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O Brasil é realmente um país polarizado? Análise das eleições presidenciais de 1989 a 2018

RESUMO

Analisamos as oito eleições presidenciais brasileiras do período pós-ditadura militar, dado o papel central que ocupam na organização do nosso Presidencialismo de Coalizão. Investigamos a polarização eleitoral e geográfica nesses pleitos, suas características e dinâmica, analisando com estatísticas espaciais a votação nos 5.570 municípios. Encontramos uma polarização significativa em todas elas. No entanto, variam em sentido e intensidade. Há dois períodos delimitados pela eleição de 2002. Há também duas trajetórias, observadas com mais detalhamento através das estatísticas e dos mapas dos Territórios Eleitorais. PT e PSDB tem dinâmicas diferentes ao longo da série, mas a partir de 2006 seguem polarizados geograficamente com mesmo grau de intensidade e com tendência ascendente. PRN (Collor) e PSL (Bolsonaro), nos extremos da série, são protagonistas de duas eleições atípicas, e tem polarização e alinhamento territorial semelhantes aos do PSDB.

PALAVRAS-CHAVE:
Eleições presidenciais brasileiras; Polarização do voto; Geografia eleitoral; PT; PSDB

ABSTRACT

We analyze the eight Brazilian presidential elections of the post-military dictatorship period, given the central role they played in the organization of our Coalition Presidentialism. We investigate the electoral and geographic polarization in these elections, their characteristics and dynamics, analyzing with spatial statistics the voting in the 5,570 municipalities. We found significant polarization in all of them. However, they vary in direction and intensity. There are two periods delimited by the 2002 election. There are also two trajectories, observed in more detail through statistics and maps of the electoral territories. The PT and PSDB parties have different dynamics throughout the series, but from 2006 onwards they remain geographically polarized with the same degree of intensity and with an upward trend. The PRN (Collor) and PSL (Bolsonaro) parties, at the extremes of the series, are protagonists of two atypical elections, with polarization and territorial alignment similar to those of the PSDB.

KEYWORDS:
Brazilian presidential elections; Voting polarization; Electoral geography; PT; PSDB

Introdução

Este artigo procura trazer uma outra perspectiva a partir dos resultados das eleições presidenciais do período de 1989 a 2018. Reconhecemos as eleições presidenciais como a principal, do ponto de vista do arranjo politico da nossa estrutura federativa, seguindo a ideia proposta de que o nosso modelo se caracteriza por um tipo especial de arranjo e coalizão (Abranches, 1988ABRANCHES, S. Presidencialismo de coalizão: o dilema institucional brasileiro. Dados - Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v.31, n.1, p.5-38, 1988., 2018). Essa posição defende que o sistema político institucional brasileiro traça um desenho pelo qual o presidente é o representante tanto do Estado quanto do governo, mediante as alianças partidárias, regionais e parlamentares, ainda com expressivo papel exercido pelos governadores, permitindo a estabilidade de seu governo e de sua posição hegemônica.

A descrição e o conceito de polarização mereceram uma subsequente discussão também à luz da teoria internacional, a partir da compreensão dos sistemas partidários (Duverger, 1980DUVERGER, M. Os Partidos Políticos. Rio de Janeiro: Zahar; UnB, 1980.), passando pela “teoria das coalizões” (coalization theories), tendo como consequência o desdobramento de suas aplicações em estudos comparativos (Couto; Soares; Livramento, 2021LI, Z.; FOTHERINGHAM, A. Stewart. The spatial and temporal dynamics of voter preference determinants in four U.S. presidential elections (2008-2020). Transactions in GIS, v.26, n.3, p.1-20, 2021. Disponível em: <https://doi.org/10.1111/tgis.12880>.
https://doi.org/10.1111/tgis.12880...
). Diversos estudos comparativos e longitudinais foram realizados, embora para os sistemas europeus e o norte-americano existam diferenças marcantes, como no parlamentarismo, em que o gabinete é formado pela articulação entre os partidos políticos, e o republicano, de certa forma inspirador do modelo federativo norte-americano.

Por outro lado, o artigo segue uma perspectiva de que as eleições presidenciais, observados seus resultados, seriam igualmente propícias para a reflexão sobre a polarização, ainda mais por conta de sua centralidade do cargo presidencial no sistema político. As eleições representam um evento que manifesta estruturas sociais, geográficas e econômicas, que reafirmam que o momento eleitoral pode ser compreendido como um evento sociológico (Alkmim, 2018ALKMIM, A. C. O eterno retorno. Eleições municipais para presidente no Brasil. Demografia, sociedade, economia e geografia. Rio de Janeiro: Editora Letra Capital, 2018.), não só pela agregação dos dados das estatísticas provenientes dos resultados eleitorais, como pelos estudos com base em surveys, originários da sociologia política norte americana, que capturam o evento a partir do ponto de vista da opinião dos eleitores. As pesquisas de opinião surgem na primeira metade do século XX, e expandem-se como instrumentos de interpretação, pelos diferentes países, a elas agregando-se diferentes metodologias, inclusive, qualitativas.

Cabe, novamente, ressaltar a importante obra, publicada por Maurice Duverger (1980DUVERGER, M. Os Partidos Políticos. Rio de Janeiro: Zahar; UnB, 1980.), em 1946. Esse livro foi referência para diversos outros estudos, quanto a aspectos relativos ao sistema partidário, abordando conceitos como concentração e dispersão eleitoral, sua fragmentação e polarização, daí extraindo conclusões que seriam consideradas como leis. Ainda dentro do âmbito do sistema partidário, essa discussão mereceu a atenção de Giovani Sartori (1982SARTORI, G. 1982. Partidos e Sistemas Partidários. Trad. Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.) e diversos outros autores, chegando à reflexão e aplicação da teoria para análise do sistema partidário brasileiro.

Outra questão remete à teoria da motivação psicológica, e diz respeito à posição mais subjetiva dos eleitores, não só pela sua percepção, quanto pela interação, social e política. Diante dessa outra trajetória intersubjetiva, cabe ressaltar a teoria que destaca o distanciamento dos eleitores dos partidos políticos tradicionais e coloca temas não clássicos e mais conservadores (como comportamento ideológico e em relação aos valores), introduzindo mais recentemente uma nova pauta de discussão entre os partidos tradicionais, antes distinguidos principalmente pela sua posição ideológica (Dalton; Wattenberg, 2000DALTON, J. R.; WATTENBERG, M. P. Parties without Partisans Political Change in Advanced Industrial Democracies. Oxford University Press, 2000.).

Dada essa diversidade de significados, resumidamente apontada, o conceito de polarização, e a sua especificação, nos interessa a partir dos temas postos, detectados pela teoria política e que foi associada ao surgimento mais recente do que poderia ser denominado de uma extrema direita atualizada, especialmente em pleitos ocorridos em países como a Inglaterra, com o plebiscito do Brexit, em junho de 2016, na eleição de Trump nos Estados Unidos, também em 2016 (novembro), finalmente chegando ao Brasil, em 2018, com a eleição de Jair Bolsonaro.

Essa nova extrema-direita torna-se uma ocorrência internacional. A ideia e o conceito de polarização, em seus diversos sentidos, são objeto central de discussão proveniente dessas novas forças, reestruturando diversos sistemas partidários, mesmo que na Inglaterra e nos Estados Unidos a tradição partidária tenha permanecido, com uma nova corrente hegemônica. Diversos e importantes autores passaram a discutir mais recentemente a própria ideia de crise, agonia, ou mesmo fim do regime democrático, conforme até então o conhecemos (Levitski; Ziblatt, 2018; Ruciman, 2018RUCIMAN, D. Como a democracia chega ao fim? São Paulo: Todavia, 2018., Castells, 2019CASTELLS, M. Ruptura. A crise da democracia liberal. Rio de Janeiro: Zahar, 2019.; Przeworki, 2021).

