Sangramento gastrointestinal em pacientes com COVID-19: uma revisão integrativa

RESUMO

Introdução:

em 2020 o mundo sofreu um grande impacto com a pandemia pela doença COVID-19, em especial pela alta transmissibilidade do vírus. É uma doença que predomina com manifestações respiratórias, porém existe um acometimento do trato gastrointestinal, causando desde sintomas leves a mais graves. Destacando o sangramento gastrointestinal, é um sintoma decorrente do acometimento do vírus SARS-CoV-2 descrito por diversos relatos e séries de casos.

Métodos:

por meio de uma revisão integrativa da literatura, de caráter qualitativo, foram selecionados trabalhos que correspondessem aos critérios de elegibilidade, totalizando 16 artigos incluídos nesta revisão.

Resultados:

dos pacientes que manifestaram sintomas gastrointestinais associados a doença, foram identificadas comorbidades e manifestações clínicas em comum, além de terapias utilizadas como tratamento da infecção, que foram fatores predisponentes para o desenvolvimento de sangramentos gastrointestinais.

Conclusão:

a presença de sangramento gastrointestinal em pacientes com COVID-19 é um dado firmado na literatura, uma vez que os mecanismos fisiopatológicos da doença afetam diretamente o TGI. O reconhecimento precoce dos sintomas e a suspeita do acometimento gastrointestinal permite um melhor manejo dos pacientes e das complicações.

Palavras-chave:
COVID-19; Hemorragia Gastrointestinal; Endoscopia Gastrointestinal; Terapêutica

ABSTRACT

Introduction:

In 2020, the world suffered a major impact from the COVID-19 pandemic, especially due to the high transmissibility of the virus. It is a disease that predominates with respiratory manifestations, but there is involvement of the gastrointestinal tract, causing symptoms ranging from mild to more severe. Highlighting gastrointestinal bleeding, it is a symptom resulting from the involvement of the SARS-CoV-2 virus described by several reports and case series.

Methods:

through an integrative literature review, of a qualitative nature, works that corresponded to the eligibility criteria were selected, totaling 16 articles included in this review.

Results:

of the patients who manifested gastrointestinal symptoms associated with the disease, common comorbidities and clinical manifestations were identified, in addition to therapies used to treat the infection, which were predisposing factors for the development of gastrointestinal bleeding.

Conclusion:

The presence of gastrointestinal bleeding in patients with COVID-19 is established in the literature, since the pathophysiological mechanisms of the disease directly affect the GIT. Early recognition of symptoms and suspicion of gastrointestinal involvement allows better management of patients and complications.

Keywords:
COVID-19; Gastrointestinal Hemorrhage; Endoscopy, Gastrointestinal; Therapeutics

INTRODUÇÃO

Em 2019, na China, surgiram inúmeros casos de pneumonia, atribuídas a uma nova cepa do coronavírus, o SARS-CoV-2, responsável por causar a doença COVID-19. Em 2020, a Organização Mundial da Saúde decretou uma pandemia, em virtude da disseminação do vírus ao redor do mundo. O vírus possui uma alta capacidade de disseminação, e possui uma predominância de acometimento respiratório¹. Porém, já é relatado na literatura o acometimento de outros sistemas orgânicos, como o sistema nervoso e o gastrointestinal (GI)².

Em relação ao acometimento da COVID-19 no trato gastrointestinal (TGI), alguns mecanismos fisiopatológicos já estão descritos, especialmente aqueles relacionados ao papel da enzima conversora de angiotensina 2 (ECA-2) como um receptor de entrada para penetração do vírus nas células gastrointestinais, onde são altamente expressas. Além disso, o estado de hipercoagulabilidade predisposto pela COVID-19 pode gerar focos de isquemia na mucosa GI, o que gera exsudação e um mecanismo compensatório para reestabelecer a perfusão, liberando citocinas inflamatórias e alterando a microbiota local^2-4.

Alguns dos sintomas mais comuns associados são náuseas, vômitos, sangramentos, anorexia, dor abdominal e diarreia. Entretanto, colite hemorrágica, diarreia sanguinolenta, alterações ulcerativas e isquêmicas são descritas como acometimentos raros, porém com maior prevalência em pacientes graves^2,3. Nestes indivíduos que desenvolvem uma forma mais agressiva da doença, a conjunção de fatores, especialmente o sangramento GI, pode desencadear o óbito^4,5.

