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Relatos de experiências pessoais e socioconstrução de conhecimentos em sala de aula de língua estrangeira1 1 Algumas das reflexões propostas neste artigo foram apresentadas de forma resumida em trabalho publicado nos anais do III Congresso Internacional Linguagem e Interação, realizado em São Leopoldo/RS, de 17 a 19 de junho de 2015.

RESUMO

Este artigo tem por objetivo analisar relatos de experiência produzidos espontaneamente por crianças e jovens adolescentes em sala de aula de língua inglesa. Inserido na área de Linguística Aplicada, o estudo está fundamentado na perspectiva teórica sociocultural (VYGOTSKY, 1998, 2001), segundo a qual a linguagem é uma ferramenta mediadora na socioconstrução de conhecimentos, em interface com uma visão de linguagem orientada para o uso e a serviço de propósitos sociocomunicativos, como proposto pela Linguística Sistêmico-Funcional (HALLIDAY; HASAN, 1989). Nessa arquitetura teórica e com base em uma tradição qualitativa de pesquisa (DENZIN; LINCOLN, 2006), discutimos como os relatos analisados atuam na socioconstrução do conhecimento pedagógico a partir da experiência pessoal, tornando os saberes significativos e compartilhados em sala de aula. Além disso, sugerimos que a experiência de mundo colabora para a construção do conhecimento curricular e esse, em retorno, serve como suporte para a construção da experiência particular do estudante, conforme proposto por Nóbrega (2003, 2009).

Relatos; Sala de aula de língua inglesa; Linguística sistêmico-funcional; Teoria sociocultural; Mediação; Socioconstrução do conhecimento

ABSTRACT

The present article aims at analyzing recounts of personal experiences spontaneously produced by children and teenagers in EFL classrooms. Inserted in the field of Applied Linguistics, this study is based upon the Sociocultural Theory (VYGOTSKY, 1998, 2001), according to which language mediates the social construction of knowledge. Moreover, we regard language as a use-oriented tool in service of social and communicative purposes, as proposed by Systemic Functional Linguistics (HALLIDAY; HASAN, 1989). We stand on such theoretical backgrounds as well as on a qualitative perspective (DENZIN; LINCOLN, 2006) to argue that the analyzed recounts contribute to the social construction of pedagogical knowledge through personal experience, prompting the emergence of meaningful and shared learning in the classroom. Finally, we suggest that social world experience subsidizes the awareness of curriculum issues and, in return, those contents support the construction of students’ personal experiences, as proposed by Nóbrega (2003, 2009).

Recounts; EFL classrooms; Systemic functional linguistics; Sociocultural theory; Mediation; Social construction of knowledge

Considerações Iniciais

O interesse desta pesquisa pela vida da sala de aula tem origem no reconhecimento desse espaço como uma prática discursiva e social potencialmente geradora de significados. As interações que ali ocorrem medeiam a construção2 2 Entendemos, neste estudo, a construção como um processo social e colaborativo, também frequentemente designado como (co)construção. de conhecimentos entre os participantes do processo de ensino e aprendizagem, além de trazerem à tona uma integração e confronto de experiências, conhecimentos e crenças que traduzem os papeis sociais desses agentes.

Assim, a sala de aula é um dentre muitos eventos sociais do qual os indivíduos participam ao longo da sua vida, de maneira que os discursos que ali circulam não existem em um vazio (VAN LIER, 1994VAN LIER, T. Some factors of a theory of practice. TESOL Journal, Virginia, n.4, 1994. p.6-10., 1996VAN LIER, T. Interaction in the language curriculum: awareness, autonomy & authenticity. Nova Iorque: Longman, 1996.), mas são resultantes e produtores de uma realidade externa ao ambiente educacional. Tais discursos, localizados e permeados por marcas sociais, atuam na construção de ideologias e identidades bem como na negociação de significados e valores.

Inspirado no potencial que os múltiplos discursos da sala de aula possuem na mediação da socioconstrução do conhecimento, este artigo propõe o estudo de relatos de experiências pessoais ocorridos em aulas de inglês como língua estrangeira3 3 Assim como Leffa (2012), não vemos os termos “segunda língua”, “língua estrangeira” e “língua adicional” como sinônimos, mas, para evitar repetições no texto, usamos a sigla L2 como um termo abrangente para cobrir as situações discutidas no âmbito deste trabalho. Para a língua materna usamos a sigla L1. para crianças e jovens adolescentes. Além de demonstrarem a relação que professores e alunos estabelecem entre suas individualidades e o conteúdo curricular (NÓBREGA, 2003NÓBREGA, A. N. A. “Teacher, posso te contar uma coisa?” a conversa periférica e a sócio-construção do conhecimento na sala de aula de língua estrangeira. 2003. 175f. Dissertação (Mestrado em Letras) - Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2003., 2009NÓBREGA, A. N. A. Narrativas e avaliação no processo de construção do conhecimento pedagógico: abordagem sociocultural e sociossemiótica. 2009. 244f. Tese (Doutorado em Letras) - Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.), tais relatos são entendidos aqui como manifestações discursivas da ordem do narrar (MARTIN; ROSE, 2008MARTIN, J.; ROSE, D. Genre relations: mapping culture. London: Equinox, 2008.) por meio das quais os alunos compartilham suas experiências pessoais e que funcionam como elementos mediadores e andaimes4 4 Conceito introduzido por Brunner (1976 apud MERCER, 1994) como scaffolding. Refere-se ao suporte dado pelo adulto/par mais competente e visa à realização pela criança de uma tarefa que inicialmente sozinha não seria capaz de executar. na construção de saberes. Na medida em que os relatos têm como propósito comunicativo narrar acontecimentos envolvendo o narrador, a partir de uma orientação inicial sequenciada por um rol de eventos (MARTIN; ROSE, 2008MARTIN, J.; ROSE, D. Genre relations: mapping culture. London: Equinox, 2008.), o aluno é capaz de situar a si e aos outros no contexto de sala de aula.