No Brasil, o fenômeno do bolsonarismo trouxe uma vasta literatura e pesquisas com as mais diversas perspectivas para abordar e interpretar o fenômeno da emergência dessa nova extrema-direita, a partir do contexto internacional e das especificidades políticas do país. Seria exaustivo e insuficiente retomá-las aqui, e foge ao objetivo do artigo. Outro tema, crucial, mas que também não será objeto neste estudo, mas não pode deixar de ser mencionado, é o das redes sociais, e seu forte impacto recente e crescente, gerando igualmente diversas interpretações, estudos e metodologias de análise.

Vale também finalmente ressaltar, nesse momento mais recente, a recuperação da dimensão subjetiva, em torno do conceito de polarização afetiva, que procura refletir esse distanciamento nas relações cotidianas, entre familiares, amigos e mesmo entre pessoas que não se conhecem. Já a campanha de 2014 e, de forma ascendente, a campanha de 2018 mostraram claramente esse comportamento.

Em 2018 o país enfrenta um certo realinhamento partidário, de diferenças no perfil social, demográfico e do acesso às mídias (Nicolau, 2020NICOLAU, J. O Brasil dobrou à direita. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.), em um cenário que resulta na vitória de um candidato da extrema-direita e o forte declínio do PSDB, até então, junto com o PT, os dois partidos mais importantes, considerando todo o período entre 1989 e 2018. E ao final, na eleição de 2018, a forte polarização entre os próprios eleitores, no que foi denominada política de ódio (Mello, 2020MELLO, P. A máquina do ódio. São Paulo: Cia. das Letras, 2020.), em seus diversos aspectos.

Vale destacar que o conceito de polarização, utilizado por teóricos e, particularmente, naturalizado pela grande mídia tradicional, foi apontado como um grande problema, sugerindo fortemente a existência de uma terceira via mais moderada, por conta dessa forte extremidade, surgida nas eleições mais recentes buscou-se uma terceira via moderadora. Mas como procuramos mostrar, na disputa de 2018 e outras anteriores, essa situação bipolar já estava posta, sendo o cotidiano social e político já marcado por opiniões e atitudes diametralmente opostas. Talvez pelas características desse novo mundo virtual e ao mesmo tempo eivado de valores conservadores, o que já era um fato, tornou-se mais agudo.

Utilizaremos, no entanto, mais estritamente o conceito de polarização eleitoral a partir tão somente dos dados divulgados pelo TSE, para os municípios brasileiros, tentando mostrar que, nesse caso, alguns dos pressupostos da polarização, anteriormente apontados, não se sustentam totalmente como sendo o fenômeno um fato novo, cujo antídoto seria uma terceira via moderada.

A polarização ou a bipolarização eleitoral, segundo nosso entendimento, aconteceria a partir do momento no qual dois partidos e forças eleitorais competem exclusiva ou quase exclusivamente dentro do cenário eleitoral, e chegam nas duas primeiras posições, com ou sem uma terceira força expressiva no primeiro turno das eleições. No segundo, dado que a disputa final que se dá entre os dois candidatos mais votados ou a inexistência da segunda rodada, se um dos candidatos alcançar a maioria de 50% mais um dos votos válidos. Do ponto de vista da polarização brasileira ela já se intensifica em 2002, ganhando mais robustez nos anos seguintes, sendo, portanto, algo não inédito, do ponto de vista das preferências eleitorais. Mesmo a vitória do PSDB em 1994 e 1998, no primeiro turno, como veremos, não descaracteriza esse formato de polarização persistente nas recentes eleições brasileiras.

Para fundamentar esses pressupostos, nossa análise empírica dos resultados das eleições presidenciais entre 1989 e 2018 se inicia com os dados agregados ao nível nacional, apresentando as três principais candidaturas. Nesse caso optamos pelos nomes dos candidatos, para facilitar o entendimento, na medida em que alguns deles trocam de filiação no período. A partir dessa formulação, seguimos para a análise dos ciclos e singularidades em um processo dominado invariavelmente por três forças, ainda que apresentando extremidades entre os dois primeiros colocados, seja no primeiro, seja no segundo turnos.

A seguir e em sintonia com as primeiras constatações, testamos a existência da polarização geográfica dentro do contexto municipal. Nesse caso, interessa-nos identificar a hipótese da polarização, sua força e a localização geográfica, assim como dos núcleos de oposição, considerando os dois principais candidatos às eleições presidenciais brasileiras.

Para sustentar a análise da geografia da polarização mobilizamos mais dois conceitos: o de polarização geográfica e o da influência do contexto geográfico no comportamento eleitoral. A ideia de polarização geográfica relacionada a uma certa organização ou agrupamento territorial de preferências eleitorais em oposição a outro não é nova. A literatura política americana, por exemplo, é repleta de referências sobre a polarização geográfica (crescente) entre a preferência do eleitorado pelos candidatos Republicanos ou Democratas, em análises independentes das eleições para Presidente e Congressistas, ou combinadas. Mas a discussão conceitual é pouco presente.

Bishop (2009BISHOP, B. The Big Sort: Why the clustering of like-minded America is tearing us apart. Boston: First Mariner Books, 2009.) aqueceu o debate ao argumentar que desde a década de 1970 os americanos têm se organizado geograficamente em comunidades com valores e estilo de vida similares, e que esse processo teve consequências políticas, porque ao compartilharem valores e estilo de vida, tendem a compartilhar também preferências políticas. Bishop lançou a hipótese de que essas mudanças podem ter contribuído para a crescente polarização no Congresso americano, com a eleição de representantes mais sintonizados com essas comunidades. A hipótese, como era de esperar, gerou uma nova onda de artigos sobre a polarização geográfica entre os dois partidos nas eleições dos presidentes e congressistas americanos. Johnston et al. (2020JOHNSTON, R. et al. The Geographical Polarization of the American Electorate: a Country of Increasing Electoral Landslides. GeoJournal, v.85, n.1, p.187-204, 2020. Disponível em: <https://doi.org/10.1007/s10708-018-9955-3>.
https://doi.org/10.1007/s10708-018-9955-...
) e outros autores da geografia eleitoral confirmam que a política americana tem se tornado cada vez mais polarizada nas últimas décadas, não só ideológica, mas também geograficamente.

A influência do contexto geográfico sobre o comportamento eleitoral é uma discussão clássica da geografia eleitoral, objeto de debate histórico entre cientistas políticos e geógrafos, sendo o mais notório deles o diálogo entre John Agnew (1996aAGNEW, J. Mapping politics: how context counts in electoral geography. Political Geography, v.15, n.2, p.129-146, 1996a., 1996b), para quem o contexto geográfico importa na decisão do eleitor, e Gary King (1996KING, G. Why context should not count. Political Geography, v.15, n.2, p.159-64, 1996.), para quem as variações espaciais (existentes e relevantes) no comportamento eleitoral são controladas pelo que se sabe sobre o perfil e o comportamento do eleitorado. Assim como esse debate não pode ser abordado com tanta simplicidade, o conceito de contexto geográfico também não, mas em síntese pressupõe que há um componente complementar que influencia a decisão do eleitor, junto aos demais componentes sociológicos e políticos, que são as condições e elementos do meio no qual o seu cotidiano se insere. Derivou, em sua concepção, da observação de que pessoas de posição social semelhantes se mostravam mais propensas a escolher determinado candidato ou partido em particular, mas o apoio era maior em algumas áreas que em outras. Publicações recentes, como as de Fotheringham, Li e Wolf (2021LI, Z.; FOTHERINGHAM, A. Stewart. The spatial and temporal dynamics of voter preference determinants in four U.S. presidential elections (2008-2020). Transactions in GIS, v.26, n.3, p.1-20, 2021. Disponível em: <https://doi.org/10.1111/tgis.12880>.
https://doi.org/10.1111/tgis.12880...
) e Li e Fotheringham (2021), seguem nessa linha de investigação encontrando fortes evidências da influência do contexto geográfico nas eleições presidenciais americanas mais recentes.

