Acessibilidade / Reportar erro

Formas de vida wittgensteiniana e perspectivismo ameríndio: por uma linguística antropológica selvagem

Wittgensteinian forms of life and amerindian perspectivism: towards a wild anthropological linguistic

RESUMO

Partindo do pressuposto de que vivemos certa crise metodológica nas Humanidades - da qual os Estudos da Linguagem fazem parte -, este artigo propõe uma perspectiva de estudos discursivos que tenha como base a concepção de linguagem como forma(s) de vida tal como expressa pelo pensamento do L. Wittgenstein maduro. Concomitantemente, pretendemos reler a perspectiva wittgensteiniana de linguagem sob o olhar de outro perspectivismo: o ameríndio, conforme formulado pelo antropólogo brasileiro Eduardo Viveiros de Castro (2002, 2018). Desse modo, partindo de uma filosofia da linguagem ordinária, faremos uma leitura das formas de vida wittgensteiniana com lentes ameríndias. Como veremos, nossa concepção de linguagem tem como consequência epistemológica a inessencialidade de seus conceitos. Essa fugacidade resvala no próprio ser: o antropófago digere seu inimigo e lhe toma o nome, maior honraria alcançável ao transformar sua corporeidade. Entre os ameríndios, é no corpo que os entes - todos gente - se (des)identificam entre si. O sujeito, como a linguagem, se constitui, necessariamente, na/pela alteridade. Enfim, sujeito e linguagem são entes sempre em devir. As formas de vida são biológicas e culturais - ou melhor: não há essa distinção natureza / cultura. E isso não é um relativismo, mas um perspectivismo linguístico-antropológico.

Palavras-chave:
Linguística Antropológica; Wittgenstein; Formas de vida; Perspectivismo ameríndio

ABSTRACT

Based on the assumption that we are experiencing a certain methodological crisis in the Humanities - of which Language Studies are a part - this article proposes a perspective of discursive studies that is based on the conception of language as a form(s) of life as expressed by the thinking of mature L. Wittgenstein. Concomitantly, we intend to reread the Wittgensteinian perspective of language from the perspective of another perspectivism: the Amerindian, as formulated by the Brazilian anthropologist Eduardo Viveiros de Castro (2002, 2018). Thus, starting from a philosophy of ordinary language, we will read the Wittgensteinian forms of life with an Amerindian lens. As we will see, our conception of language has as an epistemological consequence the inessentiality of its concepts. This fleetingness slips into being itself: the cannibal digests his enemy and takes his name, the greatest honor attainable by transforming his corporeity. Among the Amerindians, it is in the body that beings - all people - (dis)identify with each other. The subject, like language, is necessarily constituted in/through otherness. Finally, subject and language are entities that are always becoming. Forms of life are biological and cultural - or rather: there is no such nature/culture distinction. And this is not a relativism, but a linguistic-anthropological perspectivism.

KEYWORDS:
Anthropological Linguistics; Wittgenstein; Forms of life; Amerindian Perspectivism

E imaginar uma linguagem significa imaginar uma forma de vida.

(Wittgenstein, Investigações Filosóficas, § 19)

Linguagem como forma(s) de vida

O objetivo mais amplo deste artigo é propor uma perspectiva de estudos discursivos que tenha como base a concepção de linguagem como forma(s) de vida tal como expressa por L. Wittgenstein sobretudo em sua obra póstuma Investigações filosóficas. Ao mesmo tempo, pretendemos reler o filósofo vienense em nosso território, o que significa, neste caso, vê-lo sob a ótica do perspectivismo ameríndio tal como formulado pelo antropólogo brasileiro Eduardo Viveiros de Castro (2002VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2002., 2018VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Metafísicas canibais: elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo: Ubu Editora; n-1 Edições, 2018.).

Este artigo parte do pressuposto de que vivenciamos certa crise metodológica nas Humanidades, em que se incluem os Estudos da Linguagem. Essa crise contemporânea explode ao apontar a inadequação de muitos problemas filosóficos elaborados no seio de nossa tradição ocidental-grega para tratar de questões do sul global - ainda que, paradoxalmente, essa mesma crítica, muitas vezes, acabe por ser tecida em escrituras do norte global.

Para exemplificarmos o que queremos dizer com isso, vejamos o momento atual da assim chamada Linguística Aplicada, subárea cada vez mais “indisciplinada” dos Estudos da Linguagem, parafraseando a notória obra organizada por Moita Lopes (2006MOITA LOPES, Luiz Paulo da (org.). Por uma linguística aplicada INdisciplinar. São Paulo: Parábola Editorial, 2006.). Já na introdução do livro, o organizador advoga por uma linguística “mestiça e ideológica”, enquanto em um dos capítulos Branca Falabella Fabrício (2006FABRÍCIO, Branca F. Linguística aplicada como espaço de “desaprendizagem”: redescrições em curso. In: MOITA LOPES, Luiz Paulo da (org.). Por uma linguística aplicada INdisciplinar. São Paulo: Parábola Editorial, 2006. p. 45-65.) defende que a linguística aplicada deve passar a ser tida como “espaço de ‘desaprendizagem’”. Metonimicamente, a partir deste exemplo, enxergamos nossas bases epistemológicas sendo postas incontornavelmente em xeque - consequentemente, os fulcros de nossas teorias e metodologias desvanecem junto.

Não à toa, todo um pensamento de(s)colonial vem sendo escrito nos estudos sociais, culturais e também linguísticos. Conforme já reconhecemos a contradição, muitas vezes esse fio é tramado em conjunto a autores do norte global - que, afinal, também nos constituem (cf. SANTOS, 2010SANTOS, Boaventura de Sousa. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia dos saberes. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (org.). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010. p. 23-71.). Impossível não lembrar aqui o movimento antropofágico da Semana de 22, que acaba de completar cem anos: nossa condição canibal volta a mostrar os dentes - canibalizamos um corpo teórico e metodológico para digerirmos algo em que nos reconheçamos em nosso pluralismo.

No vasto campo da linguística, testemunhamos alguns movimentos (claro que, dada a amplitude da área, essa virada não é homogênea) por uma reorientação de diálogos que valorizem nossa própria experiência, nossos próprios saberes, outras epistemologias. Nessa esteira, partimos de uma concepção de linguagem como práxis, como ação, como formas de vida para organizar outros saberes sobre nossas línguas valorizando as travessias e os conhecimentos dos povos que somos.

Nossa ideia de linguagem se filia à chamada “filosofia da linguagem ordinária” no sentido de compreender não haver uma linguagem lógica a ser abstraída da linguagem comumente usada por todes. Entendemos que o paradigma logicista de linguagem, para quem é preciso “traduzir” a linguagem ordinária em um correspondente matemático, a uma linguagem subjacente, transcendente, que se referiria às coisas do mundo - logo, que seria apartada do real -, é uma espécie de “ficção” que só responde a desejos lógicos, mas não às características da linguagem comum. Desse modo, não existe um mundo sem linguagem - nem uma linguagem metafísica, gravitando ao redor do mundo. A linguagem só existe no mundo, em ação, em práticas linguísticas. Assim, a linguagem constitui o mundo, bem como o mundo também constitui a linguagem. Consequência disso é que o significado linguístico não é uma abstração predefinida que já aponta para um objeto no mundo antes mesmo de ser proferido por algum sujeito. Tampouco é uma entidade mental prefixada na mente/cérebro dos falantes. O significado linguístico é um processo, uma construção intersubjetiva combinada por seres sempre em devires.