Esta pesquisa está inserida na área de Linguística Aplicada (LA), cujos estudos iniciais concentravam-se justamente nas questões relacionadas ao ensino e aprendizagem de línguas, como elaboração e avaliação de material didático, análises contrastivas entre língua materna e língua estrangeira, formação do professor, dentre outras (MOITA LOPES, 1999MOITA LOPES, L. P. da. Fotografias da lingüística aplicada no campo de línguas estrangeiras no Brasil. DELTA: Documentação de Estudos em Lingüística Teórica e Aplicada, São Paulo, v. 15, n. esp., p. 419-435, 1999.). Em uma visão mais recente, a LA prevê em seu escopo a busca por “criar inteligibilidade sobre problemas sociais em que a linguagem tem papel central” (MOITA LOPES, 2006MOITA LOPES, L. P. da. (Org.). Por uma lingüística aplicada indisciplinar. São Paulo: Parábola Editorial, 2006., p.14), de maneira que o foco em temas bastante pontuais na área de ensino e aprendizagem de línguas deslocou-se para questões mais amplas de uso da linguagem nos mais diversos contextos. Nessa perspectiva corrente de LA, destacamos a preocupação com o empoderamento de grupos historicamente silenciados por visões hegemônicas de mundo bem como o uso de conhecimentos advindos de diversas áreas do saber para a compreensão de questões da linguagem, recurso que sempre esteve associado à área.

Assim como os estudos precursores em LA, o tema deste artigo está relacionado ao ensino e aprendizagem de línguas. No entanto, o enfoque está no processo educacional e na interação entre os atores que dele participam, o que corresponde a uma preocupação com aspectos sociais e não estruturais da linguagem. Cumpre ressaltar, portanto, que é essa concepção mais atual de LA que subjaz ao estudo proposto, sobretudo no que tange à coparticipação e à multidisciplinaridade. Entendemos que a análise dos relatos de experiência dos alunos possibilita a observação de vivências muitas vezes ignoradas em um sistema escolar que, convencionalmente centrado no professor, muitas vezes rejeita discursos mais espontâneos criados por alunos, considerando-os inadequados para produção no ambiente em questão.

Além disso, as análises aqui propostas estão embasadas em princípios teóricos relacionados à aprendizagem e à linguagem, o que vai ao encontro da afirmação de Celani (1992CELANI, M. A. A. Afinal, o que é linguística aplicada. In: ZANOTTO, M. S.; CELANI, M. A. A. (Org.). Linguística aplicada, da aplicação da linguística à linguística transdisciplinar. São Paulo: EDUC, 1992. p. 15-23., p.19) de que a LA é “o ponto, então, onde o estudo da linguagem se intersecciona com outras disciplinas”. Sendo assim, situamos nosso interesse de pesquisa na análise do discurso de sala de aula de língua estrangeira, mais especificamente nos relatos de experiências pessoais, demonstrando que esses são potencias mediadores na socioconstrução do conhecimento.

Linguagem, mediação e socioconstrução de conhecimentos

Em uma ótica interdisciplinar, para a análise do caráter mediador e funcional dos relatos em questão, entendemos a linguagem, neste artigo, sob duas perspectivas teóricas complementares: (i) a teoria sociocultural (DANIELS, 2001DANIELS, H. Vygotsky e a Pedagogia. São Paulo: Loyola, 2001.; WELLS; CLAXTON 2002WELLS, G.; CLAXTON, G. (Ed.). Learning for life in the 21st century. London: Blackwell, 2002.; WERTSCH, 2006WERTSCH, J. V. The need for action in sociocultural research. In: WERTSCH, J. V.; DEL RIO, P.; ALVAREZ, A. (Ed.). Voices of the mind: sociocultural studies of mediated action. Cambridge: Harvard University Press, 2006. p. 56-74.; 2002WERTSCH, J. V. Voices of collective remembering. New York: Cambridge University Press, 2002., dentre outros), a partir dos trabalhos desenvolvidos por Vygotsky (1998VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1998.; 2001VYGOTSKY, L. S. Psicologia pedagógica. São Paulo: Martins Fontes, 2001.), que concebe a linguagem como ferramenta cultural mediadora e (ii) a Linguística Sistêmico-Funcional, inicialmente a partir dos trabalhos de Michael Halliday (HALLIDAY; HASAN, 1989HALLIDAY, M. A. K.; HASAN, R. Language, context and text: aspects of language in a social-semiotic perspective. Oxford: Oxford University Press, 1989.; HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004HALLIDAY, M. A. K.; MATTHIESSEN, C. M. I. M. An introduction to functional grammar. London: Arnold, 2004.).

