estão no entorno (fora) dos sistemas psíquicos. Os organismos não são feitos de pensamentos, logo não podem estar dentro do sistema psíquico, ou seja, uma pessoa pode até pensar sobre o seu coração, por exemplo, mas o órgão coração não é apenas um pensamento, não é apenas um produto da tua imaginação. Os sistemas sociais, por sua vez, dependem dos sistemas psíquicos que estão no seu entorno. Com isso fica mais fácil compreender como, na perspectiva de Luhmann, a sociedade não é feita por pessoas, mas por comunicação. As pessoas, segundo ele, não conseguem se comunicar, apenas a comunicação comunica:

As comunicações, quando reproduzidas autopoieticamente por meio de recursões, formam uma realidade emergente sui generis. Não são as pessoas que podem se comunicar, apenas a comunicação pode se comunicar. Assim como os sistemas de comunicação, os sistemas de consciência (e do outro lado cérebros, células, etc. ...) são sistemas operativamente fechados que não podem manter contato uns com os outros. Não há comunicação de consciência-para-consciência que não seja socialmente mediada, e não há comunicação entre o indivíduo e a sociedade. Qualquer compreensão suficientemente precisa da comunicação exclui tais possibilidades (assim como a outra possibilidade de que a sociedade possa pensar como um espírito coletivo). Apenas a consciência pode pensar (mas não pode refletir com pensamentos de outra consciência), e apenas a sociedade pode se comunicar. Em ambos os casos são operações de sistemas operacionalmente fechados e determinados pelas suas estruturas (Luhmann, 1997______. Die Gesellschaft der Gesellschaft. Frankfurt: Suhrkamp, 1997., p. 105, tradução livre).

A afirmação de Luhmann sobre as pessoas não poderem se comunicar e apenas a comunicação poder gerar comunicação - isso é autopoiético -, ao mesmo tempo em que confere coerência para a sua teoria, a torna um tanto impalatável para quem está condicionado a compreender a sociedade como sendo feita de pessoas. Os marxistas, por exemplo, dificilmente aceitariam tal compreensão da sociedade. O próprio Marx deixou claro que “Acima de tudo é preciso evitar fixar mais uma vez a ‘sociedade’ como abstração frente ao indivíduo. O indivíduo é o ser social” (Marx, 2004, p. 107). Horkheimer, em um dos escritos que inauguraram a Teoria Crítica, deixa claro que ela visa os seres humanos como produtores de todas as suas formas históricas de vida (cp. Horkheimer, 1975a). Ainda que seja possível defender o argumento de que a assim chamada Escola de Frankfurt teria se afastado do marxismo23 23 Nelson Saldanha, por exemplo, observou um “Jürgen Habermas, com constante influência até nossos dias e com uma trajetória um tanto sinuosa: de um marxismo ‘reformulado’ […] até aproximações ao pensamento liberal, inclusive diálogos com autores como Rawls e Dworkin” (Saldanha, 2005, p. 11), e na nota para a segunda edição de Ordem e Hermenêutica, falou em um “’Habermas a quem hoje tenho dificuldade de entender em seu recente clinamen em direção ao neoliberalismo” (Saldanha, 2003, sp). - o que não abordarei por fugir ao escopo do presente estudo -, como será visto oportunamente, tal Escola terá seu momento de embate/contraposição com Luhmann.

Ainda para contextualizar essa dificuldade, é possível recorrer a Elias e seu esforço para analisar a relação entre o indivíduo e a sociedade, investigando tanto o indivíduo quanto a sociedade como construções históricas e avaliando como os seres humanos individuais se unem e se relacionam uns com os outros (cp. Elias, 1994). É possível ilustrar, também, com outros autores, Parsons, que influenciou Luhmann e que também tentou criar uma grande teoria sistêmica para explicar a sociedade, entendia que o “sistema social” era “constituído pela interação direta ou indireta de seres humanos entre si” (Parsons, 1984, p. 49).

Esses posicionamentos, de autores tão diferentes, permitem compreender não apenas como as ciências humanas majoritariamente são pautadas pela ideia de que a sociedade é feita de pessoas, mas também como essas noções historicamente elaboradas - indivíduo e sociedade - condicionam a forma como as pessoas percebem, compreendem e agem no mundo. Acaba sendo difícil e contraintuitivo, portanto, pensar uma sociedade que não seja feita de pessoas.

Ainda que não seja possível resumir as milhares de páginas escritas por Luhmann no presente estudo, as linhas acima trazem algumas das ideias centrais em Luhmann e fornecem uma ideia do quão complexa a sua obra acaba sendo e de algumas dificuldades que ela suscita. Isso que acaba sendo uma decorrência das escolhas de Luhmann: ele se propôs a construir uma teoria das sociedades contemporâneas em toda a sua complexidade, e para isso ele precisou recorrer a fundamentos epistemológicos e teóricos que nem sempre são de fácil entendimento, e articulou conceitos em uma metateoria abstrata, a qual também pode ser difícil de ser compreendida e aplicada na prática da pesquisa. Isso inclusive pode gerar alguma dificuldade na apreensão de sua obra e contribuir para a imagem de outsider.

4. A ABSTRAÇÃO DIFICULTA A APREENSÃO DA OBRA DE LUHMANN?

Como foi visto, Luhmann hoje em dia pode ser considerado um autor estabelecido nos debates jurídicos brasileiros. É um dos autores que mais frequentemente é mencionado nos assuntos das teses e dissertações, é utilizado para fundamentar decisões judiciais etc. Também já foi dito que Luhmann construiu uma obra monumental, e é muito difícil não se identificar e admirar sua trajetória intelectual. Dito isso, chega o momento de apontar mais alguns problemas que podem ser percebidos na sua teoria e, sobretudo, nas apropriações que dela são feitas.

Um primeiro problema reside no próprio teoricismo do projeto luhmanniano: construir uma metanarrativa teórica sobre a sociedade, sem nenhum compromisso com a prática da pesquisa. Até onde sei, Luhmann jamais fez qualquer pesquisa empírica, e certamente não estava obrigado a fazê-lo. O seu projeto, acadêmico e de vida, foi construir uma teoria da sociedade, e ele foi muito bem-sucedido, mas isso também fez com que sua teoria não fosse exatamente a mais fácil de ser apropriada à prática da pesquisa. A teoria de Luhmann, aliás, não é a única teoria dos sistemas a enfrentar esse problema. Parsons teria sofrido desse mesmo mal, segundo relata Howard Becker:

Parsons leu e digeriu Durkheim, Weber, Pareto, Alfred Marshall, o economista, e escreveu um gigantesco livro teórico, publicado no final dos anos 30, que muito pouca gente leu. Acho que de certa forma ele prestou um grande desserviço, porque se concentrou nos elementos abstratos que havia no trabalho desses autores. Ele prestou um outro grande desserviço, na minha opinião, quando tomou possível para as pessoas terem a teoria como especialidade. Antes dele, acho que ninguém era teórico como especialidade. As pessoas trabalhavam e pensavam sobre os assuntos, pesquisavam e tinham idéias gerais. Isso são coisas conjuntas. Com Parsons a teoria passou a ser um campo específico.