Claro está que essa visão nos foi apresentada por várias teorias do norte global: escolas pragmáticas, discursivas, textuais compartilham dessa mesma imagem de linguagem. Nossa contribuição quer ser, então, “selvagem” - e com “selvagem” queremos propositadamente marcar nossa formação “canibal” (cf. MONTAIGNE 1972MONTAIGNE, Michel de. Ensaios. Tradução de Sérgio Milliet. São Paulo: Abril Cultural, 1972 [1580]. (Coleção Os Pensadores). [1580]), nosso “perspectivismo ameríndio” (VIVEIROS DE CASTRO, 2018VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Metafísicas canibais: elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo: Ubu Editora; n-1 Edições, 2018., 2002VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Metafísicas canibais: elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo: Ubu Editora; n-1 Edições, 2018.) a partir do qual pretendemos afirmar uma perspectiva radicalmente pragmática de linguagem. Para isso, estabeleceremos um diálogo sobretudo com a antropologia de Viveiros de Castro, como também com Aílton Krenak (2019KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. , 2020aKRENAK, Ailton. A vida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020a., 2020bKRENAK, Ailton. O amanhã não está à venda. São Paulo: Companhia das Letras, 2020b.) e Davi Kopenawa e Bruce Albert (2015KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã Yanomami. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. Prefácio de Eduardo Viveiros de Castro. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.). Se nosso objetivo mais geral se mostra um tanto pretencioso - ainda que as teorias formuladas no norte global não sejam assim em geral consideradas -, nosso objetivo específico está na singeleza de querer contribuir para a área dos estudos discursivos e historiográficos da Linguística.

Dito isso, passaremos a explicar como concebemos, com o chamado segundo Wittgenstein, a língua como “forma de vida”. Então, digeriremos o perspectivismo wittgensteiniano com/pelo ameríndio. Ao fim, seria uma contradição nos termos se construíssemos um edifício teórico-conceitual do significado linguístico em uso - nisso também concordamos com Wittgenstein. Entretanto, esperamos construir outro dispositivo metodológico de ver a linguagem - logo, outras formas de conceber saberes linguísticos.

Imaginar uma forma de vida

Em nossa área dos Estudos da Linguagem, sabemos a “pragmática” como o nível de descrição do significado linguístico que, ao contrário da “semântica”, considera em sua análise o contexto de fala, a interação entre falantes - logo, o sujeito e (su)a história. Conforme já dissemos, essa é a perspectiva da “linguagem em uso”: a de que só é possível executar uma investigação linguística observando a atividade, a performance linguística. Por isso, para nós, tentativas de estabelecer regras universais anteriores aos usos efetivamente realizados equivaleria a fazer com que a linguagem “entr[asse] em férias”, conforme famoso aforismo (§ 38) das Investigações Filosóficas,1 1 Doravante IF. de Wittgenstein.

Infelizmente, o autor da máxima é poucas vezes mencionado na literatura de nossa área de conhecimento, a Linguística, que, em geral, introduz a perspectiva pragmática de linguagem a partir da Teoria dos Atos de Fala, de J. L. Austin (1990AUSTIN, John Langshaw. Quando dizer é fazer. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990 [1962]. [1962]). Não estamos querendo aqui definir uma origem dos estudos pragmáticos - até porque advogar pelo uso da linguagem não é primazia de Wittgenstein.2 2 Pelo menos nossa maior fonte do ceticismo antigo (ou pirrônico), Sexto Empírico (c. III d.C.), em seu tratado Contra os gramáticos, já defendia que os usuários da língua não deveriam seguir as regras estabelecidas pelos gramáticos via analogia; antes, é o uso comum que deve ser observado. (Não é incomum leituras que relacionam o pensamento pirrônico ao wittgensteiniano (cf. SMITH, 2000) Concomitantemente, vamos nos valer desse pensamento basilar para os estudos da linguagem de vertente “pragmática”, “discursiva”, “textual”, enfim, para os ramos da linguística que veem a língua não como resultado de operações calculáveis em estatísticas, mas que a compreendem como um jogo - como a vida.

A proposição de uma análise lógica da linguagem, como sabemos, corresponde à primeira fase do pensamento wittgensteiniano, que ficou conhecida como a do “primeiro Wittgenstein”, defendida no Tractatus Logico-Philosophicus (2001WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Logico-Philosophicus. Tradução, apresentação e estudo introdutório de Luiz Henrique Lopes dos Santos. Introdução de Bertrand Russell. 3. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001.), única obra publicada em vida pelo autor. Neste primeiro momento, Wittgenstein entende o mundo como as proposições lógicas que se efetivaram no real. Assim, o filósofo se convence de ter resolvido os problemas filosóficos que desde os gregos nos assombram, qual seja, a incerteza sobre a capacidade de a linguagem dizer o mundo. A solução wittgensteiniana é impor uma análise lógica da linguagem, que, então, representaria a análise lógica do mundo: a linguagem seria um instrumento para falar do mundo na medida em que haveria um isomorfismo, uma imagem coincidente entre o resultado da análise lógica da linguagem e as formas essenciais do mundo. Haveria, então, uma “harmonia essencial”: a essência da linguagem representaria a essência do mundo (cf. SANTOS, 1996SANTOS, Luiz Henrique Lopes dos. A harmonia essencial. In: NOVAES, Adauto (org.). A crise da razão. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p. 437-455.). E uma vez que teria solucionado esses problemas filosóficos, Wittgenstein abandona a filosofia - por um tempo.

Ao entender que sua resposta caía no dogmatismo clássico de dobrar a superfície em profundidade, colocando em alguma metafísica invisível aos olhos uma linguagem e um mundo inexistentes (cf. SANTOS, 1996SANTOS, Luiz Henrique Lopes dos. A harmonia essencial. In: NOVAES, Adauto (org.). A crise da razão. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p. 437-455.), o filósofo vienense volta à filosofia criticando aquele jovem Wittgenstein. Esse retorno à filosofia corresponde à fase que ficou conhecida como a do “segundo Wittgenstein”. O filósofo continua acreditando que a resolução dos problemas filosóficos se dará por uma análise linguística - mas, agora, essa investigação deve ser a da própria linguagem ordinária. Diferentemente da solução exposta no Tractatus, nas Investigações filosóficas Wittgenstein declara que tudo já está diante dos nossos olhos - é preciso que vejamos, ele nos conclama (IF § 66). Isso significa dizer que a análise linguística não corresponde a alguma decodificação em funções matemáticas; a clarificação de conceitos só pode se dar a partir da verificação da gramática de uso das expressões linguísticas.

Como é comum em matéria de filosofia, há controvérsias entre os comentadores em relação a quanto “o primeiro” Wittgenstein difere do “segundo”. Seguimos aqui o entendimento pelo menos de Marcondes (1994MARCONDES, Danilo. Wittgenstein: linguagem e realidade. Caderno de Pedagogia e Cultura, Niterói, v. 3, n. 2, p. 217-230, jul./dez. 1994.), para quem Wittgenstein, por um lado, manteve sua crença de que os problemas filosóficos nascem de uma má compreensão linguística, mas, por outro lado, modificou completamente sua visão de linguagem: de uma compreensão lógico-matemática para a (in)definição pela metáfora dos jogos de linguagem. Para Wittgenstein, os problemas filosóficos surgem devido a uma espécie de cãibra mental que afeta alguns filósofos; estes então começam a se perguntar pelo sentido de conceitos linguísticos por si mesmos, fora do uso do dia a dia. É por isso que palavras como “verdade”, “ser”, “tempo” acabam ganhando mistérios para além do ordinário. Segundo Wittgenstein, os significados dessas expressões são determinados do mesmo jeito que o são os de palavras como “cadeira”, “cinco”, “azul”. De acordo com Wittgenstein, a tarefa da filosofia deve ser, então, clarificar conceitos - para tal, deve-se observar como o termo está sendo usado efetivamente em um jogo de linguagem, em uma forma de vida [Lebensform].

Novamente, Wittgenstein não é a origem da expressão Lebensform, recorrente na literatura filosófica alemã. No caso do nosso filósofo vienense, “forma(s) de vida” é uma locução tão controversa entre comentadores que até o número de vezes de sua aparição nas obras wittgensteinianas é matéria de debate. Seguimos aqui a contagem de nove passagens, sendo cinco delas nas IF. Logo no aforismo 19 das Investigações filosóficas, Wittgenstein assim define o que é uma linguagem:

Pode-se facilmente imaginar uma linguagem que consista somente de ordens e informes dados durante uma batalha. - Ou uma linguagem que consista somente de perguntas e de uma expressão de assentimento e outra de negação. E incontáveis outras. - E imaginar uma linguagem significa imaginar uma forma de vida (WITTGENSTEIN, 1975WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. Tradução de José Carlos Bruni. São Paulo: Abril Cultural, 1975. (Coleção Os Pensadores).; 2022WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. Tradução de Giovane Rodrigues; Tiago Tranjan. Posfácio: Marcelo Carvalho. São Paulo: Fósforo, 2022., § 19).

