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Operação Lava Jato: ideologia, narrativa e (re)articulação da hegemonia

Carwash Operation: Ideology, Narrative and (re)articulation of hegemony

Resumo

Este texto analisa os múltiplos processos que produziram a Operação Lava Jato e foram por ela produzidos um contexto de crise da formação social brasileira. Tais processos, conjugados em uma unidade ruptural, foram capazes de desestabilizar e reorganizar o bloco hegemônico no poder, impulsionando Jair Bolsonaro. A Lava Jato operou, em suas práticas e discursos, através da forma-narrativa, de modo a expandir, por meio de sua capacidade de formatação, a ideologia dominante em sentido amplo, traçando um enredo com heróis e vilões.

Palavras-chave:
Operação Lava Jato; Crises; Narrativa e Ideologia

Abstract

This article analyzes multiple processes that produce and are produced by the Carwash Operation during a context of crisis in the Brazilian social formation. Such processes, conjoined in a ruptural unity, were capable of destabilizing as well as reorganizing the hegemonic bloc, propelling Jair Bolsonaro to its command. Carwash Operation functioned by expanding, through its form and ability to format, dominant ideology in an ample sense, tracing a plot with heroes and villains.

Keywords:
Carwash Operation; Crises; Narrative and Ideology

1. Introdução

Em 2018, Jair Bolsonaro foi eleito Presidente do Brasil em um momento que entendemos como parte de um contexto de crise. Há muito essa palavra “crise” se tornou parte do léxico explicativo dos problemas sociais, ora referenciando uma suposta crise institucional, ora tratando de perturbações econômicas. Quando falamos em crise, estamos nos referindo mais especificamente, conforme explicado adiante, a uma “crise geral”, tanto da formação social brasileira como - porque indissociável desta - do regime de acumulação atual no modo de produção capitalista (CHESNAIS, 2017CHESNAIS, François. Finance Capital Today: Corporations and banks in the Lasting Global Slump. Chicago: Haymarket, 2017.).

É nesses termos que sustentamos que a Operação Lava Jato não só contribuiu para a crise no Brasil, mas é também fruto dela e uma tentativa de resolvê-la, ou de dar uma solução ao acúmulo das contradições (POULANTZAS, 2008POULANTZAS, Nicos. The Poulantzas Reader. New York: Verso, 2008.: 296) que contribuiu, ao fim, para a eleição de Jair Bolsonaro. Não entendemos que o encontro entre o processo de ascensão da Lava Jato e a eleição de Bolsonaro - ou até o Bolsonarismo - ocorreu ou ocorre de maneira “consciente”. Não pressupomos que houve um acordo formal ou conspiratório entre pessoas ou grupos para se atingir este ou qualquer outro fim. Isso não significa, de modo algum, que esses acordos não existam (LENIN, 1987LENIN, Vladimir Ilyich Ulyanov. Essential Works of Lenin. New York: Dover Publications, 1987.: 194), ou que não possam se desenvolver ao longo do processo histórico. Para nós, por exemplo, é evidente, sobretudo após as revelações do Intercept Brasil, que havia intenção, por partes dos procuradores do Ministério Público Federal (MPF) e de Moro, de impedir a candidatura de Lula e, por conseguinte, uma preferência por Bolsonaro.

Porém, para nossa análise, tais intenções e eventuais acordos não são o fundamental. Mesmo sem acordo, sem qualquer intento colaborativo, ou conspiração, processos e pessoas se encontram e produzem resultados. Não porque exista uma lógica única e determinante, nem porque há um extraordinário princípio organizativo que atrai todas as forças a um mesmo deslinde, mas porque resultados, no nosso entender, são fruto de contingências e encontros que unem elementos, ao mesmo tempo que mantêm outros em tensão. Esta é a natureza, propomos, do encontro entre a Lava Jato e Bolsonaro1 1 Alianças entre frações de classe ou representantes de frações de classe, ao nosso ver, respeitam a lógica explicada por Lenin: “alianças (...) não são nada mais que uma trégua no período entre guerras. Tréguas preparam o caminho para a guerra e surgem de guerras” (1987: 263). .

Queremos fugir da lógica da “consciência”, que, tal como o empiricismo, supõe que a existência de algo, ou a validade de um argumento, está ligada somente ao que é explícito, àquilo que está imediatamente dado no agora- em suma, ao puro “conteúdo”, no sentido de Lefebvre (2011LEFEBVRE, Henri. O Direito à Cidade. São Paulo: Centauro, 2011.: 91). Esse tipo de análise tende a supor que agentes atuam e produzem efeitos porque assim o querem, assim desejam, assim pensaram e elaboraram antes de agir. Há razoabilidade e possível veracidade em tal perspectiva, mas entendemos que existem efeitos que são produzidos apesar de intenções, independentemente de acordos, a despeito dos desejos manifestos. Entendemos, pois, que existem efeitos produzidos na reunião de intenções contraditórias ou, inclusive, na ausência de qualquer intenção.

Aliás, isso é o que ocorre na própria sociedade capitalista, produzida e determinada por inúmeros processos contraditórios e não correspondentes que se vinculam em uma reprodução que precisa constantemente ser refeita, atualizada, renovada. Nesse sentido, para nós há mais a ser apurado (inclusive empiricamente2 2 “Ao invés de mostrar a conexão vital entre períodos de paz imperialista e períodos de guerra imperialista, Kautsky coloca diante dos trabalhadores uma abstração sem vida para reconciliá-los com seus líderes também sem vida” (LENIN, 1987:263). ) nos espaços, nas conexões, nas ligações - seja entre palavras, coisas presentes, ou relações sociais -, do que no imediato, no imediatamente presente, no dado. Até porque, aqui seguindo Hegel (2015HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Encyclopedia of the philosophical sciences in basic outline: Part 1. Cambridge: Cambridge University Press, 2015.: 122), o imediato é sempre fruto de outras, múltiplas, mediações3 3 Entendemos, com Jameson, que não obstante a crítica de Althusser à lógica/noção/conceito de “mediação” (Althusser supõe que a palavra representa, na tradição hegelo-marxista, uma tendência à teleologia) o alvo de Althusser, no fim das contas, é o mesmo de Hegel: o imediatismo. No mais, “a própria formulação de Althusser de separação de dois fenômenos um do outro, sua separação estrutural, a afirmação de que não são a mesma coisa, e não o são de modo específico e determinado, é, também, uma forma de mediação.” (JAMESON, 1982: 41). .

Entendemos a Lava Jato como um processo e, simultaneamente, como engendrada por outros, diversos, processos sociais. Por sua vez, ela própria, em seu funcionamento, articula e produz divergentes processos. Para identificarmos as ligações, as relações e a própria constituição de novos espaços-problemas - todos frutos de processos múltiplos -, analisamos a relação entre forma, ideologia e ficção na Operação. E o fazemos por meio função da narrativa, ou narratividade, conforme entendido por Fredric Jameson (1982JAMESON, Fredric. The political unconscious. New York: Cornell University Press, 1982.). Explicamos como, no caso específico da Operação Lava Jato, a relação estrutural entre o judiciário e a imprensa funcionou através de narratividade e seus elementos, explicitando a “ideologia da forma” (JAMESON, 1982JAMESON, Fredric. The political unconscious. New York: Cornell University Press, 1982.). Forma, aqui, deve ser entendida tanto em seu aspecto social4 4 No Brasil, há importante obra sobre o tema: MASCARO, 2013. (HIRSCH, 2007HIRSCH, Joachim. Forma política, instituições políticas e Estado - I. Crítica Marxista, São Paulo, Ed. Revan, v. 1, n. 24,, p. 9-36, 2007.) como em seu viés epistemológico (LEFEBVRE, 2011LEFEBVRE, Henri. O Direito à Cidade. São Paulo: Centauro, 2011.). Se pelo lado social - na forma social - há a cristalização de processos e práticas que se objetificam e, assim, orientam/rotinizam modos de socialização; pelo lado epistemológico, a forma é o que dá acesso a conteúdos e os organiza em suas especificidades. Em ambos os aspectos há uma regulação, uma conferência de estrutura, que está intimamente ligada à ficção (LEFEBVRE, 2011: 90). A forma, em si, em seu modo “puro”, é uma ficção que existe e produz efeitos práticos.

Interpretar “forma” desta maneira e, ao mesmo tempo, conferir à Operação Lava Jato a capacidade de produzi-las no modo de narrativas significa, em outras palavras, que narrativas não produzem efeitos ideológicos só pelas histórias que contam (apesar de ideologias contarem histórias), mas sobretudo pelas formas que usam para apresentar, mostrar e formatar modos de entendimento, engajamento e práticas. Isto é: formas atuam, agem, regulam, formatam. E a Lava Jato produziu formas que tiveram efeitos sobre a crise política, social e econômica no Brasil. Em nossa visão, a Operação Lava Jato construiu narrativas sobre a política brasileira, e, ao fazê-lo, tornou-se uma linha de força adicional no processo que levou à crise geral em curso.

A metodologia que adotamos é influenciada e inspirada na teorização de Louis Althusser (2005ALTHUSSER, Louis. For Marx. London / New York: Verso, 2005.: 151) sobre ideologia. Para ele, ideologia deve ser vista como a estrutura que “prepara o palco” ou atua em um dado “teatro da vida” estabelecendo seus limites. Buscamos, então, mostrar a estrutura de narratividade produzida e usada pela Operação Lava Jato, a fim deslocá-la, i.e., demonstrando as conexões tidas como evidentes e problematizando como e por que algo se torna, de fato, e não “falsamente”, evidente. Na linha de Althusser (2005: 151), interrogamos a narrativa oficial em termos daquilo que são seus pressupostos estruturais, ou as condições de possibilidade semânticas de sua formação, a fim de ao menos tentar “destruir a imagem imóvel, para pô-la [a narrativa] em movimento”. Diferentemente da mídia, porém, nossa análise e, pode-se dizer, nossa estrutura formal está limitada a estruturas e formas do “escrito”, algo que deve colocar em evidência, ao mesmo tempo que problematizar, uma era em que imagens se tornaram mais hábeis para nos contar histórias.

A fim de atingir tais objetivos, o artigo fornece uma contextualização geral da Operação Lava Jato para posicioná-la como parte de processos que consideramos serem os fatores “por trás” das conexões que ela (a Operação) foi capaz de criar, desenvolver e usar em sua narrativa sobre o Brasil. Em seguida, analisamos como a Operação se moveu de uma investigação sobre lavagem de dinheiro para se tornar uma força ideológica - ou, mais precisamente, um processo capaz de angariar e (re)produzir ideologias através da “forma” -, de modo a simultaneamente desorganizar e reorganizar o Estado brasileiro e o bloco hegemônico que o governa. Ao expormos o contexto e a narrativa geral da Operação Lava Jato, apresentamos imagens usadas e produzidas pelo judiciário e pela imprensa, para o entendimento de seus possíveis efeitos ideológicos5 5 Neste texto, nem a contextualização nem a explanação acerca da cronologia da Operação Lava Jato são suficientemente compreensivas para uma “fotografia completa”. Este não é nosso objetivo. Para uma visão mais pormenorizada da Lava Jato, veja-se: SÁ E SILVA, 2020; PRONER et. al., 2017, 2018. . Porém, antes de adentrarmos nos aspectos da narrativa em si, explicaremos nosso entendimento sobre crise e, em seguida, sobre a relação entre forma, ideologia e narratividade.

É importante deixar claro que não estamos arguindo que a Lava Jato foi a causa única, ou até causa no sentido comum, da ascensão de Jair Bolsonaro. Entendemos que são múltiplas e divergentes as causas e processos que o levaram até a presidência. Estes são, em última instância, determinados pelas relações de produção capitalistas - aquela última instância cujo momento, segundo Althusser, nunca realmente chega (2005ALTHUSSER, Louis. For Marx. London / New York: Verso, 2005.: 113). Para nós, a Operação Lava Jato foi um dos processos mais importantes na conjugação de uma nova hegemonia6 6 Sobre a relação entre o judiciário e política, há inúmeros estudos relevantes. Em particular: LIMA, LEAL VICTOR, 2019. porque ela não só levou ao encarceramento de Lula, não só auxiliou e impulsionou o processo de impeachment7 7 Acerca das fases teórico-históricas do impeachment conferir: RESENDE, 2020. , mas produziu novos terrenos que foram devidamente explorados e investidos ideologicamente. Conforme aponta Lenin (1987LENIN, Vladimir Ilyich Ulyanov. Essential Works of Lenin. New York: Dover Publications, 1987.: 250), a socialização capitalista requer treino, ou habituação, e esta é uma das funções precípuas dos processos ideológicos.

2. Crise geral: Lava Jato e a solução Bolsonaro

A palavra “crise” nem sempre carrega o valor heurístico que se deseja, especialmente dados a proliferação e o uso extensivo do termo (POULANTZAS, 2008POULANTZAS, Nicos. The Poulantzas Reader. New York: Verso, 2008.: 294). Essa proliferação tem relação, é claro, com o próprio modo de produção capitalista, cujas bases e desenvolvimento são repletos de contradições e, assim, de “elementos gerais de crise”, como explica Poulantzas. A natureza antagônica de um sistema baseado na dominação, exploração e extração contínuas tende a fazer a crise um fator quase constante. Para alguns, a crise é um elemento constitutivo, continuamente presente na socialização capitalista (HIRSCH, 2007HIRSCH, Joachim. Forma política, instituições políticas e Estado - I. Crítica Marxista, São Paulo, Ed. Revan, v. 1, n. 24,, p. 9-36, 2007.).