Na literatura da Ciência Política brasileira poucos estudos mencionam o conceito de polarização geográfica, ainda que a polarização de “fato” esteja presente nas publicações dos mapas eleitorais das eleições presidenciais mais recentes. Para nossa análise, mobilizamos o conceito de polarização geográfica eleitoral, remetendo-o diretamente ao conceito de polarização ou bipolarização, ou seja, polarização geográfica eleitoral neste artigo se define pelas diferenças diametralmente e geograficamente opostas entre a preferência eleitoral por determinado partido e/ou candidato em forte detrimento de outro, na disputa entre os dois finalistas nas eleições presidenciais.

Na nossa opinião, esses três conceitos são complementares, e constituem-se nos eixos de sustentação que elegemos para organizar e interpretar as análises empíricas sobre as eleições presidenciais brasileiras. A série histórica analisada cobre as oito eleições realizadas no período de 1989 a 2018, sendo 14 pleitos ao total, uma vez que em 1994 e 1998 não houve segundo turno. Utilizamos métodos estatísticos e análises espaciais para analisar os resultados eleitorais desagregados ao nível municipal (5.570 municípios), partindo de uma base de dados georreferenciada, construída a partir das estatísticas eleitorais divulgadas pelo TSE e pela malha municipal digital produzida pelo IBGE.

A apresentação, curta, mas que deriva em diversas linhas para se delimitar o que seria polarização política, do ponto de vista do representante ou representado, nos serve para apontar duas hipóteses, que pretendemos analisar a partir dos resultados eleitorais disponibilizados pelo TSE.

O Brasil é realmente um país polarizado, quando se analisam os resultados da sua eleição mais importante, a da presidência da República, em suas oito eleições? Se sim, foi polarizado a partir de alguma eleição específica, ou mais de uma?

E a partir daí a questão passa a ser a existência de padrões geográficos, suas semelhanças e sua dinâmica. Portanto, na esteira de outros trabalhos sobre as eleições presidenciais brasileiras, questionamos a polarização política e geográfica dos resultados eleitorais, partindo do marco inicial da reorganização e distribuição das forças políticas da Nova República, a eleição de 1989.

Polarização? Em qual sentido?

Uma característica da eleição de 2022 é a utilização da palavra polarização ou bipolarização como um substantivo e não um conceito, especialmente pela mídia. De movimentos como o “somos 70%” até a disputa entre diversos candidatos para ocupar esse suposto espaço, foi um dos temas mais relevantes até o início da campanha eleitoral em agosto de 2022. A polarização combinava com a ideia de um terço do eleitorado indeciso, procurando uma alternativa. Mas a desejada terceira via, com uma nominata expressiva apresentada, foi aos poucos derretendo.

O Gráfico 1 e o Quadro 1 apresentam os três principais candidatos à disputa eleitoral, em todas as eleições presidenciais da denominada Nova República. Optamos por colocar os nomes dos candidatos para, de certa forma, tornar a imagem mais clara para a lembrança do leitor. Consideramos somente o primeiro turno, por conta das forças genuinamente apresentadas. Cabe lembrar que para as eleições de 1994 e 1998, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso venceu na primeira rodada das votações com mais da metade dos votos válidos.

Vamos começar pelo que nos parece mais fácil de assinalar, e que diretamente faz parte da nossa análise, ao observar o Gráfico 1. A terceira via sempre esteve presente nos resultados eleitorais para presidente de 1989 a 2018. A terceira posição apresentou nesse período uma média de 14,2% dos votos válidos (entre 7,4% em 1994 e 21,3% em 2014). Podemos dizer que a terceira opção sempre se apresentou, inclusive como alternativa, especialmente na eleição de 1989, onde Lula e Brizola travaram a mais aguerrida disputa para alcançar o segundo turno. Na verdade, a única. A terceira força, em 2002, 2010 e 2014 obteve os seus resultados mais significativos.

A chegada ao segundo turno, em sua gênese, levou o PT a um plano que o tornou, com suas vitórias e derrotas, o partido sempre presente nos segundos turnos que ocorreram, ou em segundo quando da existência de um turno só.

Os dois principais partidos do período 1989-2018 (PT e PSDB) não representaram um grau de extremismo com uma forte fragmentação entre direita, centro e esquerda. Na verdade, as coligações e as políticas implementadas pelos governos desses partidos principais conciliaram uma política econômica conservadora, aliada a uma política social integradora, voltada para a atenuação da desigualdade no país. Dois exemplos de políticas sociais inclusivas são o DataSus (PSDB) e o Bolsa Família (PT) (Arrechte; Marques; Faria, 2019).

Embora os partidos predominantes sejam o PT e o PSDB, a eleição do presidente Fernando Collor (1989) e a de Jair Bolsonaro (2018) são exceções nas pontas das séries, com partidos que não resistiram ou se enfraqueceram após as duas eleições. Pode-se dizer que os dois candidatos são outsiders de uma alternância dos dois partidos principais. Mas sem a lógica de institucionalização da organização partidária.

Como visto, a eleição de 1989 apresentou uma forte disputa entre o segundo e o terceiro colocados. Provavelmente por ter sido a primeira eleição direta para presidente após o período da ditadura militar. No segundo turno, dada a vitória do PT, os votos mais concentrados de ex-governador gaúcho ocorreram no Rio de Janeiro e no Rio Grande do Sul. Seus redutos. E foram em sua maioria transferidos para Lula. Não podemos deixar de observar a necessidade de uma herança varguista na gênese do PT, através dessa transferência do último personagem do trabalhismo da República de 1945-1964.

Em 1994 e 1998, o confronto ocorre dentro de uma outra lógica para a diferença entre o PT e o PSDB, com a vitória de Fernando Henrique no primeiro turno. Apresentam um primeiro padrão não similar e oposto dos votos.

Foi na eleição de 2002 que o PT encontrou o seu principal perfil geográfico, aguçado nas eleições seguintes. Aí é o PT, ou Lula, dentro de uma ocupação de espaço do centro político. A partir de 2006 um outro padrão se revela, opondo o PT ao PSDB, dentro de uma nova configuração espacial.

Chegamos a outra importante constatação do estudo. A eleição de 2006, no seu primeiro turno, é a mais polarizada, eleitoralmente, segundo a visualização do gráfico. Não só pela curta distância entre Lula e Alckmin, como também pela mais larga distância entre Alckmin e Heloísa Helena (essa com 7,0% dos votos válidos). As eleições de 2006 afirmam um novo padrão da disputa geográfica, tanto para o PSBD quanto para o PT. E a partir de 2010, as eleições são mais divididas entre três forças relevantes no primeiro turno, incluindo a de 2018.

Outra característica, somando as três principais forças nas 8 eleições, os percentuais variam entre 64,2% e 98,8%, com uma média de 89,6%. Um percentual bem elevado, permitindo afirmar que uma terceira força esteve presente em todas as eleições.

Se no conjunto das eleições tivéssemos os três candidatos diferentes, seriam então 24 pretendentes ao cargo, no total. Contudo, foram 13 os candidatos que se enfrentaram nesses quase 30 anos. O que denota ainda uma certa regularidade na disputa.