Já no início de suas investigações, Wittgenstein imagina uma série de possíveis “jogos de linguagem primitivos”: jogos extremamente simples, como pedir uma maçã a um feirante, ou ordenar que um operário arremesse a outro alguns objetos em uma construção (“bloco”, “coluna”, “viga” etc. (IF § 2)). Nesse parágrafo 19, Wittgenstein cria outros experimentos de pensamento: uma linguagem somente de informes durante uma batalha, uma linguagem de perguntas. E adverte: esses são apenas alguns dos incontáveis exemplos de jogos de linguagem possíveis - inumeráveis modos como usamos a linguagem. Os jogos de linguagem não são inventariáveis, uma vez que se confundem com nossa própria vida, nossas ações, nosso agir no mundo. Visto que a linguagem se confunde com nossa vida, ela é uma forma de vida, um modo de existir, de performar, de experienciar.

Em outra ocasião discutimos (EL-JAICK, no prelo), nos valendo da tese de Velloso sobre o tema (2003VELLOSO, Araceli. Forma de vida ou formas de vida? Philósophos, v. 8, n. 2, p. 159-184, jul./dez. 2003.), quatro interpretações da polêmica noção de “forma(s) de vida” em Wittgenstein. De modo sumário, pode-se dizer que uma dessas leituras é entender “formas de vida” como expressão intercambiável a “jogos de linguagem”. Trata-se de um entendimento um tanto difícil de concordar - para começar, se as duas expressões fossem sinônimas, não haveria sentido a formulação das duas, em vez de apenas uma. A segunda leitura listada por Velloso é aquela de M. Hunte, para quem as formas de vida wittgensteinianas devem ser entendidas de modo biológico. Nesse sentido, temos tantas formas de vida quanto diferentes formas biológicas de ser. Peter Winch e Vernon Pratt defendem uma terceira interpretação elencada por Velloso: para eles, formas de vida equivalem a diferentes culturas. Logo, uma cultura seria uma forma de vida, uma linguagem. Finalmente, o quarto ponto de vista debatido por Velloso é aquele que tem como principal defensor Newton Garver; este lê a expressão no singular: Wittgenstein estaria se referindo a uma forma de vida - humana.

De nosso lado, acreditamos que a vagueza concebida por Wittgenstein deve ser observada; afinal de contas, conforme postula o filósofo vienense, as expressões linguísticas não podem ser definidas aprioristicamente, quer dizer, de maneira anterior ao seu uso efetivo. Por isso, Wittgenstein não postula conceitos como classicamente a filosofia os forja - de modo absoluto, estático, metafísico. As expressões wittgensteinianas não devem ser lidas de modo imanente ao texto, mas no próprio uso que está se fazendo delas naquele jogo. Assim, não há como definir de uma vez por todas o que seriam formas de vida; antes, nossa leitura busca respeitar sua porosidade constitutiva, definindo sua significação nos diferentes acontecimentos linguísticos por “semelhanças de família”.3 3 Logo adiante voltaremos à ideia de “semelhanças de família” em Wittgenstein.

A vaguidade da expressão “forma(s) de vida”, entendemos, responde bem à dificuldade em se impor fronteiras rígidas a formações sociais absolutamente heterogêneas como são as ditas “comunidades linguísticas”. Conhecemos a impossibilidade de se delimitar conceitos como “comunidade de fala”, como se se tratasse de formações discursivas sem incongruências internas, paradoxos, contradições. Daí a “exatidão” de Wittgenstein na inexatidão de sua escolha terminológica:4 4 Fazemos aqui uma provocativa alusão à resposta de Wittgenstein à sua suposta falta de “exatidão”. Muito resumidamente podemos dizer que o filósofo mostra como também a exatidão é significada em um jogo de linguagem: “Será que é inexato se não informo a distância do Sol em relação a nós com a precisão de 1m; e, ao marceneiro, a espessura da mesa com precisão de 0,001mm?” (IF § 88). participamos de formas de vida diferentes, em que parece haver interseções em alguns casos, e distanciamentos em outros. Em todo caso, os limites não podem - trata-se de uma impossibilidade mesmo - ser traçados de modo total, definitivo, pleno.

Portanto, não faz sentido, em termos wittgensteinianos, falar em “coerência” nas formas de vida - se nós assim as reconhecemos é por uma espécie de “hábito” vivido por nós.5 5 Essa e as observações seguintes dialogam com passagens da obra Formes de vie (2015 [2019]), de Jacques Fontanille. Este autor parte da ideia wittgensteiniana de formas de vida para formular sua teoria semiótica; porém, argumentamos que a maior parte do que diz Fontanille sobre o assunto deve ser restringido ao escopo de seus fins teóricos, pois, por mais aberta que seja nossa leitura da expressão wittgensteiniana, a interpretação de Fontanille se choca com a própria concepção filosófica de Wittgenstein. Aqui trouxemos um exemplo: Fontanille requer uma “coerência” nas formas de vida, o que não faz sentido em termos wittgensteinianos. Tampouco faz sentido dizer que uma rede de TV “propõe” várias formas de vida a seus telespectadores, pois não estamos aqui falando de “estilos de vida” comprados, financiados. Então, não é o caso de se dizer que há uma forma de vida “empreendedora”, uma forma de vida “excluída”, uma forma de vida “absurda” etc. Tais qualificações são feitas em formas de vida. Nelas distinguimos espécies de emoções, inclinações políticas, paixões, atitudes. Igualmente é no mínimo estranho buscar quantificar o número de formas de vida existentes - do mesmo modo que temos incontáveis jogos de linguagem, as formas de vida também são imensuráveis. Além disso, não há que se falar em alguma “pressão”, “imposição” de uma forma de vida a nós - quando “chegamos”, o jogo já estava sendo jogado; nós não “concebemos”, “parimos”, “procriamos” formas de vida possíveis. Não nos cabe “fundar” formas de vida; antes, somos adestrados (IF § 6) a tomar parte nos mais diversos jogos de linguagem praticados em nossas formas de vida. Da mesma forma, não “assumimos” uma forma de vida como quem assume um cargo político. Só faz sentido dizer que nos “adaptamos” à nossa própria forma de vida se com isso se quiser dizer que estamos sempre aprendendo novos jogos - consequentemente, o aprendizado de uma língua não tem um término determinado, explícito. Tampouco podemos ver “de fora” as formas de vida possíveis, confrontá-las, compará-las umas às outras de modo a eleger, escolher aquela que mais nos agrade. Outros verbos também podem confundir os sentidos de formas de vida: dizer que “perseveramos”, ou que “buscamos ajustes /equilíbrios” em nossas formas de vida só faz sentido até onde podemos dizer que perseveramos, buscamos ajustes e equilíbrios em nossas vidas. Nada “tem” de “perseverar” nas formas de vida - as necessidades são aquelas próprias do curso ordinário da vida:

559. Você deve ter em atenção que o jogo de linguagem é, por assim dizer, imprevisível. Quero dizer: não se baseia em fundamentos. Não é razoável (ou irrazoável). Está aí - tal como a nossa vida (WITTGENSTEIN, 1998WITTGENSTEIN, Ludwig. Da certeza. Lisboa: Edições 70, 1998., p. 157).

Ao atentar para a imprevisibilidade dos jogos de linguagem, Wittgenstein também se blinda da “acusação” de behaviorismo: somos adestrados a jogar - mas “treino é treino, jogo é jogo” (como diria o craque Didi). Quer dizer: os jogos de linguagem, as formas de vida se fundam em solo arenoso, areia movediça. Se a linguagem é jogo, então ela é imprevisível. Nosso “adestramento” para aprendermos a usar a linguagem não nos garante um “sucesso” sempre igual. Dizer que o significado está no uso significa abrir-se ao contextual: ao mistério. A vida não é racional - nem irracional. Aquilo que fundamenta a linguagem, seu solo firme, sua essência é expressa na gramática de uso dos falantes (IF § 371). As formas de vida estão aí - são tal como a nossa vida.