Poderíamos dizer que a perspectiva que propõe entendermos o capitalismo, ou as formações sociais capitalistas, como sistemas sociais sempre em crise - ou sempre “a ponto de ruir” - refere-se a algo fundamental e, inclusive, preciso: o modo de produção capitalista, a socialização capitalista, requer constante reprodução no sentido de fazer de novo, rearticular seu funcionamento, em razão de seu caráter contraditório. Crises, portanto, fazem parte desse fazer-se “antagônico”. Há no vínculo entre elementos que buscam, ao mesmo tempo, integração e fragmentação, desenvolvimento e destruição do sistema, um processo de permanente interação que demanda, porque pressupõe, conflitos. Tanto o Estado quanto o mercado são, porque precisam ser sempre “novamente produzidos e conservados” (HIRSCH, 2011HIRSCH, Joachim; KANNANKULAM, John. The Spaces of Capital: The Political Form of Capitalism and the Internationalization of the State. Antipode, Vol. 43, Issue 1, p. 12-37, 2011.: 34) por meio de contradições.

Eis, então, a pergunta central: como? O que garante, permite, essa contínua reprodução que não é repetição, mas é repetitiva (BALIBAR, 2016), que é contraditória, conflituosa e, ainda assim, apaziguada, normalizada, estabilizada? A ideologia, suas formas e estruturas, é um dos mecanismos que produz tal coesão: ela é, segundo Poulantzas, o cimento que une os aparatos que, por sua vez, reproduzem as condições sociais necessárias ao funcionamento do capitalismo.

Não obstante a constatação de um contínuo tensionamento presente na estrutura da sociedade capitalista, entendemos que, por mais que elementos gerais de crise estejam presentes em seu próprio desdobramento, nomear como “crise” algo que é permanente obscureceria mais que evidenciaria as especificidades de momentos, situações e intensificação das contradições que invocam momentos especiais - tipicamente de reorganização - da vida social. Indo ainda mais longe, para nós, com Poulantzas, crises não são apenas específicas para uma dada formação social ou momento, mas também para os diferentes níveis de cada formação social.

Crises, então, ocorrem em níveis específicos de uma dada formação social, podendo haver crise política sem que haja crise econômica, ou crise econômica sem problemas ideológicos. Crises ocorrem quando as contradições sobredeterminadas (ALTHUSSER, 2005ALTHUSSER, Louis. For Marx. London / New York: Verso, 2005.: 113) se intensificam em um ou outro nível - político, econômico, ideológico -, gerando dinâmicas que expõem desarranjos e demandam (quando não são frutos de) reorganização. Cada nível, assim como cada formação social, possui seu próprio ritmo, dando a cada crise dinâmicas, temporalidades e funcionamentos específicos. Em que pese essas especificidades, há, ainda, aquilo que Poulantzas entende como crise geral. Estas ocorrem quando as temporalidades e dinâmicas diversas e continuamente diversificadas se unem e se espraiam por toda a formação social. São essas crises que geram unidades contraditórias que podem ser rupturais, nos termos de Althusser (2005ALTHUSSER, Louis. For Marx. London / New York: Verso, 2005.: 106).

Em nossa visão, o Brasil ingressou e continua a viver em uma crise geral, precisamente porque as contradições em cada nível, em cada instância (política, econômica, ideológica), não se restringem aos seus próprios espaços, códigos ou linguagens. As contradições presentes em cada um deles têm se unido de modo especial numa conjuntura que é também criada pelo desenvolvimento dessas contradições em seus diferentes níveis e temporalidades. Quais sejam: a) a intensificação de lutas e a politização de cada elemento da sociedade (crise política); b) uma redução mundial das taxas de lucro, que acompanha uma reorganização das relações de produção, dificuldades estruturais de valorização de valor, e, especificamente quanto ao Brasil, a redução dos índices de crescimento desde 2014 (crise econômica); e, c) o consenso geral, ou o “cimento” que une os aparatos do Estado também tem sido posto em questão por repetidos escândalos, processos políticos e uma operação judicial (crise ideológica).

A eleição de Bolsonaro, em nossa visão, é parte de uma reorganização do bloco hegemônico no poder - sempre um “equilíbrio instável de compromissos” (POULANTZAS, 2008POULANTZAS, Nicos. The Poulantzas Reader. New York: Verso, 2008.: 309) -, que impulsionou diferentes setores da sociedade a posições de poder. Seguindo a lição de Marx sobre a Revolução de 1848 na França (2011: 64), podemos entender por que em momentos como esses, quando divisões e contradições são intensificadas, certos fragmentos de classe e seus representantes aparecem como soluções para a renovação das lógicas de exploração, dominação e lucro.

Como não podemos adentrar em cada aspecto de todas as crises que levaram a essa ascensão8 8 O presente artigo faz parte de uma pesquisa mais ampla e em desenvolvimento, que visa a examinar os aspectos da crise do capitalismo no Brasil e suas relações com a Operação Lava Jato. , mencionaremos aqueles que consideramos mais importantes. Nosso foco é direcionado apenas à Operação Lava Jato. Na superfície, ela poderia ser entendida como uma operação judicial (porque acontece no domínio do judiciário), mas a compreendemos como um empreendimento conjunto, uma associação ideológica, entre os aparatos jurídico e de mídia de massa. Portanto, focamos na crise ideológica - uma parcela da crise política (POULANTZAS, 2008POULANTZAS, Nicos. The Poulantzas Reader. New York: Verso, 2008.: 314), a fim de não apenas expor a real fragilidade de um certo bloco hegemônico, mas também capturar as formas pelas quais a disparidade, a divergência e o desequilíbrio entre as forças que constituem uma hegemonia momentânea podem levar a ataques a partir dos próprios Aparelhos Ideológicos do Estado. Tudo isso para demonstrar a tese de que o Estado não pode ser entendido nem como um instrumento de uma classe social, nem como sujeito, mas como a frágil, porém poderosa condensação de relações sociais, cristalização da luta de classes.

3. Ideologia, Direito, Narrativa

Como explicado por Althusser (2014ALTHUSSER, Louis. On Reproduction. London / New York: Verso, 2014.: 241), a fim de compreender a manutenção das estruturas de exploração e dominação na sociedade capitalista, devemos entender, mais do que a força repressiva que a impõe, os modos de construção de consenso. A estrutura ideológica, então, desempenha um papel fundamental na reprodução das condições básicas desta sociedade. E elas funcionam, por vezes, através de histórias. Histórias não apenas nos contam algo, não apenas “contaminam” e “colonizam” nossas mentes com imagens que elas “nos dão” (o que de fato ocorre), mas elas também são praticadas.

A forma como pessoas vivem suas vidas, como elas desempenham suas funções praticamente, como elas participam de rituais - de suas profissões, de família, de educação - adquire estrutura semelhante à de uma história. E isso porque, ideologia, como explicaremos, é o modo pelo qual percebemos o encaixe entre nossa vida e a realidade social (ALTHUSSER, 2014ALTHUSSER, Louis. On Reproduction. London / New York: Verso, 2014.: 188). Tal percepção decorre de reiteradas práticas que mostram, demonstram, evidenciam como nos relacionamos, como efetivamente nos encaixamos, na “realidade”.

Ideologia, então, deve ser compreendida como um efeito que emerge de práticas reais. Como Althusser sugere: ela advém das “pegadas da luta de classes” (2001ALTHUSSER, Louis. Lenin and Philosophy, and other essays. New York: Monthly Review Books, 2001.: 126). As fáticas dificuldades da vida real, a realidade explícita e vivida (BARTHES, 2012BARTHES, Roland. Mythologies. New York: Hill and Wang, 2012.: 242), como o desemprego, por exemplo, servem como elementos para uma história que se naturaliza, que se torna não só real, mas evidente, óbvia, normativamente fática. É através da prática cotidiana, da experiência vivida dentro de processos como o do trabalho, que o trabalhador entende e percebe como ele se encaixa no mundo (além, é claro, das possíveis consequências de não se encaixar9 9 O exército de reserva industrial (MARX, 2013: 707) possui as funções simultâneas de: a) reduzir o salário, incrementando o mais-valor; e de b) disciplinar a força de trabalho ao lhe mostrar como vive a parte “não-integrada” da força de trabalho. ).

Essas práticas, esses processos, tendem a naturalizar, por repetição, a lógica da exploração econômica, reforçando ideais e noções de um processo cujo impulso é “a maior autovalorização possível do capital” (MARX, 2013MARX, Karl. O Capital. Vol. 1. São Paulo: Boitempo, 2013.: 406). Deste modo, a prática reiterada se torna comum, e ela não esconde, mas evidencia o funcionamento da sociedade capitalista10 10 Nos termos de Barthes, a mitologia burguesa não esconde seu significado ou suas mensagens, mas as evidencia. Porém, como se tais mensagens fossem neutras, inocentes, naturais (BARTHES, 2012: 235). e a exploração que lhe é peculiar. Isso não significa dizer que o processo é fluido, perfeito, sem percalços. Pelo contrário, o funcionamento do modo de produção capitalista é determinado por “antagonismos inevitáveis”, que demandam atos de violência (simbólicas e físicas) dentro e fora dos processos de trabalho. Os controles exercidos e as violências “legitimas” são, também, naturalizadas em nome de uma estabilização, ou do funcionamento contínuo do modo de produção. Essa naturalização, ao nosso ver, é típica do processo ideológico.

Este argumento é significativo porque a literatura tipicamente entende que Marx, sobretudo em suas explicações sobre os diferentes modos de apropriação do mais-valor (MARX, 2013MARX, Karl. O Capital. Vol. 1. São Paulo: Boitempo, 2013.: 293), propõe o seguinte: “relações capitalistas completamente desenvolvidas existem quando a violência física é separada” na relação que existe entre o capitalista e o trabalhador (HIRSCH, KANNANKULAM, 2011HIRSCH, Joachim; KANNANKULAM, John. The Spaces of Capital: The Political Form of Capitalism and the Internationalization of the State. Antipode, Vol. 43, Issue 1, p. 12-37, 2011.: 15)11 11 Tal argumento é também levantado por Balibar quando este explica o modo de apropriação específico da produção capitalista (ALTHUSSER et. al., 2015: 380). . Esses e outros autores que assim entendem nos parecem corretos. No entanto, consideramos que apesar da violência (física, imediata, direta) não ser o modo pelo qual se extrai o excedente no processo de trabalho, ela possui outra função, tão importante quanto: a ideológica. Nos termos de Althusser, a ideologia é o que “faz as pessoas irem”, é o que as mobiliza, ainda que contraditoriamente, em prol da continuidade das relações de produção dominantes. A violência, dentro e fora do processo de trabalho, ou seja, dentro e fora das relações de produção, chama as pessoas, as atrai e, dessa maneira, “as faz irem”.

Conforme explica Saidiya Hartman (1997HARTMAN, Saidiya V. Scenes of subjection: terror, slavery and self-making in nineteenth century in America. New York: Oxford University Press, 1997.: 4), a cena de atos violentos não só produz uma familiaridade através de sua repetição, não apenas naturaliza a imagem, a convivência, com o mundo em sua violência, mas também chama as pessoas, as interpela, interpela a nós, como testemunhas, como voyeurs, do “terror do mundano” (1997: 6). Dizer isso significa que a violência não aparece só quando há crises do consenso, ou crises ideológicas. A violência interpela sujeitos e também os cria, os constitui.

Ideologia é precisamente o processo pelo qual, por um lado, relações de produção, relações de dominação, condições necessárias para o funcionamento de uma determinada formação social, são naturalizadas (em todos seus elementos, inclusive os violentos); e, por outro, é o que chama as pessoas, o que as interpela a testemunhar, a ver o mundo como este é, e a desfrutá-lo, a apreciá-lo, a concordar com ele. Paul Ricoeur (1995RICOEUR, Paul. Hermeneutics and the human sciences. Essays on language, action and interpretation. Cambridge: Cambridge University Press, 1995.), no que, em geral, é um desacordo estrito com a noção althusseriana de Ideologia, entende que a “mais-valia real” em formações sociais é a demanda excessiva pelo reconhecimento, pela concordância com o teatro que é o exercício de poder na função de dominação.

Essa demanda, esse chamamento que advém do processo ideológico, faz parte da tese mais conhecida e, para nossos fins, mais importante de Althusser sobre ideologia. Segundo ele, a Ideologia interpela, saúda, demanda indivíduos concretos e, dessa maneira, os torna sujeitos (ALTHUSSER, 2014ALTHUSSER, Louis. On Reproduction. London / New York: Verso, 2014.: 188). Interpelação é, em outras palavras, aquilo que nos chama, aquilo que exige nos reconhecermos como parte de um certo mundo no qual ocupamos um lugar específico e no qual, através do exercício de nossa liberdade, aceitamos as coisas “do jeito que elas são”. Para Althusser (1976: 94), sujeitos são constituídos pela história da luta de classes, por processos ideológicos, e, portanto, movem-se dentro, não fora deles. A ideologia constitui papéis, funções sociais e, então, recruta pessoas para preenchê-los ao lembrá-las de seus deveres, de suas responsabilidades ou de sua “necessidade de trabalhar para sobreviver”.

Há múltiplos exemplos que podem demonstrar a interpelação como um fenômeno que constitui “sujeitos”, sejam eles em forma de grupos étnicos (BAYART, 2017BAYART, Jean-François. The State in Africa: Politics of the Belly. Malden, USA ; Cambridge, UK: Polity Press, 2017.), classes profissionais como a "nobreza togada" (ALMEIDA, 2010ALMEIDA, Frederico Normanha Ribeiro de. A nobreza togada: as elites jurídicas e a política da Justiça no Brasil. Tese de Doutorado. Programa de Pós-graduação em Ciência Política. Universidade de São Paulo. 2010. Disponível em: <https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8131/tde-08102010-143600/pt-br.php>.
https://www.teses.usp.br/teses/disponive...
) ou, no sentido de Fanon, do próprio sujeito racializado:

Por trás do esquema do corpo, criei um esquema histórico-racial. Os dados que usei foram providos não por ‘vestígios de sentimentos ou noções do palpável, vestibular, cinestésico, ou natureza visual’, mas pelo Outro, o homem branco, que me teceu fora de milhares de detalhes, anedotas, e histórias (FANON, 2008FANON, Frantz. Black skin, white masks. New York: Groove Press, 2008.: 92).