No caso da teoria sociocultural, temos uma abordagem de aprendizagem segundo a qual a linguagem assume papel fundamental. Tal perspectiva não foca no desenvolvimento de uma teoria de linguagem, mas na demonstração do papel que esta desempenha no processo de aprendizagem. Como veremos adiante, de acordo com a teoria sociocultural, a linguagem atua como uma ferramenta mediadora no processo de socioconstrução de conhecimento. No que tange à Linguística Sistêmico-Funcional, verificamos uma concepção de linguagem como uma rede de possibilidades que permite que os usuários façam escolhas a fim de veicular sentidos e construir significados. Trata-se de uma teoria sociossemiótica, segundo a qual a linguagem deve ser analisada em seus contextos de uso e de acordo com as funções que desempenha na vida social.

Acreditamos, assim, que a linguagem com um enfoque social possibilita a observação de sua relevância no processo de construção de conhecimentos, gerando um melhor entendimento sobre a função dos relatos de experiências pessoais como elementos mediadores e andaimes no contexto de sala de aula de língua inglesa. O aprendizado (inclusive de outra língua) é, então, compreendido como um processo semiótico que implica participação em atividades socialmente mediadas (DONATO, 2000DONATO, R. Sociocultural contributions to understanding the foreign and second language classroom. In: LANTOLF, J. P. (Ed.). Sociocultural theory and second language learning. Oxford, UK: Oxford University Press, 2000. p 27-50.). Nesse sentido, sugerimos que os relatos não são apenas um discurso paralelo, descontextualizado do ambiente de sala de aula, mas sim práticas sociais que constroem e influenciam o aprendizado no contexto instrucional e interacional.

Ainda em relação à abordagem sociocultural, pontuamos que esta traz contribuições para o estudo da linguagem na educação, vista como uma forma de situar os participantes da interação pedagógica no ambiente em que estão atuando. O aluno, como sujeito, constrói seu conhecimento e sua realidade social nas interações, o que se configura em um processo social onde os participantes criam, por meio do diálogo, um saber comum. A partir dessa visão social de aprendizagem, Vygotsky (1998)VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1998. afirma que o aprendizado se realiza em um determinado grupo cultural a partir da interação com outros indivíduos.

Para se entender como a educação em sala de aula alcança ou não seus objetivos como um processo que visa desenvolver o conhecimento e entendimento dos alunos, é necessário, portanto, segundo Mercer e Littleton (2007)MERCER, N.; LITTLETON, K. Dialogue and the development of children’s thinking: a sociocultural approach. London: Routledge, 2007., conceber a aprendizagem como um processo mediado pelo diálogo. Essa relevância atribuída ao papel mediador do diálogo na socioconstrução do conhecimento, discutida pelos os autores (MERCER; LITTLETON, 2007MERCER, N.; LITTLETON, K. Dialogue and the development of children’s thinking: a sociocultural approach. London: Routledge, 2007.), torna-se fundamental no contexto desta pesquisa, no qual chamamos atenção à relação entre a construção do conhecimento de língua inglesa e os relatos de experiências pessoais, que naturalmente surgem nos diálogos compartilhados na sala de aula pesquisada.

Da mesma forma que Mercer e Littleton (2007)MERCER, N.; LITTLETON, K. Dialogue and the development of children’s thinking: a sociocultural approach. London: Routledge, 2007., defendemos que a interação social é significativa na construção do conhecimento. Logo, no âmbito deste estudo, entendemos o diálogo como um ‘artefato cultural’ na socioconstrução do conhecimento. Mais especificamente:

A conversa com o professor, e com outros alunos, é talvez o meio mais importante para se garantir que o engajamento do aluno em uma série de atividades contribua para que desenvolvam entendimentos de ciência, matemática ou qualquer outra matéria como um todo5 5 Do original: “Talk with the teacher, and with other students, is perhaps the most important means for ensuring that a student’s engagement in a series of activities contributes to their developing understanding of science, mathematics or any other subject as a whole.” (MERCER; LITTLETON, 2007, p.102). . (MERCER; LITTLETON, 2007MERCER, N.; LITTLETON, K. Dialogue and the development of children’s thinking: a sociocultural approach. London: Routledge, 2007., p.102, tradução nossa).

Recorremos, então, à teoria sociocultural uma vez que esta busca explicar a aprendizagem como processos mediados, conforme apontado por Wertsch (2006)WERTSCH, J. V. The need for action in sociocultural research. In: WERTSCH, J. V.; DEL RIO, P.; ALVAREZ, A. (Ed.). Voices of the mind: sociocultural studies of mediated action. Cambridge: Harvard University Press, 2006. p. 56-74.. Desse modo, o sujeito se constitui durante as relações sociais com seus pares (FREITAS, 2000FREITAS, M. T. Vygotsky & Bakhtin: Psicologia e educação: um intertexto. São Paulo: Ática, 2000.) e é através da investigação de elementos mediadores que esta relação pode ser compreendida e, consequentemente, podemos perceber que a mediação é o ponto de partida para uma análise sociocultural. Acreditamos que, no contexto de sala de aula, “a mediação semiótica é a chave para todos os aspectos relacionados à construção de conhecimento” (JOHN-STEINER; MAHN, 1996JOHN-STEINER, V.; MAHN, H. Sociocultural approaches to learning and development: a Vygotskian framework. Educational Psychologist, Hillsdale, v. 31, n. 3/4, p.191-206, 1996., p.5).