Essa perspectiva wittgensteiniana de linguagem tem, é certo, consequências epistemológicas contundentes: apesar de nossos jogos serem regrados, há um momento em que a pá entorta - então, não tenho fundamentos linguísticos para justificar minhas práticas a não ser que é assim que ajo. Estar em uma forma de vida também significa pertencer a essa força coercitiva irresistível:

“Então você está dizendo que a concordância entre os homens decide o que é certo e o que é errado?” - Certo e errado é o que os homens dizem; e, na linguagem, os homens concordam. Essa não é uma concordância das opiniões, mas da forma de vida. (WITTGENSTEIN, 1975WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. Tradução de José Carlos Bruni. São Paulo: Abril Cultural, 1975. (Coleção Os Pensadores).; 2022WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. Tradução de Giovane Rodrigues; Tiago Tranjan. Posfácio: Marcelo Carvalho. São Paulo: Fósforo, 2022., § 241).

Em seus diálogos ficcionalizados (e muitas vezes sem indicações explícitas, como aspas ou travessões) com seu interlocutor imaginário - identificado por comentadores wittgensteinianos como um “socrático”, ou como a voz de B. Russell, por exemplo -, Wittgenstein é frequentemente questionado pela “agressividade” de suas asserções. Sua resposta é desconcertante: a concordância dos “hábitos” nas formas de vida não é fundada em argumentos - mas é assim que agimos. Chamar uma cor de “azul”, medir um fenômeno como “tempo”, conhecer uma pessoa como “mãe” é uma concordância de formas de vida: é assim que fazemos. Podemos não saber explicar (fisicamente, opticamente) por que chamamos esta cor de “azul”, mas assim o fazemos uma vez que, em nossa sociedade, é como aprendemos a nos comportar. Se um estrangeiro que estiver aprendendo português afirmar que é “azul” algo a que chamamos de “preto”, perceberemos que ele ainda não domina as regras do nosso jogo. A relação entre a expressão “azul” e o azul no mundo não é necessária, imanente, transcendente (fosse da linguagem, fosse da cor, fosse de uma imagem da cor), mas é um acordo de formas de vida. É em uma forma de vida que determinados gestos significam: manifestação de amor, boa ação, fingimento - são ações. Igualmente, é em formas de vida que estereótipos e o que chamamos de “identidades” são modelados - nelas concordamos sobre o que é um estereótipo de professor, o que é “assumir” uma identidade queer, por exemplo. O acordo em nossas formas de vida é abissal - como nos ensina o filósofo estadunidense wittgensteiniano Stanley Cavell (1979CAVELL, Stanley. The claim of reason. Oxford: Oxford University Press, 1979.), muitas vezes relativizamos como um laço “meramente” cultural; contudo, sua força é “natural” sobre nós. Na verdade, o que é “cultural” e “natural” já é uma taxonomia acordada em formas de vida.6 6 Na próxima seção problematizaremos essa distinção supostamente estanque entre “natureza” e “cultura” ao abordarmos o perspectivismo ameríndio tal como formulado por Viveiros de Castro (2002, 2018). É dentro de formas de vida que se estabelece o que é “normal”, o que é “usual”. Enfim, não há qualquer imanência em alguma superfície mais profunda que garanta a possibilidade de uso da linguagem - as formas de vida são formadas no uso.

Outra consequência dessa pragmática wittgensteiniana é que, se as expressões linguísticas não podem ser definidas aprioristicamente (ou seja, antes de seu uso efetivo), a pergunta socrática “O que é X?” já nasce mal colocada. A exigência por uma resposta analítica que correspondesse a X em qualquer situação imaginável é insustentável. Tanto assim que apenas saídas metafisicas, como a aposta platônica em formas universais transcendentes que espelham as coisas do mundo, são capazes de suportar tamanha reivindicação. A estabilidade da linguagem, nessa leitura, é mantida a um alto custo: o de se acreditar em uma vocação natural da linguagem para nomear as formas do mundo - por exemplo, para dar significado a diferentes cavalos (negros, brancos, malhados...), que, entretanto, compartilham entre si igualmente da mesma “forma cavalidade” representada pela palavra “cavalo”. Entretanto, Wittgenstein mostra o absurdo da pergunta “O que é cavalo?”. Ora, se o significado só é determinado no jogo em que a expressão linguística está sendo jogada, “cavalo” pode significar uma pessoa grosseira, uma peça do jogo de xadrez, alguém que recebe o santo, etc. Não há características eternamente identificadas nas palavras que as liguem a identidades estáticas. O que permanece não é uma identidade imanente, mas traços, semelhanças traçadas nos limites frouxos de formas de vida. Ao provar que o significado está no uso que fazemos da linguagem, Wittgenstein destrói a filosofia que, desde Sócrates, entende a linguagem por lentes analíticas. Não obstante, tudo o que o filósofo vienense destrói é já ruína:

De onde essa perspectiva extrai sua importância, uma vez que ela parece destruir, de fato, tudo o que é interessante, ou seja, tudo o que é grande e importante? (Todos os edifícios, por assim dizer; na medida em que deixa para trás apenas pedregulhos e entulho.) O que destruímos, porém, são apenas castelos de cartas, e deixamos desimpedido o chão da linguagem sobre o qual eles se erguiam (WITTGENSTEIN, 1975WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. Tradução de José Carlos Bruni. São Paulo: Abril Cultural, 1975. (Coleção Os Pensadores).; 2022WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. Tradução de Giovane Rodrigues; Tiago Tranjan. Posfácio: Marcelo Carvalho. São Paulo: Fósforo, 2022., § 118).

O interlocutor de Wittgenstein questiona sua perspectiva. O filósofo vienense retruca reconhecendo a implicação aparentemente violenta de suas postulações, mas ao mesmo tempo defendendo sua inocência: ele destrói fantasmas, pois a tradição filosófica é só castelo de cartas. A “identidade” conforme requerida pela visão de linguagem socrática para garantir o significado dos conceitos - o que é o “bem”, o “bom”, o “belo”, etc. - é um desses castelos de cartas. O certo é que não há essências que definam o sentido das palavras - quaisquer delas: “eu”, “cadeira”, “tempo”. Não há imanência, não há transcendência, não há um “fundo” comum que sustente um solo igual para todas as formas de vida - nenhuma estrutura profunda, nenhum resultado de alguma análise lógica.

Do mesmo modo, a própria “linguagem” não pode ser definida como quem responde a pergunta “O que é ‘linguagem’?”. Se o primeiro Wittgenstein respondeu a essa pergunta socrática de forma lógica, na fase madura de sua vida a linguagem é concebida na porosidade da metáfora com os jogos, estes também inessenciais: não é por alguma essência que chamamos atividades tão diferentes como futebol, xadrez e amarelinha de “jogos”. Não é um traço essencial que nos faz usar a linguagem tal como a usamos, mas regras estabelecidas intersubjetivamente por semelhanças de família, em nossas formas de vida.

De fato, o máximo de “amalgamento identitário” reconhecido por Wittgenstein está expresso na locução “semelhança de família”: como entre parentes de uma mesma família, reconhecemos traços em práxis diversas, como em “jogos” - reconhecimentos estabelecidos por nós, jogadores. Essas semelhanças não são exauríveis, saturáveis. Logo, a definição de linguagem pela metáfora do “jogo” revela como a linguagem é vaga - o que não é um defeito, mas uma sua característica constitutiva. Consequentemente, a continuidade que se “mantém” nas formas de vida só é assim entendida pelos sujeitos que a formam. Novamente: isso não é uma deformidade da linguagem, mas sua condição. A ideia de alguma “imperfeição”, “deformação” da linguagem não faz sequer sentido - ou melhor, é mais um “desejo lógico” do que uma prerrogativa da linguagem. Seria análogo a se exigir que a vida fosse perfeita - sendo que ainda seria preciso esclarecer o que se quer dizer por “perfeita” aqui. A linguagem é uma práxis, uma ação, de modo que só pode ser entendida como atividade que é.