De modo relevante, também podemos aplicar essa tese de interpelação para pensarmos os sujeitos produzidos por processos no/do judiciário brasileiro e, por sua vez, como os respectivos fatos produzem efeitos e propagam ideologia. Se pensarmos sobre isso a partir da perspectiva daqueles que são criminalizados, muito já foi escrito sobre as marcas e rótulos (GOFFMAN, 2009GOFFMAN, Erving. Stigma: Notes on the Management of Spoiled Identity. New York/ London/ Toronto: Simon & Schuster, 2009.; BECKER, 2009BECKER, Howard S. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2009.) que não apenas se vinculam a indivíduos, mas os constituem como tipos específicos de pessoas - como sujeitos específicos, como formas, categorias, tipos distintivos. Essa interpelação, essa constituição do sujeito criminoso, produz efeitos.

O mais óbvio remete-se ao fato que o significante (“criminoso”) vai além da pessoa que pratica a conduta. “Criminoso” é um significante que utiliza o corpo, as características peculiares, de pessoas específicas - já marcadas e classificadas de acordo com outros processos sociais, como ensina Stuart Hall (2017HALL, Stuart. The Fateful Triangle: Race, Ethnicity, Nation. Cambridge: Harvard University Press, 2017.: 46) -, a fim de reafirmar normas sociais, posições e divisões na estrutura de poder e, por fim, o “pânico moral” (HALL, 1978HALL, Stuart. et. al. Policing the crisis: Mugging, the State, and Law and Order. London / New York: The MacMillan Press, 1978.: 219) que justifica a persecução penal. Nesse sentido, é ilustrativa uma recente sentença da 1a Vara Criminal de Curitiba, na qual, ao julgar o réu (um homem negro de 42 anos) por “furtos qualificados e roubos majorados”, a juíza justifica a condenação, em três oportunidades, referindo-se à raça do acusado:

Sobre sua conduta social nada se sabe. Seguramente integrante do grupo criminoso, em razão da sua raça, agia de forma extremamente discreta (SIC) os delitos e o seu comportamento, juntamente com os demais, causavam o desassossego e a desesperança da população, pelo que deve ser valorada negativamente (ESTADÃO, 2020) (grifos nossos).

Desta maneira, podemos dizer que assim como a mercadoria, cujo valor é, em si, abstrato, necessita de alguma substância que lhe dê sustentação12 12 “O homem se transforma em sujeito de direito por força daquela mesma necessidade em virtude da qual o produto natural se transforma em mercadoria dotada da enigmática qualidade do valor” (PACHUKANIS, 2017: 83). (MARX, 2013MARX, Karl. O Capital. Vol. 1. São Paulo: Boitempo, 2013.: 134-5), a imagem de um criminoso necessita de um corpo, uma imagem corporificada13 13 Como afirma Hall (2017: 62): “A epidermalização fixa a ‘verdade’ da diferença racial em sua inscrição corporal, e isso faz com que o corpo preto, e suas características fisiológicas, seja o ponto terminal da vontade de verdade ou regime de verdade no que diz respeito à raça, o que por sua vez implica que o corpo negro é uma forma de significante transcendental capaz de fixar o significado de raça tout court.”. , para mostrar a si, para assumir absolutamente qualquer valor social. Como diz Lefebvre (2011LEFEBVRE, Henri. O Direito à Cidade. São Paulo: Centauro, 2011.: 91), toda forma só é forma de um específico conteúdo.

Temos, então, que o processo judicial produz imagens que se alimentam de caracterizações e realidades sociais já existentes - fruto de processos sociais como a racialização14 14 De acordo com Fanon (2008: 154): “O preto é o genital. Toda a história resume-se a isto? Infelizmente não. O preto é outra coisa. Aqui ainda reencontramos o judeu. O sexo nos separa, mas temos um ponto em comum: ambos representamos o Mal. O negro mais ainda, pela boa razão de ser negro. Na simbólica não se diz a Justiça Branca, a Verdade Branca, a Virgem Branca? Conhecemos um antilhano que, falando de um outro dizia: “Seu corpo é negro, sua língua é negra, sua alma também deve ser negra. O negro é o símbolo do Mal e o do Feio. Cotidianamente, o branco coloca em ação esta lógica”. - e as fixa. O sujeito fixado reafirma ou reforça o papel “esperado” ou a função desejada a ser cumprida no deslinde da narrativa social que explica e dá sentido à socialização capitalista. E isso funciona através de processos de interpelação.

Juízes, portanto, também são sujeitos interpelados. Por mais que acreditem no contrário, eles são mais transmissores ou pontos de apoio de poder do que suas fontes. Como mencionado, Ideologia constitui sujeitos na medida em que desenvolve, molda e atrela um "imaginário social arrumado" (LEFEBVRE, 2011LEFEBVRE, Henri. O Direito à Cidade. São Paulo: Centauro, 2011.: 129) a pessoas que são, então, chamadas a confirmar o que é esperado. Um juiz é um juiz porque foi desenvolvido, construído, produzido, durante anos de educação, formal e informal, por processos seletivos, por relações interpessoais, todas as quais o colocaram numa posição para falar como um juiz. Como explica Pêcheux (1983PÊCHEUX, Michel. Language, Semantics and Ideology: Stating the Obvious. London: The Macmillan Press Ltd., 1983.: 106), um sujeito é falado antes de falar. Nós nos referimos a ele, exigimos que ele se reconheça enquanto aquele que foi chamado, antes que fale qualquer coisa. Quando chamado a se manifestar como um juiz, o juiz responde enquanto tal. O indivíduo é interpelado como sujeito, chamado como um juiz, e não por seu nome próprio, porque a interpelação demanda um certo modo de resposta. Tudo isso parece e é tautológico, evidente, óbvio. O processo ideológico tem essa característica de tornar óbvio - antes e depois da fala - o chamamento e a resposta, o reconhecimento alheio e o reconhecimento próprio. Afinal, “é lógico que um juiz fala como juiz”. E se não o fizer, como alguns supõem ser o caso de Moro, este fala mal, fala errado.

Juízes, se são vistos como papéis sociais, peças na engrenagem, transmissores, ou sujeitos interpelados, têm apenas uma autonomia relativa ao decidirem e atuarem sobre qualquer coisa, pessoa, relação, processo. Isso não significa que juízes somente agem conforme são instruídos, que eles não têm nenhuma possibilidade real de agir “como bem entenderem”. De fato, estudos etnográficos sobre juízes no Brasil indicam que juízes geralmente escolhem o que querem fazer antes de buscar fundamento em para qualquer lei (CRAVO JR., 2011CRAVO JR., Eduardo. Ser humano ou ser juiz: etnografia da persuasão racional. Brasília: UnB, 2011. Disponível em: <https://repositorio.unb.br/bitstream/10482/11092/1/2011_EduardoCravoJunior.pdf>.
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). Em outras palavras, eles literalmente “fazem como bem entendem”. Mas mesmo assim, ao “atuarem como bem entendem”, nosso argumento é que seus atos e sua autonomia são relativos. Precisamente porque eles são, como pessoas e como juízes, produtos de outros processos sociais mais longos e complexos.

Quando falamos sobre narratividade e sua vinculação à ideologia, então, é para evidenciar o fato que embora a realidade exista enquanto tal e as pessoas atuem nela, suas representações significativas, suas concepções, suas teorias, não são apenas baseadas em imagens que são construídas continuamente em processos sociais, mas também em uma capa explicativa, uma textura, que tenta fazer sentido, e conectar, unir os aspectos contingentes da vida numa corda de determinações apresentadas como necessárias, mas que, todavia, são apenas necessárias ao funcionamento do modo de produção capitalista (ALTHUSSER, 2014ALTHUSSER, Louis. On Reproduction. London / New York: Verso, 2014.: 198). Essa capa explicativa, essa narrativa, é o efeito de processos como a Operação Lava Jato, onde as imagens, conexões e informações nela desenvolvidas as fazem presentes na vida cotidiana através de um aparato de mídia de massa. Tais conexões oferecem às pessoas um vocabulário envelopado na forma de notícias-mercadorias que, como dissemos, não apenas conta uma história, mas impõe os termos, as palavras, com as quais as pessoas discutem a “vida cotidiana” (HALL et. al., 2013: 64).

As narrativas e imagens que são construídas, novamente, não existem para serem entendidas como algo falso por si, mas algo que pinta um retrato, que apresenta uma perspectiva sobre a sociedade e que delimita como podemos entender a realidade enquanto tal. Ideologia, como uma narrativa, uma narrativa material, uma narrativa corporificada, uma narrativa inculcada, oferece “fechamento” (HALL et. al., 2013: 67), no sentido de estabelecer limites e fronteiras ao que “vale”, o que é “real”. A ideia de que as pessoas necessitam cuidar das suas vidas “reais” ao invés de lutarem politicamente, por exemplo, funciona nesse sentido. O “real” aqui significa “trabalhar para pagar contas”, “estudar para obter um diploma”, ou tudo que “conta” na “realidade”. Como mencionado, Ideologia não é e não deveria ser entendida como um produto de conspiração explícita entre os poucos grupos que governam o mundo, mas, ao invés, como um efeito de relações de poder existentes nas quais - e através das quais - lutas e relações em dominação contínuas oferecem às pessoas uma visão sobre como as coisas “realmente são” e como nos encaixamos nisso.

4. A Operação Lava Jato

4.1. O contexto no qual se insere a Operação Lava Jato

Quando falamos dos contextos e processos nos quais se insere a Operação Lava Jato, os entendemos como produtos do concreto, da história real, no sentido em que fala Althusser, mas também como forças que conjugam fatos e elementos capazes de criar discursos e influenciar as estruturas de poder. Há múltiplos, infinitos, processos-contextos-fragmentos, mas apresentaremos, sinteticamente, alguns que consideramos indispensáveis para se entender a Operação Lava Jato.

Primeiramente, entre esses processos está o da história colonial brasileira. Por um lado, influenciou e ainda influencia a integração do Brasil na divisão global do trabalho15 15 Sobre isso, importante lembrar: 1) a relação de dependência financeira do Estado Brasileiro com o dólar em razão da estrutura do mercado mundial financeiro que “compele países a sustentarem o valor do dólar através de compras de títulos do tesouro estadunidense” (CHESNAIS, 2017: 61); e 2) a relação de dependência que se estabelece entre a burguesia nacional e o capital financeiro estrangeiro (LENIN, 1987: 235). (FERNANDES, 1975FERNANDES, Florestan. Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina. 2 ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1975.), e, por outro lado, conecta as atuais instituições do Brasil ao legado da escravidão. Cientistas sociais latino-americanos (QUIJANO, 2000QUIJANO, Anibal. "Colonialidad del Poder y Clasificación Social". Journal of World-Systems Research, Binghamton, v. XI, n. 2, Summer/Fall, p. 342-386, 2000. Disponível em: <http://biblioteca.clacso.edu.ar/gsdl/collect/clacso/index/assoc/D9642.dir/eje1-7.pdf>.
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) e, especificamente, brasileiros (MOURA, 1988MOURA, Clóvis. Sociologia do negro brasileiro. São Paulo: Ed. Ática, 1988.; FERNANDES, 1975; CHALHOUB, 2016CHALHOUB, Sidney. "The Legacy of Slavery: Tales of Gender and Racial Violence in Machado de Assis". In: AIDOO, Lamonte; SILVA, Daniel F. (orgs.). Emerging Dialogues on Machado de Assis. New York: Palgrave Macmillan, 2016, p. 55-69.), enfatizaram a persistência desse legado no “racismo estrutural” (ALMEIDA, 2019ALMEIDA, Sílvio Luiz de. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen Livros, 2019.), que permeia a formação social brasileira. Além de 65% da atual população carcerária do Brasil ser negra (INFOPEN, 2017), autores sugerem (OLIVEIRA et. al., 2017OLIVEIRA, Ricardo Costa de. et. al. "Prosopografia familiar da Operação 'Lava-Jato' e do Ministério Temer". Revista NEP - Núcleo de Estudos Paranaenses da UFPR, Curitiba, v. 3, n. 1, 2017, p. 1-28. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.5380/nep.v3i3.55093>.
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) que a própria Operação Lava Jato reproduziu as lógicas colonial e familiar em suas práticas judiciais.