Nesse sentido, o relato de histórias pessoais torna-se evidentemente significativo para o processo de construção de conhecimento, já que, ao comentar sobre sua experiência, o participante pode alcançar um determinado objetivo (como, por exemplo, a construção de certo conhecimento) através da interação social, por meio do uso da linguagem.

Ao criar diferentes sentidos a partir de seu uso, a linguagem revela seu caráter funcional, como proposto pela Linguística Sistêmico-Funcional (LSF). De acordo com os princípios sistêmico-funcionais, a língua é uma realidade social, materializada discursivamente em textos que se moldam em função do uso e dos propósitos sociocomunicativos (ALMEIDA, 2002ALMEIDA, P. Atendimento de check-in de companhia aérea: análise sistêmico-funcional de um gênero discursivo do português. 2002. 210f. Dissertação (Mestrado em Letras) - Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2002.). Para cumprir tais propósitos, usuários da língua realizam escolhas com base em um potencial de significados de modo que o sentido resulta da seleção sobre o que foi dito em relação ao que poderia ter sido dito (HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004HALLIDAY, M. A. K.; MATTHIESSEN, C. M. I. M. An introduction to functional grammar. London: Arnold, 2004.). Como o uso tem motivações situacionais e culturais, a LSF tem como alicerce teórico a noção de que a linguagem e o contexto estão intimamente ligados. Sendo assim, uma vez que a língua se molda em torno dos requisitos de uso, é necessário que se observe quais as características do seu entorno.

Segundo Vian Jr (2013)VIAN JR., O. Linguística sistêmico-funcional, linguística aplicada e linguística educacional. In: MOITA LOPES, L. P. da (Org.). Linguística aplicada na modernidade recente: Festschrift para Antonieta Celani. São Paulo: Parábola, 2013. p. 123-141., o que diferencia a LSF de outras abordagens funcionalistas de linguagem é o fato de esta abordagem teórica buscar desenvolver uma teoria sobre a língua como processo social, bem como uma metodologia analítica para descrição de padrões linguísticos (EGGINS, 1994 apud VIAN JR., 2013VIAN JR., O. Linguística sistêmico-funcional, linguística aplicada e linguística educacional. In: MOITA LOPES, L. P. da (Org.). Linguística aplicada na modernidade recente: Festschrift para Antonieta Celani. São Paulo: Parábola, 2013. p. 123-141.). Como exposto por Vian Jr. ao comentar as palavras de Eggins,

Esse aspecto caracteriza a LSF como uma teoria eminentemente interdisciplinar, em constante diálogo com outras áreas [...]. Uma característica da LSF, ainda, é sua disseminação entre profissionais de ensino preocupados com questões sociais e o papel fulcral da linguagem em seu cotidiano e como a compreensão dos aspectos linguísticos pode oferecer pistas para se compreender a realidade em que estão inseridos [...]. (VIAN JR, 2013VIAN JR., O. Linguística sistêmico-funcional, linguística aplicada e linguística educacional. In: MOITA LOPES, L. P. da (Org.). Linguística aplicada na modernidade recente: Festschrift para Antonieta Celani. São Paulo: Parábola, 2013. p. 123-141., p.127).

Desse modo, alinhadas ao autor, consideramos que a LSF, assim como a LA, é por natureza interdisciplinar, sendo uma abordagem que busca observar a produção de sentidos através de processos textuais da vida social (MOURA NEVES, 2001MOURA NEVES, M. H. A gramática funcional. São Paulo: Martins Fontes, 2001.; EGGINS, 2004EGGINS, S. An introduction to systemic functional linguistics. 2. ed. New York: Continuum, 2004.). Seu caráter semântico e funcional privilegia uma noção de linguagem como formadora de sentidos, investigando a função que estes sentidos adquirem durante o uso da linguagem. Em sua perspectiva mais ampla, a LSF procura explicar como os indivíduos usam a linguagem e como ela é estruturada em seus diferentes usos (EGGINS, 2004EGGINS, S. An introduction to systemic functional linguistics. 2. ed. New York: Continuum, 2004.).

Dessa maneira, a proposta de confluência de duas vertentes teóricas complementares, ou seja, a teoria sociocultural e a LSF, busca associar uma teoria de aprendizagem enquanto processo sociodiscursivo mediado pela interação a uma visão de linguagem imbricada na sociedade e dirigida para o uso.

Orientação metodológica e análise dos dados

Os dados deste trabalho foram gerados em três turmas, aqui nomeadas Grupos A, B e C, de um curso de inglês para crianças e adolescentes, localizado na zona sul do Rio de Janeiro. O registro dos dados foi realizado em áudio e os trechos selecionados para análise foram transcritos de acordo com as convenções6 6 As convenções encontram-se no Anexo deste artigo. propostas por Atkison e Heritage (1984), incorporando-se símbolos sugeridos por Schiffrin (1987)SCHIFFRIN, D. Intonation and transcription conventions. In: SCHIFFRIN, D. Discourse markers. Cambridge: Cambridge Univ. Press, 1987. p. IX-X. e Tannen (1989)TANNEN, D. Appendix II: transcription conventions. In: TANNEN, D. Talking voices: repetition, dialogue, and imagery in conversational discourse. Cambridge: Cambridge University Press, 1989. p.193-195..