Na realidade, nem a história das idéias nem a filosofia de Parsons foram relevantes para as pesquisas que as pessoas faziam. O que senti, quando chamei para trabalhar comigo pessoas que haviam sido alunos de Parsons, foi que depois de terem aprendido as idéias de Parsons eles ainda precisavam aprender algo mais para poderem se dedicar à pesquisa. As idéias que tinham eram tão abstratas tão gerais que não forneciam nenhuma pista para eles lidar com qualquer estudo de fenômenos sociais concretos. (Becker, 2003Becker, Howard S. Entrevista concedida a Gilberto Velho. In: Lúcia Lippi Oliveira; Marieta de Moraes Ferreira; Celso Castro (orgs.). Conversando com... Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003, p. 83-113., p. 96)

Na mesma entrevista, Becker fala sobre a colaboração entre Lazarsfeld e Merton, o primeiro desenvolvendo métodos do tipo survey, e o segundo fazendo a articulação teórica desse trabalho, conferindo-lhe respeitabilidade acadêmica. Becker observa, ainda, que Samuel Stouffer e Parsons tentaram trabalhar juntos, mas a excessiva abstração das ideias de Parsons inviabilizou a colaboração: “Stouffer também estava lá, era o pesquisador. Parsons e Stouffer nunca tiveram uma colaboração estreita como Lazarsfeld e Merton. Até que tentaram, mas as idéias de Parsons eram tão abstratas que não foi possível” (Becker, 2003, p. 98).

Esse é um mal que também acomete a teoria dos sistemas autopoiéticos de Luhmann, talvez até mais até do que acometia as formulações de Parsons, já que existem aspectos da obra de Luhmann que são ainda mais abstratos. Falando sobre a dupla contingência, por exemplo, Luhmann deixa claro que pretende formular “uma elaboração que deverá superar o nível de abstração tratado por Parsons” (Luhmann, 1998, p. 116, tradução livre).

O próprio Luhmann reconhece, aliás, que o elevado grau de abstração pode ser uma desvantagem da teoria dos sistemas: “Como a análise econômica do direito, a teoria dos sistemas também tem suas desvantagens. […] A desvantagem da teoria dos sistemas (se for uma desvantagem) reside na alta complexidade que lhe é intrínseca e na correspondente abstração dos seus conceitos” (Luhmann, 1995, p. 24, tradução livre).

Os luhmannianos também reconhecem o alto grau de abstração da obra de Luhmann. Jean Clam, na Conclusão ao livro escrito com Leonel Severo Rocha e Germano Schwartz, registra que Luhmann produziu “uma obra imensa, de uma elevada abstração e de uma abordagem particularmente difícil”. Conforme foi mencionado anteriormente, David Barbosa de Oliveira e Vinicius Madureira Maia entendem que “A terceira razão suficiente, aqui no sentido de Leibniz, para a presença esmaecida da Teoria dos Sistemas no cenário acadêmico é possivelmente o grau sobremodo abstrato do artefato teórico” (Oliveira; Maia, 2018, p. 167).

Qual o problema dessa abstração excessiva? Para a proposta de Luhmann, problema nenhum. A abstração era, para ele, necessária a fim de criar uma teoria suficientemente abrangente. Para quem queira empregar a teoria dos sistemas autopoiéticos em uma pesquisa, entretanto, a coisa tende a enfrentar dificuldades, pois ela claramente não foi feita para isso.

A dificuldade de aplicar os conceitos luhmannianos na prática da pesquisa, por um lado, ajudaria a compreender uma eventual rejeição à obra de Luhmann - que passaria a ser outsider - mas, por outro, gera um manancial rico e em certo sentido facilita a tarefa de quem quer desenvolver um trabalho teórico - vide os trabalhos que redescrevem institutos jurídicos na perspectiva luhmanniana. Luhmann seria, então, um estabelecido entre os teóricos - mas não apenas entre eles -, o que remete, aliás, às apropriações de Luhmann por juristas brasileiros, tema da próxima seção.

5. OUTROS PROBLEMAS NA APROPRIAÇÃO DA OBRA DE LUHMANN PELOS JURISTAS BRASILEIROS

O grau de abstração da teoria dos sistemas autopoiéticos parece guardar relação com alguns problemas específicos que podem ser observados na sua recepção e aplicação nos trabalhos acadêmicos no Brasil. São relativamente comuns trabalhos que: 1) Estão fundamentados na obra de Luhmann, mas o recurso à sua teoria parece deslocado ou até desnecessário ao trabalho em si; 2) Pouco fazem além de diagnosticar a insuficiência de outras abordagens teóricas para defender a teoria de Luhmann; 3) Articulam a obra de Luhmann com outras teorias e agendas de trabalho que não necessariamente são compatíveis. Todos esses problemas poderiam, em tese, contribuir para que Luhmann permanecesse um outsider no mainstream jurídico brasileiro, e aqui surge uma questão deveras delicada: seriam os luhmannianos responsáveis - ao menos em parte - por Luhmann supostamente não ter uma receptividade maior no direito brasileiro? É necessário adentrar aos problemas em si para tentar responder isso.

Alguns dos problemas acima mencionados aparecem inclusive em juristas que são profundos conhecedores e divulgadores da obra de Luhmann e que, além disso estão, eles próprios, muito bem estabelecidos, ocupando posições de domínio no campo jurídico acadêmico.24 24 Sobretudo por terem certo controle sobre os rumos e a própria reprodução do campo, orientando teses, dissertações etc.