O Brasil também tem como parte da sua história duas ditaduras que sobrevivem através de seus subprodutos: a polícia militar, os tribunais e tratamentos especiais para militares, e os mais altos índices no mundo de mortes por policiais (NYT, 2019). Embalada por esse vínculo entre controle e o aparato repressivo, a Operação Lava Jato surfou uma onda de reformas legislativas no sistema de justiça que endureceram as regras penais e processuais penais, restringindo garantias fundamentais e permitindo o uso de Lawfare (KITTRIE, 2016KITTRIE, Orde F. Lawfare: Law as Weapon of War. Oxford: Oxford University Press, 2016.; ROMANO, 2019ROMANO, Silvina María (comp.). Lawfare: guerra judicial y neoliberalismo en América Latina. Buenos Aires: Mármol Izquierdo Eds., 2019.). Leis como a Lei de Lavagem de Dinheiro, de 199816 16 Lei federal n. 9.613/1998. , e a “Lei de Organizações Criminosas'', de 201317 17 Lei federal n. 12.850/2013. , foram instrumentais para a persecução. A última, por exemplo, introduziu o “plea bargain” como uma possibilidade para os acusados. Sem essa possibilidade, a Operação Lava Jato não teria existido como existiu, de forma geral, e, especificamente, na sua dinâmica de “transação negocial” (PACHUKANIS, 2017PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017.: 179)18 18 Ainda segundo Pachukanis (2017: 174): "Essa dicotomia, por meio da qual o próprio poder estatal surge no papel de parte (o promotor) e no papel de juiz, demonstra que o processo penal, como forma jurídica, é indissociável da forma mais geral do contrato. O promotor, como é esperado de uma 'parte', reclama um 'valor alto', ou seja, uma pena severa, o infrator solicita uma indulgência - 'um desconto' -, e o tribunal decide pela 'justiça'. Coloque completamente de lado essa forma de contrato e você privará o processo penal da sua 'alma jurídica'". Na linha da crítica soviética ao Direito, importante destacar o papel de Stutchka, conferir: PAZELLO, SOARES, 2020. . Por exemplo, ao se requerer (MPF) e proferir (Moro) decisões judiciais para a prisão cautelar de investigados e acusados, estes passaram a ver vantagens em “colaborações premiadas”, nas quais vieram a delatar outras pessoas em troca de redução de penas.

A Operação Lava Jato é também parte de um movimento mais amplo na sociedade brasileira, que passou a demandar ação contra a corrupção específica e alegadamente causada pelo Partido dos Trabalhadores (PT). Tal movimento existe pelo menos desde 2006. O “combate à corrupção” tem história na política brasileira (por exemplo, na conjuntura pré-golpe de 1964), mas o seu ressurgimento e a sua vinculação ao PT19 19 Como já afirmamos, “este partido (o PT) representou a esperança de muitos brasileiros após a ditadura militar (1964-1985) devido à sua mensagem e seus mecanismos de participação. Os escândalos de corrupção atacaram não apenas os políticos do PT, mas também os sonhos de muitos brasileiros” (BELLO, CAPELA, KELLER, 2020). está conectado ao amplamente midiatizado escândalo do "mensalão" (Ação Penal 470, STF)20 20 Em 2006, ministros do STF invocaram a “teoria do domínio do fato” - desenvolvida pelo criminalista alemão Claus Roxin - para condenar os réus. Em 2012, o STF considerou alguns dos réus como culpados por causa da sua posição hierárquica superior no governo, que pressuporia um dever de se conhecer atos praticados por seus subordinados. Roxin e seus pupilos consideraram que tal teoria foi erroneamente usada pelo STF (GRECO, LEITE, 2013). .

A Operação Lava Jato também está inserida em um processo maior de uma crise econômica que remonta a 2008 (CHESNAIS, 2017CHESNAIS, François. Finance Capital Today: Corporations and banks in the Lasting Global Slump. Chicago: Haymarket, 2017.), mas que, de fato, somente atingiu o Brasil em 2014, ano em que a Operação Lava Jato oficialmente começou suas atividades. Quando o mercado financeiro nos EUA colapsou, o Brasil inicialmente foi capaz de resistir ao estouro, por vários motivos (BIANCARELLI, 2014BIANCARELLI, André M. "A Era Lula e sua questão econômica principal crescimento, mercado interno e distribuição de renda". Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, Brasil, n. 58, 2014, p. 263-288. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-901X.v0i58p263-288>.
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; SICSU, 2019), mas, começando no ano de 2014, o Brasil entrou em uma depressão que o levou a retrações de 3,55% e 3,28% em 2015 e 2016, respectivamente.

Por fim, a Operação Lava Jato também se vincula aos imensos protestos urbanos ("jornadas de junho") de 2013, que marcaram um momento de vasta e heterogênea crítica ao sistema político e clamor por amplas reformas sociais. O que começou como protestos contra a brutalidade policial, a favor de mais e melhores serviços públicos, assim como a desaprovação ao imenso dispêndio de recursos pelo Estado brasileiro em estádios para a Copa do Mundo FIFA de 2014, terminou questionando o sistema político como um todo, repetindo a retórica da “corrupção endêmica e sistêmica” da política brasileira. Durante esses protestos, entidades representativas dos agentes da Polícia Federal e membros do Ministério Público investiram em publicidade para pleitear um aumento dos seus poderes investigativos. E insistiram que esse seu segmento era o único capaz de pôr fim à corrupção.

A Operação Lava Jato, então, vem à cena e se vincula a processos que já estavam em curso. A interação e as conexões estabelecidas entre a Lava Jato e todos esses processos é o que permitiu que seus atores fossem, em nossos termos, interpelados a desafiar o sistema político para desestabilizar o bloco hegemônico no poder (POULANTZAS, 1977POULANTZAS, Nicos. As transformações atuais do Estado, a crise política e a crise do Estado. In: Idem. O Estado em crise. Rio de Janeiro: Graal, 1977, p. 03-41.), que havia se constituído em torno do Partido dos Trabalhadores desde 2002. É a multiplicidade e a conectividade de processos grandes e complexos que empurra adiante a crise política do Brasil como um todo. Seria um equívoco supor, por exemplo, que o judiciário foi o único “sujeito” da crise ou responsável por ela. O que o permitiu fortalecer e empoderar esses processos foi a conexão especial do judiciário com todos os supracitados processos, seu acesso privilegiado a informações (casos criminais e investigações lideradas por eles), e, finalmente, sua habilidade para produzir uma narrativa que interpelou e mobilizou forças sociais e estatais em nome de uma “boa” moralidade.

4.2. A Narrativa da Operação Lava Jato

A “história completa” do desenvolvimento da Operação Lava Jato é imensa, com múltiplos giros e transformações, ascensão e queda de diferentes e numerosas personagens, e capítulos que, por si, demandariam uma pesquisa própria21 21 É o caso, por exemplo, da relação entre os procuradores brasileiros do MPF e investigadores do FBI. . Não podemos fazê-lo por completo nos limites deste artigo, mas trazemos um panorama geral com explicações em profundidade sobre eventos específicos que consideramos marcantes. A Operação Lava Jato começou como uma força-tarefa que incluiu delegados e agentes da Polícia Federal e membros do Ministério Público Federal, em articulação com juízes federais, como depois se soube pelas revelações do Intercept Brasil. A Operação supostamente inicia como uma investigação sobre lavagem de dinheiro conectada a um parlamentar do Estado do Paraná e, conforme se desenvolveu, culminou explorando condutas consideradas reprováveis de vários políticos e empresários de alto escalão, em alegada conexão com a companhia estatal Petrobrás - uma das maiores petroleiras do mundo.

A Operação como um todo teve/tem diversas “fases”, marcadas pela captura e pelo aprisionamento de pessoas públicas: políticos ou empresários de algumas das maiores companhias do Brasil. Os alvos das fases foram/são usualmente sinalizados pelos nomes dados a elas pelos policiais federais e procuradores da república. Os nomes são criativos e incluem “Dolce Vita”, “Casablanca”, “Julgamento Final”, “Radioatividade”, entre outros. Cada nome foi, tipicamente, tema de explicações pelos policiais e procuradores, que não somente permitiram à imprensa cobrir a Operação Lava Jato a cada um de seus atos, mas também concederam extensas e pirotécnicas entrevistas coletivas logo em seguida às operações. Eles se utilizavam dessas oportunidades para explicar o que encontraram, o que esperavam entender e, no que se tornou um símbolo da Lava Jato, quem eles acreditavam ser o “chefe” de todo o "esquema criminoso" - Luiz Inácio Lula da Silva.

O Partido dos Trabalhadores foi a principal força política no Brasil desde 2002. Suas conexões com a Petrobrás e com outros setores de negócios no Brasil foram, portanto, inevitáveis, considerando as estruturas do Estado capitalista (POULANTZAS, 2008POULANTZAS, Nicos. The Poulantzas Reader. New York: Verso, 2008.: 302). O escândalo em 2006 já tinha indicado corrupção no/do governo federal, mas a investigação nunca alcançou Lula, que veio a se tornar o presidente mais popular da história do país22 22 Com aprovação de 83% no último mês do seu segundo mandato (VEJA, 2010). . Não é demais lembrar que Lula é o primeiro e único operário a ser eleito Presidente no Brasil. Antes disso, ele foi o rosto, a imagem, do Partido dos Trabalhadores desde a sua criação na década de 80 - sobretudo devido ao seu papel em grandes greves durante a ditadura civil-militar-empresarial (1964-1985). Sua imagem, portanto, acabou atrelada ao processo de luta e de disputa por ampliação de direitos de uma parcela considerável da sociedade. Com isso, não buscamos justificar, inocentar ou tecer qualquer comentário sobre a culpabilidade criminal de Lula. Queremos apenas ressaltar os fatos que se tornaram relevantes para o deslinde da narrativa.

A Operação Lava Jato eventualmente conduziria à prisão de Lula, em uma ida e vinda judicial que foi intensamente televisionada e discutida por canais de notícias, analistas políticos e nas ruas. A perseguição a Lula foi o principal tópico por mais de um ano no Brasil e, o que é relevante, influenciou diretamente no impeachment de Dilma Rousseff em 2016 e na eleição de Jair Bolsonaro em 2018. Durante investigação, em 04 de março de 2016, às 6h da manhã (primeiro horário do dia autorizado por lei), a Polícia Federal chegou à residência de Lula acompanhada por órgãos de imprensa, para cumprir ordem judicial de Moro para a condução coercitiva do investigado, da cidade de São Bernardo do Campo (SP) para a de Curitiba (PR), para prestar depoimento. Discutiu-se se foram preenchidos os requisitos legais autorizadores dessa medida (art. 260, CPP), diante da ausência de intimação prévia e de recusa do investigado a comparecer a interrogatório. Lula não chegou a viajar, graças a seus advogados, mas o noticiário não trazia outro assunto em televisão, rádio e internet.

Quanto ao impeachment, um momento específico ilustra: 1) a capacidade da Operação Lava Jato de agir e produzir efeitos na política e na reorganização do bloco hegemônico no poder; e 2) seu modo de funcionamento em conjunção com a mídia. No dia 16 de março de 2016, o então juiz Sergio Moro deu ao maior conglomerado de mídia empresarial do Brasil, as Organizações Globo, acesso ao teor de áudios sigilosos de interceptações em linhas telefônicas do Palácio do Planalto (inclusive do gabinete da Presidência da República) e de centenas de clientes do escritório de advocacia dos patronos de Lula. Em um diálogo entre a então Presidenta Dilma Rousseff e o ex-Presidente Lula, ela o ofereceu um cargo em seu governo. Dilma já estava submetida ao processo de impeachment, em parte devido aos escândalos da Operação Lava Jato, que já incluíam Lula. Para angariar apoio e ajudar o próprio Lula, Dilma o convidou a se tornar seu Ministro-Chefe da Casa Civil, cargo cujos ocupantes somente podem ser processados e julgados perante o Supremo Tribunal Federal. Esta prerrogativa inerente ao cargo foi um dos elementos questionados pela narrativa da Operação Lava Jato. Esta invocava a lógica de que todas as pessoas deveriam ser julgadas igualmente, pelos mesmos tribunais, porque “privilégios”, como essas imunidades, tendem a beneficiar os poderosos.

Moro menciona em sua decisão a “ampla defesa” e o “saudável escrutínio público”, afirmando que “pelo teor dos diálogos degravados, constata-se que o ex-presidente já sabia ou pelo menos desconfiava de que estaria sendo interceptado pela Polícia Federal, comprometendo a espontaneidade e a credibilidade de diversos dos diálogos” (MORO, 2016MORO, Sergio F. "Sergio Moro explica sua visão da Justiça". Revista Exame. 20 mai. 2016. 2016(c). Disponível em: <https://exame.com/revista-exame/sergio-moro-explica-sua-visao-da-justica/>. Acesso 3 jun. 2020.
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b). A defesa de Lula alegou que os diálogos divulgados por Moro foram obtidos em momento posterior ao do encerramento da referida interceptação telefônica, caracterizando-se como medida ilegal e inconstitucional, por violação à soberania nacional e a garantias fundamentais do acusado.

No dia seguinte, Moro reconheceu a irregularidade da sua conduta, mas não voltou atrás: “Determinei a interrupção da interceptação, por despacho de 16/03/2016, às 11:12:22 (evento 112). Entre a decisão e a implementação da ordem junto às operadoras, colhido novo diálogo telefônico, às 13:32, juntado pela autoridade policial no evento 133. Não havia reparado antes no ponto, mas não vejo maior relevância” (MORO, 2016MORO, Sergio F. "Sergio Moro explica sua visão da Justiça". Revista Exame. 20 mai. 2016. 2016(c). Disponível em: <https://exame.com/revista-exame/sergio-moro-explica-sua-visao-da-justica/>. Acesso 3 jun. 2020.
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a). Em termos políticos, esse vazamento inviabilizou a nomeação de Lula para a chefia da Casa Civil e contribuiu para a escalada do processo de impeachment de Dilma Rousseff. No âmbito jurídico, Moro foi alvo de representação junto ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que não resultou em sanção. Ao entregar as gravações com as chamadas telefônicas à imprensa, que as exibiu repetidamente durante dias, Moro, por um lado, reforçou as conexões entre a Operação Lava Jato e a mídia, dando conteúdo exclusivo, chamativo, fascinante, elevando a audiência, e, por outro, incrementou a narrativa que unia elementos e os justificava em um enredo de redenção, limpeza, solução, de um problema social crônico: a corrupção endêmica.