Os três grupos variavam tanto em idade como em nível de proficiência. Sendo assim, o Grupo A, composto por três meninas com idade entre sete e oito anos e em seu primeiro semestre no curso, é aquele com domínio mais básico da língua. O Grupo B, formado por três meninas e cinco meninos, com idade entre sete e nove anos, apesar de iniciante, frequentava o segundo semestre letivo de inglês na instituição. Integram o Grupo C alunos de onze anos de idade, com nível de proficiência um pouco mais avançado e, portanto, com maior familiaridade com a L2. Em função dessas diferenças em níveis de proficiência e, consequentemente, do domínio léxico-gramatical de cada participante, o uso de L1 e L2 naturalmente variou nos momentos de produção discursiva durante as aulas em que emergiram os relatos de experiências pessoais.

O registro dos dados foi feito em gravação em áudio e vídeo, assim como em notas de campo. Os fragmentos utilizados para a análise dos dados deste artigo foram retirados de um corpus mais extenso, composto por gravações de quinze aulas, cinco de cada grupo. Como critério de seleção, trazemos para o nosso debate interações nas quais os relatos façam referência ao conteúdo pedagógico. Dessas interações, algumas foram motivadas pelo próprio conteúdo exposto e outras surgiram a partir de elementos alheios a ele, mas todas estão, de alguma maneira, relacionadas a elementos curriculares. A partir dessa proposta, foi realizada, neste estudo, a análise qualitativa e interpretativa (DENZIN; LINCOLN, 2006DENZIN, N.; LINCOLN, Y. (Org.). O planejamento da pesquisa qualitativa. Porto Alegre: ARTMED, 2006.) de quatro fragmentos, retirados de interações produzidas nos grupos.

O interesse pela observação da relação existente entre o conteúdo curricular e o contado nos relatos produzidos pelos participantes do evento aula parte de nossa ideia de que estes discursos buscam reelaborar uma experiência anterior relacionando-a ao contexto pedagógico, como será discutido a seguir.

Análise dos relatos de experiências pessoais na construção de conhecimentos em sala de aula de língua inglesa

O primeiro fragmento que trazemos para esta análise dos relatos é um exemplo a necessidade de o aluno fazer sentido no contexto em que está inserido. O ambiente de sala de aula é por diversas vezes, se não sempre, um meio abstrato e irreal. Nele, o estudante depara-se com estruturas léxico-gramaticais e conhecimentos antes nunca vistos. Isso é ainda mais latente em contextos de língua estrangeira, onde além de se defrontar com novos conceitos, o aprendiz parece ainda precisar associá-los a seus conhecimentos e experiências construídos em L1.

No trecho em questão, três alunas do Grupo A estavam iniciando o estudo de animais em língua inglesa e, após participarem de uma conversa inicial (atividade de brainstorming), começam a trabalhar esse conteúdo lexical apresentado no livro didático: tiger, monkey, elephant, dinosaur e ostrich (tigre, macaco, elefante, dinossauro e avestruz). Os quatro primeiros animais eram familiares às crianças, que puderam identificá-los rapidamente, não apresentando dificuldades quanto ao seu reconhecimento ou quanto à produção oral dessas palavras em inglês. Entretanto, tanto o conceito de ostrich como um animal quanto sua pronúncia foram de difícil compreensão para as alunas, segundo o exposto a seguir.

Fragmento 1

O primeiro momento de construção apresentado no fragmento acima se refere à construção fonológica da palavra ostrich, que ocorreu no trecho entre as linhas 1 e 7, onde prevaleceu a discussão do conteúdo trabalhado a partir do livro didático. Nesse trecho, vemos que as alunas Lurdes e Isadora foram capazes de apreender a pronúncia da palavra apresentada (linhas 6 e 7) a partir da introdução de um conhecimento compartilhado pela professora Adriana: o barulho do ônibus quando freia (linhas 3 a 5). Essa intervenção pareceu bastar para que as estudantes pudessem construir esse primeiro conhecimento.

Entretanto, a explicação fornecida por Adriana não foi suficiente para que as alunas formassem o conceito de avestruz, conforme indicado nas linhas 8 a 12. Inicia-se, então, o segundo momento de construção, relativo ao reconhecimento do animal, ou seja, à elaboração de seu conceito. Ao constatar que as alunas continuavam sem reconhecê-lo, Adriana introduz uma característica particular do avestruz (é um avestruz aquele que esconde a cabeça no chão, na linha 13), o que irá atuar como uma motivação discursiva para a produção do relato narrado por Isadora, entre as linhas 14 e 19. É a partir do uso da palavra avestruz pela professora-pesquisadora que a aluna faz uma retomada de suas experiências que pode levar à construção de seu conhecimento.

