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A Pedra, a Informante e o Etnógrafo: ou sobre quando as expectativas das nossas idas a campo não se realizam

The Stone, The Informant and the Ethnographer: about when the expectations of our fieldwork are not realized

Resumo

O objetivo deste artigo é refletir sobre a relação pesquisador-pesquisado durante a prática da pesquisa etnográfica. Busca-se problematizar questões tais como as relações de intersubjetividade entre pesquisador e nativo, a agência do nativo durante a pesquisa de campo e a experiência de “ser afetado” (Favret-Saada 2005), que é passível de ser experimentada pelo pesquisador no decorrer do trabalho de campo. O ponto de partida da reflexão é um fato ocorrido comigo durante pesquisa de campo sobre um dos rituais das romarias de Juazeiro do Norte, Ceará, Brasil, conhecido como “visita ao Horto”. Como é relatado no texto e já explicitado no título, o fato em questão envolveu a mim (etnógrafo), umas das minhas principais informantes e uma pedra.

Palavras-chave
trabalho de campo; etnografia; romarias; devoção popular

Abstract

The objective of this paper is to reflect about the researcher-researched relationship during the practice of the ethnographic research. The purpose is to problematize issues such as the relationship of intersubjectivity between researcher and native, the native agency during the fieldwork and the experience of “being affected” (Favret-Saada 2005), which can be experienced by the researcher in the course of the fieldwork. The starting point is an experience of the fieldwork conducted during one of the pilgrimage rituals in Juazeiro do Norte, Ceará, Brazil, known as “visit to the Horto”. As reported in the text and explained at the title, this fact is around me (the ethnographer), one of my key informants and a stone.

Keywords
fieldwork; ethnography; pilgrimage; popular devotion

O objetivo deste artigo é refletir sobre a relação pesquisador-pesquisado durante a pesquisa antropológica. A partir desse escopo, procura-se pôr em evidência dois pontos que podem estar em jogo quando se realiza um trabalho de campo de caráter etnográfico: (1) as relações de intersubjetividade que se estabelecem entre pesquisador e nativo (pesquisado); (2) a capacidade de agência que o nativo apresenta ao longo da pesquisa de campo, que nem sempre é posta em evidência ou observada com a devida atenção.

O ponto de partida da reflexão é um fato ocorrido comigo durante investigação de doutorado sobre um dos rituais das romarias de Juazeiro do Norte, Ceará, Brasil, conhecido como “visita ao Horto”. Tendo realizado a pesquisa de campo em intervalos de tempo, alguns maiores e outros menores entre 2003 e 2006, o episódio específico ao qual me refiro ocorreu no ano de 2005. Trata-se de uma situação vivenciada por mim e uma informante. É, portanto, um material de campo que estou retomando para análise quase dez anos depois. No decorrer do artigo justificarei a relevância deste caso e o motivo por que o estou revendo agora. Nesta análise busco incorporar o meu “olhar de hoje” (em que se inclui minha experiência e maturação como antropólogo ao longo deste período) em confronto com o que registrei e fui capaz de absorver daquele acontecimento de 2005. Igualmente faço uso da leitura e reflexão de autores que contribuem para a compreensão das questões levantadas neste texto (Clifford 2002CLIFFORD, James. (2002), A Experiência Etnográfica: antropologia e literatura no Século XX. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2ª.; Favret-Saada 2005FAVRET-SAADA, Jeanne. (2005), “Ser Afetado”. Cadernos de Campo, v. 13, n.º 13: 155-161.; Whyte 2005WHYTE, William Foote. (2005),Sociedade de esquina. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.; Geertz 1989GEERTZ, Clifford. (1989), A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC., 2004_____________. (2004), O saber local: Novos ensaios em antropologia interpretativa. Petrópolis: Ed. Vozes, 4ª.; Goldman 2003GOLDMAN, Marcio. (2003), “Os tambores dos mortos e os tambores dos vivos. Etnografia, antropologia e política em Ilhéus, Bahia”. Revista de Antropologia (USP), v. 46, nº 2: 445-476.).

Sendo eu o observador, onde me posicionar?

No ano de 2005, eu acompanhava pela segunda vez em romaria a Juazeiro um grupo de romeiros de Pernambuco, liderado por Dona Geniza1 1 Dona Geniza é uma “fretante”. São chamadas de fretantes aquelas mulheres que organizam grupos para irem em romaria a Juazeiro do Norte. As fretantes são responsáveis por formar os grupos de romeiros, providenciarem transporte e hospedagem em Juazeiro, fazer o papel de chefe do grupo (como, por exemplo, mediar os conflitos), dar a última palavra sobre quem vai ou não ser integrado ao grupo. Os grupos usualmente são formados por parentes, contraparentes, amigos, vizinhos. Como só acompanhei grupos de cidades pequenas do interior do Nordeste – que, na realidade, são a grande maioria de grupos de romeiros –, todos os membros já se conheciam e tinham algum tipo de vínculo. Isso era particularmente verdade para o grupo de Dona Geniza. . O grupo era originário de uma cidade com pouco mais de 25 mil habitantes localizada no agreste meridional pernambucano, distante pouco mais de 400 quilômetros de Juazeiro. Havia iniciado uma pesquisa sobre os romeiros devotos do Padre Cícero Romão Batista (santo popular do Nordeste do Brasil)2 2 Padre Cícero Romão Batista foi um sacerdote que nasceu e viveu na região do Cariri, no estado do Ceará, Nordeste do Brasil, entre 1844 e 1934. Entre o final do século XIX e o início do século XX, converteu-se numa importante liderança religiosa, estimado principalmente pela população nordestina mais pobre. A fama de santo que já havia adquirido em vida se ampliou após sua morte. Pode ser considerado um dos mais importantes santos de devoção popular brasileiro, sendo que essa devoção é particularmente disseminada na região Nordeste do Brasil. Destacam-se na devoção a Padre Cícero as romarias feitas no Juazeiro do Norte, cidade do Cariri onde ele residiu a maior parte da sua vida, ajudando a desenvolver, e onde está sepultado. pouco menos de três anos antes. Em 2004, entrara em contato com Dona Geniza, explicando-lhe minhas intenções e, subsequentemente, me integrando ao seu grupo de romeiros. As romarias a Juazeiro junto ao grupo de Dona Geniza foram uma parte importante da minha pesquisa, sendo ela uma das principais informantes a me guiar pelo universo pesquisado. Devo à Dona Geniza uma parte relevante do que obtive em termos de dados e conhecimentos sobre Juazeiro, Padre Cícero e seus romeiros. Estar com ela muitas vezes me provocava a lembrança de Doc, o icônico informante/amigo que William Foote Whyte nos apresentou em sua obra Sociedade de Esquina (2005WHYTE, William Foote. (2005),Sociedade de esquina. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.).

Retomo a figura de Doc porque considero que o papel atribuído a ele por Foote Whyte é uma das imagens clássicas do fazer etnográfico que melhor captam o tipo de dinâmica que atravessou minha relação com Dona Geniza quando estávamos juntos, em campo. Julgo que Foote Whyte, em Sociedade de Esquina, já sinaliza para a capacidade de agência do informante no decorrer da pesquisa de campo3 3 Sobre a relação de Foote Whyte com seu campo de pesquisa e com seu informante Doc, indico a leitura de “Anexo A: sobre a evolução de Sociedade de Esquina”, que consta no referido livro (Whyte 2005:283-363). Em um dos trechos, escreve Foote Whyte (2005:302): “Minha relação com Doc mudou rapidamente nesse primeiro período em Cornerville. No início, ele era apenas um informante-chave – e também meu padrinho. À medida que passávamos o tempo juntos, parei de tratá-lo como um informante passivo. Discutia bastante francamente com ele o que eu tentava fazer, que problemas me intrigavam, e assim por diante. Muito de nosso tempo era gasto nessa discussão de idéias e observações, de modo que Doc se tornou, num sentido muito real, um colaborador da pesquisa”. . Essa capacidade é precisamente um dos pontos que busco realçar neste artigo e diz muito sobre minha relação com Dona Geniza e com alguns dos(as) outros(as) informantes que trabalharam comigo, o que foi ficando mais claro para mim à medida que fui revendo, após quase dez anos, as anotações e o material de campo que produzi para aquela pesquisa. Procurei reler o material buscando ater-me ao que registrei, indagando-me por que anotei daquela forma e perguntando-me sobre o que percebia agora e sobre aquilo de que talvez não tenha me dado conta no momento em que estava realizando a pesquisa de campo.

Revendo o material, encontrei o relato do fato de que trato neste artigo, referente a uma situação que havia me incomodado na ocasião. À medida que fui relendo, recordando e refletindo sobre aquilo, um aspecto chamou-me a atenção: enquanto realizava aquela pesquisa empírica, buscava inúmeras vezes me posicionar (nem sempre conscientemente) numa zona que me proporcionasse maior conforto na condição de etnógrafo em campo e que estivesse em maior sintonia com o que eu julgava ser o real motivo de estar naquele campo.