Ao mesmo tempo, dois grandes comentadores de Wittgenstein, Baker e Hacker (1980BAKER, G.P.; HACKER, P.M.S. Essays on the Philosophical Investigations - Wittgenstein - Meaning and understanding. Oxford: Basil Blackwell, 1980., p. 226), lembram que “a vagueza não deve ser confundida com falta de determinabilidade do sentido”. Se a linguagem é vaga, porosa, incerta, o sentido é fixado intersubjetivamente conforme se jogam jogos de linguagem, conforme regrado em formas de vida.

Esta é outra consequência epistemológica da perspectiva wittgensteiniana de linguagem: não se trata de um relativismo em que tudo pudesse ser dito indistintamente. Wittgenstein responde ao cético sempre à espreita: em nossas formas de vida temos certezas inquestionáveis, ainda que contingentes. Por exemplo, “[q]uem não tiver a certeza de fato nenhum, também não pode ter a certeza do significado das suas palavras” (WITTGENSTEIN, 1998WITTGENSTEIN, Ludwig. Da certeza. Lisboa: Edições 70, 1998., p. 45). São certezas perspectivas em formas de vida. É Wittgenstein quem coloca o cético em uma aporia: o próprio jogo da dúvida pressupõe a certeza (WITTGENSTEIN, 1998WITTGENSTEIN, Ludwig. Da certeza. Lisboa: Edições 70, 1998., p. 47). A perspectiva de linguagem wittgensteiniana é um fundacionalismo sem fundamento: temos proposições fulcrais que são certezas em nossas formas de vida, proposições fundamentais ao redor de quem orbitam outras proposições que se lhe dependem - mas, ao mesmo tempo, as proposições fulcrais não são fundamentais no sentido de serem necessariamente, sempre e eternamente, verdadeiras.

Subvertendo a lógica clássica, não temos de um lado verdades necessárias (isto é, premissas sempre verdadeiras, em todos os mundos possíveis, conforme dirá a lógica mais contemporânea) e de outro lado proposições contingentes (quer dizer, declarações que podem ser verdadeiras ou falsas, como a predição “Haverá uma batalha naval amanhã”). Nossas verdades são necessárias e contingentes: temos certeza de que a frase declarativa “a Terra gira em torno do Sol” é verdadeira, mas sabemos que isso pode vir a mudar em algum momento - então, todas as proposições que conhecemos à esteira dessa serão igualmente falseadas. Modificaremos nossos saberes, recalcularemos rotas, abandonaremos certezas, porque nossas proposições fulcrais serão outras. Porém, neste momento, retomando o exemplo anterior das cores, se alguém nomear “preto” algo que concordamos ser “azul”, teremos certeza de que esse sujeito não sabe seguir nossas regras de uso linguístico, ao menos em relação às cores. Isso é inegociável - não fruto de alguma “escolha”. Afinal de contas, se o uso linguístico pudesse ser fruto de uma escolha individual, então a própria noção de “regra” seria irremediavelmente posta à prova. E, uma vez que é um jogo, os jogos de linguagem são regrados. Não se trata de princípios universais, mas é a recursividade do uso que assenta as regras dos jogos de linguagem. Novamente: se as atividades linguísticas, se os jogos de linguagem têm alguma “congruência” (cf. FONTANILLE, 2015FONTANILLE, Jacques. Formes de vie. Nouvelle édition [en ligne]. Liége: Presses universitaires de Liège, 2015 [2019]. Disponível em: http://books.openedition.org/pulg/2207 . Acesso em: 21 abr. 2023.
http://books.openedition.org/pulg/2207...
[2019]), esta só pode ser conhecida pelas próprias enunciações. É pelas ações dos jogadores que identificamos um jogo como vôlei, ou dama, ou paciência. De novo: não há imanências, nem transcendências, mas construções intersubjetivas de sentidos. O mistério é também decidido em formas de vida:

Todos sabemos o que na vida cotidiana poderia denominar-se um milagre. Obviamente é, simplesmente, um acontecimento de tal natureza que nunca tínhamos visto nada parecido com ele. Suponham que este acontecimento ocorreu. Pensem no caso de que em alguém de vocês cresça uma cabeça de leão e comece a rugir. Certamente isto seria uma das coisas mais extraordinárias que sou capaz de imaginar. Tão logo nos tivéssemos recomposto da surpresa, o que eu sugeriria seria buscar um médico e investigar cientificamente o caso e, se não pelo fato de que isto causaria sofrimento, mandaria fazer uma dissecação. Aonde estaria então o milagre? Está claro que, no momento em que olhamos as coisas assim, todo o milagroso haveria desaparecido; a menos que entendamos por este termo simplesmente um fato que ainda não tenha sido explicado pela ciência, coisa que significa por sua vez que não temos conseguido agrupar este fato junto com outros num sistema científico. Isto mostra que é absurdo dizer que “a ciência provou que não há milagres”. A verdade é que o modo científico de ver um fato não é vê-lo como um milagre. Vocês podem imaginar o fato que puderem e isto não será em si milagroso no sentido absoluto do termo. Agora nos damos conta de que temos utilizado a palavra “milagre” tanto num sentido absoluto como num relativo (WITTGENSTEIN, 1929WITTGENSTEIN, Ludwig. Conferência sobre ética. Tradução de Darley Dall’Agnol. 1929. Disponível em: https://ateus.net/artigos/filosofia/conferencia-sobre-etica/pdf/ . Acesso em: 4 abr. 2023.
https://ateus.net/artigos/filosofia/conf...
, p. 11-12).

Nosso acordo na linguagem é um acordo de formas de vida: acordamos o que é um milagre - no mínimo admitimos sua existência na possibilidade de uso da palavra. Constituímos um significado para esse termo característico de nossa forma de vida. Com mais um experimento de pensamento extraordinário, Wittgenstein nos mostra que o uso ordinário das expressões linguísticas são formas de viver. Todas essas implicações epistemológicas e ontológicas resistem à simplificação por que tem passado a perspectiva wittgensteiniana de linguagem ao limitá-la ao jargão “o significado de uma palavra é seu uso na linguagem” (IF § 43). Nossos procedimentos, nossa ética, nossas surpresas são jogadas em nossas formas de vida - em que se falar em “forma de vida coletiva/social” é um pleonasmo. E aqui temos ainda outra implicação epistemológica poderosa de se pensar a linguagem como forma de vida: o que ficou conhecido como o argumento da linguagem privada.

Segundo a perspectiva wittgensteiniana, uma “linguagem privada” é um oximoro. Wittgenstein recorre de modo provocativo a um exemplo que pareceria absolutamente privado: o da dor. Resumindo drasticamente, o ponto a que chega a argumentação wittgensteiniana é o de que uma proposição como “estou com dor” só pode ser dita - e compreendida - porque seu significado é social, não privado. Assim, “linguagem” é, por definição, alteridade. É claro que a dor é íntima: alguém não vai curar minha enxaqueca ao tomar algum medicamento em meu lugar. Ao mesmo tempo, os significados, e o próprio funcionamento da linguagem, são possíveis porque públicos.

Aqui também se mostra a mudança de pensamento do primeiro para o segundo Wittgenstein: se no Tractatus a linguagem precisava passar por um processo de decodificação por análises lógicas, no segundo momento de seu pensamento o filósofo afirma que a linguagem é esta que já está (“publicamente”) diante de nossos olhos. O critério de “correção” do uso da linguagem está em regras pragmáticas, cuja verificação também é pública: é saber seguir o jogo. Esse conhecimento não é de alguma gramática obscura, mas de perspectivas formas de vida.