Em seguida, o relato da viagem de Isadora a um hotel localizado no Rio de Janeiro, quando então teve oportunidade de ver um avestruz, vivenciando uma situação especial, é uma manifestação discursiva espontânea da aluna e nos sugere uma ligação entre sua experiência particular e o conteúdo trabalhado em sala de aula. Nesse caso, observamos, em consonância com a teoria sociocultural, que o relato de experiência atua como um elemento mediador na construção do conhecimento, sugerindo que as escolhas léxico-gramaticais feitas pela narradora da história funcionam como um elo entre o já conhecido (a experiência particular) e o recém-informado (conteúdo curricular). Como podemos notar, existe aqui a necessidade de Isadora em relacionar o conteúdo proposto a uma experiência anterior. A partir da tradução da palavra e de sua correlação com o mundo real, a aluna pode entender o que estava se passando pedagogicamente em sala de aula; foi através da prática social que o conteúdo curricular pareceu fazer sentido. Esse entendimento dialoga com os princípios da LSF, que concebem a língua como um contínuo processo de retomada de referências para criação de novos sentidos. Ainda que Halliday e Matthiessen (2004)HALLIDAY, M. A. K.; MATTHIESSEN, C. M. I. M. An introduction to functional grammar. London: Arnold, 2004. enfoquem a perspectiva sistêmico-funcional voltada para a língua materna, podemos inferir que o panorama teórico proposto pelos autores também se aplica ao estudo de línguas estrangeiras.

O aspecto mediador dos relatos de experiências pessoais também se faz presente na interação transcrita no fragmento 2 a seguir, que foi retirada de uma aula do grupo C. No momento analisado, a professora explicava uma atividade de descrição das atividades rotineiras dos alunos. A partir da proposta de exercício, João relata sua experiência pessoal com foco em sua rotina.

Fragmento 2

Em salas de aula de aprendizagem de língua inglesa, são muito comuns as atividades em que os alunos precisam assumir uma identidade contextualmente fornecida e produzir textos (GOUVEIA, 2014GOUVEIA, C. Ler e escrever para aprender nas diferentes disciplinas: ensino de leitura e escrita de base genológica. 2014. Minicurso oferecido no Workshop de Systemics Across Languages (SAL): Contribuições da linguística sistêmico-funcional para o ensino de línguas e análise do discurso, Brasília, 2014.) a partir de então. Nesse caso, com base no cenário criado (falar sobre sua rotina), os alunos deveriam relatar suas atividades de acordo com os dias da semana e horários. De acordo com Halliday e Matthiessen (2004)HALLIDAY, M. A. K.; MATTHIESSEN, C. M. I. M. An introduction to functional grammar. London: Arnold, 2004., é possível, a partir da análise de textos dados, deduzir os contextos nos quais estão inseridos. No caso da sala de aula de língua inglesa investigada nesta pesquisa, uma definição anterior do contexto foi fornecida para que se desenvolvessem formatações textuais específicas que nele ocorreriam.

O aluno parece não acatar a definição prévia do contexto estabelecida pela professora e nega sua participação na atividade, optando por trazer para a sala de aula sua experiência. Utilizando-se de uma brincadeira, o aluno traça um paralelo entre o conteúdo curricular sobre rotinas em língua inglesa e sua experiência particular de mundo, tornando o contexto oferecido mais significativo para si. Aqui, o relato de seu conhecimento de mundo real, comparado ao imaginário de sala de aula, atua, de acordo com a teoria sociocultural como um andaime para que João construa o conhecimento da estrutura léxico-gramatical proposta, sugerindo que, ao interagir com os outros participantes da interação, João faz de seu relato uma via de mão dupla (NÓBREGA, 2003NÓBREGA, A. N. A. “Teacher, posso te contar uma coisa?” a conversa periférica e a sócio-construção do conhecimento na sala de aula de língua estrangeira. 2003. 175f. Dissertação (Mestrado em Letras) - Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2003., 2009NÓBREGA, A. N. A. Narrativas e avaliação no processo de construção do conhecimento pedagógico: abordagem sociocultural e sociossemiótica. 2009. 244f. Tese (Doutorado em Letras) - Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.), quando a experiência de mundo colabora para a construção do conhecimento curricular e esse, em retorno, serve como andaime para a construção da experiência particular do estudante.

O fragmento exposto a seguir traz uma ocorrência de relato de experiências pessoais produzido por uma aluna do Grupo B. Como veremos, o relato de Bel relaciona-se a fatos reais de seus contextos de vida.

Fragmento 3

No Fragmento 3, notamos que Bel se refere ao vocabulário da L2 para relatar uma experiência particular externa ao contexto de sala. Desta forma, as informações construídas durante a prática de sala de aula mantêm uma relação dinâmica com o contexto extraclasse, de forma que motivam fortemente um comportamento (ação) por parte da aluna. Assim como nos demais fragmentos, o terceiro mostra a tentativa de Bel de relacionar o conceito de inverno, e o respectivo léxico introduzido pela professora, a sua viagem a um país de língua inglesa. Dessa forma, compartilhando sua experiência pessoal vivida no contexto onde a língua ensinada é utilizada, a aluna constrói seu conhecimento do conteúdo curricular. A atitude de Bel ressalta a concepção de linguagem como realidade social e material, conforme a teoria sistêmico-funcional, assim como a função mediadora dos relatos no processo de socioconstrução do conhecimento. Ou seja, o caráter social da linguagem nos remete ao fato de que a aluna faz uso da prática discursiva para construir significados.