Além de apontar a constante existência de uma terceira força em todas as eleições, nota-se que, com a exceção de Enéas Carneiro (Prona, em 1994), essa foi representada por uma alternativa mais à esquerda do espectro político. Ou seja, a simples existência de uma terceira alternativa sempre foi colocada na disputa presidencial entre 1989 e 2018. Então não é nenhuma novidade sua existência. Essa força nunca foi de um centro tradicional, apesar da rotatividade das suas alternativas. Essa característica possivelmente permitiu ao PT a sua posição de destaque nas eleições e suas vitórias, pois capturou uma parte do centro, assim como o PSDB. De qualquer forma, juntas, as três forças principais nas eleições presidenciais brasileiras, tiveram uma média de 89,6% dos votos válidos nos primeiros turnos, o que afasta a ideia de eleições fragmentadas.

Gráfico 1
Eleições presidenciais no Brasil, 1989-2018, segundo o desempenho dos três primeiros colocados.

Quadro 1
Percentuais e médias para os três primeiros colocados nas eleições presidenciais do Brasil, 1989-2018, total para os três e diferenças entre os dois primeiros

Uma primeira análise espacial exploratória das eleições entre 1989 e 2018

Nesta seção foi considerada a espacialização municipal para os percentuais de votos válidos dos três principais candidatos a presidente. Nesta parte, porém, incluímos o segundo turno, quando realizados, em 1989 até 2018. No Gráfico 2, as siglas identificam, pela ordem, o partido, seguido pelo ano da eleição, e finalmente os dois turnos, se for o caso. Assim, como exemplo, PRN892, significa a candidatura de Collor, no segundo turno de 1989.

Utilizamos a clássica análise fatorial de componentes principais. A interpretação é apresentada pelo Gráfico 2, no qual o principal fator 1 é seguido pelo fator 2. Apresenta as duas linhas que se cruzam, formando quadrantes. A interpretação dos gráficos se dá pela proximidade entre as candidaturas, apontando uma maior ou menor correlação geográfica. Há de considerar o ponto central como um ponto de partida, para a dispersão das categorias ou partidos.

Boa parte das votações do PT se assemelha, ao que pode ser notado no extremo à esquerda cruzado pela linha horizontal (fator 1). São próximas geograficamente em 2006, 2010, 2014, nos dois turnos, e em 2018 no primeiro turno. Isso mostra um perfil geográfico mais aproximado a partir de 2002, e especialmente 2006, o que já foi mostrado por diversos estudos e acima. E de fato apresentam uma polarização recorrente.

No outro extremo do eixo (fator 1) estão as candidaturas que se opuseram ao PT nas mesmas eleições, em 2006, 2010, 2014 nos dois turnos, também em 2018, localizando Bolsonaro no primeiro turno de 2018, e as votações do PSDB de 2006 a 2014. Isso reafirma a ideia de uma maior polarização eleitoral geográfica, a partir de 2006.

No entanto, cabe ressaltar que em 1989 o PT tem um perfil singular entre o primeiro e o segundo turnos, com o efeito Brizola, como já referido. Igualmente em 2018 verifica-se o deslocamento do PT entre o primeiro e o segundo turnos, na direção do centro do gráfico. O mesmo ocorre com o seu adversário, o PSL de Bolsonaro.

O eixo vertical remete ao período intermediário entre 1994 e 1998. De um lado as votações do PT acima, e abaixo, de forma mais dispersa, as votações do PSDB nesses dois anos assemelhadas ao do PRN. Esse segundo fator indica que uma polarização menos intensa ocorre no período inicial, com as eleições de 1989, 1994 e 1998.

Assim, reordenando a análise de um ponto de vista cronológico e buscando uma síntese, poder-se-ia afirmar que a eleição de 1989 é atípica em relação às demais. Os mandatos do PSDB em 1994 a 1998 apresentam um outro padrão geográfico, tendo o PT como o principal partido, posicionado, em uma situação diversa à de 2002. Já o próprio PT, inicialmente o principal oponente ao PSDB, chega ao poder no segundo turno das eleições de 2002. E o enfrentamento entre esses dois partidos será recorrente nas eleições seguintes até 2014. Já em 2018, surge um outro personagem, o que torna essa eleição também atípica, mas do ponto de vista da polarização geográfica a oposição entre PT e PSL é idêntica às de 2002 em diante. Dito de outra forma, o PSL assumiu o lugar do PSDB.

Gráfico 2
Análise fatorial para as eleições presidenciais de primeiro e segundo turnos, entre 1989 e 2018, para os três principais partidos.

Polarização geográfica e influência do contexto

Nesta seção continuamos a análise da polarização com a investigação da geografia eleitoral das candidaturas que ficaram em primeira e segunda colocações. Nesse contexto, deixamos de analisar as terceiras posições, uma vez que identificamos que a polarização principal ocorre entre aqueles candidatos. Não menos relevante seria a análise dos demais candidatos que se destacam nos primeiros turnos, quer para a avaliação da divisão geográfica das forças quando a eleição foi ganha em primeiro turno, como foi o caso de 1994 e 1998, quer para a identificação das transferências de apoio geograficamente concentrado, entre um turno e outro. Mas essa investigação ficará para outro momento, em prol da síntese dos padrões geográficos da polarização entre as principais forças e de sua dinâmica nas eleições de 1989 a 2018.

Polarização geográfica e contexto geográfico eleitoral, assim como outros conceitos vinculados ao campo da geografia eleitoral, são fenômenos multiescalares que se replicam em diversas escalas geográficas, desde a local, passando por intraurbana, metropolitana, regional até a nacional. Há, quando se observa, por exemplo, os bairros de uma grande metrópole, padrões que não são visíveis se a unidade de observação é o município. São questões metodológicas inerentes ao campo da geografia eleitoral e que pressupõem decisões diferenciadas de acordo com o objetivo do estudo. Quanto às técnicas, o leque de opções é bastante amplo, abrangendo desde as tradicionais representações cartográficas (mapas temáticos) até o conjunto de ferramentas de análise oferecidos pela estatística e econometria espacial. A análise empírica de tais fenômenos, dado sua complexidade, pressupõe escolhas metodológicas nem sempre intuitivas e na sua maioria, diferentes de estudo para estudo, dependendo dos objetivos da pesquisa.

Não há, nesses estudos, como fugir da falácia ecológica atribuída à agregação de dados eleitorais, ao problema da seleção da escala de observação, conhecido como MAUP (modificable area unit problem), bem como à dificuldade em encontrar representações cartográficas que minimizem os problemas da sobre representação de unidades espaciais de análise em mapas temáticos, como por exemplo o destaque para os municípios de grande extensão territorial e pequeno porte populacional da Amazonia, e outros da própria natureza da representação cartográfica. Há que encontrar o equilíbrio em desenhos metodológicos específicos, de acordo com os objetivos do estudo.

Para essa análise geoespacial dos dois candidatos finalistas das eleições presidenciais do período 1989-2018, adotamos a mesma metodologia de estudos anteriores (Soares; Terron, 2008SOARES, G. A. D.; TERRON, S. L. Dois Lulas: a geografia eleitoral da reeleição (explorando conceitos, métodos e técnicas de análise geoespacial). Opinião Pública, v.14, n.2, p.269-301, 2008.; Terron, 2009), de natureza semelhante, mas que chegaram até 2006. Complementamos a base de dados com as eleições posteriores, até 2018, de maneira a viabilizar o diálogo entre os estudos, bem como comparações entre Índices e Indicadores, a partir de um mesmo referencial. A análise em si foi realizada com o sistema GeoDA, de livre acesso e fonte aberta, que oferece ferramentas introdutórias da ciência de dados espaciais.

