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Implicações sociais do uso das técnicas de manipulação genética: aplicação em países de terceiro mundo

DOSSIÊ (A) - A BIOÉTICA / DOSSIÊ (B) - LEI DE DIRETRIZES E BASES DA EDUCAÇÃO NACIONAL

Implicações sociais do uso das técnicas de manipulação genética: aplicação em países de terceiro mundo

Maria Tarcisa Silva Bega

Professora do Departamento de Ciências Sociais, Universidade Federal do Paraná

Entendemos o uso das técnicas de manipulação genética como um das formas avançadas do conhecimento humano, na fronteira entre a biologia, a genética e a engenharia. Através deste escopo de conhecimentos, o homem poderá melhorar o seu corpo físico e mental, interferir no sentido da potencialização dos seus elementos positivos como através do retardamento do desenvolvimento de plantas e animais nocivos. O paradigma atual pressupõe que o homem, para sobreviver, precisa dominar a Natureza, entendendo-a como a relação entre o homem-ecossistema.

A noção de dominação que está sendo construída, a partir da engenharia genética, deixa de lado a tradicional noção de força - através das guerras tradicionais, com a destruição ou submissão do Outro - substituíndo-a por uma outra mais sutil, através dos conhecimentos científico-tecnológicos, onde o dominador não precisa ser o que possui o maior exército e nem o melhor parque industrial, mas aquele que detiver o controle dos mecanismos fundamentais de manutenção e manipulação das diferentes formas de vida.

Aqui centramos a discussão numa vertente sociológica: antes de ser uma questão apenas científica, a manipulação genética é ético-política. Pode o homem manipular o seu semelhante (partindo de uma noção de Natureza onde o homem e meio ambiente formam uma totalidade)? A que interesses estarão servindo estes conhecimentos?

A análise desta temática é extremamente complexa e não temos a pretensão de aprofundá-la, mas apenas indicar uma linha de reflexão a ser tratada pelos atuais e futuros professores de Biologia da rede de 1º e 2º graus. Neste sentido, é muito pertinente a discussão aventada por Rabinow, professor de Antropologia da Universidade da Califórnia, Berkeley. Para ele, a discussão se concentra no caráter que a genética vem assumindo,1 1 É importante lembrar que o crescimento da genética como ciência, principalmente as experiências de manipulação com seres humanos, teve o seu apogeu no regime nazista conforme se pode afirmar, com base em estudos como o de Benno Müllerhill, Tödliche Wissenschaft, citado por BEIGUELMAN, 1990: (61) onde a combinação de um projeto político de melhoramento da raça só era possível com a participação ativa, tanto em termos científicos como políticos, de médicos e antropólogos. Segundo BEIGUELMAN, também o Brasil não esteve imune às propostas de "estabelecimento de uma política de higiene racial, que em outros países foi chamada de eugenia." Diz ele: Até no Brasil surgiu uma Comissão Central Brasileira de Eugenia, que tinha sede no Rio de Janeiro e publicava um boletim de eugênia, impresso na cidade de Piracicaba, Estado de São Paulo. Tive acesso a alguns números desses boletins datados de 1923 e 1933. Quando estavam no quarto e quinto anos de publicação, e neles pude constatar traduções de artigos do famigerado Dr. Bruno Schultz, notas enaltecendo a lei da esterilização de deficientes mentais estabelecida na Alemanha nazista, artigos de autores nacionais contra o casamento entre brancos e negros e contra a imigração de japoneses, que eram cognominados de perigo amarelo, bem como de artigos a favor de medidas eugênicas contra deficientes, criminosos e os socialmente inadaptados. pois ela possui força suficiente para remodelar a sociedade e a vida, de uma forma infinitamente maior que a revolução física jamais teve, porque "será implantada em todo o tecido social por práticas médicas e uma série de outros discursos". Ele faz esta afirmação ao investigar a forma como as práticas de vida têm se tornado o lugar atual mais potente de novos saberes e poderes.2 2 Paul Rabinow realiza a sua argumentação tendo como referência teórica a produção de Michel Foucault. Ver a esse respeito: FOUCAULT, (1979). Uma de suas conclusões é que: "na atualidade, o lugar mais lógico para verificar essas mudanças é no Projeto Genoma, patrocinado pelos Institutos Nacionais de Saúde (National Institute of Health) e pelo Departamento de Energia (Energy Department), cuja atribuição é produzir um mapa de nosso DNA (Rabinow, 1991:80).