Considero que esta busca por tal zona de conforto diz respeito ao próprio processo de formação de um antropólogo ou, ao menos, àquele ao qual fui submetido. O usual é que aprendamos a como fazer pesquisa etnográfica primeiramente com os clássicos de nossa disciplina, numa perspectiva moderna, começando com Malinowski e passando por Franz Boas, Evans-Pritchard, Clifford Geertz, entre outros. O resultado dessa iniciação é que muitas vezes um dos primeiros contatos de um aluno de Ciências Sociais com o “como se faz etnografia” se dá através de Argonautas do Pacífico Ocidental, de Bronislaw Malinowski (1976)MALINOWSKI, Bronislaw. (1976), Argonautas do Pacífico Ocidental: Um relato do empreendimento e da aventura dos nativos nos arquipélagos da Nova Guiné Melanésia. São Paulo: Ed. Abril Cultural.. A imagem de um barco afastando-se no mar e você se vendo sozinho em campo (numa ilha), apenas com seu equipamento e próximo a uma aldeia nativa (Malinowski 1976:19MALINOWSKI, Bronislaw. (1976), Argonautas do Pacífico Ocidental: Um relato do empreendimento e da aventura dos nativos nos arquipélagos da Nova Guiné Melanésia. São Paulo: Ed. Abril Cultural.), torna-se uma daquelas imagens indeléveis, que carregamos conosco por um bom tempo e por muitos lugares, muitas vezes sem nos darmos conta.

James Clifford, analisando o frontispício de Argonautas do Pacífico Ocidental (“Um ato cerimonial do Kula”), coloca que, “como toda fotografia, [ela] afirma uma presença – a da cena diante das lentes; e sugere também outra presença – a do etnógrafo elaborando ativamente esse fragmento da realidade trobriandesa” (Clifford 2002:18CLIFFORD, James. (2002), A Experiência Etnográfica: antropologia e literatura no Século XX. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2ª.). Em sua análise, Clifford também ressalta o fato de que um dos participantes do Kula olha em direção à câmera, redirecionando a atenção para o ponto de vista do observador (o etnógrafo e sua câmera). Quando me referi à busca de uma zona de conforto, penso que aquele era o ponto que eu procurava. Ao olhar em retrospectiva para aquele momento de minha trajetória como pesquisador em campo em Juazeiro, percebo que não foram poucas as vezes em que me senti desejoso e inclinado a assumir a posição de um observador. Dou-me conta de que, mesmo participando, não deixei em nenhum momento essa condição. Sem que eu tivesse percebido, desejava encontrar um ponto fixo de onde pudesse observar.

O problema é que, quando se vai a campo disposto a realizar algo ao menos próximo do que podemos chamar de “observação participante”, as coisas simplesmente não ocorrem assim. Por maior que seja o esforço, nada garante que se encontrará um ponto suficientemente seguro em que se possa pessoalmente posicionar ou colocar qualquer tipo de equipamento. Quando menos se espera pode surgir algo, alguma situação que o obrigue a sair da posição escolhida. O fato é que no campo as coisas se movem, tudo é passível de se mover, seja o tempo, sejam as informações, os fatos, as pessoas, os informantes, os nativos, as ocasiões ou situações.

Há outro legado importante do trabalho de Malinowski que igualmente faz parte do processo de formação dos etnógrafos. Como salienta Marcio Goldman (2003:458)GOLDMAN, Marcio. (2003), “Os tambores dos mortos e os tambores dos vivos. Etnografia, antropologia e política em Ilhéus, Bahia”. Revista de Antropologia (USP), v. 46, nº 2: 445-476., o autor de Argonautas do Pacífico Ocidental converteu a antiga “antropologia de varanda” em trabalho de campo efetivo, e nesse seu movimento já estava contido o esforço em deixar os nativos falarem, através de ações e discursos. Fazer pesquisa de campo envolve, em tese e como pressuposto, fazer o movimento de sair da “varanda” e buscar posições bem mais próximas em relação aos nativos, estando atento ao que eles estão realmente dizendo. Essa era outra predisposição com a qual fui pesquisar Juazeiro, suas romarias, seus romeiros. Foi assim que iniciei meu contato com Dona Geniza. Desejava um ponto fixo para observar, mas igualmente desejava escutar os romeiros e as romeiras. Neste ponto, as coisas passam a não ser tão simples, pois nas relações sociais a dinâmica é parte do jogo interativo. É difícil a fixidez nesse tipo de jogo.

Eu, minha informante e a pedra: um desconforto

Dona Geniza foi alguém realmente importante para minha pesquisa; entre uma romaria e outra se desenvolveu entre nós uma significativa amizade. Generosa, me levava para vários lugares de Juazeiro durante os dias das peregrinações de novembro (que era aquela que seu grupo frequentava). Sabendo do meu interesse enquanto pesquisador, ela me fazia acompanhá-la em seus passeios e visitas devocionais pela cidade. Durante suas práticas devocionais, ia me explicando as coisas, contando histórias, fatos sobre o Juazeiro e o Padre Cícero. Dona Geniza interagia com uma destreza particular com a cidade, seus mais diferentes lugares e as pessoas que lá estavam. Indo rezar no túmulo do Padre Cícero ou comprando algo na feira, visitando o comércio ou indo a uma missa na Praça da Matriz, seu comportamento demonstrava que era sabedora de muitas coisas, de muitas histórias sobre Padre Cícero, Juazeiro e seus lugares. Em nossas andanças pela cidade buscava com frequência compartilhar comigo aquilo que sabia. E, quando não sabia, abordava um romeiro transeunte, explicava que eu era um pesquisador e me colocava para conversar com ele.

Foi durante um desses momentos que ocorreu o fato que destaco neste artigo, que diz respeito a mim, à Dona Geniza e a uma pedra. Esse fato aconteceu quando o grupo de romeiros de Dona Geniza foi visitar o Horto (pequeno alto de serra localizado bem ao lado da cidade e que é conhecido por muitos brasileiros como lugar de devoção ao Padre Cícero, pois ali está a grande e conhecida estátua do sacerdote, muito difundida pelos meios de comunicação). É no Horto que encontramos algumas das mais marcantes práticas devocionais dos romeiros do Padre Cícero. É igualmente ali onde acontecem muitas das ações devocionais mais tradicionais e antigas cultivadas pelos romeiros. Uma dessas ações eu havia observado em outras oportunidades e sempre me chamara muito a atenção: tratava-se do costume de certos romeiros que subiam a pé para o Horto a fim de pegar uma pedra, colocando-a na cabeça e carregando-a assim até o fim do caminho. É comum que, no final daquele ritual, o romeiro deposite sua pedra num cruzeiro localizado na parte alta e plana do Horto.

