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O RACISMO RECREATIVO CONTRA DESCENDENTES DE ASIÁTICOS/AS: UMA ABORDAGEM DISCURSIVA

RECREATIONAL RACISM AGAINST ASIAN DESCENDANTS: A DISCURSIVE APPROACH

RESUMO

Uma das características do racismo recreativo é a de estereotipar grupos a partir do humor e de personagens estereotipadas. Assim, se torna possível projetar comportamentos e valores sobre um grupo social minorizado, que se reduziria a alguns poucos comportamentos esperados. Por essa razão, o racismo recreativo tem como alvo pessoas não-brancas, ou seja, negros e, em menor grau, asiáticos e mestiços. O objetivo deste trabalho é examinar as estratégias discursivas de combate a tal racismo, recorrendo a um de seus principais instrumentos: o humor. Desejamos, assim, discutir quando um grupo minorizado assume esse mesmo procedimento discursivo para reelaborá-lo por meio da ironia, com o intuito de ressignificar determinadas práticas sociais ligadas a esse racismo recreativo. Como corpus, elegemos dois vídeos (“Coisas que asiáticos brasileiros sempre ouvem” e “Se asiáticos brasileiros fizessem perguntas que fazem para eles”) de um canal organizado no YouTube por um grupo de jovens artistas brasileiros/as de ascendência asiática, intitulado Yo Ban Boo. A partir do diálogo das teorias do discurso (semiótica discursiva e da análise do discurso), gostaríamos de discutir como os estereótipos são construídos nos vídeos selecionados, os modos como os asiáticos são, então, representados em uma identidade pouco diversa e como o humor pode ser usado para inverter os lugares de poder na interação entre brancos e não-brancos. Esperamos, assim, contribuir para uma espécie de pedagogia que principia o respeito à diversidade e à diferença que são atenuadas na constituição de tais tipos de discursos sobre grupos minorizados.

Palavras-chave:
racismo recreativo; semiótica discursiva; asiáticos/as brasileiros/as; preconceito

ABSTRACT

One of the characteristics of recreational racism is that of stereotyping groups from humor and stereotyped characters. Thus, it becomes possible to project behaviors and values on a minority social group, which would be reduced to a few expected behaviors. For this reason, recreational racism targets non-white people, that is, blacks and, to a lesser extent, Asians and mestizos. The objective of this work is to examine discursive strategies to combat such racism, using one of its main instruments: humor. We wish, therefore, to discuss when a minority group assumes this same discursive procedure in order to reelaborate it through irony, with the intention of resignifying certain social practices linked to this recreational racism. As a corpus, we have elected two videos (“Things that Asians Always Listen to” and “If Asians Always Asked Questions”) from a channel organized on YouTube by a group of young Brazilian artists of Asian descent, entitled Yo Ban Boo. From the dialog of discourse theories (discursive semiotics and discourse analysis), we would like to discuss how stereotypes are constructed in the selected videos, the ways in which Asians are then represented in a little diverse identity, and how humor can be used to reverse the places of power in the interaction between white and non-white. We hope to contribute to a kind of pedagogy that begins the respect for diversity and difference that are attenuated in the constitution of such types of discourses about minority groups.

Keywords:
recreational racism; discursive semiotics; Brazilian Asians; prejudice

INTRODUÇÃO

Em uma reportagem veiculada pelo programa Globo Esporte em 2017, que apresentava um evento sobre artes marciais em São Paulo1 1 Trata-se do Glory of Heros, considerado o maior evento de artes marciais na China e cuja primeira edição foi foco da mencionada reportagem. , a repórter fala para um mestre de kung-fu: “vivendo no Brasil há 40 anos, ainda diz ‘mistula’? Como assim, gente?”. Em seguida, a mesma repórter pede para um participante do público do evento, igualmente chinês, falar a palavra “frango” para ver se ele falaria “corretamente”. A cobertura, que deveria mostrar como a competição era organizada, a participação de lutadores brasileiros e o público em geral, se revelou um lamentável espetáculo de preconceito linguístico contra a população asiática residente no Brasil. Depois de algumas manifestações nas redes sociais, sobretudo de descendentes de asiáticos/as, a jornalista se desculpou publicamente pelo ocorrido, ato não acompanhado pelo apresentador do programa ou por outros profissionais responsáveis por levar a reportagem ao ar.

Poderíamos ainda mencionar outras reportagens em que tal abordagem é repetida, sejam aquelas que destacam o modo como asiáticos/as e seus descendentes falam o português, sejam com outros tipos de comportamentos ou hábitos ironizados pelo olhar branco. Contudo, piadas não são apenas um momento de descontração, de descarga da tensão ou de relaxamento por conta de algumas risadas. Há uma dimensão social pouco discutida e que pode envolver a sujeição de grupos e a manutenção de hierarquias sociais, estereótipos culturais e preconceitos de ordem geral. Assim, piadas não se referem apenas a uma mera brincadeira, uma vez que há graves repercussões coletivas e individuais sobre as quais muitas vezes não é dada a devida atenção.