O sangramento de origem GI pode se manifestar na forma de uma hemorragia digestiva baixa (HDB) ou hemorragia digestiva alta (HDA). Esse sintoma pode, ou não, estar acompanhado de manifestações respiratórias da COVID-19, uma vez que há descrição na literatura de sangramento gastrointestinal como sintoma inicial da COVID-19, mas também como evolução da doença, especialmente nos pacientes que desenvolvem formas mais agressivas e estão internados em unidades de terapia intensiva (UTI)^2-4.

Postula-se que o acometimento das células GI pela COVID-19 cause inflamação pela liberação de citocinas, predisponha a translocação bacteriana pela exsudação e desencadeie lesão na mucosa pelos focos de isquemia decorrentes do estado de hipercoagulabilidade, desencadeando sangramento GI por mecanismos primários e secundários. Portanto, este estudo tem como objetivo identificar os mecanismos fisiopatológicos que desencadeiam o sangramento gastrointestinal em pacientes infectados pelo SARS-CoV-2, assim como os mecanismos diagnósticos e terapêuticos mais utilizados.

METODOLOGIA

O presente estudo se trata de uma revisão bibliográfica da literatura, de caráter qualitativo. A pesquisa foi realizada na base de dados PubMed, utilizando os descritores “Gastrointestinal Tract and bleeding and COVID-19”, abrangendo artigos do período de 2019 a março de 2023. Foram encontrados 64 artigos, e pré-selecionados 26, baseado na leitura dos títulos e resumos. Após a leitura integral dos artigos selecionados previamente, consideramos 16 para inclusão nesta revisão.

Critérios de elegibilidade

Utilizamos artigos em língua inglesa, com a presença de pelo menos um descritor no resumo e/ou título. Na pré-seleção, foram considerados trabalhos que obtivessem no título e/ou resumo um dos descritores escolhidos para pesquisa. Para leitura integral e inclusão na revisão, os artigos considerados são: estudos prospectivos e retrospectivos, relatos de caso, séries de caso e cartas ao editor com relatos de caso. Foram excluídos artigos que não traziam uniformidade nos resultados encontrados e na análise estatística realizada, revisões de literatura, artigos cuja metodologia não estava detalhada e aqueles em que o sangramento gastrointestinal não foi nem diretamente nem indiretamente relacionado com a infecção pelo SARS-CoV-2. Além dos supracitados, foram excluídos da análise artigos de estudos multicêntricos que não incorporaram os resultados obtidos entre os centros. O fluxo de seleção se encontra descrito no diagrama de fluxo PRISMA (Figura 1).

Figura 1
Diagrama de fluxo PRISMA.

RESULTADOS

Após uma seleção criteriosa, foram incluídos na análise qualitativa 16 artigos, os quais 2 são coortes retrospectivas, 3 séries de casos e 11 relatos de caso. As informações primárias sobre os casos e sobre os estudos originais se encontram descritos nas Tabelas 1, 2 e 3.

Tabela 1
Aspectos clínicos e evolução dos relatos e séries de casos.

