Acessibilidade / Reportar erro

O Dilema do Biscoito e o Ensino Universitário: uma Reflexão

The Cookie Dilemma in University Teaching: Some Preliminary Reflections

Resumo:

O estudo de comportamentos sociais tem sido sempre um grande desafio, dada a diversidade de fatores que podem estar envolvidos. No entanto, alguns comportamentos podem ser explicados e compreendidas através de equações matemáticas, como feito por Nash no trabalho “Equilíbrio de Nash e Teoria dos Jogos”. O comportamento baseado na cooperação entre pessoas ou grupos é o mais clássico dos comportamentos “matemáticos”. Atualmente, a relação entre empregados e empregadores na área da educação vem sofrendo um grande desgaste, e nesta situação é bem demonstrado que se estabeleceu um equilíbrio como o descrito por Nash. O indício disto é encontrado na frase, muito frequente, “eles fingem que pagam e eu finjo que trabalho”, que traduz um comportamento não-cooperativo entre a universidade e o professor. Isto tem relação com o fato de que o paradigma do ensino atual está superado e não fornece mais as soluções necessárias para obter um equilíbrio cooperativo. No ensino médico isso é mais evidente, pois além dos problemas conjunturais, existem os específicos da área médica. O modelo tradicional não tem se mostrado eficaz para o novo desafio: “life-long learning”. A mudança de paradigma é imperativa, e vem se desenvolvendo um novo modelo de ensino médico, que fornece os instrumentos para a formação de um novo modelo de profissional, denominado Ensino Baseado em Problemas (Problem Based Learning - PBL). Esta reflexão tem por objetivo ampliar a diseussão deste novo paradigma.

Palavras-chave:
Educação Superior; Jogos Experimentais; Aprendizado Baseado em Problemas

Abstract:

The study of social behaviors has always been a major challenge, given the diversity of potential factor involved. However, some behaviors can be explained and understood trough mathematical equations, as in Nash´s Equilibrium and Non-Cooperative Games Theory. Behavior based on cooperation among individuals or groups is the most classical type of “mathematical” behaviors. Eurrently, the relationship between employees and employers in the field of education has been subject to extensive strain, and in this situation it has been demonstrated that an equilibrium has been established as described by Nash. Evidence of this is the frequently-heard phrase. “They pretend they pay me, and I pretend I work”, expressing a form of non-cooperative behavior between universities and professors. This relates to the fact that the eurrent teaching paradigm is outdated and fails to provide the necessary solutions for obtaining cooperative equilibrium. The situation is most evident in medical teaching, since in addition to situational problems, there are specific issues in the field of medicine. The traditional model has proven ineffective for dealing with the new challenge of “life-long learning”, and a paradigm shift is imperative, with the development of a new medical training model, providing the instruments for training a new type of professional, based on so-called Problem Based Learning (PBL). This article aims to expand the diseussion on this new paradigm.

Key-words:
Education Higher; Experimental Games; Problem Based Learning

Desde que a teoria do matemático John Forbes Nash Jr. se popularizou graças ao filme “Mentes brilhantes”, muitas pessoas têm se interessado por seu trabalho - “Teoria dos Jogos” -, cuja importância foi reconhecida com o Prêmio Nobel de 1994.

Baseando-se na teoria dos jogos, que representa a tomada de uma decisão com base na suposta decisão do outro jogador, Nash tentou explicar o ponto de acomodação entre cooperação e deserção, e desenvolveu uma teoria conhecida como o “Equilíbrio de Nash”.

O “Dilema do prisioneiro” demonstra bem o comportamento de cooperação ou deserção, e é descrito da seguinte maneira por Raul Marinho1. Marinho R. Jogos brilhantes. Você S.A. [periódico online] 2002 nov; Disponível em: http://www2.uol.com.br/vocesa/aberto/online/022002/714 1.shl
http://www2.uol.com.br/vocesa/aberto/onl...
:

“É uma situação em que dois comparsas são pegas cometendo um crime. Levados à delegacia e colocados em salas separadas, lhes é colocada a seguinte situação com as respectivas opções de decisão. - Se ambos ficarem quietos, cada um deles pode ser condenado a um mês de prisão; - Se apenas um aeusa o outro, o aeusador sai livre. O outro condenado em um ano; - Aquele que foi traído pode trair também e, neste caso, ambos pegam seis meses. As decisões deverão ser simultâneas e um não sabe nada sobre a decisão do outro. Considera-se também que os suspeitos irão decidir única e exclusivamente de forma racional. O dilema do prisioneiro mostra que, em cada decisão, o prisioneiro pode satisfazer o seu próprio interesse (desertar) ou atender ao interesse do grupo (cooperar). O primeiro prisioneiro pensa da seguinte forma: “Vou admitir inicialmente que meu comparsa planeja cooperar, ficando quieto. Neste caso, se eu cooperar também, ficarei um mês atrás das grades (um bom resultado), mas, ainda admitindo a cooperação do meu comparsa, se eu desertar confessando o crime, eu saio livre (o melhor resultado possível). Porém, se eu supuser que meu comparsa vai desertar e eu continuar cooperando, eu ficarei um ano na cadeia (o pior resultado possível) e ele sai livre. Mas se eu desertar também, eu ficarei somente seis meses preso (um resultado intermediário). Eu concluo então que, em ambos os casos (se ele cooperar ou não), sempre será melhor desertar, e é o que eu vou fazer. Acontece que o segundo prisioneiro pensa da mesma maneira e ambos desertam. Se ambos cooperassem, haveria um ganho maior para ambos, mas a otimização dos resultados não é o que acontece. Ao invés deles ficarem somente um mês presos, eles passarão seis meses na cadeia para evitar o risco de ficar um ano se o outro optar por desertar. Mais que isso: desertando, cada parte tem a possibilidade de sair livre se a outra parte cooperar.”

No caso do “Dilema do prisioneiro", um ponto muito importante na decisão de cooperar ou não está baseado na confiança que um tem no outro.

De maneira macro, isto acontece na economia de muitos países, mais particularmente no nosso, onde os investidores se antecipam à possibilidade de uma quebra de contrato e retiram seus capitais investidos, o que é um excelente exemplo de quebra de confiança. Atualmente, este comportamento ocorre em muitas áreas do relacionamento humano, em especial no relacionamento profissional, e isto tem gerado muitos conflitos. A frase “eles fingem que pagam e eu finjo que trabalho” é uma amostra disto. Com certeza, já a ouvimos muitas vezes e em diferentes situações.

No ensino universitário, em particular no sistema público, temos presenciado um crescente descontentamento, traduzido por frequentes movimentos grevistas, que reivindicam melhores condições de trabalho e de salário. Nesta situação, observamos um tipo de comportamento que não seria bem o padrão de equilíbrio descrito no trabalho de Nash sobre a Teoria dos Jogos, mas um impasse, e teremos que achar alguma solução. Resolvi chamar este momento do “Dilema do biscoito”. Todos se lembram de uma peça promocional que utilizava a frase: “é fresquinho porque vende mais ou vende mais porque é fresquinho?". Poderíamos entender, sobre alguns professores, que “não se dedicam mais porque não têm reconhecimento" (salário e condições de trabalho), e as instituições e seus gerenciadores não mostram reconhecimento, pois, afinal de contas, não sentem empenho e dedicação no cumprimento das funções por parte de um bom número de professores. Devemos ter em mente que o maior prejudicado com estes comportamentos é, em primeiro lugar, o cliente (aluno), que busca um produto (ensino), e consequentemente isto vai se refletir na qualidade dos serviços de saúde ofertados à sociedade.

Poderíamos pensar que é fácil resolver estes problemas: afinal, como em qualquer outro segmento do mercado, estes profissionais poderiam perder seus postos, seriam dispensados apesar da estabilidade funcional que têm como funcionários públicos, pois muitos não cumprem a carga horária contratual, o que seria um motivo justo de dispensa por quebra de contrato, mas isto não acontece. Também existe a possibilidade de o funcionário insatisfeito buscar outro local para trabalhar, onde tenha maior reconhecimento, mas não vemos nenhum movimento nesta direção.

Avaliemos alguns fatos específicos da área ligada no ensino médico. Com certeza, a hora-consultório tem um rendimento muito maior que a hora-aula. No entanto, se abrirem concurso para o preenchimento de vagas para professor do curso de Medicina, sempre haverá um grande número de candidatos, mesmo considerando-se que eles conhecem as dificuldades que irão encontrar e a falta de reconhecimento. A que deve este comportamento masoquista?

Podemos explorar algumas teorias para tentar explicar este comportamento. Por parte do professor o status social do cargo ainda é levado em conta e pode avalizá-lo, enquanto médico, corno tendo o qualidade de um bom profissional, atraindo mais clientes e, consequentemente, maior rendimento. Ao longo de décadas, construímos o conceito de que quem ensina sabe mais, e socialmente o mestre ainda tem certa posição de “autoridade”. Por parte das instituições: além de precisarem de alguém que ministre aulas, se este for bem conceituado na sociedade, acaba por conferir confiabilidade ao curso. Assim, teríamos um equilíbrio, não fosse a insatisfação mútua, e voltamos ao “Dilema do biscoito”, que poderia ser considerado uma forma de equilíbrio, onde os dois, embora insatisfeitos, não desistem, nem cooperam, o que acontece principalmente devido à presença de “informações assimétricas”.