Com isso ele desloca a discussão da origem da genética e de sua apropriação pelo regime nazista - as experiências realizadas e o discurso contruído sobre o aperfeiçoamento da raça humana - mostrando que elas não passaram de metáforas biológicas, se comparadas com um novo momento vivido pela humanidade, resultado dos avanços científicos na área da engenharia genética que traz consigo a consolidação de um novo campo de investigação - a sociobiologia - que é referenciada como um projeto social. Sobre este campo de conhecimento e sua ação sobre a sociedade, mostra que:

"(...) das intervenções filantrópicas liberais destinadas a moralizar e disciplinar os pobres e degenerados, à

rassenhygien

e suas aspirações sociais; à sociobiologia empresarial com seu sadismo social ligado à oferta; o que esteve em jogo foi a construção da sociedade. No futuro, a nova genética deixará de ser uma metáfora biológica para a sociedade moderna, e se tornará uma rede de circulação de termos de identidade e lugares de restrição, em torno de qual e através da qual surgirá um tipo verdadeiramente novo de autoprodução: vamos chamá-lo de biossociabilidade. Se a sociobiologia é cultura construída com base numa metáfora da natureza, então na biossociabilidade a natureza será modelada na cultura compreendida como prática; ela será conhecida e refeita através da técnica, a natureza finalmente se tornará artificial, exatamente como a cultura se tornou natural. Se este projeto chegasse a ser realizado, ele seria a base para superar a separação entre natureza e cultura." (Rabinow, p.85)

Para o autor, para que haja a separação entre natureza e cultura, é necessária a dissolução da categoria do social, entendido por ele como "a totalidade do modo de vida de um povo, aberta à análise empírica e à mudança planejada" (Rabinow, p.86)

Segundo ele, os indícios da dissolução da sociedade moderna podem ser encontrados nas transformações do conceito de risco - do risco aleatório de se contrair doenças, da possibilidade de sua ocorrência pela manifestação da carga hereditária, das mudações genéticas - quando era possível estabelecer uma estreita aproximação entre diagnóstico e terapêutica. Agora, a prevenção é antes de tudo um mapeamento de riscos:

O risco não é o resultado de perigos específicos colocados pela presença imediata de uma pessoa ou grupo de pessoas, mas sim a fusão de fatores impessoais que tornam um risco provável. Assim, a prevenção é a vigilância, não do indivíduo, mas de prováveis ocorrências de doenças, anomalias, comportamentos desviantes a serem minimizados, e de comportamentos saudáveis a serem maximizados. Estamos aos poucos abandonando a antiga vigilância face-a-face dos indivíduos e grupos já conhecidos como perigosos ou doentes, com finalidades disciplinares ou terapêuticas, e passando a projetar fatores de risco que desconstroem e reconstroem o sujeito individual ou grupal, ao antecipar possíveis

loci

de irrupções de perigos, através da identificação de lugares estatisticamente localizáveis em relação a normas e médias." (Rabinow, 86)

Na discussão sobre as implicações sociais sobre o uso das técnicas de manipulação genétia, é pertinente argumentar que esse conjunto de técnicas, ao formar um novo campo científico - a engenharia genética - traz no seu nome uma síntese paradoxal. Como genética, agrega tanto um passado não glorioso, como um futuro que caminha para uma nova revolução científica. Como engenharia, ela está intrinsecamente vinculada ao modelo iniciado em 1750, com a revolução industrial, base das sociedades tanto capitalistas como as socialistas, onde os paradigmas básicos são a existência de um projeto, o controle de qualidade, e previsibilidade do protudo.