Autor e ano	Sexo	Idade	Comorbidades	Sintomas GI	Exame diagnóstico	Causa do sangramento	Desfecho
Mohamed et al. 20216	M	75	DM*	Hematoquezia, instabilidade hemodinâmica	Arteriografia pélvica	Sangramento nos ramos retais	ALTA
Argan et al. 20217	M	70	DM tipo 2	Sangramento retal	TC	Massa cecal selada perfurada	ALTA
	M	37	Obesidade mórbida	Sangramento retal	TC	Massa cecal selada perfurada	ALTA
	M	74	DM tipo 1	Sangramento retal	TC	Massa cecal selada perfurada	ALTA
Mitrovic et al. 20225	M	33	HAS, DRC	Dor epigástrica, náuseas, vômitos	TC e EDA	Pancreatite necrosante com pseudoaneurisma roto	ÓBITO
Li et al. 20218	M	91	NR	Melena e instabilidade hemodinâmica	SBCE	Úlceras Jejunais e duodenais	NR
	F	83	NR	Hematoquezia de repetição	SBCE	Úlceras jejunais e duodenais	NR
Yamakawa et al. 20229	M	64	HAS, DM*	Diarreia e hematoquezia	EDA e EDB	Múltiplas úlceras no cólon sigmóide e reto	ÓBITO
Kawabata et al. 202110	M	70	DM, Hiperlipidemia	Hematêmese	EDA	Múltiplas úlceras gástricas	NR
Krejčová et al. 202211	NR	67	Síndrome metabólica, DM, hiperlipidemia	Enterorragia maciça, instabilidade hemodinâmica	EDB e laparo	Colite ulcerativa isquêmica	NR
Merdad et al. 202112	M	23	NÃO	Náuseas e melena	TC	Úlcera duodenal perfurada	ÓBITO
Carll et al. 202113	M	Meia- idade**	NR	Diarreia, hematoquezia e náuseas	EDB	Enterocolite invasiva	ALTA
Jabłońska et al. 202214	M	80	NR	Dor abdominal, melena e hematoquezia	Laparo de emergência	GIST	ÓBITO
Carvalho et al. 202015	M	71	HAS, depressão, dor crônica nas costas	Dor abdominal difusa, diarreia sanguinolenta, náuseas, vômitos, distensão abdominal difusa	EDA	Colite hemorrágica aguda	ALTA
Deb et al. 202116	M	31	DM*, hipotireoidismo, obesidade	Hematêmese	EDA	Esofagite ulcerativa grave e úlceras gástricas não hemorrágicas	ÓBITO
Autor e ano	Sexo	Idade	Comorbidades	Sintomas GI	Exame diagnóstico	Causa do sangramento	Desfecho
	M	85	HAS, DRC, CA de próstata, Síndrome do seio doente	Sangramento gastrointestinal superior	EDA	Úlcera gástrica sem sangramento, friável, necrótica e com possibilidade de perfuração.	ÓBITO
	M	58	HAS, DM*	Melena	EDA	Úlceras gástricas com crateras não hemorrágicas, mas com alta chance de perfuração	ÓBITO
Awwad et al. 202117	M	30	NÃO	HDA	EDA	Duodenite ulcerativa hemorrágica grave	NR
Kumar et al. 202118	M	71	NR	Hematoquezia	Angiografia por subtração digital	Vazamento ativo na fossa ilíaca direita suprido pelos ramos marginais da artéria ileocecal.	ALTA

• Legenda: NR: não relatado; DM: diabetes mellitus; HAS: hipertensão arterial sistêmica; M: masculino; F: feminino; CA: câncer; HDA: hemorragia digestiva alta; DRC: doença renal crônica; EDA: endoscopia digestiva alta; EDB: endoscopia digestiva baixa; TC: tomografia computadorizada; Laparo: laparotomia; SBCE: “small bowel capsule endoscopy”; GIST: “gastrointestinal stromal tumor”. *O tipo da Diabetes Mellitus não foi relatado no artigo. **O artigo não descreve numericamente a idade do paciente.

Tabela 2
Dados laboratoriais dos relatos e séries de casos.

Autor e ano	HB (g/dL)	HT (%)	PLAQ (mcL)	LEUCO (mcL)	INR	TTPA (s)	FIBRINOGÊNIO (mg/dL)	D-DÍMERO (ug/mL)
Mohamed et al. 20216	8,9	41,3	93x10³	22,2x10³	2.3	24,7	198	>20
Argan et al. 20217	15,1	NR	14,4x104	6,4x10³	NR	NR	NR	0,6
	12,1	NR	23,2x104	4,2x10³	NR	NR	NR	0,41
	13,4	NR	28,3x104	5,7x10³	NR	NR	NR	1,66
Mitrovic et al. 20225	10,6	NR	VR	VR	NR	NR	NR	1944
Li et al. 20218	6,1	NR	20x10³	NR	1,45	NR	NR	NR
	5,5	NR	35x10³	NR	2,39	NR	NR	NR
Yamakawa et al. 20229	12,4	NR	45x10³	4,9x10³	NR	NR	129	26,2
Kawabata et al. 202110	12,2	NR	22,5x104	13,2x10³	NR	47,7	NR	7,2
Krejčová et al. 202211	8,1	NR	NR	NR	NR	NR	NR	NR
Merdad et al. 202112	4	NR	NR	21,69x104	NR	NR	NR	NR
Carll et al. 202113	NR	NR	NR	NR	NR	NR	NR	NR
Jabłońska et al. 202214	7,2	22	12,6X104	4,51x105	1,08	12,2	NR	NR
Carvalho et al. 202015	NR	NR	24,4x104	NR	NR	NR	NR	NR
Deb et al. 202116	NR	NR	NR	NR	NR	NR	NR	NR
Awwad et al. 202117	NR	NR	NR	NR	NR	NR	NR	NR
Kumar et al. 202118	6,12	19,4	90x109	NR	1,36	35,5	373	14,72

• Legenda: Hb: hemoglobina; HT: hematócrito; PLAQ: plaquetas; LEUCO: leucócitos totais; INR: internetional normalized ratio, TTPA: tempo de tromboplastina parcial ativada, NR: não relatado.