Parte desse esforço em reproduzir nos meios de comunicação determinados comportamentos sociais diretamente atrelados a grupos étnicos definidos (como o negro bêbado e/ou vagabundo) tem um objetivo determinado: rebaixar, por meio da repetição e da generalização, um grupo social, mantendo-o sob controle. Além disso, reforça-se o estereótipo negativo de um grupo e se estende a todos os seus membros as mesmas características em outros contextos de interação social. A circulação dessas imagens, por meio do racismo recreativo, faz com que se consolide um aspecto do racismo estrutural que pode ser determinante, por exemplo, em uma entrevista de emprego, em um passeio no shopping ou mesmo nas relações afetivas interpessoais.

Apesar de esse tipo de racismo ser muito mais evidenciado na população negra, este trabalho visa a elaborar uma análise a partir de um outro grupo étnico no qual se pode observar, em uma intensidade menor, questões relativas ao racismo recreativo. Estamos nos referindo, em particular, aos grupos de asiáticos/as (imigrantes ou descendentes) que sofrem também ataques relacionados a componentes que caracterizam o racismo recreativo: questões ligadas ao corpo, ao comportamento e a determinadas práticas e valores que estereotipam o grupo em temas diversos da vida social.

O objetivo deste trabalho é o de analisar dois vídeos com viés humorístico em que, de um lado, se apresentam as frases que descendentes de asiáticos/as escutam frequentemente em interações sociais cotidianas feitas com sujeitos brancos. Baseado em frases que podem ou não ser consideradas irônicas, o humor, neste caso, decorre do modo como o vídeo é montado e das reações de desaprovação que os sujeitos amarelos explicitam por meio de seu olhar e da manutenção de um silêncio desabonador. O segundo vídeo inverte os papeis do racismo recreativo e, assim, coloca o sujeito branco como o foco das frases que em geral os amarelos escutam. Dessa maneira, questiona-se o lugar de fala do sujeito branco e o faz passar pela experiência de ser o centro de comentários derrogatórios, assim como de imagens estereotipadas. Nesse sentido, o vídeo parece ser educativo ao colocar o foco em um grupo que em geral nunca é racializado e, consequentemente, não está acostumado a receber comentários jocosos e baseados em estereótipos sobre si negativos.

Para discutirmos as questões que ambos os vídeos mobilizam, recorremos às conceituações sobre o racismo estrutural e racismo recreativo, assim como a teorias do discurso (em especial, a semiótica discursiva), para examinar os elementos invariantes que dão sustentação aos efeitos de sentido produzidos pelas interações entre sujeitos amarelos e olhares brancos. Desse modo, recorremos a alguns elementos da semiótica, como a noção de interação e sanção para compreendermos como as narrativas se desenvolvem nesse cenário. Além disso, recorremos às noções de práxis enunciativa e de operações tensivas para descrever a organização lógica do discurso que surge em tais interações. Procedendo por meio da utilização desses conceitos, podemos explicitar os mecanismos mais gerais e abstratos presentes no racismo recreativo, como a suposição e a generalização de estereótipos convocados para reconstruir os simulacros dos sujeitos amarelos. Para isso, começamos com uma delimitação sobre o racismo estrutural e o racismo recreativo, com destaque à dimensão discursiva que ambos os conceitos comportam.

1. O RACISMO E SUAS VARIAÇÕES DISCURSIVAS

Diversos estudos têm trabalhado com distintas teorias para combater o racismo. Dentre os inúmeros trabalhos, aqueles que fazem uma abordagem didática servem para que nós, meio brancos e meio amarelos, possamos refletir e assumir uma postura antirracista em nossas práticas sociais diárias, em nossas pesquisas acadêmicas e em nossa constante e atenta reformulação de visão de mundo.

Quando se trata de racismo, duas questões precisam ser, em nosso entendimento, abordadas para que nos situemos perante tal fenômeno social. A primeira questão se refere ao caráter discursivo do racismo. Ele carrega determinadas características linguísticas, manifestadas por meio da verbalização de certos adjetivos, usos de determinados verbos, substantivos mobilizados como “apelidos”, entre outros traços. Além disso, é por meio do discurso que se constroem certas narrativas que, em um processo de generalização, podem ser aplicadas a todo um grupo social delimitado pelo próprio conceito de raça. A segunda questão a qual gostaríamos desde o início de apontar é que o racismo não é um fenômeno pontual, que ocorre em situações únicas envolvendo determinadas pessoas. Casos assim, que observamos aos montes nas redes sociais, são a ponta visível de uma estrutura cuja existência, obviamente, não invalida nem diminui a responsabilidade dos sujeitos que pronunciam seus dizeres racistas e atacam explícita ou implicitamente pessoas e grupos sociais distintos de uma normatividade branca, masculina, heterossexual e de matriz cristã. Consequentemente, há diferentes formas de ser racista contra os grupos sociais não-brancos, assim como estratégias de atenuação para não se assumir o caráter racista de atitudes, comportamentos e posturas. É nesse ponto que entra, em nosso entendimento, o papel fundamental da linguagem, seja para ser racista seja para negar o próprio racismo.