Por fim, o fragmento 4 diz respeito a uma interação ocorrida em uma aula do Grupo B, que estava trabalhando a noção de horas. As atividades get up, go to school, go home e play outside (levantar-se, ir à escola, voltar para casa e brincar ao ar livre) foram apresentadas e desenhadas no quadro em forma de linha do tempo relatando cronologicamente as atividades do personagem do livro didático adotado, Ben. Na hora em que Ben volta para casa (go home), a aluna Carol faz uma correlação entre o mundo imaginário do personagem e sua realidade.

Fragmento 4

Esse é mais um momento em que o aluno reporta às suas experiências, trazendo para sala de aula situações, atributos, condutas, acontecimentos, etc., que dizem respeito à sua experiência de mundo. Uma forma clara de se demonstrar isso seria considerar a sala de aula como um contexto onde cada um dos participantes desse encontro social traz seu contexto particular de vida. A partir de então, há possibilidade de criação de contexto situacional comum, com base em entendimentos compartilhados, e formula-se a ideia de múltiplos contextos interagindo entre si, trocando informações e construindo conjuntamente o macro contexto sociocultural. Ocorre, portanto, uma cooperação social, já que cada troca realizada, cada experiência reportada, contribui para a concretização da prática pedagógica, ou seja, o que é ser um aluno ou professor em um determinado meio social.

A análise dos dados sugeriu, também, que a professora participante encontrou-se muitas vezes engessada pelas expectativas institucionais habitualmente verificadas nos cursos livres de idiomas, isto é, a necessidade de se falar em L2. Por isso, não houve, em geral, a possibilidade de se explorar com mais profundidade esses relatos de experiências pessoais no momento em que surgiram espontaneamente e mediaram a construção do conhecimento, como pretende este trabalho, ancorado na teoria sociocultural e numa perspectiva sociossemiótica de linguagem. Assim, a posição da professora nos diálogos trazidos nos fragmentos investigados revela a intenção de voltar o quanto antes para o uso da L2 e retomar a agenda pedagógica. É importante ressaltar, no entanto, que isso não se apresenta como um problema, mas um aspecto relacionado ao que foi mencionado acima: expectativa institucional, metodologia de ensino, necessidade de uso de L2.

O caráter multifuncional dos relatos de experiências pessoais

A análise dos fragmentos nos leva a propor que os quatro relatos produzidos em sala de aula são manifestações pessoais espontâneas de cada participante, ou seja, podem ser entendidos como uma forma de partilhar informações pessoais para se estabelecer um conhecimento comum entre os participantes da sala de aula. Nesse sentido, a linguagem, por meio dos relatos, tem em seu uso, em consonância com a teoria sociocultural, a função de criação de conhecimentos compartilhados. Podemos dizer que se cria, por meio dos relatos de experiências pessoais, um novo entendimento acerca da informação oferecida no contexto pedagógico, onde o uso da linguagem na socioconstrução de conhecimentos faz-se de modo predominantemente colaborativo.

Por conseguinte, temos as experiências dos participantes e seus respectivos relatos como potenciais recursos mediadores no ensino/aprendizagem como um todo e, especificamente nesta pesquisa, no que se refere à língua inglesa para crianças e adolescentes. Ao relatarem situações vivenciadas anteriormente, os narradores trazem para o contexto da aula seus conhecimentos de mundo, tornando-os vitais para construção do conhecimento. Como aponta Góes (1997GÓES, M. C. As relações intersubjetivas na construção de conhecimentos. In: GÓES, M. C.; SMOLKA, A. L. (Org.). A significação nos espaços educacionais: a interação social e subjetivação. Campinas, Papirus, 1997. p. 11-28., p.17, grifo do autor):

Durante as atividades em sala, as crianças focalizam as relações interpessoais em ocorrência e também orientam a atenção para outras vivências, não restritas ao ‘aqui-e-agora’. Há muitos momentos em que elas se reportam a suas experiências, trazendo como tópico de elaboração atributos pessoais e de conduta, ou acontecimentos que envolvem a si e outras pessoas. Mesmo diante de situações em que se elabora sobre objetos instrucionais, a criança busca inserir suas experiências anteriores, recorrendo a uma abordagem eminentemente narrativa, apoiada na memória.

Agindo como andaimes (BRUNER, 1976 apud MERCER, 1994MERCER, N. The guided construction of knowledge: talk amongst teachers and learners. Clevedon: Multilingual Matters, 1994.) na construção social do conhecimento, as experiências são relatadas aparentemente como forma de se construir o futuro a partir do passado, ou seja, de se construir o novo conhecimento a partir do já vivenciado anteriormente. Alinhadas a Mercer (2000)MERCER, N. Words and minds: how we use language to think together. London: Routledge, 2000., também propomos que para construirmos um relacionamento entre o que foi e o que será, usamos os recursos de experiências passadas para criarmos coletivamente um novo conhecimento e entendimento. Portanto, o relato parece ser uma “busca” por experiências pessoais que possam agir como colaboradoras na construção de novos conhecimentos e entendimentos pedagógicos.

Por meio da produção de relatos, entendidos aqui como alicerces contextuais no ensino/aprendizagem, os narradores parecem buscar uma (re)contextualização do saber trabalhado em sala de aula, possibilitando uma aprendizagem mais significativa para todos. É na possível (re)contextualização do conteúdo pedagógico que sugerimos que os relatos atuam como um elo entre diferentes saberes e conhecimentos de mundo, possibilitando aos participantes uma construção de conhecimento situada em suas vivências.