Tabela 3
Dados sumarizados dos artigos originais.

Título	Ano	Método	Resultados	Conclusão
Upper gastrointestinal bleeding in COVID-19 inpatients: Incidence and management in a multicenter experience from Northern Italy19	2021	Pacientes positivos para COVID-19 com sinais de HDA aguda em 6 hospitais do norte da Itália foram incluídos retrospectivamente no estudo. Foram excluídos pacientes internados no ambiente da UTI. Foi realizado o cálculo do escore de Glasgow-Blatchford, tipo de tromboprofilaxia ou terapia anticoagulante foram registrados, além da gravidade da pneumonia. A Endoscopia digestiva alta (EDA) foi realizada quando necessária.	Entre 4.871 pacientes positivos para COVID-19, foram registrados 23 casos com HDA (prevalência de 0,47%). 15 destes 23 pacientes possuíam duas ou mais comorbidades (78% HAS ou doença cardíaca crônica, 48% DM e 9% cirrose). 18 pacientes estavam em terapia anticoagulante. A EDA foi realizada em 18 pacientes. Os achados mais comuns foram úlcera péptica (44%), gastrite erosiva ou hemorrágica (22%). O manejo de 52% dos pacientes foi de forma conservadora com estabilização dos níveis de Hb.	O sangramento GI superior foi presente em 0,47% da amostra e a úlcera péptica é o achado mais comum. O manejo conservador pode ser uma opção em pacientes com alto risco de complicações
Gastrointestinal symptoms of 95 cases with SARS-CoV-2 infection3	2020	Estudo retrospectivo de um único centro. Foram incluídos 95 pacientes com diagnóstico de COVID-19. 6 pacientes com sintomas GI foram submetidos a gastroscopia.	Em um total de 95 pacientes, 50 eram mulheres e 45 eram homens, com idade média de 45,3 ± 18,3 anos. 35 pacientes possuíam comorbidades, como HAS em 16, DM em 6, tumor maligno em 5, doença pulmonar crônica em 5, doença cerebrovascular em 4, doença renal crônica em 1 paciente. 58 pacientes manifestaram sintomas GI, 11 na admissão e os outros 47 durante a internação. Diarréia, anorexia e náuseas foram as manifestações mais observadas. 2 pacientes desenvolveram HDA.	Compreender a susceptibilidade do sistema GI ao SARS-CoV-2 promove uma terapia mais especializada. O TGI pode ser uma via de transmissão potencial e é um órgão-alvo da COVID-19.

Com relação às comorbidades, em 62,5% dos casos os pacientes que desenvolveram sangramento GI apresentaram algum tipo de doença coexistente^{5-11,15,16,19,20}. Em 68,7% dos casos, os pacientes desenvolveram sinais de sangramento GI durante o internamento pela COVID-19^{5-11,13,16-18}; apenas 18,8% dos pacientes chegaram ao pronto socorro com sintomas de sangramento GI como manifestação inicial da infecção pelo vírus^12,14,15.

A apresentação de sangramento de origem GI pode se manifestar de duas formas, nos estudos incluídos nesta revisão, 37,5% se apresentaram na forma de hemorragia digestiva alta (HDA)^{8,10,16,17,19} e 68,8% na forma de hemorragia digestiva baixa (HDB)^6-9,11,13-18. Alguns fatores predisponentes, como terapia de antiagregação plaquetária e/ou anticoagulação, foram relatados em 50% dos casos^{5,8,10,11,13,17-19}.