Os relatos que eu tinha de romeiros e de habitantes do Juazeiro eram de que aquela era um prática muito comum desde as primeiras romarias. Fui informado de que, ao longo do tempo, havia diminuído a prática, cultivada agora por alguns poucos. De acordo com informantes de Juazeiro, essa prática envolvia certo tipo de sacrifício e sacralidade e, eventualmente, podia ser vista – como pude observar – entre aqueles romeiros que subiam a pé para o Horto nas primeiras horas do dia (Braga 2014BRAGA, Antonio M. C. (2014), “A Subida do Horto: Ritual e Topografia Religiosa nas Romarias de Juazeiro do Norte, Ceará, Brasil”. Debates do NER, ano 15, nº 25: 197-214.)4 4 A informação de que havia o ritual da pedra e de que ele tinha um sentido religioso de penitência e sacrifício eu escutei pela primeira vez de Dona Ilza (entrevista Dona Ilza, setembro de 2004), outra informante minha amiga. Ela também era fretante, mas da cidade de Murici, Alagoas. O primeiro grupo que acompanhei em romaria foi o de Dona Ilza. Ela havia comentado sobre o ritual numa de nossas conversas, e numa entrevista me contou que havia subido o Horto com uma pedra quando da sua primeira visita a Juazeiro: “Nos anos sessenta, que eu vim pessoalmente no caminhão, passando fome, passando sede, não tinha pista, água era difícil que só, quando eu cheguei aqui, foi tudo como eu sonhei. Mesmo assim foi minha subida no Horto levando a pedra, como eu já lhe contei [...[. Justamente foi em sessenta. A primeira vez... Eu vim assim disposto a fazer penitência” (entrevista Dona Ilza, março de 2005). . Caminhando com Dona Geniza para o Horto, resolvi indagá-la sobre aquela prática. Considerando a desenvoltura com que me explicava as coisas de Juazeiro, Padre Cícero e suas romarias, imaginei que, com ela, poderia tirar algumas dúvidas, obter algumas informações relevantes sobre isso. Mal terminei de perguntar, Dona Geniza inclinou-se, pegou uma pedra, colocou-a sobre a cabeça e começou a subir comigo a pequena ladeira já próxima ao topo do Horto. Conversávamos, dávamos risada, falávamos de diferentes coisas. Eu, Dona Geniza e uma pedra em sua cabeça. E aquilo – a aparente naturalidade daquela pedra em sua cabeça – me desconcertou completamente. Foi perturbador, fiquei um pouco incomodado, fora de minha zona de conforto como etnógrafo. Em nossa formação, aprendemos que a pesquisa de campo é o momento próprio para coleta dos dados etnográficos e devemos focar nisso. Mas também sabemos que não vamos para campo com a “mochila vazia”. Levamos conosco tanto algumas técnicas de pesquisa quanto algumas perspectivas teóricas, hipóteses, pressuposições. Uma das pressuposições com a qual eu fora a campo era a de que a prática de subir o Horto com uma pedra na cabeça era uma das mais antigas e sagradas das romarias, uma das manifestações devocionais mais carregadas de sentido e simbolismo sagrado5 5 Na elaboração deste artigo busquei refletir sobre a origem daquela minha perspectiva, daquela minha pressuposição de que o Horto e aquele ritual eram profundamente sagrados e carregados de sentidos. Neste processo reflexivo dei-me conta de que as leituras da tese de doutorado de Francisco Salatiel de Alencar Barbosa (2007) – defendida em 2002 – e do trabalho de mestrado de Maria de Fátima Pinho (2002), assim como as conversas que travei com esses pesquisadores durante o desenvolvimento da minha pesquisa, foram as que mais influenciaram nesta minha formulação do Horto como sendo um lugar sagrado. Em suma, penso que fui a campo já levando essa perspectiva. . Olhando em retrospectiva, vejo que tinha levado comigo leituras como Ensaio Sobre a Natureza e Função do Sacrifício, de Hubert e Mauss (2001)HUBERT, Henri e MAUSS, Marcel. (2001), “Ensaio Sobre a Natureza e Função do Sacrifício”. In: M. Mauss. Ensaios de Sociologia. São Paulo: Editora Perspectiva, 2ª., assim como os trabalhos de Francisco Salatiel Barbosa (2007)BARBOSA, Francisco Salatiel de Alencar. (2007), O Joaseiro Celeste: tempo e paisagem na devoção ao Pe. Cícero. São Paulo: CNPq/PRONEX, Attar Editorial. e Maria de Fátima Pinho (2002)PINHO, Maria de Fátima de Morais. (2002), Representações Sociais do Pe. Cícero para os moradores da Colina do Horto. Crato, CE: Dissertação de Mestrado em Desenvolvimento Regional, URCA., que tratam especificamente do Horto. Influenciado por essas leituras e posicionando-as frente ao que alguns informantes locais tinham me dito, parecia-me evidente que estava diante de uma oportunidade de pesquisar sobre rituais, sobre o sagrado, dialogando e problematizando questões como essas, que estão presentes na tradição antropológica desde Émile Durkheim (1989)DURKHEIM, Émile. (1989), As Formas Elementares da Vida Religiosa. São Paulo: Editora Paulus. e seus discípulos, passando também por autores como Mircea Eliade (2001)ELIADE, Mircea. (2001), O Sagrado e o Profano: a essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes Editora..

Porém, conforme as ações de Dona Geniza foram se sucedendo, minha “mochila” foi ficando vazia. Na realidade, eu estava carregando comigo – ainda que de forma um tanto quanto inconsciente – um conjunto de pressuposições sobre o que eu imaginava ser o caráter possivelmente sagrado do ritual da pedra. A questão do sagrado estava sendo colocada por mim. Eu estava procurando numa apropriação romeira de determinadas pedras um problema que a própria Dona Geniza não havia colocado para si. Ou seja, a questão do sagrado era algo colocado pelo pesquisador (eu), e não pela nativa (Dona Geniza). O resultado foi que a naturalidade e falta de cerimônia com que Dona Geniza pegou a pedra e colocou na sua cabeça de certa forma obrigaram a me desfazer dos meus apriorismos; daí o sentimento de desconforto e perplexidade que tive naquele momento. Esse sentimento, portanto, relaciona-se muito mais às expectativas que eu havia levado a campo. Em suma, era eu que gostaria de ver aquelas pedras como algo sagrado, ou sendo convertidas em algo sagrado.

Dona Geniza havia me colocado numa zona de desconforto. Releio o caso e dou-me conta de que meu incômodo passava pelo fato de que fui deslocado do que pressupunha ser meu ponto fixo de observador. Explico-me melhor: não havia em nenhum momento comentado com Dona Geniza que estava pesquisando um ritual sagrado. Para ser sincero, este não era o tipo de discussão que eu travava com os romeiros. Não ficava perguntando ou discutindo sobre se isso ou aquilo é ou não sagrado. Mas o fato é que o tema do sagrado e do profano (Durkheim 1989DURKHEIM, Émile. (1989), As Formas Elementares da Vida Religiosa. São Paulo: Editora Paulus.) era uma questão que me interessava e que foi levada a campo. Esse era um dos temas que direcionavam tanto parte de meus interesses quanto parte de minhas observações. Segundos antes de Dona Geniza pegar aquela pedra no chão, perguntei sobre o “ritual antigo da pedra na cabeça”, de uma maneira que parecesse desinteressada, mas eu desejava mesmo obter algumas informações sobre aquele ritual que pressupunha ser algo sagrado. Tinha a expectativa de que ela discorresse sobre as histórias antigas dos romeiros, de como eles faziam pedidos ao Padrinho depois de subirem o caminho do Horto com uma pedra na cabeça, de como aquele sacrifício era importante. Porém, o comportamento e as palavras de Dona Geniza foram numa outra direção, a qual era diferente das minhas expectativas como pesquisador-observador.

Qual era meu lugar no campo?

Cerca de dez anos atrás, naquele momento de minha trajetória acadêmica, estava interessado nas questões sobre rituais e o sagrado, por isso meu interesse pelas romarias. Tentava seguir os rastros teóricos de Clifford Geertz, “procurando, e depois analisando, as formas simbólicas – palavras, imagens, instituições, comportamentos – em cujos termos as pessoas realmente se representam para si mesmas e para os outros” (Geertz 2004:90_____________. (2004), O saber local: Novos ensaios em antropologia interpretativa. Petrópolis: Ed. Vozes, 4ª.). Uma das perspectivas teóricas que me guiavam durante a pesquisa de campo era a de que, através das suas ações, os indivíduos – naquele caso os romeiros – estariam construindo e estabelecendo para si e para os outros significados, sentidos, crenças, dúvidas e motivações compartilhadas que fazem com que o homem seja “um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu” (Geertz 1989:4GEERTZ, Clifford. (1989), A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC.). Nesse sentido, eu já tinha uma intenção ao buscar me posicionar como um observador quando indaguei Dona Geniza sobre o ritual da pedra na cabeça – sem me dar completamente conta ou ver nisso um problema. Desejava, através daquele objeto tão prosaico, aparentemente tão vulgar e comum na sua condição inicial (afinal, era uma pedra jogada no chão), puxar “o fio da meada” e começar a fazer uma interpretação mais consistente dos textos culturais que diziam respeito aos romeiros, sua fé e devoção. Minha questão era como aquelas pedras eram convertidas em objetos sagrados a partir do ritual romeiro de carregá-las na cabeça até o cruzeiro do Horto6 6 Como observei na nota 4, eu havia escutado de Dona Ilza, minha informante de Murici (Alagoas), que havia um ritual antigo de subir o Horto carregando pedras na cabeça. Friso que a primeira romaria que fiz acompanhando romeiros foi com o grupo de Dona Ilza. Aquela narrativa me fez lembrar o Ensaio sobre a natureza e função do Sacrifício, de Hubert e Mauss (2001). A partir dessa correlação inseri o ritual da pedra dentro da discussão do sagrado e profano com base na perspectiva da Escola Sociológica Francesa. Penso que esses são – junto com os diálogos com Barbosa (2007) e Pinho (2002) – os pontos que mais me influenciaram a levar a questão do sagrado e profano para aquela minha visita ao Horto com Dona Geniza. . O pressuposto, bastante pertinente para mim naquele momento, era o de que os romeiros, ao recolherem aquelas pedras ao longo do caminho e introduzi-las naquele ritual, incorporavam-nas ao seu sistema cultural religioso. Logo, eu poderia tomá-las como símbolos plenos de significados e, subsequentemente, ter uma melhor posição para observar os textos culturais que os romeiros construíam dentro da devoção ao Pe. Cícero. Afinal, se, como propõe Geertz, uma cruz, um crescente ou uma serpente são símbolos que “armazenam significados” (Geertz 1989:93GEERTZ, Clifford. (1989), A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC.), o mesmo poderíamos dizer daquelas pedras, naquele ritual, dentro daquele contexto romeiro.