O conceito de informação assimétrica, introduzido por Akerlof & Spense2. Akelof G, Spence M. Stiglitz bag Nobel Economics Prize. [artigo on line] 2001 oct; Disponível em: http://www/rediff.com/money/2001/oct/10nobel.htm
http://www/rediff.com/money/2001/oct/10n...
, poderia ser assim definido: determinados grupos ou pessoas retêm informações que seriam relevantes para todos. Desta maneira, os comportamentos ou decisões tomadas seriam baseados nos conhecimentos incompletos ou distorcidos das partes. Um exemplo disto é a seguinte situação: os professores participam de movimentos reivindicatórios, pois acreditam que as instituições teriam condições de suprir suas necessidades de ganhos tangíveis e intangíveis, mesmo que isto não seja verdadeiro; as instituições não investem de maneira satisfatória porque têm prioridades diferentes das do corpo docente e que nem sempre são conhecidas e/ou discutidas com seus professores; os alunos se desmotivam, pois não sabem bem por que existe este impasse, e, por último, a comunidade se sente privada do ensino e passa a ver as instituições e professores com certa desconfiança, uma vez que também não sabe exatamente por que existem estes movimentos nas instituições de ensino e considera que estas não cumprem seu papel. Certamente, reside aí o sucesso das administrações consideradas participativas, quando se empenham em desmontar esta fábrica de intrigas e desentendimentos, diminuindo as informações assimétricas. Neste tipo de administração, todos são informados das ações mais importantes e pode-se até tomar decisões sobre um melhor direcionamento de recursos. No entanto, dentro do sistema universitário, às vezes isto é bastante difícil de se aplicar.

Usando a Teoria dos Jogos, poderíamos esquematizar esta situação de assimetria de informações num quadro relativamente simples de compreender (Figura 1):

Universidade fornece as informações completas (UIC) - ganho: 1

Universidade fornece as informações incompletas (UII) - perda; 0

Professores fornecem as informações completas (PIC) - ganho: 1

Professores fornecem as informações incompletas (PII) - perda: 0

Figura 1
Quadro da relação de informações entre universidade e professores.

Hoje, na maioria das instituições universitárias, nos encontramos, em termos de relacionamento, no quadrante inferior direito (perda/perda), quando o ideal seria nos encontrarmos no quadrante superior esquerdo (ganho/ganho) da Figura 1.

Como poderíamos solucionar este impasse, em que as quatro partes envolvidas - universidade, professor, aluno e sociedade - perdem?

Estamos diante de dois paradigmas, um por parte das instituições de ensino e outro por parte dos profissionais, que devem ser mudados. Algumas universidades já vêm usando, há décadas, novas técnicas pedagógicas no ensino médico. As mais bem-sucedidas são as Universidades McMascter, no Canadá, e Maastricht, na Holanda, que utilizam o Problem Based Learning (PBL). Esta forma de ensino é baseada na discussão de casos, utilizando diversos cenários. Empregada em muitos cursos com sucesso (Medicina Psicologia, Enfermagem, Administração e Direito, entre outros), é uma forma dinâmica e moderna de preparar os estudantes para suprir as necessidades do mercado de trabalho (ensino centrado no aluno). O ensino tradicional é baseado no conhecimento e experiência do professor. Não que isto não seja importante (ensino centrado no professor), mas, no momento em que o aluno for utilizar estes conhecimentos, estes têm grande chance de terem sofrido mudanças graças à evolução da ciência. É como se estivéssemos ensinando os alunos a caminharem de costas para o futuro, fixando os olhos em velhos conhecimentos.

O modelo de ensino tradicional é do tipo “naturalístico”. Nele, as pessoas envolvidas têm grande autonomia de decisões, o que acaba levando ao conflito dos objetivos específicos de cada disciplina como objetivo geral do curso como um todo. Isto acaba por gerar tensão e desmotivação, além de estimular a formação de pequenos “feudos”, tornando inviável a idéia de trabalho em grupo e de cooperação. O modelo de PBL é “racionalístico” centralizando algumas decisões, mas privilegiando o trabalho em grupo, porém com um planejamento bem estruturado e sistematizado, buscando integrar as disciplinas de maneira lógica e com complexidade crescente, trabalhando com a visão de que os objetivos do curso são mais importantes que os das disciplinas, e estes é que devem ser complementares aos objetivos centrais. A PBL é mais contextualizada e flexível que o ensino tradicional, podendo ser mais facilmente adaptada às necessidades e demandas particulares de determinadas regiões e momentos. Ela é mais construtiva, pois assume um padrão “Z” de currículo com atividades práticas (discussão de casos e treinamento de habilidades) desde o primeiro ano do curso. As atividades práticas vão assumindo maior carga horária ao longo do curso, tornando menos traumática a entrada no mercado de trabalho, bem diferente do modelo "'H" de currículo, no qual há uma sobrecarga de teoria nos primeiros anos, e as atividades práticas ficam restritas somente aos últimos anos do curso (Figura 2).