Especulando um pouco sobre as notícias de jornal que mostram as maravilhas da reprodução humana in vitro, as possibilidades de controle de doenças hereditárias - físicas e mentais - , a possibilidade de melhoria genética de fetos, entre outras, a questão que se destaca é como os cientistas, os laboratórios e os organismos de fomento e controle dessas pesquisas, avaliarão e controlarão todas as possibilidades de combinações que possam ocorrer entre: famílias que querem controlar a "qualidade" de seus "produtos" (seus filhos); interesse de laboratórios de apresentarem produtos e tecnologias que ofereçam a possibilidade de gerar pessoas mais belas e perfeitas (o que não significa necessariamente mais felizes), grupos políticos que possam ascender ao poder com projetos eugênicos, num discurso que sutilmente potencializem traços discriminatórios de minorias e contra minorias?3 3 É ainda nesse terreno da especulação, se pensamos na América Latina que têm inúmeros focos de discriminação - da população "branca" x população índia na América espanhola; população "branca" x população negra; população "branca" x amarelos; e, no caso brasileiro, os movimentos separatistas, de cunho racial, mas que se escondem sob o falso manto da discussão da má redistribuição regional dos recursos de origem tributária.

Estas questões não pertencem apenas ao campo profissional dos sociólogos, mas é preocupação de geneticistas de renome. Como diz Beiguelman, discutindo a questão ética na genética:

"É a preocupação com a qualidade do produto que faz com que numerosos geneticistas de todo mundo busquem a localização de genes responsáveis por anomalias hereditárias, enquanto que outros procuram uma tecnologia para a substituição desses genes. É a preocupação com a qualidade do produto que faz com que a gestante se submeta à amniocentese ou à biópsia de vilosidades coriônicas para investigar se o feto tem ou não alguma anomalia.

A previsibilidade do produto, por sua vez, forçou a uma profunda alteração na relação entre pais e filhos, pois há uma pressão por óvulos perfeitos, espermatozóides perfeitos, embriões perfeitos, fetos perfeitos, crianças perfeitas. O preconceito e a intolerância nazista para com os incapacitados está de volta, pois os que exibem cromossopatias ou heredopatias são vistos como produtos defeituosos que não poderiam existir e que poderiam ser evitados. Como na Alemanha nazista, os cientistas estão organizando as idéias para serem aproveitadas pelos legisladores e dilvulgadas pela imprensa, sem passar por uma discussão pública que permita pôr a nu quem faz os julgamentos e em nome de quem." (Beiguelman, 1990, p.68).

Estas reflexões até aqui colocadas embora não tratem diretamente de implicações sociais do uso das técnicas de manipulação genética para os países de Terceiro Mundo, são fundamentais para nos situar dentro de um outro paradigma - o da globalização da sociedade - cujo significado rompe com os pressupostos da revolução industrial, impondo novas relações, tanto econômicas como políticas e uma nova ética, que podem ser sintetizadas como um novo conjunto de relações sociais entre os habitantes do planeta.

Mas o que tem a ver estas questões, filosóficas em sua maioria, com que a questão da manipulação genética e suas implicações sociais para o Terceiro Mundo? Ao se definir um novo corpo de relações sociais, esta "nova ciência" pressupõe uma análise sobre as relações anteriores entre os países, que levou à definição de Primeiro Mundo e Terceiro Mundo, desenvolvidos e subdesenvolvidos, ricos e pobres. Buscando uma definição consensual, foram considerados de Terceiro Mundo4 4 Segundo o Banco Mundial, 40 países possuem renda per capita abaixo de 650 dólares anuais, 65 estão na faixa considerada enconomia de renda média, sendo que deste total, 42 estão no intervalo entre 650 a 2.500 dólares e apenas 23 entre 2.500 e 7.800 dólares. Situado neste subgrupo de economias e renda média alta tem-se os seguintes países da América Latina: Venezuela (2.730), Argentina (2.790), Uruguai (2.840), Brasil (2.940), México (3.030), trindad e Tobago (3.760) e Porto Rico (6.320). Para maiores detalhes ver: BANCO MUNDIAL (1993). todos aqueles países cuja renda per capita anual esteja num intervalo entre 650 a 7.500 dólares. Como este intervalo é muito elástico, dele estão excluídos apenas os países europeus de alta renda, Estados Unidos, Canadá e Austrália. No limite inferior, estão apenas países localizados preferencialmente na África Negra e a parte pobre da Ásia. Como países de Terceiro Mundo estão todos os de renda inferior aos 650 dólares per capita, e aqueles do grupo superior, cujas rendas fiquem abaixo dos 5.000 dólares per capita/ano: são caracterizados por uma economia dependente, inserindo-se no cenário mundial como produtores de matérias-primas; possuem a maior parte da população mundial, cujo crescimento demográfico supera em muito o dos países desenvolvidos. Ao mesmo tempo que são um "reservatório de problemas sociais", com os maiores índices de doenças e de pobreza, paradoxalmente possuem as maiores reservas ambientais do planeta.