Vê-se aí, portanto, um encontro entre interesses, desejos e funções que não necessariamente buscam o mesmo fim. O judiciário por um lado busca “normalizar” a sociedade e, portanto, vê-se no papel de falar a ela, de dizer o que é “correto”, podendo, para tanto, querer ampla divulgação através dos meios de comunicação em massa. A grande mídia, por mais que possa também ter esse interesse (de normalizar a sociedade23 23 É relevante lembrar que a grande mídia se financia através de verbas publicitárias tanto de empresas privadas quanto do próprio governo, tendo vínculos estruturais com o mercado e o Estado como condição de funcionamento. Sobre isso, veja-se: BOLAÑO, 2000. ), pauta-se pelo “valor notícia” (HALL et. al., 2013: 50). Assim, o acesso a informações que atores como magistrados têm e também desejam ver divulgadas é valioso porque pouquíssimas outras pessoas o possuem. Esse acesso a detalhes, que são de outra maneira indisponíveis, torna juízes e outros membros do poder instituído “fontes” privilegiadas: pessoas que podem revelar informações emocionantes e novas.

O interesse da mídia é estruturalmente atrelado ao desejo do judiciário de apresentar tais informações, mas acrescenta também, diríamos, o fator “escândalo”, ou algo que possa ser consumido como um espetáculo (HALL et. al., 2013: 59). Nesses termos, o fato de alguns crimes envolverem políticos famosos incrementa o “interesse jornalístico” porque atrai audiência. Tal perspectiva é importante porque a mídia, assim como qualquer outra empresa capitalista, também busca lucro e o faz através da constituição de uma audiência (BOLANO, 2000BOLAÑO, César. Indústria Cultural, Informação e Capitalismo. São Paulo: Hucitec/Polis, 2000.: 50). Em outras palavras, a história que a mídia conta às pessoas sobre a “realidade” da vida deve ser funcional no sentido ideológico, também, mas o é sobretudo porque produz um espetáculo que tenta competir e ser mais valorosa que outras possíveis histórias.

No Brasil, a produção de imagens e histórias é uma função típica dos principais veículos jornalísticos, não apenas quando isso pertence aos “fatos reais” - ou jornalístico -, mas também à “ficção”. Globo, Record, Band, SBT, todas produzem populares novelas, nas quais vendem narrativas do que é a história contemporânea ou pretérita do Brasil. Talvez por essa razão, a Operação Lava Jato não teve dificuldade em funcionar como mais uma novela. Não porque os atores da Lava Jato pensavam em reproduzir a “Malhação” jurídica, mas porque a própria estrutura usada para explicar, para contar algo, acaba se apoiando em formas que já existem e são efetivas. Ainda mais quando o meio usado para difundir a mensagem é o mesmo que produz histórias, narrativas, na chave fictícia.

Em 14 de setembro de 2016, Lula passou de investigado a réu. Dallagnol ajuizou a ação penal perante Moro e performativamente, diante da imprensa, produziu o famigerado Powerpoint, a fim de demonstrar os fundamentos da petição inicial. A peça de denúncia do procurador referiu, por quinze vezes, ao fato de Lula ter formado, em favor do PT, um “colchão” de recursos ilícitos para abastecer campanhas eleitorais visando à perpetuação criminosa no poder. Não se tratou de mera imputação de conduta delituosa a Lula, mas de formação de juízo político que, por sua vez, interpelava agentes à necessidade de uma estratégia política contraposta para refrear o PT em si. Mais que um processo judicial, era necessária uma “luta” contra a existência concreta de plano de manutenção “criminosa” no poder (KELLER, 2019KELLER, Rene José. A Ofensiva do Conservadorismo: luta de classes e crise do socialismo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019.).

Em 12 de julho de 2017 (menos de um ano do início da ação penal), Lula passou de réu a condenado. Em sentença de 238 laudas, o então juiz Sergio Moro (2017MORO, Sergio F. Sentença - Ação Penal nº 5046512-94.2016.4.04.7000/PR. 12/07/2017.Disponível em: <http://conteudo.imguol.com.br/c/noticias/pdf/sentenca_lula.pdf>. Acesso em 20 jan. de 2020.
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) condenou Lula à pena privativa de liberdade (9 anos e 6 meses), pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro. A imprensa reproduziu exaustivamente o fato como notícia, o que é típico do "momento espetacular do pronunciamento da sentença e da determinação da 'medida penal'" (PACHUKANIS, 2017PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017.: 178).

Em síntese, o argumento de Moro é que Lula obteve vantagem indevida ao visitar, em três oportunidades, apartamento de propriedade da empreiteira OAS, que custeou reformas no imóvel e teria sido favorecida com verba da Petrobrás enquanto Lula era presidente da República. Crucial na motivação de Moro, o depoimento do ex-presidente da OAS, Léo Pinheiro, foi obtido a partir delação em acordo de colaboração premiada (aquele da Lei n. 12.850/2013, que reduz penas de réus delatores), que foi questionada pela defesa de Lula: “Na prisão, Pinheiro fabricou uma versão para incriminar Lula em troca de benefícios negociados com procuradores” (CC, 2019).

Em 24 de janeiro de 2018, seis meses após a prolação da sentença, a 8ª Turma do TRF da 4ª Região julgou os recursos de Lula e do MPF, e, por unanimidade, manteve a decisão de Moro e majorou a pena para 12 anos e 1 mês de prisão, com início em regime fechado.24 24 O julgamento desses recursos ocorreu em tempo recorde, considerada a rotina do Tribunal, que julga recursos em média de 335 dias (cerca de 11 meses) (CONJUR, 2018). Lula foi o único entre outros 37 acusados já condenados pela mesma 8ª Turma do TRF da 4ª Região a ter mandado de prisão expedido com base na decisão do STF no HC 126.292/SP, que permitia a prisão por condenação em segunda instância. A confirmação da sentença, sempre lembrada por Moro quando sua imparcialidade é questionada, ilustra que, de fato, não se trata de um processo produzido ou conduzido por um indivíduo, mas em e por uma estrutura.

O ápice do enredo da Lava Jato ocorreu em 7 de abril de 2018, quando Lula passou de condenado a detento. Moro finalmente conseguiu prender Lula, com enorme cobertura midiática, seis meses antes das eleições presidenciais. Lula era o líder nas pesquisas de opinião, tentou manter sua candidatura, mas foi impedido por decisão do Tribunal Superior Eleitoral, baseada na Lei da Ficha Limpa. Lula estava na frente de Bolsonaro, que, antes de ser eleito, convidou Moro a ser seu Ministro da Justiça25 25 O fato hoje é de público conhecimento no Brasil e tem como referência a reportagem: UOL, 2019. . O aceite do convite - quando Moro ainda era juiz -- incrementou teorias que viam na Lava Jato conspiração contra o PT, ou uma frente de heróis (Moro, Dallagnol e, depois, o "mito" Bolsonaro) para uma limpar a política brasileira.

Independentemente desses desejos existirem, ou não, é fato que a Operação Lava Jato produziu e utilizou imagens e retratos de uma sociedade que necessitava ser normalizada, limpa, ou curada (MORO, 2016MORO, Sergio F. "Sergio Moro explica sua visão da Justiça". Revista Exame. 20 mai. 2016. 2016(c). Disponível em: <https://exame.com/revista-exame/sergio-moro-explica-sua-visao-da-justica/>. Acesso 3 jun. 2020.
https://exame.com/revista-exame/sergio-m...
; BARROSO, 2019BARROSO, Luís Roberto. "Ministro Barroso disserta sobre combate à corrupção e refundação do Brasil". Migalhas. 1 abr. 2019. Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/quentes/299321/ministro-barroso-disserta-sobre-combate-a-corrupcao-e-refundacao-do-brasil>. Acesso em 15 jul. 2020.
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)26 26 Acerca da crítica às formas fetichizadas de compreensão da realidade jurídica: RIVERA-LUGO, 2020. . O então juiz Moro, o procurador da república Dallagnol e outros representantes do sistema judiciário afirmaram, durante toda a Operação, a importância de se falar, de se mandar mensagens, para toda a sociedade.

A corrupção, como crime isolado, existe em qualquer lugar do mundo, mas a corrupção sistêmica, o pagamento de propina como regra do jogo, não é assim tão comum, representando uma severa degeneração dos costumes públicos e privados. (...) O governo é o principal responsável por criar um ambiente político e econômico livre da corrupção sistêmica. Ele, com maior visibilidade e poder, ensina pelo exemplo. Agentes corrompidos devem ser expulsos da vida pública. (...) É preciso ter presente que a corrupção sistêmica é produto de uma fraqueza institucional e cultural. (MORO, 2016MORO, Sergio F. "Sergio Moro explica sua visão da Justiça". Revista Exame. 20 mai. 2016. 2016(c). Disponível em: <https://exame.com/revista-exame/sergio-moro-explica-sua-visao-da-justica/>. Acesso 3 jun. 2020.
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) (grifos nossos).

Isso nos remete à função que Stuart Hall aponta como fundamental para o funcionamento da mídia: traduzir a linguagem do poder, ou aquilo que os interpelados pelo poder querem falar, para a população. E a mídia faz isso através dos elementos discursivos que ela supõe já fazerem parte do léxico de sua audiência. A relação entre judiciário e imprensa, neste caso, acaba sendo estruturalmente imbricada porque um lado quer a informação para incrementar sua audiência, o outro quer a audiência para dar vazão máxima às suas mensagens, que, por sua vez, precisa ser bem traduzida, ou contextualizada. E isso demanda, pois, maneiras específicas de falar, de se reportar a Operação, por parte de seus integrantes. Se Dallagnol, Moro e Barroso julgavam que precisavam educar as pessoas e mudar a cultura nacional, suas mensagens precisavam dialogar com os elementos discursivos já presentes, existentes e, caso contrário, seria papel da mídia auxiliá-los.

Não deve surpreender que o discurso lavajatista invoque termos morais, típicos de um romance com personagens pouco complexas e enredo que buscava chocar com frases de efeito. O próprio discurso jurídico tem elementos narrativos típicos e a própria sentença constrói um enredo com esses componentes simplistas: com figuras e recursos que lhes são peculiarmente piegas. Esse discurso e o formato que normalmente o envelopa são, entretanto, rearranjados quando “feitos para a televisão”. Não necessariamente por desejo, vontade ou desígnio dos juízes, procuradores ou delegados.

O discurso da Lava Jato, então, não pode ser confundido ou entendido somente pelo que é dito por um ou outro membro, mas, sobretudo, pela prática (que inclui discursos) e pelas imagens (que também inclui os símbolos do discurso) da prática da Operação. Esses discursos-práticos, que se somavam ao dito e o incluía, eram simples (e, por isso, efetivos): mostravam funcionários públicos (supostamente em seus cargos por mérito) em contraposição àqueles que estavam em posições de poder por usurpação. Era, então, necessário superar um passado sombrio de patrimonialismo/corrupção (o mau) e refundar o Brasil através de um processo de modernização - representado pelo mérito dos procuradores e do brilhante juiz (o bom).

É a “evidência”, a “obviedade”, do mérito, da modernização, do bom, do mau e até do problema brasileiro, que nos remete ao ideológico, no sentido daquilo que é naturalizado27 27 Conforme Hall (2017: 69): “(...) a cadeia de equivalência que a categoria de raça torna possível entre diferenças genéticas, físicas, sociais e culturais não existe realmente. Mas, não obstante, mantém-se presente no mundo, nos significados que usamos para dar sentido à vida social e práticas sociais em todos os lugares, mas também, apesar de ser só um discurso, tem, por isso mesmo, uma realidade porque possui efeitos raciais: efeitos materiais em como o poder e recursos são distribuídos(...)”. . A narrativa apresenta os elementos vinculados como algo incontestável, manifesto, notório, não necessariamente pelo drama que nos é apresentado, mas pelo palco que a permite funcionar de uma ou outra forma28 28 De acordo com Jameson (1982: 57): “A originalidade da interpretação Althusseriana [...] é que ela entende o trabalho ou o texto não através de seu processo genético no qual ele é entendido como emergindo deste ou daquele momento de forma ou estilo; nem é extrinsecamente ligado a algum fundamento ou contexto que é dado ao menos inicialmente como algo que vai além dele (do texto). Ao contrário, os dados do texto são interrogados em seus termos formais ou lógicos e, mais propriamente, nas condições de possibilidade de sua semântica própria”. . A ideologia da forma da Lava Jato se dá pelos termos que somos obrigados a aceitar para entender seu deslinde. Somos chamados, interpelados, a opinar sobre o processo dentro de determinados parâmetros que não são, em si, questionáveis porque óbvios, necessários, imediatamente palpáveis.

Podemos, inclusive, entender desta maneira a chamada do ministro do STF, Luís Roberto Barroso, para se entender a Lava Jato como um processo “não-ideológico”. Segundo ele, a Operação está acima de qualquer interesse político, porque tenta estabelecer o “aceitável”. Barroso, assim, faz valer a afirmação de Barthes - “a burguesia funciona e é definida como a classe social que não quer dizer seu nome” (2012, p. 250):

Minha crença num momento de refundação do país não guarda relação com as recentes eleições ou este ou aquele governo - é independente de ideologias. Baseia-se, ao contrário, nas mudanças ocorridas na sociedade civil, que deixou de aceitar o inaceitável e desenvolveu uma imensa demanda por integridade, idealismo e patriotismo. (BARROSO, 2019BARROSO, Luís Roberto. "Ministro Barroso disserta sobre combate à corrupção e refundação do Brasil". Migalhas. 1 abr. 2019. Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/quentes/299321/ministro-barroso-disserta-sobre-combate-a-corrupcao-e-refundacao-do-brasil>. Acesso em 15 jul. 2020.
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).