Nossa escala de observação é municipal e as unidades espaciais primárias de análise são os 5.570 municípios brasileiros. As variáveis dependentes são as porcentagens de votos válidos obtidos nesses municípios, pelos dois primeiros colocados, em cada turno das oito eleições. Sendo assim, o tamanho do eleitorado municipal, tal qual o número de votos recebidos em cada município, deixa de ser o objeto da análise, uma vez que os valores foram normalizados pelas porcentagens municipais. Os mapas dos territórios eleitorais são apresentados em escala muito pequena e agregados em painéis esquemáticos, adequados apenas para a apresentação e comparação visual das grandes mudanças geográficas no período.

Diferentemente da análise que privilegia quem ganha a eleição, e onde cada candidato ganha mais votos, o enfoque principal nesta seção é o da polarização e da distribuição de forças no território. Passamos agora a analisar a disputa entre os dois primeiros colocados em cada turno, fazendo referência ao terceiro colocado somente quando necessário à análise de contexto.

Como medir polarização geográfica?

A análise fatorial exploratória realizada na seção anterior mostrou evidências da polarização geográfica, assim como as proximidades estatísticas entre os perfis geográficos. Mais além, revelou dois processos de “intensidade” estatística diferentes. Considerando apenas as duas candidaturas que receberam mais votos, em todos os pleitos, o primeiro fator revelou a polarização entre o PT e o PSDB (PSL em 2018) no período mais recente, de 2006 em diante. O segundo fator, menos significativo que o outro, revelou a polarização entre o PT e o PSDB (PRN em 1989) no período anterior, de 1989 a 2002. Sabemos que há então correlações multivariadas significativas entre candidaturas de um mesmo partido em mais de uma eleição, e que essas correlações podem significar polarização geográfica, uma vez que nossa unidade de observação é o município. Não sabemos ainda qual a intensidade desta polarização, e como ela opera no território.

Para que se possa dimensionar e comparar a intensidade da polarização geográfica entre candidatos e partidos oponentes há que se avaliar o grau de dependência espacial nas respectivas votações. Para medir a dependência espacial utilizamos o índice de autocorrelação espacial, Índice de Moran Global (I de Moran). Para fins didáticos vamos comparar o índice de Moran ao coeficiente de correlação de Pearson, amplamente conhecido. Ambos medem o grau de correlação entre duas variáveis de escala métrica. O coeficiente de Pearson mede a correlação linear entre duas variáveis distintas, enquanto o I de Moran mede a correlação entre uma variável e seu valor médio nas proximidades. Essa proximidade é o componente espacial da correlação, e se estabelece por uma matriz definida a priori. Nessa análise a variável é a porcentagem de voto municipal recebida pelo candidato, e a proximidade ou vizinhança, a região definida pelos municípios limítrofes de cada município.

Tal qual o coeficiente de Pearson, o I de Moran varia entre -1 e +1. Quando a autocorrelação espacial é positiva, entre 0 e 1, as porcentagens de voto nos municípios e no seu entorno covariam no mesmo sentido, tendendo a aumentar quando a outra aumenta, e vice-versa. A tendência é que quanto mais próximo de um, mais a distribuição geográfica da votação se assemelha à da posição inicial das peças de xadrez num tabuleiro, com grandes grupamentos de municípios (clusters geográficos) onde as porcentagens de votos são altas, ou baixas, e correlacionadas espacialmente aos resultados semelhantes no seu entorno. Na correlação inversa ou negativa, à tendencia de aumento de uma das variáveis cor- responde o decréscimo da outra. No caso eleitoral é mais difícil que aconteça em grande escala um padrão deste tipo, onde simultaneamente à votação no município ocorra predominantemente tendência oposta no seu entorno. Valores muito próximos de zero refletem distribuição espacial aleatória tendendo à completa independência espacial.

Qual a intensidade da polarização?

Analisamos, primeiramente, se há dependência espacial nas votações dos candidatos e qual o grau de autocorrelação destas distribuições. Os índices de autocorrelação espacial dos dois primeiros colocados (Gráfico 3) são altos desde a primeira eleição, em 1989. Os valores se mantêm acima de 0,5 em toda a série. Os Índices mais baixos são os de 2002, 0,59 no primeiro turno para os candidatos do PT e do PSDB, e 0,52 para Lula (PT) e 0,53 para Serra (PSDB) no segundo turno. Os maiores valores da série são os de Haddad (0,88), pelo PT, e Bolsonaro (0,87), pelo PSL, no primeiro turno de 2018, e ambos alcançam 0,90 no segundo turno. Índices tão próximos de 1 são escores impressionantes para eleições presidenciais de um país de proporções continentais como o Brasil.

Para se ter uma ideia de quão alta é a dependência espacial encontrada, buscamos na literatura sobre a polarização geográfica nas eleições americanas autores que têm usado o I de Moran para analisar as porcentagens dos votos recebidos pelos candidatos Republicanos e Democratas nos counties ou condados americanos. Essa divisão de primeira ordem da estrutura político-administrativa americana (cerca de 3.200 unidades territoriais) viabiliza algum tipo de comparação com os índices calculados por município (5.570). São estudos vinculados ao debate sobre a existência (ou não), e o possível crescimento, da polarização geográfica dos eleitores nas eleições presidenciais americanas e sobre a influência do contexto geográfico nesse cenário. Em um desses estudos, de mesma metodologia que a empregada neste artigo, Kim, Elliot e Wang (2003KIM, J.; ELLIOT, E.; WANG, D. A spatial analysis of county-level outcomes in US Presidential elections: 1988-2000. Electoral Studies, v.22, n.4, p.741-61, 2003.) encontraram I de Moran de Republicanos e Democratas variando entre 0,50 e 0,60 nas quatro eleições do período de 1988 e 2000. Guardadas todas as diferenças entre o caso brasileiro e o caso americano, nosso Índices começam com valores de autocorrelação espacial próximos dos patamares mais altos encontrado nos Estados Unidos.

No nosso caso, há, claramente, uma divisão em dois períodos nesta série. No primeiro período, de 1989 a 1998, a autocorrelação espacial da votação dos candidatos é relativamente alta, mas os valores não seguem a mesma tendência. O Índice é mais baixo para o PT (Lula) nas duas primeiras eleições (0,61 e 0,60), e sobe em 1998 para 0,73; enquanto Collor, pelo PRN (1989) e Fernando Henrique, pelo PSDB (1994) apresentam I de Moran de 0,78, mas em 1998 o Índice de Fernando Henrique diminui de 0,78 para 0,68.

A diferença maior entre os índices dos candidatos oponentes em 1989 e 1994 do que no restante da série, mais baixos para o PT, mostra que a votação de Lula teve um padrão menos concentrado geograficamente do que seu oponente nestes dois anos. Uma explicação para isto seria o padrão diferenciado de concentração de voto de Lula e do PT nos grandes centros urbanos, menos correlacionado ao padrão de votação nas proximidades destes municípios.

A eleição de 2002 divide os dois períodos, com os índices mais baixos da série, e igual para os dois candidatos no primeiro turno (0,59). No segundo turno os índices caem um pouco mais, sendo 0,52 para Lula (PT) e 0,53 para José Serra (PSDB). No segundo período, de 2006 a 2018, os valores são altos e semelhantes para os dois candidatos em todas as eleições. A tendencia é de crescimento, exceto por 2010, quando há uma leve queda nos índices de ambos os candidatos.