O fato é que naquele momento, enquanto etnógrafo, assumi uma posição de leitor de primeira hora de Geertz. Estava imbuído da ideia de que “a cultura de um povo é um conjunto de textos, eles mesmos conjuntos, que o antropólogo tenta ler por sobre os ombros daquele a quem eles pertencem” (Geertz 1989:212GEERTZ, Clifford. (1989), A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC.). O problema é que eu não esperava aquele comportamento de Dona Geniza. Na verdade, estava esperando ingenuamente começar a “ler por sobre os ombros” de Dona Geniza (e, com a ajuda dela, iniciar minha “interpretação das interpretações” dos romeiros). Porém, levando em conta uma leitura mais acurada de Geertz, minha atitude era bem mais a de quem está “na busca das tartarugas demasiado profundas”, em que “está sempre presente o perigo de que a análise cultural perca contato com as superfícies duras da vida” (Geertz 1989:20GEERTZ, Clifford. (1989), A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC.)7 7 Geertz escreve em A Interpretação das Culturas: “Há uma história indiana – pelo menos eu a ouvi como indiana – sobre um inglês a quem contaram que o mundo repousava sobre uma plataforma apoiada nas costas de um elefante, o qual, por sua vez, apoiava-se nas costas de uma tartaruga, e que indagou (talvez ele fosse um etnógrafo; é a forma como eles se comportam), e onde se apóia a tartaruga? Em outra tartaruga. E essa tartaruga? ‘Ah, Sahib; depois dessa são só tartarugas até o fim’” (Geertz 1989:20). O antropólogo Vagner Gonçalves da Silva (2000) sugere que essa história apresentada por Geertz pode ser lida como “uma parábola irônica da postura do etnógrafo em campo que, ao colocar perguntas atrás de perguntas, pretende atingir as ‘tartarugas profundas’ que sustentam a visão de mundo de seus ‘informantes’” (Silva 2000:54). .

Não imaginava que ela fizesse aquele gesto displicente e sem nenhuma cerimônia de pegar uma pedra qualquer no chão e continuar falando de coisas muito prosaicas. O fato é que de um segundo para o outro, numa perplexidade disfarçada, fui tomado pelo sentimento de que os textos que o ritual da pedra poderia revelar simplesmente pareciam não ser mais acessíveis através daquela informante privilegiada. Meus pré-interesses (as questões do ritual, do sagrado, do sacrifício) pareciam não fazer mais sentido. Em outras palavras, a aparente displicência de Dona Geniza em relação àquela pedra que catou no chão fez com que me “deslocasse” do lugar que havia assumido enquanto etnógrafo em trabalho de campo. Consequentemente, isso embaralhou minhas possibilidades e recursos interpretativos em relação àqueles fatos, coisas e acontecimentos.

Olhando em retrospectiva e com a distância necessária, percebo que havia deixado de lado uma questão fundamental relativa à posição que temos que assumir no campo: não podemos perder de vista que o nativo (naquele caso, os romeiros) não é somente aquele que faz a “primeira interpretação”, conforme postula uma antropologia hermenêutica. É ele também que, em boa medida, primeiramente opera os seus próprios atos e as direções de suas interações. Isso é particularmente relevante quanto estamos tratando de um campo em que ele é efetivamente o principal agente, e nós, antropólogos, buscamos nos posicionar como observadores – um observador que, evidentemente, não é neutro e que age e interage, mas mesmo assim alguém que busca ser um observador. Portanto, não podemos esquecer que é o nativo (o romeiro) que em sua ação (religiosa) tem a primazia em orientar suas ações e seus significados. Ao retomar aquele acontecimento com uma distância crítica e rever ali o meu lugar, passo a considerar que um etnógrafo – na medida em que, por princípio, se coloca como um observador –, num primeiro momento, deve se posicionar à mercê dos movimentos, das ações operadas pelos nativos. E aqui, num ato de justiça a Geertz (1989)GEERTZ, Clifford. (1989), A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC., devemos reconhecer que o autor já nos apresenta essa ideia em “Um Jogo Absorvente: Notas sobre a Briga de Galos Balinesa”, o que está posto, aliás, no próprio título deste seu escrito, considerando que a palavra “jogo” sugere imagens de ações e movimentos carregados de intenções. Em suma, como observa Sherry Ortner (2011)ORTNER, Sherry B. (2011), “Teoria na antropologia desde os anos 60”. Mana, v. 17, nº 12: 419-466., ainda que Geertz não tenha desenvolvido uma teoria da prática como tal, ele posicionou o ator social, enquanto operador de sua cultura, no centro do seu modelo8 8 “Geertz não desenvolveu uma teoria da ação ou da prática como tal. Entretanto, ele posicionou firmemente o ator no centro de seu modelo, e muito do trabalho posterior centrado na prática constrói-se sobre uma base geertziana (ou geertzo-weberiana), como veremos” (Ortner 2011:423). .

Retomo este caso da pedra, que envolveu a mim e Dona Geniza, para problematizar outra questão de posicionamento, não só aquela do nativo como ator social, mas a do próprio etnógrafo em relação ao campo e a outros agentes. Entendo agora que parte do incômodo que senti diante daquele fato se devia à dificuldade que tinha em compreender minha posição como pesquisador dentro do campo. Como afirmei anteriormente, eu ainda insistia em procurar pontos fixos e estava pouco vigilante e aberto aos movimentos de minha informante, dos nativos. Mas é preciso ficar claro que esse posicionamento à mercê dos movimentos, das ações operadas pelos nativos, não significa simplesmente assumir uma atitude de estar mais atento a seus movimentos e suas ações. Para usar uma metáfora, não se trata de trocar uma máquina fotográfica por uma filmadora. Nós etnógrafos precisamos nos reconhecer como parte interessada das dinâmicas interativas que ocorrem no campo. As relações e interações entre nós e nossos informantes, com os nativos, entre os nativos, estão o tempo todo sujeitas a ser atravessadas por essas dinâmicas que nos deslocam dos (nossos) pontos fixos.

Dada essa posição integrada e interessada no campo, essas dinâmicas também atingem aquelas categorias que, para nós, cientistas sociais da religião, são relevantes. Sagrado e profano, rituais, devoção, sacrifício, estas são dimensões da realidade que estão lá, na medida em que podemos operá-las como objetos de análise e reflexão. Mas não são dados da realidade em si. São antes experiências que distinguimos, classificamos e nominamos, são construções colocadas e operadas por diferentes agentes em interação, com perspectivas e concepções distintas. No caso analisado, elas poderiam ser colocadas em cena pelos romeiros, pelo clero, por autoridades públicas, por diferentes grupos de interesse. Seguramente era colocada por mim, enquanto antropólogo. Eu tinha o interesse de colocá-las em cena, em busca de dados empíricos. É provável, contudo, que em alguns momentos eu tenha substantivado as categorias analíticas que levara para o campo, tomando-as como um dado do real e não como um instrumento teórico, de análise conceitual. Porém, mesmo com esse risco de substantivação dos conceitos e categorias analíticas, fazia isso dentro de um complexo jogo interativo que envolvia um campo rico e denso, o das romarias de Juazeiro. Neste ponto eu não estava à parte; estava dentro, interagia com aquele contexto.

Ser ou não ser afetado?

Em seu artigo Ser Afetado, a antropóloga Jeanne Favret-Saada (2005)FAVRET-SAADA, Jeanne. (2005), “Ser Afetado”. Cadernos de Campo, v. 13, n.º 13: 155-161. propõe uma reflexão sobre o lugar do afeto no trabalho de campo. Chama a atenção para o fato de que os antropólogos, no exercício do trabalho de campo, em geral negam seu lugar na experiência humana. Isso faz com que a antropologia se volte para os estudos dos aspectos intelectuais dessa experiência. Porém, nota a antropóloga:

[...] quando um etnógrafo lembra-se do que houve de único em sua estada no campo, ele fala sempre de situações em que não estava em condições de praticar essa comunicação pobre (que são aquelas que o pesquisador produz através da comunicação voluntária e intencional), pois estava invadido por uma situação e/ou por seus próprios afetos (Favret-Saada 2005:160FAVRET-SAADA, Jeanne. (2005), “Ser Afetado”. Cadernos de Campo, v. 13, n.º 13: 155-161.).