Interessante notar, conforme explicado adiante, que o formato típico da novela moderna invoca o heroísmo burguês em duas variantes: a do visionário modernizador e a do saudosista romântico; ou, em termos políticos, a do liberalismo clássico e a do nacionalismo antiquado (JAMESON, 1982JAMESON, Fredric. The political unconscious. New York: Cornell University Press, 1982.: 14). Em ambos os casos, a história contada no romance tende a explicar ou dar vazão a uma história coletiva, vivida e experimentada transindividualmente, através do destino, ou luta, de um indivíduo, ou alguns indivíduos especiais: “as dimensões transindividuais da primeira narrativa são, então, drasticamente reduzidas às da segunda” (JAMESON, 1982: 30). As semelhanças entre tais papéis heroicos e as personagens principais da Lava Jato são consideráveis, como esperamos demonstrar.

5. Narrativa como estrutura e seus elementos na Operação Lava Jato

Ao nosso ver, a Operação Lava Jato produziu uma narrativa que nada mais é que o efeito de processos sociais que se encontraram impregnados na relação estrutural entre o judiciário e a mídia. Nos termos de Poulantzas (2008POULANTZAS, Nicos. The Poulantzas Reader. New York: Verso, 2008.: 314), a crise ideológica é produzida e depois manifesta nos aparatos ideológicos do Estado através de funcionários do Estado ou representantes políticos de frações de classe que buscam reorganizar ou restabelecer a unidade do Estado.

Porém, é importante ressaltar que quando falamos que o discurso produzido pelas práticas e imagens da Operação tem esse caráter narrativo que, por sua vez, também é ideológico, não estamos invocando a possibilidade de um discurso não-narrativo ou de práticas não-ideológicas capazes de desvendar o oculto. Não se trata disso. Não porque descartamos a possibilidade de existir um discurso, por exemplo científico (ALTHUSSER et. al., 2015: 293), que se distingua do discurso ideológico, mas porque, também com Althusser (2014ALTHUSSER, Louis. On Reproduction. London / New York: Verso, 2014.: 192), entendemos que se tal discurso existe, o tal "discurso sem sujeito" típico da ciência, ele não é existente de antemão. Isto é, não depende de um sujeito anterior que estaria fora da ideologia por capacidades próprias. Isso seria reforçar o enredo heroico e, mais, acreditar nele.

Diríamos, nos termos de Jameson (1982JAMESON, Fredric. The political unconscious. New York: Cornell University Press, 1982.: 35), que a História ou o Real não são um texto, ou tampouco uma narrativa, mas, como causa ausente, ela (a História) e ele (o Real) são inacessíveis a nós a não ser em sua forma textual, narrativa. Com Althusser, afirmamos que todo sujeito está e funciona dentro de ideologia no sentido que adotamos - uma “estrutura representacional que permite ao sujeito individualizado conceber ou imaginar sua experiência em relação a realidades transpessoais” (JAMESON, 1982JAMESON, Fredric. The political unconscious. New York: Cornell University Press, 1982.: 30). Isso significa que o efeito narrativo, o espaço discursivo, ou, melhor dizendo, a produção de discursos que cristalizam “linhas de força” capazes de contar uma história sobre nosso mundo, é fruto de disputas e lutas sociais que - por meio de interação, iterações e relações de poder específicas - rearranjam elementos que se conectam a fim de estabelecer o “normal”, o “evidente”, o “óbvio”.

É nesse sentido que entendemos a Operação Lava Jato. Ela é também um processo de disputa social. Ela é um processo que produziu uma narrativa em razão, ou como efeito, da tentativa prática de reorganizar, desarticular, o bloco hegemônico no poder até então capitaneado pelo Partido dos Trabalhadores. Apesar de o bloco hegemônico ter sido estável por um período, a crise econômica mundial, a crise política localizada, a reconfiguração de relações de produção devido a avanços tecnológicos, tudo isso interrompeu os termos do sempre instável compromisso. A interrupção foi expressada, foi dada voz, pelos atos de frações de classe que se valeram de específicos aparelhos do Estado, como o judiciário, para requerer e reafirmar a necessidade de recompor, reorganizar, unificar a nação em torno de um “outro tipo” de Estado29 29 Sobre a especificidade do Estado no Brasil, veja-se: BERCOVICI (2004). . Esta é, via de regra, a retórica dos que almejam liderar uma “outra” hegemonia. A Operação Lava Jato, melhor entendida, é um sintoma, um efeito e uma das representações de uma crise - assim como é também uma tentativa na reorganização, em múltiplos níveis, da formação social brasileira.

Os elementos da narratividade da Lava Jato - ou as figuras e caracteres que dão sentido ao desfecho em sua totalidade - são primordialmente, mas não só, as que invocam heróis e vilões. Entender, por exemplo, o direito penal do inimigo como tal (como algo que invoca um inimigo da sociedade), e como parte do processo de confirmação da Lava Jato desde o mensalão, é entender a necessidade de constituir algo/alguém como inimigo. O inimigo, nos termos de Hall et. al. (1978HALL, Stuart. et. al. Policing the crisis: Mugging, the State, and Law and Order. London / New York: The MacMillan Press, 1978.), é, para o direito penal, aquele/aquilo que interrompe, desestabiliza, o consenso social expresso em leis. Entender isso nos faz perceber, com Althusser, que o inimigo é também quem chama atenção para a instabilidade e a não compreensividade do acordo social. Seja porque demonstra a natureza violenta de qualquer acordo que se assenta (excluindo os que não se adequam), seja pela importância de estabelecer, na formação do consenso, aquilo que não se encaixa. Na formação social brasileira, o inimigo é uma peça racializada, dentre outras razões, pela reprodução das condições sociais da sociedade brasileira através do direito penal. O direito penal, portanto, reforça e reproduz a história/legado da escravidão que permanece incrustada nas instituições de poder. Quando dissemos que a estrutura social brasileira é racista, portanto, é porque ela funciona, também, através do poder racializado no sentido de Fanon30 30 Fanon se refere ao “inconsciente europeu” não no sentido daquele que está na Europa, mas daquele que se alastra, também, pelo imperialismo e colonização. Logo, é, ao nosso ver, também aplicável ao Brasil. :

Nas profundezas do inconsciente europeu elaborou-se um emblema excessivamente negro, onde estão adormecidas as pulsões mais imorais, os desejos menos confessáveis. E como todo homem se eleva em direção à brancura e à luz, o europeu quis rejeitar este não-civilizado que tentava se defender. Quando a civilização europeia entrou em contato com o mundo negro, com esses povos selvagens, todo o mundo concordou: esses pretos eram o princípio do mal.

Normalmente Jung assimila o estrangeiro à obscuridade, à má tendência: e tem perfeitamente razão. Este mecanismo de projeção, ou de transitivismo, foi descrito pela psicanálise clássica. Na medida em que descubro em mim algo de insólito, de repreensível, só tenho uma solução: livrar-me dele, atribuir sua paternidade ao outro. Assim, ponho fim a um circuito tensional que poderia comprometer meu equilíbrio (...) Na Europa, o preto tem uma função: representar os sentimentos inferiores, as más tendências, o lado obscuro da alma. No inconsciente coletivo do homo occidentalis, o preto, ou melhor, a cor negra, simboliza o mal, o pecado, a miséria, a morte, a guerra, a fome. (FANON, 2008FANON, Frantz. Black skin, white masks. New York: Groove Press, 2008.: 161).

Já o herói, em nossa perspectiva, corresponde não necessariamente à figura extraordinária ou extremamente capaz, apesar de ela ser assim tratada. E apesar de ser esse o papel que lhe é atribuído. O herói é, antes de tudo, conforme explica Althusser, o ponto de vista privilegiado, a visão totalizante predominante, tal como é personalizada. A forma-narrativa da Lava Jato, por exemplo, possuía ao mesmo tempo em que criou posições e visões privilegiadas do processo em contraposição àquela que (também privilegiada em seu antagonismo) representava o mal a ser combatido. De um lado, requeria, em razão dos múltiplos processos e das disputas sociais que produziram e emergiram na crise geral, a destituição do PT de sua posição privilegiada no arranjo do bloco no poder e, de outro, demandava novas figuras e novos elementos capazes de ocupar esta posição. Moro, Dallagnol etc. cumpriram a primeira, Bolsonaro cumpre a segunda. Novamente, não se pode entender aqui que esse era o “plano” ou que havia uma disposição consciente neste sentido, mas que processos sociais interpelaram e constituíram sujeitos em seus papéis que estariam aptos a cumprir tais funções. E, sobretudo, que só foram aptos porque o fizeram, porque sabemos, hoje, que foram capazes. O herói nunca o é antes de processos e só se torna herói na tentativa de realizar aquilo que parecia necessário. Ou falha e vira mártir, ou tem sucesso e concentra mais e novas demandas.

Outra forma de dizer isso - sem “sujeitos” propriamente ditos - seria afirmar a existência de várias táticas de poder que se vinculam através de articulações e encontros e, assim, formam estratégias (FOUCAULT, 1990FOUCAULT, Michel. The History of Sexuality. Volume 1: an Introduction. New York: Vintage Books, 1990.: 98). As estratégias em si conjugam fragmentos de discursos por vezes complementares, por vezes contraditórios, mas, na maioria das vezes, tanto complementares quanto contraditórios. Tal visão reafirma nossa tese de que consensos não preexistem ou pré-formulam ações, mas são produzidos por encontros contingenciais instáveis, tanto no que afirmam quanto no que negam, de modo a realçar tanto o dito quanto o não dito naquilo que concordam e discordam entre si.

Fredric Jameson (1982JAMESON, Fredric. The political unconscious. New York: Cornell University Press, 1982.) argumenta que a nítida destituição desse acordo, ou, nos termos dele, a perda da capacidade narrativa, é um dos sintomas de crise - pelo menos no domínio político e ideológico. Isto é, há uma desarticulação de fragmentos de discurso. Jameson entende que a Ideologia une, determina os termos, estabelece as bases para outras explicações. Para ele, a narração tem uma estrutura, uma forma, que permite tal “cimentação” ou “unificação”. A narrativa é um dispositivo de forma, um “dispositivo para dar forma” que conecta eventos, personagens e imagens em uma corrente que parece necessária, que parece ser a causa imediata, ou mediata, de nosso mundo atual (WHITE, 1990WHITE, Hayden. The content of the form. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1990.). Um dos aspectos fundamentais da narrativa, mais do que os elementos que esta conjuga, é o enredo, ou as conexões lógicas e não ditas entre tais elementos. É através do enredo que os fragmentos e contradições, processos e ocorrências críticas são ordenados e selecionados de modo a “dar sentido” às condições caóticas de realidade social. A disputa política, portanto, produz técnicas e mecanismos capazes de “preparar o tecido social para outros investimentos ideológicos” (JAMESON, 1983: 30).

Nesses termos, o que a Operação Lava Jato produz - pela prática, discurso e imagens - não é algo falso, não é irrealista. Seus discursos e sua forma narrativa são realistas, mas também são ideológicos - e é por isso que eles são capazes não só de produzir uma narrativa, mas uma narrativa que seja plausível. O que a forma-narrativa apreende e apresenta são as contradições existentes na sociedade brasileira, especificamente a muito real incapacidade do Partido dos Trabalhadores de efetivamente atacar as estruturas desiguais e produzir novas relações de produção na formação social brasileira - e, ao mesmo tempo, o que ela apresenta como solução, como desfecho, são argumentos, discursos, de caráter moral e moralizantes (ALTHUSSER, 2005ALTHUSSER, Louis. For Marx. London / New York: Verso, 2005.: 140).

É por isso que enquanto tais discursos funcionam com elementos que são “reais”, que apontam para um problema concreto - o desencantamento dos brasileiros que acreditaram na realização de promessas do passado - a narrativa também desloca a solução do problema para o campo sobretudo moral. O herói, por exemplo, odeia o mal e ama a justiça verdadeira, seu caminho é traçado pela devoção a um ideal, ele busca se tornar uma lenda através sua força de vontade, de uma interioridade em potência que se prova apta em sua atualidade. O crime contra o qual o herói luta, além de ser representante absoluto do mal, é contra a coletividade “do bem”, que, diante da corrupção generalizada, se tornou incapaz de agir. O herói age para retomar a normalidade.

A narrativa, então, funciona como um fetiche em dois sentidos complementares. Em primeiro lugar, ao substituir o objeto real da disputa social (a luta de classes) por outro (conflito entre Lula e Moro) devido a “uma conexão simbólica no pensamento sobre o qual a pessoa em questão geralmente não está consciente” (FREUD, 1962: 21). Em segundo lugar, pela repetitividade necessária de uma nova narrativa que, ao tentar se fixar em dominância, lida com o momento traumático que continua “falando”, apesar dela. Ela (a narratividade) apresenta uma solução baseada nos conflitos imediatos, aparentes, visíveis, e não naqueles que são estruturais-estruturantes e, às vezes, invisibilizados. O trauma, ou a ruptura basilar que estrutura a sociedade capitalista, permanece falando através de sintomas e a solução da Lava Jato tende a olhar para ele (o sintoma) ao invés dela (a doença). Busca-se prender Lula, eleger outros e não alterar estruturalmente a sociedade - apesar de esta ser, ao fim, a proposta da forma-narrativa da Lava Jato.