Marcelo Neves (2009______. Niklas Luhmann: “eu vejo o que tu não vês”. In: Jorge de Almeida; Wolfgang Bader. Penamento alemão no século XX: grandes protagonistas e recepção das obras no Brasil. Vol I. São Paulo: Cosac Naify, 2009, p. 257-273.), um jurista altamente consagrado e reconhecido, pode ser um exemplo quanto ao primeiro problema. Basta lembrar como ele constrói a sua célebre tese sobre o transconstitucionalismo a partir de Luhmann (Neves, 2009), o que por um lado é compreensível, já que Luhmann foi seu orientador e sobre ele exerceu uma profunda influência. De toda forma, talvez fosse perfeitamente possível explicar o transconstitucionalismo sem uma digressão tão longa sobre acoplamentos estruturais e racionalidade transversal.25 25 Se bem que isso talvez seja, também, uma característica da escrita do próprio Neves, pois como demonstra Gonçalves (2016), Neves demonstra uma grande capacidade de articular teorias e conceitos, mas nem sempre fica claro em que isso contribui para o tema da obra em si. Talvez a necessidade de diálogo entre as cortes se tornasse inclusive mais acessível aos não-iniciados no pensamento sistêmico.

Quanto ao segundo problema, Leonel Severo Rocha, por exemplo, tem trabalhos que podem ser enquadrados nessa categoria (e.g. Rocha, 2013Rocha, Leonel Severo; Schwartz, Germano; Clam, Jean. Introdução à teoria do sistema autopoiético do direito. 2 ed. Porto Alegre: 2013. e Rocha; Costa, 2018b). São trabalhos que atestam a erudição do autor e nos quais subjaz o seu compromisso com a democracia, mas que, ao constatar que o kelsenismo é insuficiente para a compreensão do constitucionalismo em um mundo globalizado, parece apenas reproduzir o senso comum, mesmo porque, conforme lembra Nelson Saldanha (1998Saldanha, Nelson. Filosofia do Direito. Rio de Janeiro: Renovar, 1998.), a partir da década de 1960 o kelsenismo viu seu influxo decair em todo o mundo. Kelsen, aliás, faleceu antes da intensificação da globalização que ocorreu a partir de meados dos anos 1980.

Claro que é extremamente complicado acusar um trabalho de não ser científico o suficiente, e é preciso tomar cuidado para não fazer, de forma sub-reptícia, uma crítica arbitrária: Seu trabalho não é científico porque não está de acordo com o meu ideal de ciência. Não se trata disso. A questão é que o conhecimento científico, ainda que não seja exato, no sentido de ser uma reprodução absoluta do real,26 26 Um conhecimento exato da realidade, uma coincidência plena entre realidade e pensamento seria um verdadeiro “monstro epistemológico” (Bachelard, 2004, p. 46). é um conhecimento mais rigoroso que, mais das vezes, se constrói em oposição ao referido senso comum.

Um conhecimento que se pretenda científico é construído, portanto, de forma rigorosa, em uma ruptura com as limitações e equívocos do senso comum e até mesmo com as teorias anteriores que porventura se revelem inadequadas. O próprio Luhmann parece ter compreendido isso, pois tentou construir sua teoria corrigindo os erros da antiga tradição europeia (alteuropäischen Tradition) que, segundo ele, era incapaz de explicar satisfatoriamente a sociedade atual em sua complexidade (cp. Luhmann, 1997).

Além disso, é possível registrar que, nada obstante Leonel Severo Rocha seja livre para se filiar a outro ideal de ciência, ou até mesmo rejeitar a própria ciência, certamente seria desejável e benéfico para o Direito brasileiro que a produção intelectual de um jurista consagrado,27 27 Dizer que Leonel Severo Rocha é um teórico consagrado não é um elogio gratuito, mas uma constatação da sua posição no campo: ele é reconhecido como herdeiro intelectual de Warat, autor de centenas de trabalhos (entre livros, artigos, capítulos), professor de um dos melhores programas de pós-graduação do país, onde já orientou mais de uma centena de pesquisas stricto sensu (mestrado e doutorado), e conforme registrado na obra em sua homenagem, trata-se de “um dos maiores expoentes da teoria jurídica contemporânea em solo brasileiro” (Barreto; Duarte; Schwartz, 2013). reconhecido como um grande sociólogo do direito, estivesse comprometida com a construção de uma ciência rigorosa do direito.28 28 Para uma crítica do atual estágio da ciência do direito no Brasil é possível indicar, dentre outros, os trabalhos de: Oliveira, 2003; Nobre, 2005; Gonçalves, 2017; Teixeira e Gonçalves, 2015. Tal comprometimento seria condizente, aliás, com a própria trajetória dele, enquanto herdeiro intelectual de Warat e crítico do senso comum teórico dos juristas.29 29 Já em 1981, no relatório Fragmentos de um saber crítico sobre o direito, elaborado pelo próprio Leonel Severo Rocha, Luis Alberto Warat, Gisele Cittadino e Elza Pereira Cunha, é possível perceber que nas pesquisas desenvolvidas no âmbito da Associação Latino-Americana de Metodologia do Ensino do Direito (ALMED), já se percebe a preocupação em realizar uma ruptura com o senso comum teórico dos juristas, formulando problemáticas rigorosas sobre as condições de possibilidade e funcionamento do direito (Warat, et al., 1981).

Quanto ao terceiro problema, um bom exemplo pode ser encontrado em trabalho de Artur Stamford (2007______. Sociologia da decisão jurídica: pesquisa qualitativa sobre a semântica da comunidade jurídica. In: Artur Stamford (Org.). Sociologia do Direito: na prática da Teoria. Curitiba: Juruá, 2007, p. 303-346.), que pode ser considerado um herdeiro direto dos founding fathers da sociologia do direito no Brasil: estudou na Universidade Católica de Pernambuco, onde foi implementada a primeira disciplina de Sociologia Jurídica do Brasil em nível de Graduação, conviveu com Cláudio Souto, Miriam de Sá Pereira (de quem foi monitor), Luciano Oliveira etc., e se tornou professor de Sociologia do Direito da Faculdade de Direito do Recife. Stamford não parece ter se interessado em assumir, entretanto, o papel de tender of the flame dessa escola sociológica, ao menos não em termos teóricos, pois não apenas se tornou um luhmanniano, mas um grande - talvez o maior - conhecedor e divulgador da obra de Luhmann no Brasil,30 30 Stamford já é reconhecido com tal internacionalmente, inclusive. Conforme Aldo Mascareño: “Artur Stamford vem trabalhando ensinando e aplicando a Teoria dos Sistemas há aproximadamente 20 anos. É também um permanente participante da comunidade sistêmica internacional” (Mascareño, 2016, p. 18). publicando trabalhos, organizando eventos, conduzindo grupos de pesquisa, orientando trabalhos em nível de graduação, mestrado e doutorado etc.