Favret-Saada frisa que estas situações de comunicação involuntária desprovida de intencionalidade tendem a ser aquelas em que o etnógrafo foi intensamente afetado. Entretanto, quando essas situações são postas no texto etnográfico usualmente são colocadas no mesmo plano daquelas informações que o pesquisador obtém de forma voluntária e intencional. O artigo de Favret-Saada é, em suma, uma defesa das situações em que o antropólogo é afetado. Mais ainda, é um convite para que o pesquisador se permita ser afetado, ocupando aqueles lugares que normalmente são ocupados pelo nativo e onde ocorrem experiências que lhe são próprias. Contudo, ocupar esse lugar, como coloca Marcio Goldman (2003:458)GOLDMAN, Marcio. (2003), “Os tambores dos mortos e os tambores dos vivos. Etnografia, antropologia e política em Ilhéus, Bahia”. Revista de Antropologia (USP), v. 46, nº 2: 445-476., não significa “virar nativo”, e sim experimentar algo em alguma medida semelhante ao que o nativo experimenta quando vivencia certas experiências.

Buscando explicar o que é vir a ser afetado, Jeanne Favret-Saada coloca que:

Quando um etnógrafo aceita ser afetado, isso não implica identificar-se com o ponto de vista nativo, nem aproveitar-se da experiência de campo para exercitar seu narcisismo. Aceitar ser afetado supõe, todavia, que se assuma o risco de ver seu projeto de conhecimento se desfazer. Pois se o projeto de conhecimento for onipresente, não acontece nada. Mas se acontece alguma coisa e se o projeto de conhecimento não se perde em meio a uma aventura, então uma etnografia é possível (Favret-Saada 2005:160FAVRET-SAADA, Jeanne. (2005), “Ser Afetado”. Cadernos de Campo, v. 13, n.º 13: 155-161.).

Estas palavras de Favret-Saada fazem muito sentido quando penso naquela minha visita ao Horto com Dona Geniza e no que aquele evento provocou em mim. Nesta minha revisão, dou-me conta de que o comportamento de Dona Geniza colocou em risco o projeto de conhecimento que eu havia levado para o campo. Desalojou-me e, ao ver-me deslocado de meu lugar, senti o risco de ser afetado. Ou, nos meus próprios termos, comecei a ficar inseguro sobre qual era o meu lugar e se não teria atravessado alguma linha que não deveria.

Revendo, sob este prisma, outros registros sobre as visitas que fiz com Dona Geniza em Juazeiro, percebo que em outras ocasiões também senti essa insegurança. Parece-me que isso era provocado por dois tipos básicos de movimento que ela realizava. O primeiro era o de “adentrar” no meu papel de pesquisador, buscando me auxiliar. Em várias ocasiões, por exemplo, Dona Geniza abordou algum romeiro, que não conhecíamos, dizendo que eu era pesquisador e que iria fazer algumas perguntas. Às vezes ela me ajudava com as perguntas, outras vezes ajudava com as respostas. Mas quase sempre tinha uma atitude bem ativa, assumindo o papel de uma auxiliar de pesquisa, sendo que no meu sistema classificatório eu a havia colocado na categoria de informante (que deveria ser uma posição mais passiva do que aquela assumida por ela).

O segundo movimento era o de Dona Geniza muitas vezes tentar me colocar na perspectiva do romeiro, não numa atitude proselitista ou desrespeitosa, mas naquela de quem me convida a realizar com ela uma experiência. Isso acontecia quando eu ia fazer compras com ela (como as das imagens de santos), quando acendia velas na visita e quando dava três voltas na grande imagem do Padre Cícero. Foram várias as situações em que ela procurou me incluir naquilo tudo de uma forma mais inteira. Nos termos de Favret-Saada (2005)FAVRET-SAADA, Jeanne. (2005), “Ser Afetado”. Cadernos de Campo, v. 13, n.º 13: 155-161., diria que Dona Geniza estava me interpelando no sentido de que eu me deixasse afetar, me permitisse ser romeiro.

Mesmo estando na maioria das vezes inseguro, resisti. A preocupação de não ultrapassar certas linhas me era cara. O que pensava que deveria fazer como etnógrafo em confronto com o que acontecia quando saía a campo em Juazeiro com aqueles romeiros e romeiras que me eram mais próximos provocava em mim um sentimento de desconforto. Ainda que tivéssemos desenvolvido uma relação de amizade e que eles fossem muito generosos comigo, preocupava-me em não perder de vista minha condição de etnógrafo em campo. Reforçar – principalmente para mim mesmo, mas também para os romeiros – que eu estava ali para fazer uma pesquisa etnográfica era uma preocupação constante. Porém, para meus amigos e amigas romeiras, eu era primeiramente o Antônio, alguém que se interessava por eles, um amigo; depois um pesquisador. Eles, por sua vez, a partir de certo ponto, já não eram os “nativos”. Eram Dona Geniza, Dona Ilza, Alexandre, Neném, meus amigos e amigas. Logo, a figura clássica de “observador-participante” não era mais algo tão confortável.

Diante disso, como tornar uma etnografia possível?

Para Jeanne Favret-Saada (2005)FAVRET-SAADA, Jeanne. (2005), “Ser Afetado”. Cadernos de Campo, v. 13, n.º 13: 155-161., ser afetado é assumir um risco na realização de nossas pesquisas. No que dizia respeito ao meu caso, deveria ser afetado pelo “ser romeiro” (o que não significa se tornar romeiro). Isso, diz ela, pode ser feito por meio de quatro traços distintivos. A fim de assumir esse risco, devemos primeiro reconhecer que uma comunicação etnográfica ordinária – verbal, voluntária, intencional – é uma das mais pobres variedades da comunicação, pois pouco informa sobre os aspectos não verbais da experiência humana. Um segundo movimento que devemos fazer é o de que nós, pesquisadores, aceitemos viver em um tipo de “schize”9 9 A expressão “schize” é utilizada por Jeanne Favret-Saada (2005). Trata-se de uma palavra grega cujo significado é dividir em dois. No contexto do seu artigo, Favret-Saada faz referência à dupla condição que o etnógrafo assume ao se deixar afetar: ele tanto se coloca numa posição na qual experimenta algo semelhante ao que é vivenciado pelo nativo, quanto é um pesquisador que observa tendo por objetivo a busca de uma interpretação antropológica daquela experiência. , o que envolve ficarmos abertos e maleáveis aos momentos do campo, ao que em nós é afetado, modificado pela experiência e, ao mesmo tempo, àquilo que em nós se quer compreender e registrar da experiência. O terceiro ponto é que devemos reconhecer que o tempo da análise virá depois. Isso ocorre porque no momento em que somos mais afetados não podemos narrar a experiência e no momento em que a narramos não podemos compreendê-la. O quarto traço distintivo envolve reconhecer que, sendo os dados recolhidos de uma densidade particular, sua análise tenderá a quebrar certezas científicas.

Lendo todas as considerações de Favret-Saada e reinterpretando o que aconteceu comigo no campo, chego à conclusão de que evitei ao máximo ser afetado. Contudo, esta possibilidade esteve muitas vezes colocada para mim por alguns daqueles romeiros e romeiras que me eram próximos, tendo Dona Geniza um lugar de destaque nesse tipo de atitude. Porém, por mais que essa possibilidade estivesse lá, nunca me permiti ser afetado. Tinha dificuldades em abrir mão de minha condição de observador e tinha meus motivos.

Um dos motivos era que eu fora a campo para aquela visita com uma pergunta. Era claro para mim que eu estava aberto às muitas possibilidades que surgiriam no campo. Mas havia uma pergunta: seria o Horto, dentro da topografia religiosa e devocional de Juazeiro do Norte, um dos seus lugares sagrados? Não que isso fosse a minha principal questão, mas ela não era descabida10 10 Conforme indiquei nas notas 4 e 5, informações anteriormente obtidas e os diálogos com os pesquisadores Francisco Salatiel Barbosa e Maria de Fátima Pinho e seus estudos contribuíram para que eu levasse este tipo de questão para o campo naquele momento de minha pesquisa. , apesar de não ver muitos motivos para problematizá-la. Primeiramente, eu estava levando em conta que era um tema pertinente à antropologia da religião. Logo, havia legitimidade disciplinar, além de uma boa literatura acadêmica que me serviria de interlocutora para os dados. Também levei em conta que, em incursões anteriores a Juazeiro, em conversas e entrevistas com romeiros, moradores locais, por diferentes fontes e caminhos, escutara considerações sobre ser o Horto um lócus privilegiado para se compreender melhor os aspectos mais sagrados da devoção romeira ao Padre Cícero (Barbosa 2007BARBOSA, Francisco Salatiel de Alencar. (2007), O Joaseiro Celeste: tempo e paisagem na devoção ao Pe. Cícero. São Paulo: CNPq/PRONEX, Attar Editorial.; Braga 2014BRAGA, Antonio M. C. (2014), “A Subida do Horto: Ritual e Topografia Religiosa nas Romarias de Juazeiro do Norte, Ceará, Brasil”. Debates do NER, ano 15, nº 25: 197-214.; Pinho 2002PINHO, Maria de Fátima de Morais. (2002), Representações Sociais do Pe. Cícero para os moradores da Colina do Horto. Crato, CE: Dissertação de Mestrado em Desenvolvimento Regional, URCA.)11 11 Abordo a questão dos aspectos sagrados da devoção romeira no Horto no artigo da minha autoria A Subida do Horto: Ritual e Topografia Religiosa nas Romarias de Juazeiro do Norte, Ceará, Brasil (Braga 2014). .