A fome canibal: um perspectivismo selvagem

Como vimos anteriormente, essas perspectivas formas de vida formam nossos acordos mais íntimos - “naturais”, “culturais”. Essa nossa leitura abrangente de formas de vida wittgensteiniana foi a matéria que escolhemos para “canibalizar” com nosso perspectivismo ameríndio. Não à toa: o dualismo “ocidental” forjado e redutor natureza / cultura é, em certo sentido, intraduzível para o perspectivismo ameríndio. “Natural” e “cultural” são noções que não fazem sentido na cosmologia ameríndia - ou, ao menos, há “ausência de qualquer separação radical entre as esferas da Natureza e da Cultura” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2002., p. 38). Então, se tais termos de nossa própria imaginação são usados na busca por reconstituir a imaginação conceitual indígena - que força nossa imaginação “a emitir significações completamente outras e inauditas” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2002., p. 15) - é porque não temos outra...

Outra intraduzibilidade é reveladora de uma filosofia tácita: aquilo que chamamos “meio ambiente” - e aqui nos permitimos relacionar seu sentido ao de “Natureza” - não tem correspondente na língua yanomami. Ouçamos essa incompatibilidade na voz de Davi Kopenawa:

Quando falam da floresta, os brancos muitas vezes usam uma outra palavra: meio ambiente. Essa palavra também não é uma das nossas e nós a desconhecíamos até pouco tempo atrás. Para nós, o que os brancos chamam assim é o que resta da terra e da floresta feridas por suas máquinas. É o que resta de tudo o que eles destruíram até agora. Não gosto dessa palavra meio. A terra não deve ser recortada pelo meio. Somos habitantes da floresta, e se a dividirmos assim, sabemos que morreremos com ela. Prefiro que os brancos falem de natureza ou de ecologia inteira. Se defendermos a floresta por inteiro, ela continuará viva. Se a retalharmos para proteger pedacinhos que não passam da sobra do que foi devastado, não vai dar em nada de bom. Com um resto das árvores e dos rios, um resto dos animais, peixes e humanos que nela vivem, seu sopro de vida ficará curto demais. Por isso estamos tão apreensivos. [...] Nós, xamãs, dizemos apenas que protegemos a natureza por inteiro. Defendemos suas árvores, seus morros, suas montanhas e seus rios; seus peixes, animais, espíritos xapiri e habitantes humanos. Defendemos inclusive, para além dela, a terra dos brancos e todos os que nela vivem. Essas são as palavras de nossos espíritos e as nossas (KOPENAWA; ALBERT, 2015KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã Yanomami. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. Prefácio de Eduardo Viveiros de Castro. São Paulo: Companhia das Letras, 2015., p. 484-485).

A língua também acaba cristalizando postulados básicos de nossa filosofia:7 7 “Toda língua possui termos que acabaram por atingir um âmbito cósmico de referência, que cristalizam em si mesmos os postulados básicos de uma filosofia tácita, em que jaz o pensamento de um povo, de uma cultura, de uma civilização e até mesmo de uma era.” (WHORF, 1950, p. 6). separamos, partimos ao meio aquilo que é inseparável para os povos originários. Esse mundo, essa linguagem partidos não têm correspondente nem no mundo nem na linguagem yanomami. Ao mesmo tempo, não estamos na “outra metade”, fora do raio da floresta. Há um ambiente inteiro - uma natureza inteira. Gaia é indivisa (cf. VIVEIROS DE CASTRO; SALDANHA; DANOWSKI, 2022VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo; SALDANHA, Rafael Mófreita; DANOWSKI, Déborah (org.). Os mil nomes de Gaia: do Antropoceno à Idade da Terra. vol. 1. Rio de Janeiro: Editora Machado, 2022.) - portanto, como estamos “nesse meio todo”, os povos originários sabem que, se a floresta sucumbir, “não vai dar em nada de bom”: não sobra nada. Por isso, é preciso defender o “ambiente” como ele é: por inteiro - inclusive a terra onde moram aqueles que querem nos dizimar.

Lembremos a taxonomia yawalapíti na qual, na extensão do grande conceito com o qual abarcamos aquilo que chamamos de “seres vivos”, não há uma separação categorial entre humanos e outros animais (VIVEIROS DE CASTRO, 2002VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2002., p. 45). De acordo com a cosmologia ameríndia, todas as espécies viventes são gente (diferentemente de nosso ponto de vista segundo o qual, antes, somos todos animais). Então, para os povos ameríndios, é com o corpo que os entes se diferenciam entre si. A ideia de corporalidade é importante para entendermos o mito da criação dos povos originários porque é o corpo que define não só quem você é, mas que mundo você habita.8 8 Deste modo, não é coincidência que o objetivo de todas as reclusões rituais é “mudar o corpo”, “trocar o corpo”: “A prática do tiñökö manifesta a relação intrínseca entre estados corporais e estados sociais: mudanças no / do corpo sempre acompanham mudanças de estatuto social.” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 58, 63, 75). Então, se há mudança social, esta não é dada por um título, mas é visível na superfície da pele. Lembramos que, se em nossa formação judaico-cristã as solidões meditativas ocorrem à procura de alguma mudança na “alma”, nossos povos originários se divinizam na carne.

Um dos traços constituintes do mundo é a predação: “As onças comem os humanos, os humanos comem os macacos: ‘gente é macaco de onça’, disse-me alguém” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2002., p. 48). Quem é presa de quem diz em que perspectiva você está no mundo:

Com o risco de um certo excesso alegórico, diríamos que, nas cosmologias em pauta, a proposição atributiva genérica é uma proposição canibal. O protótipo da relação predicativa entre homens e mulheres, entre vivos e mortos, entre humanos e animais, entre humanos e espíritos, e, naturalmente, entre inimigos. A cópula predicativa de toda preposição sintética, neste universo que se enuncia segundo uma lógica das qualidades sensíveis, é efetivamente uma cópula, carnal ou carnívora. Sujeito e objeto se interconstituem pela predação incorporante, cuja reciprocidade característica, sublinhe-se, atesta a inexistência de posições absolutas (do sujeito como substância, do predicado como acidente) (VIVEIROS DE CASTRO, 2002VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2002., p. 165).

A predação canibal pode assim ser estendida, na cosmologia ameríndia, para explicar as relações humanas e não humanas como relações de predador e presa. Logo, tanto no sentido sexual quanto na deglutição culinária há uma performativização da cópula. Os Tupinambá usam a mesma linguagem para se engajarem em um casamento e para incorporarem seus inimigos banqueteando-se deles (VIVEIROS DE CASTRO, 2002VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2002., p. 206). Em comum há a falta de posições absolutas; mais vale a velha máxima “um dia da caça, outro do caçador”. É apenas em relação que os entes se constituem ao se incorporarem uns aos outros. É na performance do encontro que as identidades se assentam, uma vez que não há substâncias transcendentes, nem acidentes totalmente contingentes. O essencial é a reversibilidade da relação. Mais uma vez bagunçando as fronteiras entre “natureza” e “cultura”, mesmo a relação de predação é, em si mesma, uma relação social, “porque só há relações sociais” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2002., p. 167).

A leitura de Viveiros de Castro leva à conclusão de que a máxima canibal é a “máxima” relação social por excelência (2002, p. 168); a predação é o critério que certifica que tipo de vínculo social se terá. O canibalismo é um princípio, posto que tudo é / está em relação: “A troca amazônica é predação ontológica: é constituição imanente, e subversão intrínseca” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2002., p. 180). A devoração subjetiva quem é quem de modo acidental, portanto, nunca absolutamente concluído em ser - é um ser sempre em devir. Porém, se já concordamos sobre a impossibilidade de se reconstituir o imaginário conceitual indígena ilesos de nosso próprio, a provocativa pergunta de Clifford é inevitável:

As narrativas de contato e mudança cultural têm sido estruturadas por uma dicotomia onipresente: absorção pelo outro ou resistência ao outro. [...] Mas, e se a identidade for concebida não como uma fronteira a ser defendida, e sim como um nexo de relações e transações no qual o sujeito está ativamente comprometido? A narrativa ou narrativas da interação devem, nesse caso, tornar-se mais complexas, menos lineares e teleológicas. O que muda quando o sujeito da “história” não é mais ocidental? Como se apresentam as narrativas de contato, resistência ou assimilação do ponto de vista de grupos para os quais é a troca, não a identidade, o valor fundamental a ser afirmado? (CLIFFORD, 1988, p. 344 apudVIVEIROS DE CASTRO, 2002VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2002., p. 195-196).