Tal solução nos refere de volta a Jameson. Este entende que narrativas adquirem estilos específicos e criam personagens específicas para explicar o mundo de acordo com mudanças no próprio modo de produção capitalista31 31 Jameson entende que o Romantismo busca resolver, em forma literária, alguns dos incômodos sociais gerados pelas primeiras apreensões das contradições do capitalismo; já o Realismo lida com tais problemas (vividos por mais tempo) como se tal realidade fosse “objetiva”, “dada”; e o Naturalismo reprime tais contradições, cultivando o típico “ressentimento” da novela modernista (WHITE, 1990: 161). . Isto é, a narrativa (seus elementos e sua capacidade explicativa) não decorre somente de si, apesar dela ter alguma autonomia - uma autonomia relativa. A forma narrativa sempre se relaciona, se desloca e dialoga com algo que lhe é “externo”. Por isso, a narrativa tende a transmutar certas oposições presentes no mundo, como entre adversários políticos, em outras, como entre herói e vilão (WHITE, 1990WHITE, Hayden. The content of the form. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1990.: 159).

Para Jameson, porém, não se trata de fazer uso da homologia ou dizer que a literatura, ou qualquer textualização, representa o que acontece no mundo de maneira instantânea e direta. Assim como Althusser, Jameson entende que devemos buscar entender a relação mútua entre aquilo que chamamos de História - a concreta realização de atos, fatos - e a textualização, ou o tornar-texto desta realidade (por meio da ciência da história, ou da literatura). Assim, podemos dizer que a forma narrativa age. E age como estrutura que busca apresentar soluções, ou textualizar a vida social para projetar um específico desfecho. A forma narrativa nos apresenta com a estrutura de uma fantasia política específica (JAMESON, 1982JAMESON, Fredric. The political unconscious. New York: Cornell University Press, 1982.: 48), que é narrada, por imagens e atos, e, assim, passa a ser passível de mapeamento. Pode-se dizer que a atividade da forma narrativa se dá, assim, através do deslocamento e da projeção. Não no sentido de diferenciar absolutamente a realidade objetiva e a fantasia projetada, mas compreendendo que tais estruturas narrativas são veículos para nossa experiência do real.

Um exemplo desse “agir da forma narrativa" pode ser visto em uma das funções operativas de novelas modernas: o que Jameson denomina de “subjetividade exacerbada”32 32 Talvez seu contraponto “real” seja a subjetividade de crise, nos termos de Roitman e Mbembe (1995). - o indivíduo inflamado que rejeita tudo que está “fora”. Esta subjetividade, como solução para os problemas que existem fora de si, se submete ao niilismo ou ingressa em uma cruzada heroica e, em ambos os casos, alimenta o ressentimento, torna o ressentimento um objeto de desejo. O indivíduo ressentido, ou a subjetividade exacerbada da novela moderna, apesar de não “realmente” representar o cotidiano, ainda assim tem relação com ele e, sobretudo, age sobre ele, afetando a maneira como praticamos a vida. É esta forma de narrativa, com um enredo baseado no ressentimento e na exacerbação individual que produz o herói não só como ponto de vista privilegiado, mas também como “imagem controladora” (HILL COLLINS, 2000HILL COLLINS, Patricia. Black feminist thought: knowledge, consciousness, and the politics of empowerment. 2. ed. New York: Routledge Press, 2000.).

Dissemos antes que o herói nada mais é que uma posição privilegiada de onde emana o princípio organizador de uma forma-narrativa, podendo este ser um indivíduo ou um sujeito coletivo. No entanto, “herói” não é apenas isso e, no processo da Lava Jato, cumpre o papel de enfrentar e resolver os problemas sociais através de suas habilidades especiais. Assim, o herói é o ponto de vista privilegiado, o normativo, que age de maneira tanto exacerbada (além dos limites para fixar os limites) quanto o ressentido (“nada mais é como antes”). O herói, nesse sentido, é a forma normativa que age na forma de sujeito.

Tal perspectiva - a que vê em Moro um juiz que extrapola limites em prol do “correto”; ou enxerga Bolsonaro como um autêntico disruptor de um processo político doente - é também exemplificativo do processo de interpelação. O processo ideológico de interpelação produz, por meio de processos sociais dos mais variados, posições, funções, papéis a serem cumpridos e, simultaneamente, recrutam indivíduos concretos para sua realização. Se o processo que produziu a Lava Jato necessitou de heróis tanto no MPF quanto no judiciário e teve seu papel cumprido por Moro, Dallagnol e cia., Bolsonaro surge em cena pela necessidade de alguém realizar a rearticulação dos fragmentos soltos, fruto do desarranjo no bloco hegemônico produzido, em parte, pela Lava Jato. Moro e Bolsonaro, ou a Lava Jato e o bolsonarismo, funcionam, então, num processo de revezamento, retransmissão ou, em termos psicanalíticos, de suporte de um desejo em relação a outro. Eles se encontram e se retroalimentam de modo a produzir uma linha de força capaz de realinhar - ou ao menos tentar realinhar - o funcionamento da formação social capitalista em solo brasileiro.

Nem Moro nem Bolsonaro, portanto, são heróis fora dos processos. Eles só têm sentido e só realizam atos “heroicos” dentro desses processos. Logo, um herói é aquele capaz de realizar o desfecho de uma narrativa que busca dar sentido e tornar “evidente”, ou “óbvio”, o funcionamento social. Como nos filmes de Hollywood, são pessoas apresentadas como tendo habilidades especiais, mas, diferentemente da narrativa hollywoodiana, essas habilidades especiais advêm de contingentes encontros.

Os heróis da narrativa lavajatista foram apresentados em sua capacidade de lutar contra o “crime”, os malfeitores, ou qualquer outra conotação negativa que possa ser dada aos antagonistas, os vilões. Essa “história”, em sua forma, representa um modo de entendimento do mundo, do crime, mas também da possibilidade de mudança. Enquanto podemos dizer que o “mundo”, o “social”, é reconhecido e vivido pela população em seus problemas, a complexidade dos inúmeros processos que produzem a vida torna difícil explicar o porquê de tamanhos obstáculos sociais para uma vida “melhor”. É ainda mais difícil propor uma alternativa. Como apontou Hegel (2015HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Encyclopedia of the philosophical sciences in basic outline: Part 1. Cambridge: Cambridge University Press, 2015.: 15), o desprezo pela razão é, por vezes, vinculado à incapacidade que temos de resolver problemas ou contradições que a mente nos coloca. Essa incapacidade da razão, segundo ele, nos deixa irritados, exacerbados, ressentidos, levando a soluções superficiais e mais fáceis. É diante disso que formas são criadas para descarregar a ansiedade, apesar delas a recarregarem e a aprofundarem continuamente. O herói é uma figura importante justamente por ser um resolvedor de problemas: ele toma as questões do mundo como se fossem suas e luta contra elas em nome de todos. O herói é investido na função de resolver problemas gerais e genéricos, e ele se sacrifica por/para o mundo porque esse é seu destino ou seu dever.

Enquanto o herói atua sobre o mundo ele age sempre como um eu, um sujeito, e, como tal, um agente sobre o "mundo". Um herói representa a impossibilidade de uma pessoa regular mudar a sociedade, ao mesmo tempo em que retorna à lógica individual como única possibilidade de mudá-la: é no cérebro individual que surgem as ideias, é no corpo individual que se pode exercer controle, é ali que encontramos responsabilidade e mérito. A “história” do herói, pois, é também a história do indivíduo extraordinário. É através dessas histórias que temos acesso à personalidade do próprio herói: aquele âmago, aquela essência que o fez o que ele realmente é. O herói deve ser “autêntico” no que faz porque só sua habilidade, ou seu coração, lhe guia ao correto. Ele sabe o certo pelo errado ou, no caso de Bolsonaro, o “necessário” porque seu próprio eu interior já é “bom”, seu coração está “no lugar certo”, mesmo quando erra.

Sergio Moro e Jair Bolsonaro representam bem esta formulação. Ambos, em seus modos específicos, supostamente mostram seu modo autêntico de ser, sua “normalidade” que acaba sendo exacerbada ou ressentida pelas condições sociais. Eles, portanto, expressam o ódio ou a fúria que é coletiva. O modo de ser deles questiona, tal como o herói do melodrama, o mundo pelas figuras que lhes são antagônicas: ele só existe, afinal, para combatê-las. É por isso que tanto Moro quando Bolsonaro praticam, aos olhos do público em geral, uma mudança radical em relação aos “negócios como usualmente são praticados” ou ao “cotidiano” do poder. Ambos representam, tal como o super-herói, um super indivíduo, capaz de forçar a sociedade, mas sobretudo os vilões, à submissão, mudando a vida como a concebemos em direção a algo melhor, seja à modernização nos termos capitalistas, seja o retorno ao passado colonial ou, de preferência, os dois juntos.

6. Considerações finais

Em nossa visão, a Operação Lava Jato se insere em múltiplas e variáveis narrativas, processos ideológicos e desenvolvimentos concretos e históricos; e não só é afetada por eles, mas também produz sua própria narrativa, processo ideológico e desenvolvimento histórico concreto. Com Jameson, entendemos narrativa como ato socialmente simbólico, que de certo modo aumenta e restringe a realidade pela lógica que ela (a narrativa) impõe enquanto produz um enredo, conta histórias, une eventos e fragmentos para que façam sentido como um “todo”.

A Operação Lava Jato produziu e trabalhou dentro de estruturas de uma narrativa porque transmitiu mensagens, constituiu sujeitos, personagens, figuras e delineou um enredo. E o fez efetivamente por causa da estrutura da Ideologia, por um lado, e de suas promessas materiais reais, como a prisão de Lula, por outro. Ideologia é um processo contínuo que existe somente em seu funcionamento real, material, de dar sentido, em última instância, à reprodução de relações de produção. E o faz por meio de práticas efetivas, atuantes. Entendemos que a narrativa da Lava Jato é fruto de um encadeamento de atos e práticas que acabam promovendo uma contenção ou fechamento, no sentido adotado por Jameson. Este fechamento é ideológico porque restringe as possibilidades: um fato é vinculado a outro como se esse vínculo fosse evidente, óbvio, mera sequência fática. E não é. Há uma superimposição do normativo sobre o fático, ou ao fático-real, que é vivido como fático-natural.

Como explicado por Althusser (2014ALTHUSSER, Louis. On Reproduction. London / New York: Verso, 2014.: 168) e Pachukanis (2017PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017.), o Direito desempenha um papel importante nessa naturalização porque assegura e normaliza: a) o funcionamento; e b) a reprodução das relações de produção. O funcionamento através dos “elementos básicos de um sistema jurídico que são a lei de propriedade e a lei de contrato” (ALTHUSSER et. al., 2015: 393) e a reprodução através da ideologia jurídico-moral (ALTHUSSER, 2014: 203). Isso denota a extrema relevância não apenas dos atos, mas também do discurso que os atos praticados por procuradores, pelo juiz e pela mídia de massa invocam, produzem, sobre a Operação Lava Jato. Seus atos, não apenas suas palavras, apresentaram a Operação Lava Jato como um ator institucional na luta contra a corrupção e também como uma possível solução moralizadora para a política brasileira. A Operação Lava Jato invocou a ideia do Estado como Sujeito, capaz de ser o árbitro neutro de conflitos sociais, e criou, interpelou, os “heróis” capazes de reorganizar, eles próprios, o que foi apresentado como um problema histórico.

Esse processo é repleto de contradições. Por um lado, a Lava Jato (MPF, 2019) considera como seus resultados mais significativos, além das prisões e condenações de políticos e empresários, a recuperação de dinheiro público - R$ 4 bilhões. Por outro, economistas apresentam dados e argumentam que a economia do país perdeu R$142,6 bilhões só em 2014, além de sofrer impactos negativos no PIB e no desemprego desde então (MARQUES, 2020MARQUES, Rosa Maria. Efeitos de Operação Lava Jato na economia brasileira. In: MILEK, Camila et. al. (orgs.). Relações indecentes. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020, p. 92-98.: 96).

A Operação Lava Jato atuou com a ideia de “limpeza”, o que revela a lógica colonial e racista (FANON, 1967FANON, Frantz. The wretched of the earth. Harmondsworth: Penguin Books, 1967.: 29) que nela funciona. Esses elementos racistas, ou esses “fragmentos” racistas do discurso, são parte e parcela do funcionamento da Ideologia como a imaginária relação das reais relações de produção na sociedade brasileira. Como ensinam Hall et al. (2013: 153), a constituição do criminoso como a figura problemática, como uma personagem má, conjura, por um lado, a imagem da sociedade estável, integrada e pacificada, e, por outro lado, a de que esta figura a ela não pertence, de que as personagens ruins, más, pertencem a outro lugar, seu lugar natural e necessário.

O pânico moral da burguesia é a manifestação, ou o sintoma, de um medo produzido pela visibilidade de outros mundos que parecem ascender contra o seu, induzindo os Aparelhos Ideológicos de Estado a produzirem tanto imagens novas quanto usar antigas para representar o “erro”, o “mal”, o “antissocial”. O trabalho dos Aparelhos Ideológicos de Estado, em conjunção com a sua contrapartida repressiva, é reintegrar e reorganizar uma dada formação social ao ligar fragmentos, ao usar inimigos “antigos”, antagonistas “antigos” e “novos” para, então, (re)apresentar a imagem da sociedade que a socialização capitalista necessita. Não deveria ser surpresa que a política de Bolsonaro use a linguagem do racismo abertamente: isso está diretamente relacionado ao processo de criminalização que se apresenta como solução para as questões políticas do Brasil e as narrativas construídas ao redor dele.

Ao fim, há mais questões em jogo no que diz respeito à ascensão de Bolsonaro. Sua diversa base de apoio se ancora em vários e não somente um elemento, sendo necessário mais que este limitado estudo para vislumbrarmos todas ou as mais prováveis causas para o surgimento da política vitoriosa do bolsonarismo. A situação é demasiadamente complexa e as forças sociais são excessivamente inusitadas para dar resposta, com precisão, a essa necessária questão. Nosso artigo buscou mostrar como atos produzem senso de normalidade, ainda que dentro do “anormal” e “emocionante” ritmo de uma novela. E, sobretudo, como esses atos, televisionados e massificados, podem afetar o funcionamento da estrutura geral do poder numa sociedade capitalista.