Portanto, para discutir o nosso tema, é fundamental iniciar pela forma de inserção desses países na economia mundial e quais as tendências de manutenção/alteração desse quadro. É necessário resgatar que esta subordinação não é um fruto da "vontade" de seus habitantes, mas da forma como esses países foram incorporados à economia mundial, servindo primeiramente como reservatório de matérias-primas na fase do capitalismo concorrencional. No capitalismo monopolista, apresentam uma outra forma de vinculação - tanto como produtores de matérias, como de produtos manufaturados mas, principalmente, como mercado cativo de consumo, a serviço de um padrão de acumulação capitalista cuja determinação não lhes foi dado o direito de interferir. Por isso, hoje sua participação se dá como "parceiros minoritários" na geração das riquezas material, intelectual e científica. Esta posição periférica é reforçada, por sua vez, pela opção de investimentos de seus governos, previlegiando a "importação de tecnologias", expressa no pequeno montante de recursos destinados para ciência e tecnologia, que tragam como proposta a idéia de superação dessa condição de "inferioridade".

Só para citar um exemplo, divulgado pelos jornais no mês de março de 1994, segundo a UNESCO, em 1990, a América Latina gastou US$ 5,32 bilhões em ciência, dos quais o Brasil foi o responsável por US$ 3 bilhões. Isto pode parecer muito para os nossos economistas domésticos mas, em termos orçamentários, é menor que os recursos destinados aos ministérios militares (que levam também uma fatia desses recursos destinados à ciência). É preciso ressaltar que, neste montante, estão alocados não apenas os recursos para as pesquisas em todas as áreas do conhecimento - desde Filosofia à Engenharia Mecânica - mas também para divulgação dos resultados dessas investigações.

Portanto, os países do Terceiro Mundo, além de estarem numa posição de subordinação econômica frente aos países desenvolvidos, desde a sua inserção na economia mundial, o caráter dessa subordinação começa hoje a assumir novos contornos. Já não somos mais tão necessários como produtores de alimentos para abastecer a Europa, por exemplo, na medida que, pelos processos de melhoramento genético, já se consegue produzir a quantidade de proteínas e calorias necessárias para alimentar a população deste continente, tendo como suporte um território bastante escasso. Em outras palavras, a determinação territorial que nos colocava dentro de uma divisão internacional do trabalho, de forma subordinada, mas necessária para o funcionamento da economia mundial, parece estar se esgotando. Os países do Primeiro Mundo, neste sentido estrito, "podem se libertar" do fardo da convivência com os países pobres, tecnologicamente falando.

Tomando esse referencial, as questões sobre o patenteamento das descobertas baseadas na manipulação genética, realizadas em laborátório do Terceiro mundo ou com base em matérias-primas advindas daí, deixam de ser científicas e passam a ser políticas. Qual é o projeto científico-tecnológico dos países do Terceiro Mundo? Estarão eles em condições de fazer frente à pressão dos organismos de pesquisa tanto oficiais como vinculados aos laboratórios privados?

Para tanto, é necessário uma mudança de rumo na política científico-tecnológica, pois esses países sequer conseguem combater as doenças típicas da Idade Média - a cólera é o melhor exemplo - e, se são ainda hoje campeões na mortalidade infantil, antes do término do primeiro ano de vida, devido a doenças como desinteria5 5 Os indicadores sobre mortalidade infantil para 1990, para os países da África subsaariana é, em média, de 175/1000. Para a América Latina e caribe é de 60/1000. A taxa brasileira (69/1000) além de ser superior à média do continente, está muito acima das taxas da Argentina e Uruguai (26 e 23/1000 respectivamente). A taxa média para os países desenvolvidos é de 11/1000. , como pensar num programa de pesquisas avançadas que permita desenvolver experimentos colados às necessidades sociais de seus habitantes?