A partir de 2002 encontramos grau de autocorrelação espacial e tendência semelhante para os dois finalistas. Isso pode significar que os Partidos agora competem nacionalmente, sem que a clivagem urbano/rural seja mais predominante em um partido que outro. A diferença, a partir de 2002, fica por conta da extensão e da localização dos arranjos territoriais das forças e apoio eleitorais opostos.

Gráfico 3
Índice de autocorrelação espacial (*) dos dois primeiros colocados nas eleições presidenciais de 1989 a 2018, primeiro e segundo turnos.

Nossa análise mostra que a polarização geográfica existe. Encontramos alto grau de dependência espacial nas votações de todos os candidatos, em todas as eleições. Há dois períodos distintos, antes e depois de 2002. Há tendências diferentes nesses dois períodos. Isso mostra que há padrões geográficos significativos que precisam ser analisados. A distribuição geográfica do apoio aos candidatos está longe de ser decorrência de processos aleatórios ou pontuais.

Onde acontece a polarização?

Para analisar a geografia eleitoral dos confrontos entre os candidatos finalistas utilizamos o Indicador de Autocorrelação Espacial Local (Moran Local) ou Local Indicator of Spatial Autocorrelation (LISA). O Indicador é uma estatística, como outras de natureza semelhante, capaz de revelar hot spots. No nosso caso, são os hot spots formados por municípios de porcentagens altas de voto que chamamos de territórios eleitorais dos candidatos. O Indicador Local é uma decomposição do Índice de Moran e mede a contribuição de cada observação para a autocorrelação global. É utilizado para identificar agrupamentos locais de não estacionaridade, os hot spots, onde unidades adjacentes compartilham valores similares (Anselin, 1995ANSELIN, L. Local Indicators of Spatial Association-LISA. Geographical Analysis, v.27, n. 2, p.93-115, 1995.).

Utilizamos o Indicador de Moran Local para operacionalizar o conceito de Território Eleitoral, estabelecendo uma correspondência hipotética entre os grupamentos de municípios (hot spots) com porcentagem alta de votos em regiões de valores estatisticamente similares, com a “conquista” territorial do candidato naquele pleito. Estes grupamentos correspondem à primeira categoria de Moran Local, conhecida como Alto-Alto ou High-High, composta pelos municípios com valores altos de porcentagem de votos em vizinhança de valores semelhantes, estatisticamente significativos.

A divisão em dois períodos, observada na série de Índices Globais, confirma-se nos mapas dos Territórios Eleitorais apresentados em dois painéis (Figuras 1 e 2). No primeiro painel apresentamos o mapa do segundo turno da eleição de 1989, que combina os territórios eleitorais de Lula (PT) em vermelho, e os de Collor (PRN) em azul. Como em 1994 e 1998 não houve segundo turno, optamos por apresentar em separado, os mapas de Lula (PT) e de Fernando Henrique (PSDB). No segundo painel estão os mapas de segundo turno de 2002 a 2018.

Dentre todos os padrões geográficos, é o de 2002 que apresenta territorialização menos extensa, tanto do PT, em vermelho, quanto do PSDB, em azul. Em 2002 Lula é eleito pela primeira vez, e no segundo turno vence Serra com 61,3% dos votos. Da perspectiva territorial, apesar do I de Moran de 0,59 ser um valor alto de autocorrelação espacial, essa eleição apresenta a menor concentração geográfica da série. Interessante observar que sendo a diferença expressiva entre Lula e Serra, cerca de 20 milhões de votos, e a menor territorialização da série, essa configuração já se mostra compatível com a versão de um PT mais interiorizado, de alcance nacional, resultante do esforço anterior do partido em alcançar os rincões do país.

Nesse contexto de descentralização/interiorização, os municípios do sul do país começam a perder o destaque frente ao avanço nacional. Os grupamentos em Minas Gerais e no Amapá se expandem, e novos territórios surgem no segundo turno, no Ceará e no Rio de Janeiro, com o apoio dos eleitores de Ciro (PSB) e de Garotinho (PSD), como é possível observar no mapa de 2002 (Figura 2). Cerca de um terço dos votos de Lula são obtidos neste Territórios, mapeados em vermelho, constituídos por apenas 817 municípios.

Analisando o período 1989 a 1998 (Figura 1), dois grandes alinhamentos de forças são perceptíveis. Os Territórios Eleitorais de Lula surgem da combinação de Territórios do PDT de Brizola e do PT dos grandes centros metropolitanos. Os Territórios de Fernando Henrique dão continuidade em 1994, e expandem em 1998, o padrão territorial de 1989 de Fernando Collor (PRN).

No primeiro turno de 1989, a diferença de cerca de 400 mil votos a mais, obtida por Lula em relação a Brizola, marcou a trajetória da esquerda nas eleições presidenciais brasileiras. Usando mais uma estatística geoespacial, o índice de Moran Bivariado, comparamos o padrão espacial de Lula no segundo turno, com o seu próprio padrão e o padrão de Brizola no primeiro turno. A interpretação é similar à do índice univariado, só que a autocorrelação se estabelece entre uma variável e os valores similares na vizinhança (clusters) da outra. O índice de Moran Bivariado varia também entre -1 e 1.

A autocorrelação espacial bivariada entre as porcentagens de voto municipal de Brizola no primeiro turno, e os agrupamentos ou clusters de Lula no segundo turno é de 0,65; enquanto este mesmo índice de Moran entre as porcentagens de voto municipal de Lula no primeiro turno, e seus Territórios (grupamentos ou clusters) no segundo, é de apenas 0,17. Considerando 0 a independência de padrões espaciais e 1 a total correlação espacial, poderíamos metaforicamente pensar que na gênese dos Territórios Eleitorais de Lula, no segundo turno de 1989, encontramos 65% dos Territórios Eleitorais de Brizola (PDT) e 17% dos Territórios Petistas.

Os Territórios Eleitorais Lula no mapa de 1989 abrangem quase que totalmente o Rio Grande do Sul, o oeste de Santa Catarina, o sudoeste do Paraná e o Estado do Rio de Janeiro. São a réplica dos Territórios Eleitorais de Brizola no primeiro turno. Os respectivos mapas podem ser consultados em Terron (2009TERRON, S. L. A composição de territórios eleitorais no Brasil: uma análise das votações de Lula (1989-2006). Rio de Janeiro, 2009. Tese (Doutorado em Ciência Política) - Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, Universidade Candido Mendes., p.83-8). Essa configuração continua visível e similar nas eleições seguintes, de 1994 e 1998, para então apresentar uma retração expressiva no Rio Grande do Sul, a partir de 2002. Há semelhança entre os padrões geográficos de Lula de uma eleição para outra como se comprova pelo I de Moran Bivariado: 0,46 entre 1989 e1994; 0,55 entre 1994 e1998 e 0,44 entre 1998 e 2002 (Gráfico 4).

Os Territórios Eleitorais de Collor (PRN) mostram a coesão das forças conservadoras do Brasil rural de 1989. Boa parte dos estados do Paraná, Mato Grosso do Sul, Goiás, Tocantins, Pará e Amazonas, além do oeste paulista e sudoeste mineiro conformam os conglomerados regionais de maior apoio a Collor, o candidato desconhecido de um partido não menos desconhecido, o PRN. Em 1994 Fernando Henrique (PSDB) herda boa parte destes Territórios, como comprova o índice de autocorrelação espacial Moran Bivariado de 0,59 (semelhança de padrão geográfico), entre a votação de Collor e os clusters de FHC, muito próximo daquele encontrado entre Brizola e Lula no segundo turno de 1989. Visualmente parece ter havido uma retração nos Territórios de FHC em relação aos de Collor, mas o índice confirma que permanece uma semelhança significativa. As semelhanças entre Territórios Eleitorais continuam, comprovadas pelos Índices Bivariados (Gráfico 4): 0,46 entre a votação de FHC em 1994 e 1998; e 0,33 entre sua votação em 1998 e a de Serra, em 2002, o menor Índice desse período.