7. Referências bibliográficas

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  • WHITE, Hayden. The content of the form. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1990.
  • 1
    Alianças entre frações de classe ou representantes de frações de classe, ao nosso ver, respeitam a lógica explicada por Lenin: “alianças (...) não são nada mais que uma trégua no período entre guerras. Tréguas preparam o caminho para a guerra e surgem de guerras” (1987: 263).
  • 2
    “Ao invés de mostrar a conexão vital entre períodos de paz imperialista e períodos de guerra imperialista, Kautsky coloca diante dos trabalhadores uma abstração sem vida para reconciliá-los com seus líderes também sem vida” (LENIN, 1987LENIN, Vladimir Ilyich Ulyanov. Essential Works of Lenin. New York: Dover Publications, 1987.:263).
  • 3
    Entendemos, com Jameson, que não obstante a crítica de Althusser à lógica/noção/conceito de “mediação” (Althusser supõe que a palavra representa, na tradição hegelo-marxista, uma tendência à teleologia) o alvo de Althusser, no fim das contas, é o mesmo de Hegel: o imediatismo. No mais, “a própria formulação de Althusser de separação de dois fenômenos um do outro, sua separação estrutural, a afirmação de que não são a mesma coisa, e não o são de modo específico e determinado, é, também, uma forma de mediação.” (JAMESON, 1982JAMESON, Fredric. The political unconscious. New York: Cornell University Press, 1982.: 41).
  • 4
    No Brasil, há importante obra sobre o tema: MASCARO, 2013MASCARO, Alysson Leandro. Estado e Forma Política. São Paulo: Boitempo, 2013..
  • 5
    Neste texto, nem a contextualização nem a explanação acerca da cronologia da Operação Lava Jato são suficientemente compreensivas para uma “fotografia completa”. Este não é nosso objetivo. Para uma visão mais pormenorizada da Lava Jato, veja-se: SÁ E SILVA, 2020SÁ E SILVA, Fábio. From Carwash to Bolsonaro: Law and Lawyers in Brazil’s Illiberal Turn (2014-18). Journal of Law and Society, 2020 (no prelo).; PRONER et. al., 2017PRONER, Carol; CITTADINO, Gisele; RICOBOM, Gisele; DORNELLES, João Ricardo (Orgs.). Comentários a uma sentença anunciada: o Processo Lula. Bauru: Canal 6, 2017., 2018.
  • 6
    Sobre a relação entre o judiciário e política, há inúmeros estudos relevantes. Em particular: LIMA, LEAL VICTOR, 2019LIMA, Martonio Mont’Alverne Barreto; LEAL VICTOR, Marcelo Barros. A Justiça Política no Brasil Contemporâneo: uma análise de recentes decisões do Supremo Tribunal Federal (2015-2017) à luz do caso de Weimar. Revista da Faculdade de Direito do Sul de Minas, Pouso Alegre, v. 35, n. 1: 21-45, jan./jun. 2019..
  • 7
    Acerca das fases teórico-históricas do impeachment conferir: RESENDE, 2020RESENDE, Raniei L. Impeachment e Responsabilidade Jurídica: notas teórico-históricas de Common Law. Revista Culturas Jurídicas, Niterói, v. 7, n. 17: 1-31, mai./ago. 2020. Disponível em: <https://periodicos.uff.br/culturasjuridicas/article/view/45434>.
    https://periodicos.uff.br/culturasjuridi...
    .
  • 8
    O presente artigo faz parte de uma pesquisa mais ampla e em desenvolvimento, que visa a examinar os aspectos da crise do capitalismo no Brasil e suas relações com a Operação Lava Jato.
  • 9
    O exército de reserva industrial (MARX, 2013MARX, Karl. O Capital. Vol. 1. São Paulo: Boitempo, 2013.: 707) possui as funções simultâneas de: a) reduzir o salário, incrementando o mais-valor; e de b) disciplinar a força de trabalho ao lhe mostrar como vive a parte “não-integrada” da força de trabalho.
  • 10
    Nos termos de Barthes, a mitologia burguesa não esconde seu significado ou suas mensagens, mas as evidencia. Porém, como se tais mensagens fossem neutras, inocentes, naturais (BARTHES, 2012BARTHES, Roland. Mythologies. New York: Hill and Wang, 2012.: 235).
  • 11
    Tal argumento é também levantado por Balibar quando este explica o modo de apropriação específico da produção capitalista (ALTHUSSER et. al., 2015: 380).
  • 12
    “O homem se transforma em sujeito de direito por força daquela mesma necessidade em virtude da qual o produto natural se transforma em mercadoria dotada da enigmática qualidade do valor” (PACHUKANIS, 2017PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017.: 83).
  • 13
    Como afirma Hall (2017HALL, Stuart. The Fateful Triangle: Race, Ethnicity, Nation. Cambridge: Harvard University Press, 2017.: 62): “A epidermalização fixa a ‘verdade’ da diferença racial em sua inscrição corporal, e isso faz com que o corpo preto, e suas características fisiológicas, seja o ponto terminal da vontade de verdade ou regime de verdade no que diz respeito à raça, o que por sua vez implica que o corpo negro é uma forma de significante transcendental capaz de fixar o significado de raça tout court.”.
  • 14
    De acordo com Fanon (2008FANON, Frantz. Black skin, white masks. New York: Groove Press, 2008.: 154): “O preto é o genital. Toda a história resume-se a isto? Infelizmente não. O preto é outra coisa. Aqui ainda reencontramos o judeu. O sexo nos separa, mas temos um ponto em comum: ambos representamos o Mal. O negro mais ainda, pela boa razão de ser negro. Na simbólica não se diz a Justiça Branca, a Verdade Branca, a Virgem Branca? Conhecemos um antilhano que, falando de um outro dizia: “Seu corpo é negro, sua língua é negra, sua alma também deve ser negra. O negro é o símbolo do Mal e o do Feio. Cotidianamente, o branco coloca em ação esta lógica”.
  • 15
    Sobre isso, importante lembrar: 1) a relação de dependência financeira do Estado Brasileiro com o dólar em razão da estrutura do mercado mundial financeiro que “compele países a sustentarem o valor do dólar através de compras de títulos do tesouro estadunidense” (CHESNAIS, 2017CHESNAIS, François. Finance Capital Today: Corporations and banks in the Lasting Global Slump. Chicago: Haymarket, 2017.: 61); e 2) a relação de dependência que se estabelece entre a burguesia nacional e o capital financeiro estrangeiro (LENIN, 1987LENIN, Vladimir Ilyich Ulyanov. Essential Works of Lenin. New York: Dover Publications, 1987.: 235).
  • 16
    Lei federal n. 9.613/1998.
  • 17
    Lei federal n. 12.850/2013.
  • 18
    Ainda segundo Pachukanis (2017PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017.: 174): "Essa dicotomia, por meio da qual o próprio poder estatal surge no papel de parte (o promotor) e no papel de juiz, demonstra que o processo penal, como forma jurídica, é indissociável da forma mais geral do contrato. O promotor, como é esperado de uma 'parte', reclama um 'valor alto', ou seja, uma pena severa, o infrator solicita uma indulgência - 'um desconto' -, e o tribunal decide pela 'justiça'. Coloque completamente de lado essa forma de contrato e você privará o processo penal da sua 'alma jurídica'". Na linha da crítica soviética ao Direito, importante destacar o papel de Stutchka, conferir: PAZELLO, SOARES, 2020PAZELLO, Ricardo Prestes; SOARES, Moisés Alves. Stutchka e as Contribuições para a Cultura Jurídica Soviética Revolucionária. Revista Culturas Jurídicas, v. 7, n. 16: 73-96, jan./abr., 2020. Disponível em: <https://periodicos.uff.br/culturasjuridicas/article/view/45383>.
    https://periodicos.uff.br/culturasjuridi...
    .
  • 19
    Como já afirmamos, “este partido (o PT) representou a esperança de muitos brasileiros após a ditadura militar (1964-1985) devido à sua mensagem e seus mecanismos de participação. Os escândalos de corrupção atacaram não apenas os políticos do PT, mas também os sonhos de muitos brasileiros” (BELLO, CAPELA, KELLER, 2020BELLO, Enzo; CAPELA, Gustavo Moreira; KELLER, Rene José. "Breaking routines towards conservatism? The 2013 protests in Brazil". In: BESSANT, Judith; MESINAS, Analicia Mejia (orgs.). When Students Protest. London / New York: Rowman and Littlefield, 2020 (no prelo).).
  • 20
    Em 2006, ministros do STF invocaram a “teoria do domínio do fato” - desenvolvida pelo criminalista alemão Claus Roxin - para condenar os réus. Em 2012, o STF considerou alguns dos réus como culpados por causa da sua posição hierárquica superior no governo, que pressuporia um dever de se conhecer atos praticados por seus subordinados. Roxin e seus pupilos consideraram que tal teoria foi erroneamente usada pelo STF (GRECO, LEITE, 2013GRECO, Luís; LEITE, Alaor. "Fatos e mitos sobre a teoria do domínio do fato". Folha de São Paulo. 18 out. 2013. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/134367-fatos-e-mitos-sobre-a-teoria-do-dominio-do-fato.shtml?origin=folha>. Acesso 3 jun. 2020.
    https://www1.folha.uol.com.br/fsp/opinia...
    ).
  • 21
    É o caso, por exemplo, da relação entre os procuradores brasileiros do MPF e investigadores do FBI.
  • 22
    Com aprovação de 83% no último mês do seu segundo mandato (VEJA, 2010).
  • 23
    É relevante lembrar que a grande mídia se financia através de verbas publicitárias tanto de empresas privadas quanto do próprio governo, tendo vínculos estruturais com o mercado e o Estado como condição de funcionamento. Sobre isso, veja-se: BOLAÑO, 2000BOLAÑO, César. Indústria Cultural, Informação e Capitalismo. São Paulo: Hucitec/Polis, 2000..
  • 24
    O julgamento desses recursos ocorreu em tempo recorde, considerada a rotina do Tribunal, que julga recursos em média de 335 dias (cerca de 11 meses) (CONJUR, 2018). Lula foi o único entre outros 37 acusados já condenados pela mesma 8ª Turma do TRF da 4ª Região a ter mandado de prisão expedido com base na decisão do STF no HC 126.292/SP, que permitia a prisão por condenação em segunda instância.
  • 25
    O fato hoje é de público conhecimento no Brasil e tem como referência a reportagem: UOL, 2019.
  • 26
    Acerca da crítica às formas fetichizadas de compreensão da realidade jurídica: RIVERA-LUGO, 2020RIVERA-LUGO, Carlos. Além do Constituinte e Constitucional: por uma teoria materialista do processo social constitutivo. Revista Culturas Jurídicas, Niterói, v. 5, n. 12: 23-41, set./dez. 2020. Disponível em: <https://periodicos.uff.br/culturasjuridicas/article/view/45168.
    https://periodicos.uff.br/culturasjuridi...
    .
  • 27
    Conforme Hall (2017HALL, Stuart. The Fateful Triangle: Race, Ethnicity, Nation. Cambridge: Harvard University Press, 2017.: 69): “(...) a cadeia de equivalência que a categoria de raça torna possível entre diferenças genéticas, físicas, sociais e culturais não existe realmente. Mas, não obstante, mantém-se presente no mundo, nos significados que usamos para dar sentido à vida social e práticas sociais em todos os lugares, mas também, apesar de ser só um discurso, tem, por isso mesmo, uma realidade porque possui efeitos raciais: efeitos materiais em como o poder e recursos são distribuídos(...)”.
  • 28
    De acordo com Jameson (1982JAMESON, Fredric. The political unconscious. New York: Cornell University Press, 1982.: 57): “A originalidade da interpretação Althusseriana [...] é que ela entende o trabalho ou o texto não através de seu processo genético no qual ele é entendido como emergindo deste ou daquele momento de forma ou estilo; nem é extrinsecamente ligado a algum fundamento ou contexto que é dado ao menos inicialmente como algo que vai além dele (do texto). Ao contrário, os dados do texto são interrogados em seus termos formais ou lógicos e, mais propriamente, nas condições de possibilidade de sua semântica própria”.
  • 29
    Sobre a especificidade do Estado no Brasil, veja-se: BERCOVICI (2004BERCOVICI, Gilberto. Constituição e estado de exceção permanente: atualidade de Weimar. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2004.).
  • 30
    Fanon se refere ao “inconsciente europeu” não no sentido daquele que está na Europa, mas daquele que se alastra, também, pelo imperialismo e colonização. Logo, é, ao nosso ver, também aplicável ao Brasil.
  • 31
    Jameson entende que o Romantismo busca resolver, em forma literária, alguns dos incômodos sociais gerados pelas primeiras apreensões das contradições do capitalismo; já o Realismo lida com tais problemas (vividos por mais tempo) como se tal realidade fosse “objetiva”, “dada”; e o Naturalismo reprime tais contradições, cultivando o típico “ressentimento” da novela modernista (WHITE, 1990WHITE, Hayden. The content of the form. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1990.: 161).
  • 32
    Talvez seu contraponto “real” seja a subjetividade de crise, nos termos de Roitman e Mbembe (1995MBEMBE, Achille; ROITMAN, Janet. Figures of the Subject in Times of Crisis. Public Culture, Vol. 7, Issue 2, p. 323-352, May, 1995.).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Out 2021
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2021

Histórico

  • Recebido
    19 Ago 2020
  • Aceito
    30 Out 2020
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