Sem resvalar para o discurso trágico, vale destacar que a Folha de São Paulo de 26/02/94 apreentou no seu caderno "Cotidiano" duas notícias altamente inquietantes: "Secretaria de Saúde de São Paulo confirma 3 mortes por leptospirose no estado, sendi duas na capital e uma em Diadema." Na mesma página traz ainda: "MENINGITE: Doença mata 7 crianças no Ceará." Apresenta no mesmo dia, comentário sobre a produção de um Globo Ciência que traz as pesquisas de Luis Hildebrando Pereira da Silva (vinculado ao Instituto Pasteur de Paris) e Erney Plessman de Camargo (USP), analisando a malária em Rondônia. Segundo ele, "a malária mata no Brasil, por ano, cerca de dez mil pessoas," o que eqüivale à destruição gerada pela guerra civil entre Bósnios, Sérvios e Croatas. A grande diferença é que esta guerra não destrói a propriedade material, seja pública ou privada, mas apenas seres humanos e ocorre na parte mais pobre e invisível de um país de Terceiro Mundo chamado Brasil.

Como componente de uma política científico-tecnológica que se proponha a evitar a posição de "país descartável", juntamente com a questão do patenteamento, é fundamental ter em mente as implicações no que se refere à segurança quanto ao uso desse conhecimento científico. Nesse campo, o que parece estar sempre em jogo é uma relação custo/benefício quanto aos resultados x riscos. Aqui, pesa menos a consciência individual do pesquisador que a posição institucional assumida pelas entidades de pesquisa e governos locais. Segundo Roque Monteleone Neto, da Escola Paulista de Medicina e Secretaria de Meio Ambiente de São Paulo, a discussão sobre a biossegurança, inicia-se com a conferência de Asilomar, na Califórnia, em 1975, onde foram definidas as primeiras normas para a pesquisa e aplicação da tecnologia de R-DNA (DNA-recombinante). Esta discussão prossegue através de organismos governamentais, universidades e ONGs e, segundo o autor, uma das posições que parece ser dominante é a que:

"(...) tomadas certas precauções, os benefícos dessa nova tecnologia seria muito superiores aos riscos. No entanto, um dos problemas que ocorrem foi que diferentes países estabeleceram diferentes tipos de regulamentação e até mesmo nenhuma restrição. Como conseqüência, tanto a pesquisa acadêmica de ponta quanto a pesquisa de desenvolvimento industrial em biotecnologia acabaram mostrando uma tendência a se implantar nos países que impunham menor ou nenhuma restrição. Apesar disso, até o presente não existe consenso sobre como regulamentar os experimentos ou testes de campo com produtos ou organismos modificados a partir de técnicas de engenharia genética" (Monteleone, 1989: p.941).

Estas preocupações de Monteleone assumem novas dimensões quando se pensa que países com pouco ou nenhum mecanismo de discussão/controle das questões vinculadas à pesquisa de ponta pela Secretaria Civil, podem se tornar alvo fácil para experiências de novas espécies, sem controle de seus resultados. Este tipo de situação remete para a discussão central a ser aqui desenvolvida, sobre as implicações do uso destas técnicas em países do Terceiro Mundo.

O melhor retrato da situação dos países do Terceiro Mundo, em relação ao panorama de biossegurança, é o que ficou de um relato apresentado em Cardiff, em abril de 1989, durante a primeira conferência sobre Exposição Ambiental a microorganismos geneticamente manipulados. O relatório foi feito pelo cientista argentino José de la Torre, do Centro de Virologia Animal da Argentina.

A comunicação descrevia como as autoridades sanitárias argentinas reagiram ao conhecimento, em setembro de 1986, de um experimento de campo que envolvia seres humanos e gado, com a finalidade de testar uma vacina contra raiva produzida por biotecnologia.

O experimento havia sido planejado pelo Wistar Institute de Filadélfia (EUA) e pela Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS), para ser realizado na localidade de Azul, perto de Buenos Aires, onde a OPAS possui um centro de zoonoses, sem que as autoridades argentinas tivessem conhecimento, isto é, a vacina entrou no país em pala diplomática da OPAS.

Investigações posteriores demostraram que o vírus recombinante passou dos animais vacinados para todos os seres contatados, inclusive dos tratadores que estiveram diretamente envolvidos com manejo e ordenha dos animais (Monteleone, 1988, p.944-5).

Uma das características dos países do Terceiro Mundo que tem sido sempre o alvo fácil de acusação por parte dos países ricos, é a magnitude de sua população, tanto em números absolutos como em taxas de crescimento. Alegam os desenvolvidos que os "pobres do planeta" é que estão colocando em risco a sobrevivência da espécie. Mas, acoplado a esse discurso, as soluções são sempre apontadas através de mecanismos de controle da natalidade, de forma a evitar o esgotamento das reservas naturais mundiais. Vale lembrar que é exatamente nas áreas menos desenvolvidas que existem as reservas, pois os países ricos além de terem esgotado os seus recursos, contribuem com os maiores índices de poluição.