Embora revele que frequentemente considera a possibilidade de mudar de área,31 31 Nas palavras do próprio Artur: “Confesso que quase diariamente questiono se não devo mudar de profissão” (Stamford, 2016). essa queixa não deve conduzir ao erro de achar que Stamford não ocupa uma posição de domínio no campo acadêmico,32 32 Stamford é, também, professor de dois programas de pós-graduação, o que lhe confere considerável domínio sobre a reprodução do corpo profissional da área. Aqui é necessário fazer um esclarecimento, dizer que um professor da pós-graduação stricto sensu domina a reprodução do corpo profissional da sua área não significa dizer que ele usa isso para divulgar as teorias a que se filia, favorecer os seus etc., significa tão somente que, objetivamente, tal professor e seus pares ocupam uma posição de domínio, são eles que decidem — ainda que com base em critérios isentos e estritamente objetivos — quais projetos serão pesquisados e que candidatos se tornarão mestres e doutores. Isso é um dado objetivo. Quem seleciona ocupa claramente uma posição de domínio em relação a quem é selecionado, como por exemplo os professores das faculdades menores, que se submetem, às vezes reiteradamente, por anos a fio, às seleções dos programas de pós-graduação. ele não apenas ocupa como também detém o símbolo de prestígio33 33 De acordo com Goffman: “a informação social transmitida por um símbolo podem estabelecer uma reivindicação especial de prestígio, honra ou posição de classe desejável — uma reivindicação que não poderia ser apresentada de outra forma ou, se se o fosse, não seria automaticamente conferida. Esse sinal é popularmente chamado de ‘símbolo de status’, embora a expressão ‘símbolo de prestígio’ possa ser mais precisa, pois a primeira expressão é mais apropriadamente empregada quando se refere a uma posição social bem organizada. Os símbolos de prestígio podem ser contrastados com os símbolos de estigma, ou seja, signos que são especialmente eficazes para chamar a atenção para uma discrepância de identidade degradante, rompendo o que de outra forma seria um quadro geral coerente, com a consequente depreciação na nossa valorização do indivíduo.” (Goffman, 2004, tradução livre) de ser docente do curso de direito mais antigo do Brasil.

Stamford vem fazendo um esforço notável no sentido de aplicar a teoria de Luhmann em pesquisas sociojurídicas, combinando-a com a Análise Crítica do Discurso - ACD (cp. Stamford, 2007), e é precisamente aqui que incide aquele terceiro problema- articular a obra de Luhmann com outras teorias e agendas de trabalho que não necessariamente são compatíveis. As teorias e seus fundamentos epistemológicos não são exatamente compatíveis. A ACD se vincula a uma concepção de crítica em certo sentido homóloga à da Teoria Crítica da assim chamada Escola de Frankfurt. Não significa que a ACD seja uma decorrência ou sequer que seja semelhante à Teoria Crítica, ainda que Ruth Wodak identifique uma certa influência dos teóricos críticos sobre alguns analistas críticos (cp. Wodak, 2004), mas é possível traçar um paralelo entre ambas.

Já em seu ensaio inaugural, Horkheimer contrapõe as teorias tradicional e crítica. A primeira estaria comprometida predominantemente com a descrição da realidade, sem nenhum engajamento transformador, enquanto a segunda, sem descuidar do rigor da pesquisa, está orientada para o futuro e profundamente comprometida com a liberdade e a autonomia das pessoas (Horkheimer, 1975a, p. 163-164). É precisamente aqui que está a homologia entre a proposta dos teóricos críticos e dos analistas críticos de discurso, já que os dois grupos estão comprometidos não apenas com a descrição, mas com a emancipação das pessoas. A ACD visa desvelar as relações entre discurso e poder, expondo as ideologias e contribuindo para a construção de uma sociedade pautada na liberdade, na igualdade e na emancipação das pessoas.

Iran Ferreira de Melo observa que a ACD pode ser considerada um “paradigma de pensamento”, cuja origem remete às pesquisas de Teun van Dijk, Norman Fairclough e Ruth Wodak, ainda em meados dos anos 1980. Tendo a expressão Análise Crítica do Discurso sido utilizada “pela primeira vez por Norman Fairclough, então professor da Universidade de Lancaster, em um artigo intitulado Critical and Descriptive Goals in Discourse Analysis, publicado no periódico Journal of Pragmatics em 1985” (Melo, 2018, p. 52).

Fairclough diferencia as análises não-críticas das análises críticas (Fairclough, 1985Fairclough, Norman L. Critical and descriptive goals in discourse analysis. Journal of Pragmatics, vol. 9, p. 739-763, 1985. Disponível em <https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/0378216685900025>. Acesso em 29 set.2020.
https://www.sciencedirect.com/science/ar...
, p. 759; Melo, 2013Melo, Iran Ferreira. Ativismo LGBT na imprensa brasileira: análise crítica da representação de atores sociais na Folha de S. Paulo. 2013. 385 p. Tese (Doutorado) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013.; Melo, 2018), sendo estas últimas justamente as que mostram como o discurso é moldado por relações de poder, ideologias e processos de subalternização, e como a sociedade e seus standards - identidades, relações, sistemas de conhecimento e crença etc. - são discursivamente construídos, o que nem sempre fica claro para os participantes (cp. Fairclough, 1992, p. 12). Essa dificuldade dos participantes de perceber tudo o que está envolvido no discurso se deve ao fato de que eles estão imersos no mesmo contexto social e compartilham, eles próprios, os mesmos valores, ideologias, relações de poder e subalternização que estão envolvidos na produção discursiva.

A Análise Crítica do Discurso considera que nenhum discurso é neutro, ou seja, nenhum discurso provém do vácuo social nem é nele proferido (cp. Colares, et al., 2008Colares, Virgínia; et al. Buracos do Recife: estudo de uma decisão judicial. Revista Latinoamericana de Estudios del Discurso, v. 8, Caracas: ALED, p. 25-44, 2008.). O texto seria como um iceberg que não se revela totalmente, exemplificando: para além do conteúdo imediatamente identificável de um dispositivo legal, passagem doutrinária ou decisão judicial, existe toda uma ideologia, relações de poder, práticas de dominação, relações de subalternização (etc.) que permeiam o processo de produção e consumo do texto em questão. O desafio do analista, portanto, seria desvelar as ideologias ocultas, investigar e trazer à tona a parte oculta do iceberg.34 34 “[…] podemos dizer que, muito além de uma proposta estritamente científica da linguagem (Van Dijk, 2005a), a ACD corresponde a uma abordagem crítica que ultrapassa o seio das entidades de pesquisa, para compreender, desvelar e opor-se às desigualdades sociais de todos os tipos, assumindo o ponto de vista de uma abordagem preocupada em construir ações de fortalecimento da consciência daqueles/as que se encontram em situação de subalternidade (Spivak, 2000). Ela se ocupa dessas questões partindo de uma perspectiva que seja coerente com o que é melhor para os interesses dos grupos dominados e reflete sobre as experiências e opiniões dos membros desses grupos, contrapondo-se aos vários tipos de opressão e avaliando os problemas que levam as pessoas a se tornarem subalternas (Van Dijk, 2005a)” (Melo, 2018, p. 52-53). Para isso, a ACD precisa estar articulada com/ou desenvolver uma perspectiva teórica crítica - ainda que distinta das propostas frankfurtianas.