Havia ainda um terceiro motivo pelo qual julgo ter evitado ser afetado. Como estava levando para o campo a questão de o ritual da pedra ser um ritual sagrado, isso influenciou a posição que assumi como pesquisador, potencializando minha preocupação em assumir uma posição que era muito mais de observador que de participante. Tanto as minhas experiências anteriores de pesquisa de campo, quanto a bibliografia que havia lido sobre peregrinações e romarias já sinalizavam para a densidade e complexidade desse tipo de realidade empírica que eram as romarias (Alves 1980ALVES, Isidoro Maria da Silva. (1980), O Carnaval devoto. Um estudo sobre a festa de Nazaré de Belém. Petrópolis: Ed. Vozes.; Eade e Sallnow 1991EADE, John and SALLNOW, Michael J. (eds.). (1991), Contesting the Sacred: The Anthropology of Christian Pilgrimage. London and New York: Routledge.; Fernandes 1982FERNANDES, Rubem César. (1982), Os Cavaleiros do Bom Jesus. Uma Introdução às Religiões Populares. São Paulo: Ed. Brasiliense.; Sanchis 1983SANCHIS, Pierre. (1983), Arraial: Festa de um povo. As romarias portuguesas. Lisboa: Ed. Dom Quixote.; Steil 1996STEIL, Carlos Alberto. (1996), O Sertão das Romarias: um estudo antropológico sobre o santuário de Bom Jesus da Lapa – Bahia. Petrópolis: Editora Vozes.). Isso provocou em mim o receio de que não daria conta, de que não conseguiria fazer uma observação suficientemente boa, tendo em vista a densidade do que lá ocorria. Logo, gerou em mim o sentimento de que deveria ter uma atenção redobrada enquanto pesquisador. Olhando em retrospectiva, vejo que assumi a posição de que deveria ser um pesquisador que observa da forma mais objetiva possível. Estava imbuído da preocupação de não perder meu foco naquele contexto denso, festivo, que era o Horto no momento em que lá me encontrava.

O fato é que eu estava indo a campo naquele dia sabendo que o Horto, entre as 8 e as 12 horas da manhã, é uma verdadeira festa em dias de romaria. É a festa barulhenta dos foguetes que avisam a chegada de um grupo de romeiros, das vozes animadas dos romeiros, dos vendedores, dos pedintes, do padre num altar em campo aberto, das músicas de CDs que são vendidos nas barracas, dos caminhões, ônibus, carros, motos, carros de passeio. Uma das imagens que, a meu ver, traduz muito bem o Horto é a de Mikhail Bakhtin (1987)BAKHTIN, Mikhail. (1987), A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: O Contexto de François Rabelais. São Paulo: HUCITEC/Ed. UNB. descrevendo as festas populares na Idade Média e no Renascimento. O Horto é como uma grande “polifonia” (Bakhtin 2008_____________. (2008), Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução de Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária.), na qual os romeiros surgem como personagens principais de um “texto” a ser decifrado, interpretado, compreendido. Naquele dia com Dona Geniza, mais uma vez, ali diante de mim, estavam os romeiros como parte de uma multiplicidade de vozes independentes cujo eixo narrativo principal é a devoção deles ao Padre Cícero, num conjunto de situações vividas que os colocava em contato com os sentidos e símbolos fundamentais da cultura em que se inscreve a experiência humana dos romeiros e romeiras (Steil 1996STEIL, Carlos Alberto. (1996), O Sertão das Romarias: um estudo antropológico sobre o santuário de Bom Jesus da Lapa – Bahia. Petrópolis: Editora Vozes.).

Em suma, aquilo tudo era tão denso em termos de possibilidades e conteúdos que, como etnógrafo, eu estava antes de tudo preocupado em dar conta de registrar o maior volume de informações possíveis. Tentava me ater ao que imaginava serem as preocupações legítimas de um etnógrafo em campo. Porém, as coisas nem sempre acontecem como planejamos e desejamos, e, justamente porque há muita coisa em jogo, podemos ser capturados num jogo de cujas regras pouco sabemos – se é que elas existem. Mas o fato é que, se eu não fui afetado, fui deslocado.

A experiência de ser romeiro e o retorno do etnógrafo

No momento em que estava no campo, não consegui entender de onde vinha aquela capacidade de Dona Geniza em me desconcertar, me deslocar de minha condição de observador, a partir de um gesto aparentemente tão banal como o de pegar uma pedra no chão. Se eu estava sendo um “observador participante”, como aquilo seria possível?

Jeanne Favret-Saada coloca que “observar participando, ou participar observando, é quase tão evidente como tomar um sorvete fervente” (2005:156FAVRET-SAADA, Jeanne. (2005), “Ser Afetado”. Cadernos de Campo, v. 13, n.º 13: 155-161.). A partir deste exercício de reflexão sobre o incômodo que aquele fato me provocou, dou-me conta de que, ao observar, abria mão de efetivamente participar. Ainda que naquele momento não tenha percebido – apenas senti o incômodo (e o uso do verbo “sentir” aqui é bem adequado) –, o evento da pedra fora meu sorvete fervente. Desse momento em diante, havia um convite para eu participar. Este era feito por Dona Geniza, que entrava e saía de um lugar para o outro sem muitas cerimônias, tanto que ela transformou aquilo que eu queria ver como um ritual sagrado num gesto banal à primeira vista. Recordo bem o que ela fez: abaixou-se, pegou a pedra, pôs na cabeça e me disse “meu filho é assim que se faz” (entrevista Dona Geniza, novembro de 2005). Só isso! Em síntese, ela exemplificou, ilustrou.

Se, todavia, seu gesto com a pedra fora tão destituído da sacralidade que eu queria observar, isso não diminuiu para Dona Geniza o significado do que estávamos fazendo ali. Aquela continuava sendo uma visita ao Horto, o que implica dizer que estávamos fazendo algo relevante para um romeiro, uma romeira, pois é muito difícil encontrar um romeiro que, indo a Juazeiro, não se sinta compelido a visitar o Horto. Não foram poucos os que me relataram que sua primeira visita ao Horto fora uma de suas maiores alegrias, uma experiência inesquecível.

Penso que esta é uma forma simples, mas muito apropriada de definir uma romaria: é uma experiência extraordinária. Esta, inclusive, é uma das frases de Dona Geniza: “Meu filho, você não consegue imaginar a alegria que eu sinto aqui no Juazeiro!” (entrevista Dona Geniza, novembro de 2005). Isso significa dizer que um romeiro faz uma experiência em Juazeiro que não pode ser traduzida em palavras nem transposta para aquele que observa, mas não participa. Numa romaria, para uma romeira como Dona Geniza, estar ali não é apenas interagir, negociar e ressignificar práticas, signos e significados. Não que isso não seja feito. Uma romaria é um espaço e um tempo de trocas. Mas é também onde e quando se faz uma experiência, a experiência de ser romeira em Juazeiro, romeira do Padre Cícero. Para romeiras como Dona Geniza, há algo de intraduzível nas romarias, no Juazeiro, no Horto, que só quem é romeiro sabe o que é. Estamos falando, portanto, de algo que se dá no campo da experiência humana. Neste caso, a experiência humana de ser romeira do Padre Cícero.

Recorro às palavras de Thomas Csordas para tentar expressar melhor aquilo que procuro dizer:

Vim a compreender a experiência como significância do significado, imediata tanto no sentido de sua concretude, sua abertura subjuntiva, sua desobstrução da realidade sensorial, emocional e intersubjetiva do momento presente como também no sentido de ser a rica ascensão não-mediada, impremeditada, espontânea ou não ensaiada da existência primeira. Conseqüentemente, o desafio antropológico não é o de capturar a experiência, mas o de dar acesso à experiência como a significância do significado (Csordas 2008:16CSORDAS, Thomas. (2008), Corpo/significado/cura. Porto Alegre: Editora UFRGS.).