DISCUSSÃO

Mecanismos fisiopatológicos

O acometimento extrapulmonar da COVID-19 já é bem definido na literatura, em especial o comprometimento do sistema GI. O mecanismo fisiopatológico mais discutido e embasado cientificamente é a utilização dos receptores da ECA-2 pelo vírus para penetração nas células do TGI, realizando a replicação viral. Esses receptores estão expressos em abundância, não só no sistema respiratório, mas também no GI, nas células glandulares do epitélio gástrico, do intestino delgado, colônico e retal. Essa replicação do SARS-CoV-2 no interior das células GI vai gerar um efeito citopático, com liberação de interleucinas inflamatórias como TNF-alfa, IL-1 e IL-6^{5,9,11,13,15,17,20}. O papel da IL-6 possui certo destaque no processo hiperinflamatório da COVID-19, uma vez que é considerada a principal citocina pró-inflamatória envolvida nesta infecção, podendo estar aumentada cerca de 2,9 vezes em pacientes com complicações decorrentes da COVID-19^9,21. A inflamação crônica predispõe a ocorrência de patologias que podem evoluir com sangramento GI, como esofagite, colite, retocolite, duodenite e úlceras^{6,8-13,15-17,19}.

Além do papel importante dos receptores da ECA-2, os pacientes com COVID-19 podem desenvolver uma coagulopatia e uma vasculopatia, assim como uma disfunção endotelial e trombose resultantes^{8,10,11,17,18,24}. A coagulopatia induzida pela COVID-19 (CAC) tem como característica níveis de D-dímero e fibrinogênio aumentados, podendo suscitar uma trombocitopenia. Ademais, em decorrência do efeito citopático viral, pode haver o desenvolvimento da Síndrome de ativação macrofágica (SAM), resultando em um distúrbio de coagulação trombótica. Como o vírus da COVID-19 infecta as células endoteliais vasculares, há prejuízo nos mecanismos antitrombóticos da superfície luminal pelo dano celular e apoptose causadas²². Com isso, lesões hipóxico-isquêmicas decorrentes de complicações tromboembólicas podem ocorrer no TGI, especialmente nas alças intestinais (que possuem uma microvasculatura abundante), resultando em ulcerações GI e sangramentos^8,10,13. Outrossim, pela fragilidade vascular decorrente da CAC, pode haver sangramento em ramos vasculares mais frágeis, como os ramos retais e os ramos marginais da artéria ileocecal^6,18.

O caso de Carll et al.¹³ traz uma relação da infecção pela COVID-19 com a reativação de infecções latentes, nesse caso pelo citomegalovírus (CMV), em decorrência da linfocitopenia grave desencadeada pelo SARS-CoV-2, manifestando uma enterocolite hemorrágica aguda. Essa depleção de linfócitos é potencialmente associada à disfunção do sistema reticuloendotelial e hematológico causado pelo vírus, assim como o sequestro de linfócitos pelas citocinas inflamatórias produzidas exacerbadamente. Nesse caso, o sangramento GI é descrito como decorrente desse efeito citopático viral da COVID-19, agravado com uma coinfecção pelo CMV, gerando uma inflamação persistente na mucosa.

Terapias de anticoagulação e antiagregação

Em alguns protocolos de manejo para pacientes com COVID-19, há a indicação de realizar terapias de anticoagulação e tromboprofilaxia, para evitar danos maiores pela CAC, assim como aqueles que precisaram ser submetidos ao suporte com circulação por membrana extracorpórea (ECMO)^8,9,13,17. Com a realização dessas terapias para evitar eventos tromboembólicos há uma predisposição a sangramentos mais abundantes, significa dizer que nas lesões em processo inflamatório/hemorrágico o sangramento é maior, levando a instabilidade hemodinâmica do paciente mais rapidamente^{8,10,11,13,17-19}. O monitoramento do D-dímero e do fibrinogênio dos pacientes que desenvolvem a forma grave da doença pode auxiliar no diagnóstico precoce de eventos resultantes do estado de hipercoagulabilidade, uma vez que esses dois dados laboratoriais estão associados a um alto risco de desenvolvimento de tromboses micro e macrocirculatórias, justificando terapias de anticoagulação e antiagregação no momento mais oportuno, evitando sangramentos GI abundantes^10,11,23,24.

Tipos de sangramento e lesões na mucosa GI

As manifestações do sangramento gastrointestinal se dividem em HDA e HDB, que se tornam evidentes pela presença de sinais como melena, hematêmese, hematoquezia e enterorragia. Outros sintomas que podem estar associados a presença de sangramento GI são diarreia, dor e distensão abdominal^2-4,19.