A separação entre caça / caçador, afinal, é traçada por nós - é o “humano ocidental” quem assim determina e estanca essa relação. Então, é importante lembrar que outras formas de vida são outras formas de existência. Assim sendo, a dicotomia predatória range. Viveiros de Castro defende a tese mesma de uma “incompletude ontológica essencial” (2002, p. 220): a humanidade não é completa, a sociedade não é completa. Mais: a completude sequer é um desejo, pois o que interessa é se expor ao outro, à diferença. Ser tupinambá é se definir pelo outro - uma “essencial alteração” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2002., p. 263, grifo do autor). Ser devorado, devorar. É sempre vertiginoso ler o já tão recontado diálogo entre Hans Staden e o principal Cunhambebe:

Durante isso Cunhambebe tinha à sua frente um grande cesto cheio de carne humana. Comia de uma perna, segurou-m’a diante da boca e perguntou-me se também queria comer. Respondi: “Um animal irracional não come um outro parceiro, e um homem deve devorar um outro homem?” Mordeu-a então, e disse: “Jauára ichê. Sou um jaguar. Está gostoso.” Retirei-me dele, à vista disto. (STADEN, 1557, p. 132 apudVIVEIROS DE CASTRO, 2002VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2002., p. 255).

Lembrando que é no corpo que há diferença, então é comendo a carne (coxas, pernas, peito) que a própria carne devorada significa, e que quem a come ganha algum fio de “identidade”. É na mordida que podemos ser a cerveja do jaguar - ou que podemos ser o jaguar que come um homem. É um jogo de formas de vida.

É significativo que, na cerimônia canibal, o caçador troca de nome - é um devir outro nesse tomar nomes novos. Comer o outro muda a gente - e quanto mais se executam cativos, mais nomes se ganha. Dessa maneira, mais honrado e nobre será aquele que mais nomes tiver, pois cada nome diz cada uma das suas centenas de inimigos mortos (VIVEIROS DE CASTRO, 2002VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2002., p. 228). Para os araweté, vítima e matador se tornam apihi-pihã: nome da relação mais valorizada naquela comunidade (VIVEIROS DE CASTROVIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2002., 2002, p. 273). Se tudo é relação, aquela que se estabelece na ponta da flecha fatal, no fio da faca, no som surdo do tacape é a mais nobre. Nas palavras de Viveiros de Castro:

Se é verdade que “o ponto de vista cria o objeto”, não é menos verdade que o ponto de vista cria o sujeito, pois a função de sujeito define-se precisamente pela faculdade de ocupar um ponto de vista. Nesse sentido, a assimilação predatória de propriedades da vítima, no caso amazônico, deve ser compreendida [...] como [...] uma geometria das relações, isto é, enquanto movimento de preensão perspectiva, onde as transformações resultantes da agressão guerreira incidem sobre posições determinadas como pontos de vista (VIVEIROS DE CASTRO, 2002VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2002., p. 291).

Parafraseando Saussure, Viveiros de Castro mostra como o sujeito é uma posição determinada ao se tomar um ponto de vista. Ou melhor: nessa releitura saussuriana, não há total clareza na separação objeto / sujeito. O que temos são posições, perspectivas, diferenças, ou seja, “formas de vida”, não “substâncias de vida”, para continuarmos na paráfrase ao mestre genebrino.

Anotações para uma linguística antropológica selvagem

Começamos a esboçar, assim, uma contribuição teórico-metodológica para uma linguística antropológica perspectivista. Essa proposta se justifica partindo do entendimento de que no Brasil é a antropologia de viés norte-americano aquela que mais tem entrada nos estudos linguísticos - uma linha da antropologia que, para Viveiros de Castro, “tendeu a se concentrar no par cultura / natureza” (2002, p. 304). Mais, podemos entender essa linguística antropológica como um princípio decolonial, uma vez que a própria noção de sociedade que o ponto de vista ameríndio de certo modo recusa é aquela concebida culturalmente pelo Ocidente moderno. Nesse sentido,

[a]rgumenta-se, por exemplo, que a ideia de uma humanidade dividida em unidades étnicas discretas, social e culturalmente singulares, deriva da ideologia do Estado-nação, imposta aos povos não-ocidentais pelo colonialismo, esse grande inventor conceitual e prático de “tribos” e “sociedades” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2002., p. 313).

Afinal, quem é “tribo” e quem é “pólis” foi instaurado, no fim das contas, pelo exército vencedor, pelo predador que deteve a presa. E, está claro, a invasão europeia ao solo americano instituiu, também e principalmente, o que seria um “dialeto” e o que era uma “língua”. A violência colonial se impôs justificando-se pretensamente que os colonizados fossem seres desalmados, sem língua - bárbaros não-humanos.

A linguística antropológica selvagem que viemos apresentar rejeita a reificação de “sociedade” como alguma força exterior que agenciasse os indivíduos; em vez disso, preferimos a noção de socialidade9 9 Cf. VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 313. para traduzir uma constituição intersubjetiva das sociedades linguísticas. Afinal, se a linguagem é pragmática porque ação entre sujeitos, então o agenciamento social também só pode ser compreendido pragmaticamente. A crise metodológica das humanidades se embrenha por uma crise política, conceitual, desde sempre ideológica:

O fim do colonialismo político formal e a aceleração dos processos de mundialização dos fluxos econômicos e culturais tornaram mais evidente o caráter desde sempre ideológico e artificial de algumas ideias em questão: a mônada primitiva não era primitiva, e nunca foi monádica (VIVEIROS DE CASTRO, 2002VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2002., p. 315).

Se a caça pode virar caçador, então foi chegado o dia em que o colonizado se viu dito pelo colonizador, narrado através de uma história única: a de que “eles” são inumanos, bárbaros, selvagens. O que propomos é uma mudança de ponto de vista teórico e metodológico de um paradigma colonial (ao mesmo tempo, é sempre bom lembrar que muda-se um ponto de vista, não todos).

Essa “desconstrução”, como explica J. Derrida (1991DERRIDA, Jacques. Margens da filosofia. Tradução de Joaquim Torres Costa; António M. Magalhães. Revisão técnica de Constança Marcondes Cesar. Campinas: Papirus, 1991.), não é uma mera inversão - por exemplo, entre o colonizador e o colonizado. Nosso ponto de vista teórico-metodológico pretende escapar às dicotomias “greco-ocidentais”, como as chamadas “teorias do Grande Divisor”, que opõem Natureza / Cultura, Materialismo / Mentalismo, Estrutura / Processo. Pensar a linguagem como formas de vida é organizar um dispositivo teórico-metodológico em que as análises só podem ser feitas em rede, uma vez que será preciso uma perspectivização dos seres e de suas enunciações.

Se uma análise radicalmente pragmática da linguagem já pressupõe o sujeito e a historicidade, então é forçoso explicar em que sentido jogamos esses jogos. O sujeito é perspectivado ao se constituir sempre em relação a, dada sua vagueza ontológica constitutiva. Esse pensamento essencialmente canibal se funda em sua necessária alteridade em devires.

Ao mesmo tempo, histórias constituem nossas formas de vida, nos constituem - em como nos reconhecemos em uma “tribo”, em uma “sociedade”. Do fato de que todes somos pessoas em Gaia não se conclui que todos habitamos o mesmo mundo. Logo, falar em “comunidade linguística”, “comunidade de fala” é dizer de uma rede de entes que, em um momento pontual, em uma situação específica, assim se configura. Na efemeridade da vida, essa rede se faz e se desmancha continuamente. É nesse fio fino que começamos nossa investigação selvagem.