Luhmann assumiu manifestamente o compromisso de desenvolver uma teoria tradicional. É muito conhecida, e muito citada35 35 Apenas a título de exemplo: Treibel, 2006, p. 44; Reinfandt, 2015, p. 278; Neves, 2003; Oliveira; Maia, 2018 a sua entrevista concedida a Ingeborg Breuer em 1992, para o Frankfurter Rundschau, na qual ele diz: “Meu principal objetivo como cientista é melhorar a descrição sociológica da sociedade, não melhorar a sociedade”. Uma perspectiva que ele detalha em outra ocasião:

A possibilidade de um colapso do sistema econômico monetário: que não tem substituto, considero que é um problema extremamente urgente, por isso acho totalmente inadequadas as queixas contra o capitalismo. Para esse tipo de problema, a questão de quem possui os meios de produção fica em segundo plano. Uma teoria elaborada deve ser capaz de trazer à luz os reais riscos e problemas da sociedade contemporânea, o que não se consegue com uma visão teórica estreita como a do neomarxismo ou com teorias adversas à tecnologia.

[…] Não vou fazer, no sentido normal da palavra, uma crítica da sociedade nem descrever uma série de defeitos estruturais, e muito menos falar de capitalismo tardio, o que me parece um erro de designação. Porque não acredito que exista outra sociedade diferente da que temos, também quero mostrar alguns aspectos positivos do nosso sistema (Luhmann, 1996______. Introducción a la teoría de sistemas. Mexico, D.F.: Universidad Iberoamericana, 1996., p. 26, tradução livre).

Não por acaso, aliás, Barbara Freitag situa o debate entre Luhmann e Habermas como um terceiro momento do embate/contraposição entre as teorias tradicional e crítica: “a teoria sistêmica de Luhmann não deixa de ser uma reformulação modernizada da ‘teoria tradicional’, criticada por Horkheimer, ou do positivismo popperiano, contestado por Adorno.” (Freitag, 1993, p.58).

A questão, em suma, é saber se a teoria da sociedade de Luhmann poderia ser incorporada por uma análise crítica sem ser mutilada, o que não parece ser possível em virtude das próprias escolhas de Luhmann. A análise crítica poderia ser utilizada, então, como agenda de trabalho para viabilizar a aplicação da teoria luhmanniana na prática da pesquisa? Isso que também não parece ser possível porque, para se manter fiel à proposta de Luhmann, o analista não poderia ser crítico.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: ESTE NÃO É UM ARGUMENTO AD HOMINEM

Diante de tudo o que foi visto, seria possível salvar a teoria dos sistemas autopoiéticos? Essa pergunta tem duas respostas, a primeira é: Sim, pois desde os ensaios inaugurais de Horkheimer (cp. Horkheimer, 1975aHorkheimer, Max. Filosofia e teoria crítica. In: Walter Benjamin; Max Horkheimer; Theodor W. Adorno; Jürgen Habermas. Os Pensadores: textos escolhidos. São Paulo: Abril Cultural, 1975a, p. 125-162. e 1975b) e passando pelos desenvolvimentos posteriores, a teoria crítica é marcada por uma orientação para a emancipação, o que a distingue - e em certo sentido a contrapõe - em relação à teoria tradicional, mas sem excluir as contribuições desta última, mas, nesse caso, seria necessário reelaborar a teoria dos sistemas autopoiéticos em si, e o produto final talvez ficasse aquém de outras teorias que possuem, em si mesmas, um conteúdo crítico e que poderiam ser mais apropriadas para o analista crítico.

A segunda resposta, mais respeitosa ao legado de Luhmann, é: A teoria dos sistemas autopoiéticos não precisa ser salva. Ela não foi criada para ser uma teoria crítica, como o próprio Luhmann disse, seu interesse era melhorar a descrição da sociedade e não a sociedade em si, então o mais coerente é seguir aperfeiçoando a sua teoria em termos descritivos e conceituais, e não a reformular para transformá-la em uma teoria crítica.

O que foi exposto nas linhas anteriores, ainda que não pretenda exaurir os temas abordados e tangenciados, parece suficiente para afirmar que Niklas Luhmann não é um outsider, pelo contrário, sua obra está muito bem estabelecida no Direito brasileiro. Quantitativamente é um dos autores mais citados nas teses e dissertações, muitas das quais se propõe a compreender institutos jurídicos, dos mais variados campos do Direito - e até o Direito como um todo -, a partir de uma perspectiva luhmanniana. Sua obra exerce influência na doutrina, também nos mais variados ramos do Direito, e nos julgados dos tribunais. É certo que a apreensão da obra de Luhmann não é isenta de dificuldades, pela sua extensão, arcabouço conceitual, nível de abstração etc., mas isso não impediu sua apropriação por juristas que ocupam posição de domínio no campo acadêmico jurídico brasileiro. Sobre isso, aliás, parece apropriado encerrar o presente estudo com a indicação de um caminho possível para o pensamento luhmanniano no Brasil.

Diante da desnecessidade do seu uso em certas situações e, sobretudo, da dificuldade de instrumentalizá-lo para a prática da pesquisa, um bom exemplo do seu aperfeiçoamento conceitual é a construção do conceito de alopoiese, para se referir às interferências entre sistemas - e.g. do político sobre o jurídico - que ocorrem, sobretudo, em sociedades menos diferenciadas, o que compromete a própria autopoiese do sistema jurídico. Não consegui rastrear a origem exata do conceito, seus usos mais antigos parecem ser de Adeodato (1992Adeodato, João Maurício. Para uma conceituação do direito alternativo. Revista de Direito Alternativo. São Paulo: Acadêmica, Nº 1, p. 157-174, 1992.) e Neves (1992Neves, Marcelo. Da autopoiese à alopoiese do direito. Anuário do Mestrado em Direito. Recife-PE, Nº 5, p. 273-298, 1992.), o que indica que o conceito pode ter sido construído por um deles ou por ambos. Trata-se de um conceito simples, até intuitivo, mas que permite colocar uma série de problemas teóricos para a teoria dos sistemas autopoiéticos, inclusive sobre a abertura e fechamento do sistema e, nessa e em outras questões, seria possível retomar a teoria geral de Bertalanffy, tão pouco estudado pelos luhmannianos. Luhmann é, em suma, um autor estabelecido, e por isso mesmo há um potencial de desenvolvimento teórico da sua teoria, inclusive dialogando com seus antecessores.