O impacto deletério da infecção pelo SARS-CoV-2 nas células do TGI pode se manifestar de diversas formas, e o sangramento GI é relacionado com maior mortalidade durante a internação^25,26. A identificação do tipo de lesão permite o tratamento direcionado, evitando complicações e melhorando o prognóstico dos pacientes. As lesões mais descritas foram úlceras gástricas^10,16,19 e duodenais/jejunais^8,12, porém também foram relatadas úlceras em cólon e reto⁹, gastrite erosiva/hemorrágica¹⁹, colite ulcerativa isquêmica¹¹, enterocolite hemorrágica¹³, colite hemorrágica aguda¹⁵, esofagite¹⁶, duodenite ulcerativa hemorrágica¹⁷, lesão de ramos marginais da artéria ileocecal¹⁸ e lesão de ramos retais⁶.

A ocorrência de sangramento GI em alguns dos pacientes com COVID-19, seguido de instabilidade hemodinâmica, é considerado grave pois esse desequilíbrio circulatório é apontado como um fator complicador do quadro infecioso^6,8,11,24.

Manejo dos pacientes

Existem diversas diretrizes para condução diagnóstica e terapêutica do sangramento GI. A diretriz japonesa relacionada a sangramento GI traz que os pacientes com HDA devem ser submetidos a EDA em até 24 horas do início dos sintomas, porém a diretriz europeia afirma que a realização de procedimentos endoscópicos em pacientes com HDA e COVID-19 sem instabilidade hemodinâmica fica a critério médico¹⁰.

A tomografia computadorizada (TC) foi descrita como um dos métodos diagnósticos^5,7,12, porém a mais utilizada e preconizada é a endoscopia, em especial a esofagogastroduodenoscopia, responsável pelo diagnóstico em 43,8% dos casos^{5,9,10,15-17,19}. Angiografia^6,18, laparotomia^11,14, colonoscopia^9,11,13 e small bowel capsule endoscopy (SBCE)⁸ também foram descritos como exames diagnósticos, porém menos utilizados.

No início do sangramento, realizar um bolus de inibidor de bomba de prótons (IBP) foi descrito como uma medida eficaz para redução da hemorragia, sendo um dos tratamentos conservadores preconizados^5,10,12,19. Outra medicação utilizada por Awwad et al.¹⁷ como alternativa para cessar o sangramento foi a budesonida oral, que é um glicocorticóide, agindo na redução da inflamação local, migração de células sanguíneas e proteínas. Nos casos de ausência de resposta satisfatória às técnicas mais conservadoras, o tratamento endoscópico deve ser considerado^12,23. A embolização de artérias pela radiologia intervencionista e a utilização de hemospray via endoscópica para alcançar a hemostasia são técnicas descritas que obtiveram sucesso^6,16,18.

A última linha de tratamento é a abordagem cirúrgica, considerada naqueles pacientes com sangramento refratário ao uso de IBPs e ao tratamento endoscópico, ou naqueles que apresentam instabilidade hemodinâmica não controlada com reposição de fluidos^8,12,23.

É válido ressaltar que as manifestações extrapulmonares da COVID-19 podem ocorrer concomitante ao acometimento pulmonar ou isoladamente, sendo a agressão em mais de um sistema mais relacionada a formas graves da infecção^2,3,24. Nos dados coletados nessa revisão, 43,75% necessitaram de internamento em UTI^6-9,12,14,17, o que pode indicar que o acometimento gastrointestinal com manifestação de sangramento leva o paciente a uma deterioração com necessidade de monitoramento intensivo.

Limitações do estudo

Esta revisão possui algumas limitações, uma vez que pela metodologia não é possível definir qual o melhor método diagnóstico e os tratamentos mais eficazes baseados nas manifestações clínicas. São necessários estudos prospectivos para identificar com mais especificidade os impactos da COVID-19 no sistema gastrointestinal para ocorrência de sangramentos e o manejo mais direcionado dos pacientes afetados. Preencher essas lacunas de conhecimento permitirá um atendimento de melhor qualidade aos pacientes que apresentam sangramento gastrointestinal relacionado a infecção pelo SARS-CoV-2.

CONCLUSÃO

A presença de sangramento gastrointestinal em pacientes com COVID-19 é um dado firmado na literatura, uma vez que os mecanismos fisiopatológicos da COVID-19 afetam diretamente o TGI. A identificação dos sinais e sintomas precocemente, com auxílio de dados laboratoriais, e o reconhecimento das lesões mais comuns permite a realização do manejo desses pacientes, que é essencial para redução da morbimortalidade.

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• Fonte de financiamento:

  nenhuma.

Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  06 Maio 2024
• Data do Fascículo
  2024

Histórico

• Recebido
  24 Maio 2023
• Aceito
  26 Jan 2024