Referências

  • AUSTIN, John Langshaw. Quando dizer é fazer Porto Alegre: Artes Médicas, 1990 [1962].
  • BAKER, G.P.; HACKER, P.M.S. Essays on the Philosophical Investigations - Wittgenstein - Meaning and understanding Oxford: Basil Blackwell, 1980.
  • CAVELL, Stanley. The claim of reason Oxford: Oxford University Press, 1979.
  • DERRIDA, Jacques. Margens da filosofia Tradução de Joaquim Torres Costa; António M. Magalhães. Revisão técnica de Constança Marcondes Cesar. Campinas: Papirus, 1991.
  • FABRÍCIO, Branca F. Linguística aplicada como espaço de “desaprendizagem”: redescrições em curso. In: MOITA LOPES, Luiz Paulo da (org.). Por uma linguística aplicada INdisciplinar São Paulo: Parábola Editorial, 2006. p. 45-65.
  • FONTANILLE, Jacques. Formes de vie Nouvelle édition [en ligne]. Liége: Presses universitaires de Liège, 2015 [2019]. Disponível em: http://books.openedition.org/pulg/2207 Acesso em: 21 abr. 2023.
    » http://books.openedition.org/pulg/2207
  • KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã Yanomami. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. Prefácio de Eduardo Viveiros de Castro. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
  • KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
  • KRENAK, Ailton. A vida não é útil São Paulo: Companhia das Letras, 2020a.
  • KRENAK, Ailton. O amanhã não está à venda São Paulo: Companhia das Letras, 2020b.
  • MARCONDES, Danilo. Wittgenstein: linguagem e realidade. Caderno de Pedagogia e Cultura, Niterói, v. 3, n. 2, p. 217-230, jul./dez. 1994.
  • MOITA LOPES, Luiz Paulo da (org.). Por uma linguística aplicada INdisciplinar São Paulo: Parábola Editorial, 2006.
  • MONTAIGNE, Michel de. Ensaios Tradução de Sérgio Milliet. São Paulo: Abril Cultural, 1972 [1580]. (Coleção Os Pensadores).
  • SANTOS, Luiz Henrique Lopes dos. A harmonia essencial. In: NOVAES, Adauto (org.). A crise da razão São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p. 437-455.
  • SANTOS, Boaventura de Sousa. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia dos saberes. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (org.). Epistemologias do Sul São Paulo: Cortez, 2010. p. 23-71.
  • SMITH, Plínio Junqueira. Ceticismo filosófico São Paulo, Curitiba: EPU, Ed. Da UFPR, 2000.
  • VELLOSO, Araceli. Forma de vida ou formas de vida? Philósophos, v. 8, n. 2, p. 159-184, jul./dez. 2003.
  • VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia São Paulo: Cosac & Naify, 2002.
  • VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Metafísicas canibais: elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo: Ubu Editora; n-1 Edições, 2018.
  • VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo; SALDANHA, Rafael Mófreita; DANOWSKI, Déborah (org.). Os mil nomes de Gaia: do Antropoceno à Idade da Terra. vol. 1. Rio de Janeiro: Editora Machado, 2022.
  • WHORF, Benjamin Lee. O universo segundo o modelo dos índios hopis Tradução e notas de Phellipe Marcel da Silva Esteves. São Carlos: Programa de Pós-Graduação em Lingüística da Universidade Federal de São Carlos, 2011 [1950].
  • WITTGENSTEIN, Ludwig. Conferência sobre ética Tradução de Darley Dall’Agnol. 1929. Disponível em: https://ateus.net/artigos/filosofia/conferencia-sobre-etica/pdf/ Acesso em: 4 abr. 2023.
    » https://ateus.net/artigos/filosofia/conferencia-sobre-etica/pdf/
  • WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas Tradução de José Carlos Bruni. São Paulo: Abril Cultural, 1975. (Coleção Os Pensadores).
  • WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas Tradução de Giovane Rodrigues; Tiago Tranjan. Posfácio: Marcelo Carvalho. São Paulo: Fósforo, 2022.
  • WITTGENSTEIN, Ludwig. Da certeza Lisboa: Edições 70, 1998.
  • WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Logico-Philosophicus Tradução, apresentação e estudo introdutório de Luiz Henrique Lopes dos Santos. Introdução de Bertrand Russell. 3. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001.
  • 1
    Doravante IF.
  • 2
    Pelo menos nossa maior fonte do ceticismo antigo (ou pirrônico), Sexto Empírico (c. III d.C.), em seu tratado Contra os gramáticos, já defendia que os usuários da língua não deveriam seguir as regras estabelecidas pelos gramáticos via analogia; antes, é o uso comum que deve ser observado. (Não é incomum leituras que relacionam o pensamento pirrônico ao wittgensteiniano (cf. SMITH, 2000SMITH, Plínio Junqueira. Ceticismo filosófico. São Paulo, Curitiba: EPU, Ed. Da UFPR, 2000.)
  • 3
    Logo adiante voltaremos à ideia de “semelhanças de família” em Wittgenstein.
  • 4
    Fazemos aqui uma provocativa alusão à resposta de Wittgenstein à sua suposta falta de “exatidão”. Muito resumidamente podemos dizer que o filósofo mostra como também a exatidão é significada em um jogo de linguagem: “Será que é inexato se não informo a distância do Sol em relação a nós com a precisão de 1m; e, ao marceneiro, a espessura da mesa com precisão de 0,001mm?” (IF § 88).
  • 5
    Essa e as observações seguintes dialogam com passagens da obra Formes de vie (2015FONTANILLE, Jacques. Formes de vie. Nouvelle édition [en ligne]. Liége: Presses universitaires de Liège, 2015 [2019]. Disponível em: http://books.openedition.org/pulg/2207 . Acesso em: 21 abr. 2023.
    http://books.openedition.org/pulg/2207...
    [2019]), de Jacques Fontanille. Este autor parte da ideia wittgensteiniana de formas de vida para formular sua teoria semiótica; porém, argumentamos que a maior parte do que diz Fontanille sobre o assunto deve ser restringido ao escopo de seus fins teóricos, pois, por mais aberta que seja nossa leitura da expressão wittgensteiniana, a interpretação de Fontanille se choca com a própria concepção filosófica de Wittgenstein. Aqui trouxemos um exemplo: Fontanille requer uma “coerência” nas formas de vida, o que não faz sentido em termos wittgensteinianos.
  • 6
    Na próxima seção problematizaremos essa distinção supostamente estanque entre “natureza” e “cultura” ao abordarmos o perspectivismo ameríndio tal como formulado por Viveiros de Castro (2002VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2002., 2018VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Metafísicas canibais: elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo: Ubu Editora; n-1 Edições, 2018.).
  • 7
    “Toda língua possui termos que acabaram por atingir um âmbito cósmico de referência, que cristalizam em si mesmos os postulados básicos de uma filosofia tácita, em que jaz o pensamento de um povo, de uma cultura, de uma civilização e até mesmo de uma era.” (WHORF, 1950WHORF, Benjamin Lee. O universo segundo o modelo dos índios hopis. Tradução e notas de Phellipe Marcel da Silva Esteves. São Carlos: Programa de Pós-Graduação em Lingüística da Universidade Federal de São Carlos, 2011 [1950]. , p. 6).
  • 8
    Deste modo, não é coincidência que o objetivo de todas as reclusões rituais é “mudar o corpo”, “trocar o corpo”: “A prática do tiñökö manifesta a relação intrínseca entre estados corporais e estados sociais: mudanças no / do corpo sempre acompanham mudanças de estatuto social.” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2002., p. 58, 63, 75). Então, se há mudança social, esta não é dada por um título, mas é visível na superfície da pele. Lembramos que, se em nossa formação judaico-cristã as solidões meditativas ocorrem à procura de alguma mudança na “alma”, nossos povos originários se divinizam na carne.
  • 9
    Cf. VIVEIROS DE CASTRO, 2002VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2002., p. 313.

Editado por

Editora-chefe dos Estudos de Linguagem:

Bethania Mariani

Editores convidados:

Pierluigi Basso-Fossali, Renata Mancini

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    29 Abr 2023
  • Aceito
    16 Ago 2023
Programas de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal Fluminense (UFF) Rua Professor Marcos Waldemar de Freitas Reis, s/n, Bloco C - sala 518, CEP 24210-201 - Niterói, Rio de Janeiro, Brasil., Telefone +55 21 2629-2600 - Niterói - RJ - Brazil
E-mail: gragoata.egl@id.uff.br