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    » http://www.portaldeperiodicos.unisul.br/index.php/linguagem_discurso/article/view/297
  • 1
    O termo luhmanniano não deve ser visto como elogio ou crítica, será utilizado apenas para fazer referência àqueles que contribuem para a propagação da obra de Luhmann e, sobretudo, os que orientam seus próprios trabalhos acadêmicos a partir de Luhmann.
  • 2
    “Todos os grupos sociais fazem regras e tentam, em alguns momentos e sob algumas circunstâncias, aplicá-las. As regras sociais definem as situações e os tipos de comportamento apropriados a elas, especificando algumas ações como ‘certas’ e proibindo outras como ‘erradas’. Quando uma regra é aplicada, a pessoa que supostamente a infringiu pode ser vista como um tipo especial de pessoa, alguém em quem não se pode confiar que viverá de acordo com as regras acordadas pelo grupo. Ela é vista como um outsider” (Becker, 1963______. Outsiders: studies in the sociology of deviance. New York: The Free Press, 1963., p. 1, tradução livre)
  • 3
    A título de exemplo, Danilo Viana da SIlva (2015) realizou um interessante estudo sobre o ciclo de consagração de Friedrich Müller no Brasil, observando inclusive que a obra do referido autor recebeu uma acolhida melhor no Brasil do que na Alemanha.
  • 4
    Este é um fenômeno de longa data, Nelson Saldanha observa que “na Idade Média, juristas e filósofos políticos possuíam repertórios com os lugares que deviam ser mencionados” (2003, p. 21).
  • 5
    Os dados obtidos na ocasião não foram suficientes, entretanto, para construção do presente trabalho, o que acarretou a necessidade de estabelecer outros caminhos a serem percorridos na obtenção dos dados, o que aconteceu, sobretudo, a partir de uma pesquisa bibliográfica e documental.
  • 6
    “Simplificando ao extremo, entende-se por pós-moderna a incredulidade em relação às metanarrativas” (Lyotard, 1979Lyotard, Jean-François. La condition postmoderne: Rapport sur le savoir. Paris: Les Éditions de Minuit, 1979., p. 7, tradução livre).
  • 7
    Hans-Georg Moeller apresenta as semelhanças entre a superteoria luhmanniana e a metanarrativa: “Como a metanarrativa hegeliana, a superteoria de Luhmann afirma ser integralmente conceitualizada e recursiva ao seu fundamento — em outras palavras, um todo coerente em vez de um argumento linear. Como uma metanarrativa, uma superteoria também afirma ser capaz de lidar com praticamente tudo” (Moeller, 2006, p. 200, tradução livre). Interessante observar que Lyotard faz uma crítica que parece endereçada à Luhmann: “Para os teóricos alemães de hoje em dia, a Systemtheorie é tecnocrática, até mesmo cínica, para não dizer desesperada” (Lyotard, 1979, p. 25, tradução livre).
  • 8
    "É preciso estar ciente de que qualquer objeto propriamente científico é cientificamente e metodicamente construído para saber como construir o objeto e conhecer o objeto que se está construindo, e é necessário saber tudo isso para questionar sobre as técnicas de construção das questões colocadas para o objeto." (Bourdieu; Chamboredon; Passeron, 1983Bourdieu, Pierre; Chamboredon, Jean-Claude; Passeron, Jean-Claude. Le métier de sociologue: préalables éspistémologiques. 4 ed. Paris: Mouton Éditeur, 1983., p. 71, tradução livre).
  • 9
    Esta foi uma etapa particularmente difícil. Os critérios utilizados foram o pioneirismo e continuidade na repercussão da obra luhmanniana, e a posição de domínio no ambiente acadêmico brasileiro, o que implicou a necessidade de fazer algumas escolhas difíceis, André Fernando dos Reis Trindade (2008Trindade, André Fernando dos Reis. Para entender Luhmann e o direito como sistema autopoiético. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.), por exemplo, publicou o que parece ter sido o primeiro livro introdutório sobre a obra de Luhmann no Brasil mas, a despeito de ter conquistado boas colocações profissionais, não se tornou orientador de um programa de pós-graduação stricto sensu. João Maurício Adeodato, por seu turno, embora seja, talvez, o filósofo do direito mais consagrado da sua geração e tenha orientado mais de uma centena de teses e dissertações, publicou um artigo “com vários anos de antecedência o primeiro sobre Luhmann no Brasil” (Adeodato. 2002, p. 6), mas não parece ter se tornado, ele próprio, um luhmanniano, já que desenvolve seus trabalhos em uma perspectiva retórica e não sistêmica.
  • 10
    Aqui a escolha tem duas razões, a primeira é que são nesses espaços que opera a intelligentsia jurídica brasileira, a segunda, de ordem mais prática, é que a Biblioteca Digital de Teses e Dissertações possibilita um acesso amplo ao que vem sendo produzido pelos referidos Programas.
  • 11
    Isso porque o fato de uma teoria ser abraçada em nível de pós-graduação é um indicativo, mas não necessariamente significa que ela de fato goza de aceitação entre os operadores do direito.
  • 12
    Os autores registram, entretanto, que “se percebe haver, demasiadamente, uma rejeição sumária sobre a teoria de Luhmann”. Isso se refere à segunda pergunta e será discutido oportunamente.
  • 13
    Esta é digna de nota porquanto trata-se de uma tese de doutorado em sociologia, o que sugere que a perspectiva luhmanniana sobre o Direito pode ter alguma aceitação até mesmo em outras áreas.
  • 14
    Esta foi defendida em um Programa de Pós-Graduação em Filosofia, o que reforça a percepção registrada na nota anterior.
  • 15
    Além dos resultados que já foram citados, a busca apenas por “Luhmann” na BDTD retorna 265 resultados — em todas as áreas — mas a busca por “Habermas” retorna 996 resultados, quase quatro vezes mais. Orlando Villas Bôas Filho e Guilherme Leite Gonçalves (2013Bôas Filho, Orlando Villas; Gonçalves, Guilherme Leite. Teorias dos sistemas sociais. São Paulo: Saraiva, 2013. Não paginado (eBook Kindle).) observam que apontam que no Brasil, assim como em diversos outros lugares, a recepção da obra de Luhmann “parece ter sido mediada pela crítica que lhe foi feita por Habermas, cuja obra é indiscutivelmente mais influente e disseminada”.