Em 1998 os Territórios Eleitorais de FHC se expandem para cobrir todo o Estado do Mato Grosso e os extensos municípios do sul do Pará. Comparando os respectivos mapas percebe-se o avanço da fronteira do Território Eleitoral de Fernando Henrique (PSDB) em direção ao centro-oeste do país. São informações que levam a insights diferentes. A votação de Fernando Henrique é menos concentrada geograficamente em 1998 do que em 1994, mas os Territórios Eleitorais mostram que o apoio regional se desloca para as regiões mais afetadas pelas políticas de desenvolvimento agrário e posteriormente, do Agronegócio, planejadas no primeiro mandato e impulsionadas no segundo mandato de Fernando Henrique.

Diferentemente do alinhamento ideológico da trajetória da esquerda materializada na transferência integral dos Territórios de Brizola (PDT) a Lula (PT), a transferência e o alinhamento entre os Territórios Eleitorais de Collor (PRN) e os Territórios de Fernando Henrique (PSDB) permitem levantar a hipótese da influência de um contexto geográfico que combina conservadorismo, vocação agrária, migração da fronteira agrícola do sul para o centro-oeste e interesse de setores específicos da economia dessas regiões do interior do país. A dimensão social e política do desenvolvimento agrário é um tema capaz de polarizar o eleitorado a níveis regionais, e algumas evidências empíricas do processo em questão podem ser encontradas em Terron (2009TERRON, S. L. A composição de territórios eleitorais no Brasil: uma análise das votações de Lula (1989-2006). Rio de Janeiro, 2009. Tese (Doutorado em Ciência Política) - Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, Universidade Candido Mendes., p.123-38).

A grande mudança de padrão acontece entre 2002 e 2006, quando se estabelecem os contornos dos extensos territórios do PT e do alinhamento geográfico PSDB-PSL vigentes até 2018. A mudança, entretanto, é radical para o PT, enquanto para o PSDB há uma certa continuidade. Os índices mostram a diferença. A autocorrelação espacial entre as porcentagens de voto municipal de Lula em 2002 e 2006 é negativa e próxima de zero (-0,19), ou seja, os padrões espaciais são praticamente independentes e, em algumas regiões, são inversos: onde os clusters eram de alta votação surgiram baixos e vice-versa. Já a autocorrelação espacial bivariada Serra e Alckmin é positiva e não desprezível, com índice de 0,33. Nesse caso, significa que há semelhanças.

A partir de 2006 os padrões se consolidam cada vez mais, como se observa pelos Índices apresentados no Gráfico 4 e pelos mapas de 2002 a 2018 (Figura 2). A menor semelhança do período ocorre entre o padrão de Lula em 2006 e Dilma em 2010. Outra questão que merece ser aprofundada.

Simultaneamente à mudança da base territorial do PT, os Territórios do PSDB se expandem no sul do país, onde os rincões brizolistas/petistas deixam de existir. Esse movimento já havia começado em 2002, pelo sudeste de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul, como se observa no mapa (Figura 2). Em 2006, entretanto, Alckmin conquista quase que a totalidade do Rio Grande do Sul. As políticas do primeiro governo Lula podem ter tido impacto negativo nessas regiões deixando espaço para o avanço dos Territórios Eleitorais do PSDB. Por outro lado, o impacto dos programas sociais do governo propicia a formação dos novos Territórios Eleitorais de Lula no norte e nordeste do país. Enquanto o PSDB estende suas fronteiras territoriais para o Sul, do litoral para o interior, o PT migra seus Territórios para o Nordeste e Norte.

Figura 1
Mapas dos Territórios Eleitorais (*) dos candidatos do PT (1989 a 1998), do PRN (1989) e do PSDB (1994 e 1998) nas eleições presidenciais brasileiras.

Figura 2
Mapas dos Territórios Eleitorais (*) dos candidatos do PT (2002 a 2018), do PSDB (2002 a 2014) e do PSL (2018) nas eleições presidenciais brasileiras.

Gráfico 4
Índice de autocorrelação espacial bivariado (*) entre as votações em duas eleições subsequentes, dos primeiros colocados nas eleições presidenciais de 1989 a 2018, segundo turno (exceto 1994 e 1998).

A partir de 2006 os Territórios Eleitorais também são transferidos de um candidato a outro de mesmo alinhamento partidário, assim como na primeira fase, até 2002. Os Índices de transferência (Moran Bivariado) são, entretanto, bem mais altos que os da fase anterior (Gráfico 4), e variam entre o Índice de 0,64 de Lula para Dilma (2006 para 2014) e o Índice máximo de 0,80 de Aécio para Bolsonaro (de 2014 para 2018). Podemos entender que as semelhanças entre os padrões de autocorrelação espacial e consequentemente, dos Territórios Eleitorais do PT, por um lado, e do PSDB e PSL, por outro, aumentaram, e consolidaram, em quatro eleições seguidas, a expressiva polarização geográfica entre os dois extensos blocos territoriais de apoio eleitoral que se enfrentarão em 2022.

No Brasil do centro-sul os Territórios de Aécio Neves (PSDB) em 2014 se assemelham muito aos de Bolsonaro (PSL) em 2018. A agenda ultraconservadora de Bolsonaro se encarrega de expandi-los. A semelhança entre as duas configurações é de 0,80 (I de Moran), a maior das duas séries. A nova geografia eleitoral do centro-sul é diferente daquela do primeiro período, mas não houve uma ruptura regional. Há, desde 1989, um núcleo de apoio que se mantém. Há muito que se investigar neste sentido.

A nova geografia eleitoral do PT é muito diferente daquela do primeiro período. Nessa nova geografia já não há traços da Velha República, do brizolismo. Estabelece-se o lulismo. O domínio das regiões Norte e Nordeste de maneira tão radical abriu um amplo debate acadêmico sobre o impacto político-eleitoral dos programas de transferência direta de renda que perdura às vésperas das eleições de 2022, aquecido pela proposição de políticas sociais e de combate à pobreza por todos os candidatos.

Lula foi reeleito por uma série de fatores, mas na mudança da Base eleitoral de 2002 para 2006, o contexto geográfico teve um papel decisivo. Pobreza em proporções regionais, recursos transferidos diretamente para a população e consequente aquecimento da economia local, dividendos políticos para prefeitos independentemente de partido político, dentre outras combinações de fatores locais e regionais, criaram as condições para que um extenso Território Eleitoral se formasse onde nunca houve unanimidade política (Soares; Terron, 2008SOARES, G. A. D.; TERRON, S. L. Dois Lulas: a geografia eleitoral da reeleição (explorando conceitos, métodos e técnicas de análise geoespacial). Opinião Pública, v.14, n.2, p.269-301, 2008.).

Os conceitos de polarização geográfica e da influência do contexto geográfico sobre o comportamento eleitoral são complexos e de difícil operacionalização. Não se pode prescindir de uma abordagem multiescalar que permita analisar o fenômeno em escalas geográficas maiores, “abrindo” os populosos espaços metropolitanos e intraurbanos. Territórios Eleitorais são um construto teórico de igual complexidade. Neste artigo não foram analisados do ponto de vista do tamanho do eleitorado e do peso desses conglomerados de municípios na votação do candidato. Conseguimos apenas “arranhar a superfície”. As respostas não ocorrem nem aleatoriamente ou linearmente no território. Há arranjos geográficos distintos para cada período, para cada alinhamento partidário. A comparação entre eles é uma fonte inesgotável de novas questões para investigação.