Figura 2
Tipos de currículo “Z” e “H”.

A PBL tem por característica ser também um modelo colaborativo, que estimula nas atividades o trabalho em grupo, a troca de informação e a cooperação. Este comportamento é estimulado também nas avaliações individuais, em que estas são influenciadas diretamente pelo desempenho do grupo As avaliações são planejadas de maneira a contribuírem com o aprendizado e não somente representarem um teste de conhecimentos no final de um ciclo. Avaliam-se atitudes, habilidades e conhecimentos, diferentemente do modelo tradicional, que privilegia o conhecimento em detrimento dos outros aspectos.

Em verdade, este novo paradigma prepara os alunos para aprender a aprender, assumir uma postura mais crítica trabalhar em grupo, cooperar e desenvolver um raciocínio lógico, com base nas mais diferentes situações que deverão enfrentar na vida profissional. Também leva o aluno a se envolver com a própria preparação profissional, assumindo responsabilidades em sua formação, estando, assim, mais comprometido e mais motivado para o estudo, redirecionando seu olhar para o futuro.

As instituições que trabalham com esta técnica pedagógica conseguiram construir uma relação mais cooperativa entre elas e seu corpo docente. Como resultado, seus clientes (alunos) apresentam maior satisfação com o aprendizado recebido, e especialmente a comunidade acaba por ganhar profissionais mais bem preparados para suprir suas necessidades. As instituições atraem mais investimentos, podendo remunerar melhor seus professores, e também se tornam centros geradores de conhecimentos através de pesquisas científicas.

Podemos dizer que a PBL, além de uma nova proposta pedagógica, é uma filosofia de trabalho, pois contempla e busca, de maneira eficiente prática, o equilíbrio dos três pilares da Educação Médica: ensino teórico, pesquisa e ensino prático. Este modelo não dever ser considerado de forma maniqueísta - ou seja, melhor ou pior que o ensino tradicional -, mas principalmente como uma abordagem diferente, através da qual poderemos, com maior facilidade e objetividade, promover uma formação profissional adequada.

Como filosofia, este modelo pode e deve ser adequado às necessidades e características de cada universidade. Deve-se evitar o impulso inicial de “importar” um modelo “pré-fabricas”, pois as soluções que deram certo em algumas comunidades não darão certo em outras obrigatoriamente. Tomando por base os pontos centrais da PBL, como o estudo baseado na discussão de casos, o restante deve ser construído e adequado de maneira individual e particular. A PBL suporta, inclusive, o convívio harmónico de algumas ações presentes no ensino tradicional, como as aulas teóricas, sem com isto se descaracterizar.

A construção do modelo individual de PBL passa inicialmente por um planejamento estratégico baseado em metas de curto, médio e longo prazos, por um treinamento intenso e completo de todos os atores que venham a participar do processo (professores, tutores e pessoal administrativo), uma sistematização na construção dos blocos e casos, e, principalmente, a construção de um currículo coerente (inter-relacionando os mais diferentes assuntos).

Existe um papel importante que a avaliação assume na PBL, fazer parte do processo de aprendizado. Para tanto, ela deve ter um modelo formativo e contínuo, isto é, deve estar presente durante todo o período de ensino, e seus resultados devem propiciar melhor adequação das técnicas de estudo por parte dos aluno, e da técnica pedagógica utilizada por professores e tutores.

É necessário ter em mente que a avaliação não deve ser vista mais somente como um processo para progressão, mas também como um processo efetivo de aprendizado.

É chegado o momento de repensar nosso modelo de ensino universitário, solucionar o "Dilema do biscoito” e nos engajar nessa mudança, pois os primeiros sinais da falência do ensino tradicional, como se apresentam atualmente, já estão presentes quando observamos a insatisfação de todos os segmentos envolvidos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2002

Histórico

  • Recebido
    25 Set 2002
  • Revisado
    23 Out 2002
  • Aceito
    23 Out 2002
Associação Brasileira de Educação Médica SCN - QD 02 - BL D - Torre A - Salas 1021 e 1023 | Asa Norte, Brasília | DF | CEP: 70712-903, Tel: (61) 3024-9978 / 3024-8013, Fax: +55 21 2260-6662 - Brasília - DF - Brazil
E-mail: rbem.abem@gmail.com