  • 16
    Isso pode sintetizado na reflexão de Haradja Torrens sobre a polêmica entre Dworkin e Hart, quando ela diz que “se torna difícil avaliar a repercussão da obra de Hart sem a crítica de Dworkin ou a importância da teoria de Ronald Dworkin sem o prévio desenvolvimento ‘neo-positivista’ de Herbert Hart” (Torrens, 2003, p. 2) — e, seria possível acrescentar, sem a repercussão que lhe foi dada pelos hartianos.
  • 17
    A frase não pretende ser crítica, apenas constata que algumas pessoas são juristas de formação e enveredam pela carreira acadêmica. Luhmann, aliás, é um grande exemplo disso.
  • 18
    Vide, dentre outras, a ementa do HC 137888, o voto de Ricardo Lewandowski na ADI 3741 etc.
  • 19
    Vide, dentre outros, o REsp 1556803, o HC 378643, o AREsp 1837815, o REsp 1505186 (etc.), este último, a propósito, tem uma passagem digna de nota: “Nesse ponto a sanção que se deve impor é a desconsideração da prova. Essa solução, sim, guarda sintonia com a doutrina de Kelsen e, também, com a Teoria dos Sistemas Sociais, de Luhmann.” Ainda que seja apenas um julgado, é notável que Luhmann, ao lado de Kelsen, tenha sido utilizado, em um Tribunal Superior, para justificar a escolha de uma sanção. Isso parece atestar o prestígio que sua teoria goza.
  • 20
    No Tribunal Superior do Trabalho Luhmann aparece fundamentando decisões pelo menos desde 2008Luhmann, Niklas; De Giorgi, Raffaele. Teoria della società. 13 ed. Milano: Franco Angeli, 2008. (vide a RR - 95900-63.2006.5.10.0012). No Tribunal Superior Eleitoral aparece na Consulta nº 060025218 e no Recurso Especial Eleitoral (11549) Nº 0601317-90.2018.6.20.0000. Nos Tribunais de Justiça estaduais, Tribunais Regionais Federais e nos juízos de primeira instância também é citado. Apenas a título de exemplo: No TJCE é mencionado, dentre outros, no Processo: 0184402-21.2016.8.06.0001/50000 - Agravo; No TJPE é referenciado no Agravo Interno Cível 302464-80010381-02.2012.8.17.0001.
  • 21
    Javier Torres Nafarrate (2015Nafarrate, Javier Torres. Luhmann e as “formas elementares” da vida social. Revista Brasileira de Sociologia do Direito, Porto Alegre, ABraSD, v. 2, n. 1, p. 28-36, jan./jun., 2015.) observa que “a vastíssima obra de Luhmann não tem outro propósito que o de retomar, com instrumentos modernos, a mesmíssima exigência metodológica durkheimiana: ‘conformar a sociologia como ciência’.” Tenho para mim, entretanto, que a obra de Luhmann seria epistemologicamente possível sem Durkheim, mas não sem o pensamento sistêmico/cibernética e as leis da forma de Spencer-Brown.
  • 22
    “O conceito de autorreferência indica o fato que existem sistemas que se referem a si mesmos mediante cada uma de suas operações […]. Trata-se de sistemas (orgânicos, psíquicos e sociais) que podem observar a realidade apenas por autocontato […] Os sistemas constituídos de modo autorreferencial devem ser capazes de distinguir entre o que é próprio do sistema (suas operações) e o que se atribui ao entorno” (Corsi; Esposito; Baraldi, 1996Corsi, Giancarlo; Esposito, Elena; Baraldi, Claudio. Glosario sobre la teoría Social de Niklas Luhmann. Mexico: Universidad Iberoamericana, 1996., p. 35, tradução livre).
  • 23
    Nelson Saldanha, por exemplo, observou um “Jürgen Habermas, com constante influência até nossos dias e com uma trajetória um tanto sinuosa: de um marxismo ‘reformulado’ […] até aproximações ao pensamento liberal, inclusive diálogos com autores como Rawls e Dworkin” (Saldanha, 2005, p. 11), e na nota para a segunda edição de Ordem e Hermenêutica, falou em um “’Habermas a quem hoje tenho dificuldade de entender em seu recente clinamen em direção ao neoliberalismo” (Saldanha, 2003, sp).
  • 24
    Sobretudo por terem certo controle sobre os rumos e a própria reprodução do campo, orientando teses, dissertações etc.
  • 25
    Se bem que isso talvez seja, também, uma característica da escrita do próprio Neves, pois como demonstra Gonçalves (2016______. Sobre palavras, seus usos e significados: o modelo normativo de Marcelo Neves entre as normas e as metanormas. Direito GV. Vol. 12, Nº 1. São Paulo, jan/abr. 2016. Disponível em <http://dx.doi.org/10.1590/2317-6172201608>. Acesso em 25 nov. 2020.
    http://dx.doi.org/10.1590/2317-617220160...
    ), Neves demonstra uma grande capacidade de articular teorias e conceitos, mas nem sempre fica claro em que isso contribui para o tema da obra em si.
  • 26
    Um conhecimento exato da realidade, uma coincidência plena entre realidade e pensamento seria um verdadeiro “monstro epistemológico” (Bachelard, 2004Bachelard, Gaston. Ensaio sobre o conhecimento aproximado. Rio de Janeiro: Contraponto, 2004., p. 46).
  • 27
    Dizer que Leonel Severo Rocha é um teórico consagrado não é um elogio gratuito, mas uma constatação da sua posição no campo: ele é reconhecido como herdeiro intelectual de Warat, autor de centenas de trabalhos (entre livros, artigos, capítulos), professor de um dos melhores programas de pós-graduação do país, onde já orientou mais de uma centena de pesquisas stricto sensu (mestrado e doutorado), e conforme registrado na obra em sua homenagem, trata-se de “um dos maiores expoentes da teoria jurídica contemporânea em solo brasileiro” (Barreto; Duarte; Schwartz, 2013Barreto, Vicente de Paulo; Duarte, Francisco Carlos; Schwartz, Germano (Org.). Direito da sociedade policontextural. Curitiba: Appris, 2013. Não paginado (eBook Kindle).).
  • 28