No que tange à análise dos fragmentos como um todo, percebe-se que os papéis desempenhados pelos participantes (professora-pesquisadora e alunos) e sala de aula estão inseridos num contexto social. Afinal, como afirma Van lier (1994)VAN LIER, T. Some factors of a theory of practice. TESOL Journal, Virginia, n.4, 1994. p.6-10., esse espaço pedagógico não existe no vácuo; os alunos e professores que lá estão vêm de algum lugar e vão para algum lugar. A sala de aula está situada numa instituição, numa sociedade, numa cultura; o que acontece muitas vezes nesse ambiente é, assim, determinado pelo contexto externo. Por isso, neste trabalho, consideramos essencial todo o contexto social e institucional no qual se encontram os participantes.

Considerações Finais

Entender uma sala de aula como um evento social pressupõe uma observação contínua de todas as práticas sociais nela existentes. Os relatos de experiências pessoais são uma grande fonte de (re)conhecimento por parte de alunos e professores do ambiente que estão atuando enquanto agentes sociais. Apesar de termos tratado neste artigo apenas dos relatos espontâneos produzidos pelos alunos, ressaltamos que as vivências particulares de professores também são comumente levadas à sala de aula como andaimes para a socioconstrução de conhecimento de L2. Nesse sentido, sugerimos que, mesmo sendo um meio de construção de conceitos e conhecimentos, a sala de aula é principalmente um evento social, onde participantes trocam não apenas conceitos pedagógicos mas, acima de tudo, comportamentos, experiências, crenças, visões de mundo, etc.

Os relatos de experiências pessoais podem ser entendidos como um espelho das expectativas e conhecimento de mundo de cada participante da interação pedagógica. Tais discursos, comumente ignorados e erroneamente confundidos com falta de disciplina, digressão e/ou desatenção, são importantes representações individuais no processo de ensino e aprendizagem, atuando como uma ponte entre o contexto pedagógico e o mundo externo que o cerca. Desta forma, devemos, como educadores, buscar escutar o que está sendo dito no contexto de sala de aula, propiciando uma experiência de aprendizagem mais significativa. Podemos argumentar que os diálogos em que emergem os relatos de experiências pessoais medeiam o entendimento dos alunos acerca do conteúdo pedagógico. Isto é, por meio dos diálogos que trazem histórias sobre situações cotidianas, os alunos constroem o conteúdo especifico da língua inglesa. Desse modo, a sala de aula de língua estrangeira apresenta uma prática discursiva própria aos participantes da interação, tendo um propósito comum que será socialmente construído: a aprendizagem de outra língua. Os relatos de experiências pessoais possuem uma função específica na construção do conhecimento em sala de aula de língua estrangeira, atuando como potenciais mediadores no processo de socioconstrução de uma segunda língua.

A exposição de histórias ou comentários apoiados nas experiências particulares dos participantes em sala de aula parece buscar um espaço para o pronunciamento daqueles cuja participação é solicitada, de maneira geral, apenas em situações instrucionais do contexto pedagógico. Por fim realçamos que o ensino-aprendizagem de língua inglesa é visto, neste estudo, como um processo dialógico, segundo o qual alunos e professores estão inseridos em um contexto social onde a linguagem é uma ferramenta cultural fundamental. Sustentamos, assim, que o aprendizado não pode ser compreendido sem levar em conta a natureza social e comunicativa da vida humana.

Anexo


Convenções de transcrição

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  • 1
    Algumas das reflexões propostas neste artigo foram apresentadas de forma resumida em trabalho publicado nos anais do III Congresso Internacional Linguagem e Interação, realizado em São Leopoldo/RS, de 17 a 19 de junho de 2015.
  • 2
    Entendemos, neste estudo, a construção como um processo social e colaborativo, também frequentemente designado como (co)construção.
  • 3
    Assim como Leffa (2012)LEFFA, V. J. Ensino de línguas: passado, presente e futuro. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 20, n. 2, p. 389-411, jul./dez. 2012., não vemos os termos “segunda língua”, “língua estrangeira” e “língua adicional” como sinônimos, mas, para evitar repetições no texto, usamos a sigla L2 como um termo abrangente para cobrir as situações discutidas no âmbito deste trabalho. Para a língua materna usamos a sigla L1.
  • 4
    Conceito introduzido por Brunner (1976 apud MERCER, 1994MERCER, N. The guided construction of knowledge: talk amongst teachers and learners. Clevedon: Multilingual Matters, 1994.) como scaffolding. Refere-se ao suporte dado pelo adulto/par mais competente e visa à realização pela criança de uma tarefa que inicialmente sozinha não seria capaz de executar.
  • 5
    Do original: “Talk with the teacher, and with other students, is perhaps the most important means for ensuring that a student’s engagement in a series of activities contributes to their developing understanding of science, mathematics or any other subject as a whole.” (MERCER; LITTLETON, 2007MERCER, N.; LITTLETON, K. Dialogue and the development of children’s thinking: a sociocultural approach. London: Routledge, 2007., p.102).
  • 6
    As convenções encontram-se no Anexo deste artigo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2016

Histórico

  • Recebido
    Maio 2015
  • Aceito
    Out 2015
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