Quando li essas palavras de Csordas, de alguma forma elas me pareciam fazer sentido. Ou melhor, pareciam sugerir algum tipo de pista para desvendar o enigma acerca do meu incômodo com o evento da pedra. Minha primeira interpretação foi a de que faziam sentido para mim porque se vinculavam ao fato de que havia algo não ensaiado, não premeditado nas ações de Dona Geniza naquela visita ao Horto. Era bem perceptível que sua interação comigo estava completamente desobstruída. Havia espontaneidade e ela não demonstrava autocensura na forma de interagir comigo e me conduzir pelo Horto. Ela igualmente – mesmo sendo uma senhora de uns sessenta anos – não demonstrava cansaço ou se queixava do calor que fazia naquele fim de uma manhã de novembro em Juazeiro, mas sim uma profunda felicidade por estar ali. Em suma, naquela manhã eu fora para o campo na esperança de obter dados sobre um ritual de sacrifício (aquele dos romeiros que levam para lá as pedras em suas cabeças), e Dona Geniza fora fazer uma visita ao Horto de seu Padrinho Cícero, o que para ela era “uma das maiores alegrias do mundo” (entrevista Dona Geniza, novembro de 2005).

Seja em entrevistas, seja no caderno de campo, as palavras alegria e felicidade são recorrentes no que registrei em relação às falas dos romeiros e romeiras quando se referem ao que sentem nas romarias, no Juazeiro e, particularmente, no Horto12 12 As relações dos romeiros com os diferentes lugares de peregrinação no Juazeiro não são sempre iguais. Se as visitas ao Horto, por exemplo, tendem a ser alegres e animadas, uma visita à Capela do Socorro, onde está sepultado o Padre Cícero, costuma, em termos comparativos, ser carregada de maior solenidades e introspecção. . Da minha parte, não tenho dúvidas de que se sentir alegre e feliz é um elemento daquilo que motiva os romeiros a fazerem as romarias, estarem ali em Juazeiro. Na realidade, conforme fui desenvolvendo esta minha reflexão sobre o porquê daquele evento com a pedra haver me incomodado tanto, fui percebendo que essa alegria e felicidade é mais do que uma motivação para os romeiros. É algo que se dá no campo da experiência humana de ser romeiro em Juazeiro. Ou, se preferirmos, dá-se na experiência humana religiosa de ser romeiro, no tipo de experiência religiosa que muitos romeiros fazem em Juazeiro.

São, contudo, muitos os fatores que contribuem para que a experiência religiosa da alegria seja negligenciada, ou mesmo negada, como uma experiência fundamental dos romeiros de Juazeiro. Um deles é o discurso bíblico-católico do sofrimento. O próprio nome Horto, dado ao local de nossa visita, é uma referência à Paixão de Cristo. Há, de fato, toda uma tradição devocional católica centrada no sofrimento redentor que se faz presente no Juazeiro. Mas a religiosidade dos romeiros do Juazeiro não é só uma teleologia do sofrimento redentor. Poder experimentar uma alegria sem peias, aberta, sem cerceamentos, também é uma parte fundamental da experiência humana de ser romeiro e romeira do Padre Cícero em Juazeiro.

Outro fator que contribui para essa negligência remete à posição socioeconômica que os romeiros ocupam na sociedade brasileira, nordestina. Os romeiros do Juazeiro são, em sua grande maioria, pobres. Pertencem às classes populares, sendo provenientes principalmente das áreas rurais ou pequenas e médias cidades do Nordeste. Por serem pobres num país profundamente desigual como o Brasil, são colocados em posições e situações socioeconômicas e políticas muito desfavoráveis. As adversidades econômicas, a precariedade de suas condições materiais de existência, as situações de violência tanto de natureza concreta quanto simbólica acentuam muitas das situações de precariedade que eles têm de enfrentar em suas vidas. Como consequência, isso se converte numa marca que lhes é imputada por muitos que os veem de fora, que termina por produzir o seguinte tipo de discurso sobre os romeiros: como eles são tão pobres, suas vidas só podem ser de sofrimento; logo, deve ser por isso que eles vêm a Juazeiro, indo atrás do seu Padrinho Cícero; deve ser para descobrir uma forma de aguentar tanto sofrimento.

Há diferentes formas através das quais esse discurso é feito e reproduzido. Quase sempre se dá a partir de membros de grupos e classes sociais que ocupam uma posição privilegiada nas estruturas de dominação que atravessam suas relações com os romeiros, com os mais pobres. Esses grupos e classes podem ser elites culturais, econômicas, políticas, institucionais ou religiosas de suas localidades de origem, assim como podem estar vinculadas a um universo mais difuso dessas elites, em âmbito regional e/ou nacional. Diante disso, há uma ampla produção literária, teológica, intelectualizada, dramatúrgica, cinematográfica, de matérias jornalísticas, a reproduzir (muitas vezes a título de denúncia) essa condição sofredora de ser romeiro do Padre Cícero.

A produção e a reprodução desse tipo de discurso são feitas de diferentes formas. Quanto à origem, pode vir tanto de indivíduos que têm empatia pelos romeiros (chegam mesmo a admirá-los), quanto daqueles que nutrem diversos tipos de sentimento negativo para com eles (desde o sentimento de “dó” até o de desprezo). Quanto à sua formulação, são bastante variáveis: “é uma gente ignorante”; “é um povo crédulo”; “são uns pobres coitados que só têm isso na vida”; “são alienados, manipulados, apegados a uma fé que os consola, mas que não transforma suas vidas”; “são uns pobres coitados, de quem a gente tem de ter misericórdia”. Um dos resultados dessas diferentes modalidades de discursos que se baseiam no mesmo princípio é quase sempre o mesmo: busca-se retirar dos romeiros – intencionalmente ou não – o protagonismo, a capacidade de agência que eles têm sobre suas vidas.

Percorrer este caminho reflexivo em torno do evento que envolveu a mim, Dona Geniza e aquela pedra de certo modo iluminou melhor o lugar que assumi no campo. Este artigo é um esforço de repensar aquele lugar – o meu lugar de pesquisador no campo. Um lugar que estava lá, dez anos atrás, mas que também está hoje aqui, quando revejo o material empírico que produzi. Este é um privilégio de nossa profissão de etnógrafos: o campo nunca se fecha completamente. Ele ainda continua nos nossos cadernos de campo, nos nossos registros fotográficos, fonográficos, nas memórias que temos e nas relações afetivas que construímos. Dessa forma, é como se sempre pudéssemos voltar lá atrás, de uma maneira que é diferente de uma volta física, mas que não deixa de ser uma volta. Uma volta heraclitiana, de quem sabe que nunca poderá tomar banho duas vezes na mesma água do rio. Uma volta que também não é um retorno, mas uma forma de continuarmos a ir para frente, enfrentando os desafios do fazer antropológico, trazendo questões e possibilidades de respostas que outrora não havíamos enxergado ou que simplesmente não as tínhamos.

Nesta minha volta, revejo um jovem antropólogo em busca por significados, tentando capturar uma experiência sobre o sentido do sacrifício, para que pudesse interpretá-la. Também revejo Dona Geniza no Horto, num protagonismo, numa capacidade de agência que não vira outrora. Nesta volta, revejo Dona Geniza profundamente feliz. Isso ilumina minha percepção de uma dimensão do que é ser romeiro do Padre Cícero, o que antes não tinha tanto: a experiência humana do ser e sentir-se feliz, profundamente alegre. Uma felicidade que, como dizem os próprios romeiros, só quem é romeiro do Padre Cícero sabe o que é. Pois é preciso, em suma, experimentá-la e, para isso, é necessário ser romeiro. Revejo Dona Geniza e sua felicidade, imersa na sua condição humana de ser romeira. Ao reexaminar, ao dar-me conta dessa experiência humana e romeira da alegria e da felicidade de estar em Juazeiro, de fazer a romaria, abrem-se novos horizontes para a minha análise antropológica do material empírico que colhi.

Como diz a música de um canto pop-sertanejo brasileiro: “Cada volta é um recomeço”.

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  • WHYTE, William Foote. (2005),Sociedade de esquina Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
  • Entrevistas

    Dona Geniza, novembro de 2005.
    Dona Ilza, setembro de 2004.
    Dona Ilza, março de 2005.