A questão populacional do Terceiro Mundo, com todos os seus aspectos explosivos do ponto de vista dos países ricos, merece destaque porque a tendência é que estes países continuem a aumentar a sua participação relativa na população mundial. Segundo Berquó:

Em seu conjunto, as regiões mais desenvolvidas vêm apresentando, de fato, um crescimento declinante de sua população. De uma taxa anual de 1,3% no período de 1950-5, passaram a crescer a 0,9% no decênio 1970-5 e atualmente, a cada ano, essa população aumenta apenas à razão de 0,6% (Berquó, 1993, p.9)

Os países mais ricos6 6 A autora, nestre trabalho está considerando como países ricos ou industrializados os seguintes: Itália, Alemanha, Áustria, Espanha, Grécia, Suiça, Luxemburgo, Dinamarca, Holanda, Bélgica, Portugal, Finlândia, Noruega, Reino Unido, França, Suécia, Bulgária, Iugoslávia, Malta, Japão, Singapura, Coréia, Hong-Kong, Canadá, Estados Unidos, Austrália e Nova Zelândia. respondiam em 1950 por 33% da população mundial. Hoje contribuem com 22% e, segundo as projeções para o ano 2000, representarão apenas 20%. Com relação aos países do Terceiro Mundo, as taxas de crescimento anual da África está em 2,9%; a América Latina cresce 2% a.a. e a Ásia 1,9%. Estas taxas, embora altas, se comparadas às dos países industrializados, já foram mais elevadas - a taxa média do período 1965-70 era de 2,5% e hoje se situa em 1,9%.

Embora declinante, esses países têm aumentado sua participação absoluta e relativa no contingente populacional do planeta e, se não é ainda maior, se deve ao que Berquó chama de "verdadeira cruzada para conter o rápido crescimento populacional" Segundo ela:

O controle da natalidade passa a fazer parte dos programas de organismos internacionais ganha adeptos: alta fecundidade entrava o desenvolvimento. O planejamento familiar, em alguns contextos, passa a fazer parte da atenção integral à saúde da mulher; em outros tem finalidade de servir a planos de metas para refrear o crescimento demográfico. (Berquó, p.12).

Aqui é possível retornar a linha reflexiva que temos seguido: parece pertinente vincular esses "auxílios de organismos internacionais" de que fala Berquó, com algumas notícias que às vezes os jornais trazem, indicando que o bloco dos países pobres tem sido utilizado como cobaia de novos experimentos cietíficos.

Tomando o binômio - uma imensa população pobre/potencial de exploração natural - é possível problematizar uma decisão política de investimento na perspectiva de potencialização do uso desses conhecimentos de manipulação genética para os países de Terceiro Mundo. Serão técnicas desenvolvidas com vistas a sanear as doenças da pobreza, que, embora de origem socioeconômica, levam a mutações dessas populações com ganhos de qualidade no seu padrão de vida?

Estas questões permitem algumas reflexões: na primeira, numa visão negativa, se antevê o Terceiro Mundo como reservatório de cobaias para testes experimetais, de drogas que levam a alterações da estrutura básica do ser vivo; e, no limite, de experimentos que possam alterar o desenvolvimento físico e mental dos habitantes. Porém, de uma perspectiva positiva, o atraso tecnológico dos países do Terceiro Mundo permitiu a eles menor destruição do seu potencial ambiental, que cada vez mais é discutido como "Patrimônio da Humanidade". Como os países pobres vão negociar uma de suas únicas portas de acesso ao novo século que se aproxima? A opção parece ser simples e difícil: ou se repete o velho modelo de exportador de uma nova e rara matéria-prima, ou se negocia, política e economicamente falando, em condições vantajosas, o potencial de biodiversidade com os países desenvolvidos.