    Para uma crítica do atual estágio da ciência do direito no Brasil é possível indicar, dentre outros, os trabalhos de: Oliveira, 2003______. Não fale do Código de Hamurábi! A pesquisa sociojurídica na pós-graduação em Direito. Anuário dos Cursos de Pós-graduação em Direito, Recife, v. 13, p. 299-330, 2003.; Nobre, 2005Nobre, Marcos. Apontamentos sobre a Pesquisa em Direito no Brasil. Cadernos Direito GV, v. 1. Nº 1, set. São Paulo: Publicações EDESP/FGV, 2005.; Gonçalves, 2017Gonçalves, Francysco Pablo Feitosa. Possibilidades de uma ciência reflexiva no direito: uma aproximação ao campo das Faculdades de Direito em Recife. 2017. 434 p. Tese (Doutorado) - Direito, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2017.; Teixeira e Gonçalves, 2015.
  • 29
    Já em 1981, no relatório Fragmentos de um saber crítico sobre o direito, elaborado pelo próprio Leonel Severo Rocha, Luis Alberto Warat, Gisele Cittadino e Elza Pereira Cunha, é possível perceber que nas pesquisas desenvolvidas no âmbito da Associação Latino-Americana de Metodologia do Ensino do Direito (ALMED), já se percebe a preocupação em realizar uma ruptura com o senso comum teórico dos juristas, formulando problemáticas rigorosas sobre as condições de possibilidade e funcionamento do direito (Warat, et al., 1981).
  • 30
    Stamford já é reconhecido com tal internacionalmente, inclusive. Conforme Aldo Mascareño: “Artur Stamford vem trabalhando ensinando e aplicando a Teoria dos Sistemas há aproximadamente 20 anos. É também um permanente participante da comunidade sistêmica internacional” (Mascareño, 2016, p. 18).
  • 31
    Nas palavras do próprio Artur: “Confesso que quase diariamente questiono se não devo mudar de profissão” (Stamford, 2016Stamford, Artur. Entrevista com Prof. Artur Stamford. A Barriguda. 23 ago. 2016. Disponível em <http://www.abarriguda.org.br/site/entrevista-com-prof-artur-stamford/>. Acesso em 26 set. 2020.
    http://www.abarriguda.org.br/site/entrev...
    ).
  • 32
    Stamford é, também, professor de dois programas de pós-graduação, o que lhe confere considerável domínio sobre a reprodução do corpo profissional da área. Aqui é necessário fazer um esclarecimento, dizer que um professor da pós-graduação stricto sensu domina a reprodução do corpo profissional da sua área não significa dizer que ele usa isso para divulgar as teorias a que se filia, favorecer os seus etc., significa tão somente que, objetivamente, tal professor e seus pares ocupam uma posição de domínio, são eles que decidem — ainda que com base em critérios isentos e estritamente objetivos — quais projetos serão pesquisados e que candidatos se tornarão mestres e doutores. Isso é um dado objetivo. Quem seleciona ocupa claramente uma posição de domínio em relação a quem é selecionado, como por exemplo os professores das faculdades menores, que se submetem, às vezes reiteradamente, por anos a fio, às seleções dos programas de pós-graduação.
  • 33
    De acordo com Goffman: “a informação social transmitida por um símbolo podem estabelecer uma reivindicação especial de prestígio, honra ou posição de classe desejável — uma reivindicação que não poderia ser apresentada de outra forma ou, se se o fosse, não seria automaticamente conferida. Esse sinal é popularmente chamado de ‘símbolo de status’, embora a expressão ‘símbolo de prestígio’ possa ser mais precisa, pois a primeira expressão é mais apropriadamente empregada quando se refere a uma posição social bem organizada. Os símbolos de prestígio podem ser contrastados com os símbolos de estigma, ou seja, signos que são especialmente eficazes para chamar a atenção para uma discrepância de identidade degradante, rompendo o que de outra forma seria um quadro geral coerente, com a consequente depreciação na nossa valorização do indivíduo.” (Goffman, 2004, tradução livre)
  • 34
    “[…] podemos dizer que, muito além de uma proposta estritamente científica da linguagem (Van Dijk, 2005a), a ACD corresponde a uma abordagem crítica que ultrapassa o seio das entidades de pesquisa, para compreender, desvelar e opor-se às desigualdades sociais de todos os tipos, assumindo o ponto de vista de uma abordagem preocupada em construir ações de fortalecimento da consciência daqueles/as que se encontram em situação de subalternidade (Spivak, 2000). Ela se ocupa dessas questões partindo de uma perspectiva que seja coerente com o que é melhor para os interesses dos grupos dominados e reflete sobre as experiências e opiniões dos membros desses grupos, contrapondo-se aos vários tipos de opressão e avaliando os problemas que levam as pessoas a se tornarem subalternas (Van Dijk, 2005a)” (Melo, 2018______. História e princípios da Análise Crítica do Discurso. ADVIR, n. 38 (jul. 2018) - Rio de Janeiro: ASDUERJ, p. 50-58, 2018., p. 52-53).
  • 35
    Apenas a título de exemplo: Treibel, 2006Treibel, Annette. Einführung in soziologische Theorien der Gegenwart. Wiesbaden: VS Verlag für Sozialwissenschaften, 2006., p. 44; Reinfandt, 2015Reinfandt, Christoph. Das Wissen der Systeme. In: Bernard Pörksen (org.). Schlüsselwerke des Konstruktivismus. Wiesbaden: Springer VS, 2015, p. 277-290., p. 278; Neves, 2003Neves, Clarissa Eckert Baeta. A educação na perspectiva teórica de Niklas Luhmann. In: XXVII Encontro Anual da ANPOCS, 2003, Caxambu, 2003. Disponível em <https://www.anpocs.com/index.php/papers-27-encontro-2/gt-24/gt04-14/4147-cneves-a-educacao/file>. Acesso em 05 de agosto de 2020.
    https://www.anpocs.com/index.php/papers-...
    ; Oliveira; Maia, 2018Oliveira, David Barbosa de; Maia, Vinicius Madureira. Niklas Luhmann no Brasil: resistências acadêmicas ao estudo da teoria dos sistemas. Revista brasileira de sociologia do direito, v. 5, p. 157-179, 2018.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    04 Fev 2022
  • Aceito
    20 Jul 2022
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