Notas

  • 1
    Dona Geniza é uma “fretante”. São chamadas de fretantes aquelas mulheres que organizam grupos para irem em romaria a Juazeiro do Norte. As fretantes são responsáveis por formar os grupos de romeiros, providenciarem transporte e hospedagem em Juazeiro, fazer o papel de chefe do grupo (como, por exemplo, mediar os conflitos), dar a última palavra sobre quem vai ou não ser integrado ao grupo. Os grupos usualmente são formados por parentes, contraparentes, amigos, vizinhos. Como só acompanhei grupos de cidades pequenas do interior do Nordeste – que, na realidade, são a grande maioria de grupos de romeiros –, todos os membros já se conheciam e tinham algum tipo de vínculo. Isso era particularmente verdade para o grupo de Dona Geniza.
  • 2
    Padre Cícero Romão Batista foi um sacerdote que nasceu e viveu na região do Cariri, no estado do Ceará, Nordeste do Brasil, entre 1844 e 1934. Entre o final do século XIX e o início do século XX, converteu-se numa importante liderança religiosa, estimado principalmente pela população nordestina mais pobre. A fama de santo que já havia adquirido em vida se ampliou após sua morte. Pode ser considerado um dos mais importantes santos de devoção popular brasileiro, sendo que essa devoção é particularmente disseminada na região Nordeste do Brasil. Destacam-se na devoção a Padre Cícero as romarias feitas no Juazeiro do Norte, cidade do Cariri onde ele residiu a maior parte da sua vida, ajudando a desenvolver, e onde está sepultado.
  • 3
    Sobre a relação de Foote Whyte com seu campo de pesquisa e com seu informante Doc, indico a leitura de “Anexo A: sobre a evolução de Sociedade de Esquina”, que consta no referido livro (Whyte 2005:283-363WHYTE, William Foote. (2005),Sociedade de esquina. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.). Em um dos trechos, escreve Foote Whyte (2005:302)WHYTE, William Foote. (2005),Sociedade de esquina. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.: “Minha relação com Doc mudou rapidamente nesse primeiro período em Cornerville. No início, ele era apenas um informante-chave – e também meu padrinho. À medida que passávamos o tempo juntos, parei de tratá-lo como um informante passivo. Discutia bastante francamente com ele o que eu tentava fazer, que problemas me intrigavam, e assim por diante. Muito de nosso tempo era gasto nessa discussão de idéias e observações, de modo que Doc se tornou, num sentido muito real, um colaborador da pesquisa”.
  • 4
    A informação de que havia o ritual da pedra e de que ele tinha um sentido religioso de penitência e sacrifício eu escutei pela primeira vez de Dona Ilza (entrevista Dona Ilza, setembro de 2004), outra informante minha amiga. Ela também era fretante, mas da cidade de Murici, Alagoas. O primeiro grupo que acompanhei em romaria foi o de Dona Ilza. Ela havia comentado sobre o ritual numa de nossas conversas, e numa entrevista me contou que havia subido o Horto com uma pedra quando da sua primeira visita a Juazeiro: “Nos anos sessenta, que eu vim pessoalmente no caminhão, passando fome, passando sede, não tinha pista, água era difícil que só, quando eu cheguei aqui, foi tudo como eu sonhei. Mesmo assim foi minha subida no Horto levando a pedra, como eu já lhe contei [...[. Justamente foi em sessenta. A primeira vez... Eu vim assim disposto a fazer penitência” (entrevista Dona Ilza, março de 2005).
  • 5
    Na elaboração deste artigo busquei refletir sobre a origem daquela minha perspectiva, daquela minha pressuposição de que o Horto e aquele ritual eram profundamente sagrados e carregados de sentidos. Neste processo reflexivo dei-me conta de que as leituras da tese de doutorado de Francisco Salatiel de Alencar Barbosa (2007)BARBOSA, Francisco Salatiel de Alencar. (2007), O Joaseiro Celeste: tempo e paisagem na devoção ao Pe. Cícero. São Paulo: CNPq/PRONEX, Attar Editorial. – defendida em 2002 – e do trabalho de mestrado de Maria de Fátima Pinho (2002)PINHO, Maria de Fátima de Morais. (2002), Representações Sociais do Pe. Cícero para os moradores da Colina do Horto. Crato, CE: Dissertação de Mestrado em Desenvolvimento Regional, URCA., assim como as conversas que travei com esses pesquisadores durante o desenvolvimento da minha pesquisa, foram as que mais influenciaram nesta minha formulação do Horto como sendo um lugar sagrado. Em suma, penso que fui a campo já levando essa perspectiva.
  • 6
    Como observei na nota 4, eu havia escutado de Dona Ilza, minha informante de Murici (Alagoas), que havia um ritual antigo de subir o Horto carregando pedras na cabeça. Friso que a primeira romaria que fiz acompanhando romeiros foi com o grupo de Dona Ilza. Aquela narrativa me fez lembrar o Ensaio sobre a natureza e função do Sacrifício, de Hubert e Mauss (2001)HUBERT, Henri e MAUSS, Marcel. (2001), “Ensaio Sobre a Natureza e Função do Sacrifício”. In: M. Mauss. Ensaios de Sociologia. São Paulo: Editora Perspectiva, 2ª.. A partir dessa correlação inseri o ritual da pedra dentro da discussão do sagrado e profano com base na perspectiva da Escola Sociológica Francesa. Penso que esses são – junto com os diálogos com Barbosa (2007)BARBOSA, Francisco Salatiel de Alencar. (2007), O Joaseiro Celeste: tempo e paisagem na devoção ao Pe. Cícero. São Paulo: CNPq/PRONEX, Attar Editorial. e Pinho (2002)PINHO, Maria de Fátima de Morais. (2002), Representações Sociais do Pe. Cícero para os moradores da Colina do Horto. Crato, CE: Dissertação de Mestrado em Desenvolvimento Regional, URCA. – os pontos que mais me influenciaram a levar a questão do sagrado e profano para aquela minha visita ao Horto com Dona Geniza.
  • 7
    Geertz escreve em A Interpretação das Culturas: “Há uma história indiana – pelo menos eu a ouvi como indiana – sobre um inglês a quem contaram que o mundo repousava sobre uma plataforma apoiada nas costas de um elefante, o qual, por sua vez, apoiava-se nas costas de uma tartaruga, e que indagou (talvez ele fosse um etnógrafo; é a forma como eles se comportam), e onde se apóia a tartaruga? Em outra tartaruga. E essa tartaruga? ‘Ah, Sahib; depois dessa são só tartarugas até o fim’” (Geertz 1989:20GEERTZ, Clifford. (1989), A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC.). O antropólogo Vagner Gonçalves da Silva (2000)SILVA, Vagner Gonçalves da. (2000),O antropólogo e sua magia: trabalho de campo e texto etnográfico nas pesquisas antropológicas sobre as religiões afro-brasileiras. São Paulo: Edusp. sugere que essa história apresentada por Geertz pode ser lida como “uma parábola irônica da postura do etnógrafo em campo que, ao colocar perguntas atrás de perguntas, pretende atingir as ‘tartarugas profundas’ que sustentam a visão de mundo de seus ‘informantes’” (Silva 2000:54)SILVA, Vagner Gonçalves da. (2000),O antropólogo e sua magia: trabalho de campo e texto etnográfico nas pesquisas antropológicas sobre as religiões afro-brasileiras. São Paulo: Edusp..
  • 8
    “Geertz não desenvolveu uma teoria da ação ou da prática como tal. Entretanto, ele posicionou firmemente o ator no centro de seu modelo, e muito do trabalho posterior centrado na prática constrói-se sobre uma base geertziana (ou geertzo-weberiana), como veremos” (Ortner 2011:423ORTNER, Sherry B. (2011), “Teoria na antropologia desde os anos 60”. Mana, v. 17, nº 12: 419-466.).
  • 9
    A expressão “schize” é utilizada por Jeanne Favret-Saada (2005)FAVRET-SAADA, Jeanne. (2005), “Ser Afetado”. Cadernos de Campo, v. 13, n.º 13: 155-161.. Trata-se de uma palavra grega cujo significado é dividir em dois. No contexto do seu artigo, Favret-Saada faz referência à dupla condição que o etnógrafo assume ao se deixar afetar: ele tanto se coloca numa posição na qual experimenta algo semelhante ao que é vivenciado pelo nativo, quanto é um pesquisador que observa tendo por objetivo a busca de uma interpretação antropológica daquela experiência.
  • 10
    Conforme indiquei nas notas 4 e 5, informações anteriormente obtidas e os diálogos com os pesquisadores Francisco Salatiel Barbosa e Maria de Fátima Pinho e seus estudos contribuíram para que eu levasse este tipo de questão para o campo naquele momento de minha pesquisa.
  • 11
    Abordo a questão dos aspectos sagrados da devoção romeira no Horto no artigo da minha autoria A Subida do Horto: Ritual e Topografia Religiosa nas Romarias de Juazeiro do Norte, Ceará, Brasil (Braga 2014BRAGA, Antonio M. C. (2014), “A Subida do Horto: Ritual e Topografia Religiosa nas Romarias de Juazeiro do Norte, Ceará, Brasil”. Debates do NER, ano 15, nº 25: 197-214.).
  • 12
    As relações dos romeiros com os diferentes lugares de peregrinação no Juazeiro não são sempre iguais. Se as visitas ao Horto, por exemplo, tendem a ser alegres e animadas, uma visita à Capela do Socorro, onde está sepultado o Padre Cícero, costuma, em termos comparativos, ser carregada de maior solenidades e introspecção.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 2015

Histórico

  • Recebido
    Out 2014
  • Aceito
    Maio 2015
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