  • BANCO MUNDIAL Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial 1993: Investindo em Saúde Washington: Banco Mundial; Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1993.
  • BEIGUELMAN, Bernardo Genética e ética. Ciência e Cultura, v.42, n. 1, jan., p.61-69, 1990.
  • BERQUÓ, Elza Cairo-94 e o confronto Norte-Sul. Novos estudos CEBRAP, n. 37, nov. p. 7-20, 1993.
  • MONTELEONE NETO, Roque . Biossegurança. Ciência e Cultura. v.41, n. 10, out., p. 940-46, 1989.
  • FOUCAULT, Michel . Microfísica do Poder. 8.ed., Rio de Janeiro: Graal, 1979.
  • RABINOW, Paul. Artificialidade e ilustração: da sociobiologia à bio-sociabilidade. Novos Estudos CEBRAP, n. 31, out, p.79-94, 1991.
  • VÁRIOS. Ciência, tecnologia e desenvolvimento nacional. Ciência e Cultura, v.41, n. 3, mar., p. 213-228, 1989.
  • 1
    É importante lembrar que o crescimento da genética como ciência, principalmente as experiências de manipulação com seres humanos, teve o seu apogeu no regime nazista conforme se pode afirmar, com base em estudos como o de Benno Müllerhill,
    Tödliche Wissenschaft, citado por BEIGUELMAN, 1990: (61) onde a combinação de um projeto político de melhoramento da raça só era possível com a participação ativa, tanto em termos científicos como políticos, de médicos e antropólogos. Segundo BEIGUELMAN, também o Brasil não esteve imune às propostas de "estabelecimento de uma política de higiene racial, que em outros países foi chamada de eugenia." Diz ele: Até no Brasil surgiu uma Comissão Central Brasileira de Eugenia, que tinha sede no Rio de Janeiro e publicava um boletim de eugênia, impresso na cidade de Piracicaba, Estado de São Paulo. Tive acesso a alguns números desses boletins datados de 1923 e 1933. Quando estavam no quarto e quinto anos de publicação, e neles pude constatar traduções de artigos do famigerado Dr. Bruno Schultz, notas enaltecendo a lei da esterilização de deficientes mentais estabelecida na Alemanha nazista, artigos de autores nacionais contra o casamento entre brancos e negros e contra a imigração de japoneses, que eram cognominados de perigo amarelo, bem como de artigos a favor de medidas eugênicas contra deficientes, criminosos e os socialmente inadaptados.
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    Paul Rabinow realiza a sua argumentação tendo como referência teórica a produção de Michel Foucault. Ver a esse respeito: FOUCAULT, (1979).
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    É ainda nesse terreno da especulação, se pensamos na América Latina que têm inúmeros focos de discriminação - da população "branca" x população índia na América espanhola; população "branca" x população negra; população "branca" x amarelos; e, no caso brasileiro, os movimentos separatistas, de cunho racial, mas que se escondem sob o falso manto da discussão da má redistribuição regional dos recursos de origem tributária.
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    Segundo o Banco Mundial, 40 países possuem renda per capita abaixo de 650 dólares anuais, 65 estão na faixa considerada enconomia de renda média, sendo que deste total, 42 estão no intervalo entre 650 a 2.500 dólares e apenas 23 entre 2.500 e 7.800 dólares. Situado neste subgrupo de economias e renda média alta tem-se os seguintes países da América Latina: Venezuela (2.730), Argentina (2.790), Uruguai (2.840), Brasil (2.940), México (3.030), trindad e Tobago (3.760) e Porto Rico (6.320). Para maiores detalhes ver: BANCO MUNDIAL (1993).
  • 5
    Os indicadores sobre mortalidade infantil para 1990, para os países da África subsaariana é, em média, de 175/1000. Para a América Latina e caribe é de 60/1000. A taxa brasileira (69/1000) além de ser superior à média do continente, está muito acima das taxas da Argentina e Uruguai (26 e 23/1000 respectivamente). A taxa média para os países desenvolvidos é de 11/1000.
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    A autora, nestre trabalho está considerando como países ricos ou industrializados os seguintes: Itália, Alemanha, Áustria, Espanha, Grécia, Suiça, Luxemburgo, Dinamarca, Holanda, Bélgica, Portugal, Finlândia, Noruega, Reino Unido, França, Suécia, Bulgária, Iugoslávia, Malta, Japão, Singapura, Coréia, Hong-Kong, Canadá, Estados Unidos, Austrália e Nova Zelândia.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      06 Mar 2015
    • Data do Fascículo
      Dez 1995
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