Conclusões e comentários

Analisamos todas as eleições presidenciais brasileiras realizadas desde o retorno ao regime democrático, em 1989, até 2018. Entendemos que essa foi nossa maior contribuição. Retrocedemos a 1989, enquanto a maioria dos estudos têm analisado o período mais recente. Para privilegiar essa série histórica longa, e a análise empírica ao nível dos 5.570 municípios brasileiros, delimitamos nossa discussão na linha do Presidencialismo de coalizão, da centralidade e importância das eleições presidenciais no sistema político brasileiro e da tendência ao bipartidarismo e polarização nas eleições presidenciais. Neste contexto, elegemos a polarização eleitoral e geográfica como objeto de investigação.

Abordamos a questão da perspectiva dos conceitos de polarização eleitoral, polarização geográfica e da influência do contexto geográfico na conformação de padrões geográficos polarizados. Utilizamos análise fatorial e análise de autocorrelação espacial para responder algumas questões como: Há polarização? Em que sentido? Como medi-la? Qual o grau de intensidade? Onde acontece?

Encontramos algumas respostas que sintetizamos a seguir:

  • A polarização geográfica entre o primeiro e o segundo colocado é uma característica das eleições presidenciais brasileiras desde 1989 até 2018. Varia o sentido, a intensidade e a geografia do confronto, mas ela está presente em todas as eleições.

  • Há dois períodos: um de 1989 a 2002, e outro de 2006 a 2018. A polarização é mais forte no segundo período. 2002 é uma eleição critica, a menos polarizada geograficamente de toda a série. Marca o final do ciclo de realinhamento de forças pós-ditadura, enquanto o Partido dos Trabalhadores chega ao governo. A eleição de 2006 é a mais polarizada em diferença de votos entre o primeiro e o segundo colocado, mais polarizada geograficamente que todas as anteriores, e marca a mudança no padrão da geografia eleitoral.

  • As clivagens territoriais são diferentes. No alinhamento territorial do PSDB entre as duas fases percebe-se mudança, mas há continuidade. No alinhamento territorial do PT há ruptura e a formação de novos Territórios. No primeiro período percebe-se o Brasil rural do PSDB de Fernando Henrique, no Sudeste e Centro-Oeste (situação), e o Brasil do PDT de Brizola somado ao PT metropolitano de Lula (oposição). No segundo, a clivagem mais conhecida que se fortaleceu desde 2006, entre o Centro-sul do PSDB (oposição) e o Norte-Nordeste do PT (situação).

  • Nos dois extremos da série do PSDB, em duas eleições atípicas, dois candidatos outsiders, Fernando Collor (PRN) em 1989 e Jair Bolsonaro (PSL) em 2018, exercem a mesma polarização, em intensidade e localização geográfica, que os candidatos do PSDB da eleição mais próxima. Fernando Henrique absorve os Territórios Eleitorais de maior apoio a Collor, enquanto no outro extremo, Bolsonaro absorve os Territórios Eleitorais de Aécio Neves. No alinhamento do PT a transferência significativa de Territórios Eleitorais acontece com Brizola em 1989.

  • Há indícios de que políticas de governo influenciam o comportamento eleitoral de maneira diferenciada, de acordo com as características do contexto geográfico. Caso das políticas de desenvolvimento agrário do primeiro mandato de Fernando Henrique, e das políticas sociais do primeiro mandato da Lula. Há que se aprofundar esta linha de investigação.

Nosso olhar “de cima”, que filtrou o rico detalhamento de escalas maiores de observação, optando pela unidade municipal para viabilizar a perspectiva temporal ao nível nacional, revelou dualidades. Polarizações significativas, inclusive anteriores a 2006.

Em 2006 deparamo-nos com “Dois Lulas”, mas expandindo o olhar encontramos “Dois PTs”: até 2002, o partido de esquerda, de oposição, das grandes centrais sindicais e de Lula candidato à presidência, a quem se transfere o legado do brizolismo, e retrocedendo, do varguismo; a partir dai o PT situação, mais moderado, das políticas sociais, e como alguns autores afirmam, o lulismo. Em 2006 também nos deparamos com outro PSDB, diferente daquele de Fernando Henrique presidente; um PSDB oposição, que conquista Territórios brizolistas-petistas enfraquecidos no sul do país, enquanto suas disputas internas relembram antigas rusgas entre paulistas e mineiros. Na esteira desta trajetória, permeada pelo impeachment de Dilma, pela operação Lava-Jato, pela prisão de Lula, e por outros “abalos” políticos e econômicos, nacionais e internacionais, abre-se caminho para que a extrema-direita chegue ao Brasil pelas mãos de Bolsonaro, em 2018.

Encontramos mais dualidades. Há dois alinhamentos na geografia eleitoral: um ideológico (PT), e outro de alternância de preferências partidárias (PRN, PSDB e PSL). Não encontramos um terceiro alinhamento, uma terceira via, que explicasse mais do que a transferência de apoio territorial. Brizola em 1989 é a segunda via que por muito pouco não se viabiliza.

Identificamos dois períodos distintos. Ambos se iniciam com duas eleições determinantes, separadas por alternância de poder (1989, após a ditadura, e 2006 após a ascensão do PT à presidência). Um divisor: a eleição crítica de 2002. Segundo V. O. Key (1955KEY, V. O. A Theory of Critical Elections. Journal of Politics, v.17, n.1, p.3-18, 1955.) e sua teoria sobre a dinâmica das eleições, há eleições normais e críticas. As eleições críticas quebram os padrões de apoio partidário estabelecidos, e criam subitamente novos padrões, ocasionalmente irrevogáveis. Depois de uma eleição crítica estes novos padrões se fortalecem e produzem um novo período de eleições normais até a próxima ruptura. Aos períodos tipificados como normais corresponde uma geografia eleitoral relativamente estável, caracterizada por determinado grau de regionalização do apoio a determinado partido, em detrimento de outro. Numa eleição crítica, entretanto, a estabilidade geográfica desmorona. Isto aconteceu em 2002, e após 2006 novos padrões se estabeleceram. Em 2018, entretanto, houve uma alternância no poder. Então por que os padrões da geografia eleitoral continuaram, transferidos de um partido a outro?

Delimitamos e comparamos territórios eleitorais, como estruturas dinâmicas que são, mas há mais sobre eles. Não foram tratados neste artigo, mas há indicadores que permitem ampliar e aprofundar a análise dos territórios, como o seu contingente eleitoral, a sua contribuição para a votação total do candidato, o domínio que este candidato exerce no seu território, o tempo de permanência desse domínio na região e outros. A análise de quem ganha a eleição pode não se dar pelos Territórios Eleitorais, mas eles são fundamentais para sinalizar a provável influência de contextos geográficos específicos sobre as escolhas eleitorais (à posteriori) ou orientar estratégias de campanha e a elaboração de programas de governos (a priori).

Procurar entender nossos “Brasis” pelas lentes rígidas de uma divisão geográfica da década de 1970, buscando respostas lineares para processos não lineares, significa manter enterrados sítios “arqueológicos” de informações fundamentais para a formulação de hipóteses que “nos expliquem” mais do que as que temos formuladas até o momento, concebidas ao longo de séculos de observação de sociedades e contextos muito diferentes dos nossos. O conhecimento é cumulativo e os métodos, complementares. Nossa análise encontrou algumas respostas para os questionamentos iniciais e, a partir delas, deparamo-nos com muitas outras perguntas. Um convite para a continuidade das investigações.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Out 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Oct 2022

Histórico

  • Recebido
    26 Ago 2022
  • Aceito
    15 Set 2022
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