Grada Kilomba diz que não devemos perguntar se somos ou não racistas. No lugar, ela sugere que façamos uma pergunta básica: “Como eu posso desmantelar meu próprio racismo?” (KILOMBA, 2019KILOMBA, G. (2019). Memórias da plantação. Rio de Janeiro: Cobogó., p. 46). Assim, precisamos estar sempre atentos para combater o racismo, condição que devemos assumir e não perder de vista. Na mesma linha, Almeida afirma que as sociedades contemporâneas só podem ser entendidas de modo mais completo quando entram na discussão os conceitos de raça e de racismo (2019, p. 15).

Isso posto, precisamos explicitar o que é raça, racismo, suas estratégias e como o racismo estrutural se insere no debate do racismo recreativo, questão de maior interesse para nós, sobretudo porque é por meio de sua identificação que poderemos observar seu funcionamento em relação aos sujeitos amarelos. De início, precisamos entender que raça não é meramente uma construção biológica. Ela é fundamentalmente uma construção cultural com implicações políticas que visam à manutenção dos privilégios do grupo hegemônico.

De todo modo, como constata Almeida (2019ALMEIDA, S. (2019). Racismo estrutural. São Paulo: Pólen Livros., p. 18), o racismo não é um conceito estático, pois está atrelado a dois aspectos fundamentais da noção de raça: o biológico e o étnico-cultural. O primeiro se ancora em um traço físico, como a cor da pele; o segundo está respaldado na origem geográfica, social, linguística, religiosa ou comportamental de sujeitos e grupos sociais (idem, p. 22). Em ambos os casos, é a ideia de diferença e de sua hierarquização que vão orientar ambos os racismos. Por isso, o próprio autor mostra que a noção de raça comporta uma dimensão política ao naturalizar as desigualdades sociais, como se o maior número de desempregados na população negra se referisse a uma falta de vontade como traço inerente ao grupo, por exemplo. Além disso, o racismo tem como objetivo legitimar a segregação de grupos considerados, do ponto de vista social, minoritário (os grupos minorizados).

Por conseguinte, o racismo é o uso do conceito de raça para estabelecer uma hierarquia social baseada em uma suposta (e equivocada) essência por meio da qual cada grupo se caracterizaria. Segundo Santos (1984SANTOS, J. R. dos. (1984). O que é racismo. São Paulo, Editora Brasiliense., pp. 38-41), o racismo é uma doutrina que visa a afirmar a superioridade racial de um grupo sobre outros. Essa hierarquização das raças leva, por conseguinte, a uma hierarquia social baseada nos traços raciais, que poderá resultar em um sistema desigual de direitos e deveres no bojo de uma sociedade. Essas características teriam sido, segundo o autor, retrabalhadas no contexto social brasileiro, produzindo, assim, um “racismo à brasileira” dotado de marcas específicas que minimizam os processos de segregação social, chegando até mesmo a serem interiorizados pelos que sofrem os efeitos desse racismo.

Racismo é, então, uma forma de discriminação, por meio de uma ação que resulta em prejuízo ou privilégio a um ou outro grupo racial ao qual um sujeito pertence (ALMEIDA, 2019ALMEIDA, S. (2019). Racismo estrutural. São Paulo: Pólen Livros., p. 23). Almeida distingui ainda preconceito racial de discriminação racial, distinção similar à que realizamos em estudos sobre o discurso intolerante (BUENO, 2015BUENO, A M. (2015). Para uma gramática da intolerância. Entremeios, v. 10, p. 57-68.). No preconceito racial, entra em jogo os estereótipos e o modo como um grupo é julgado por meio desse dispositivo social. Em termos semióticos, o preconceito é uma sanção decorrente do fazer-interpretativo em relação ao simulacro de um sujeito narrativo, individual ou coletivo, que supostamente não cumpre sua parte do contrato social imposto pelo sujeito intolerante (idem). Em outras palavras, é a imagem negativa que o outro constrói de um grupo minorizado por não se adequar a um ideal de “qualidade social” construído pelo imaginário do grupo supostamente hegemônico. Isso só pode ocorrer porque quem é preconceituoso pode ocupar um lugar social privilegiado. Já a discriminação racial é uma diferenciação na relação contra indivíduos de um determinado grupo social (ALMEIDA, 2019ALMEIDA, S. (2019). Racismo estrutural. São Paulo: Pólen Livros., p. 23). Este seria, então, algo mais próxima de uma ação, e em especial de uma ação malevolente, na qual se age para segregar, excluir ou mesmo eliminar a alteridade representada por grupos sociais (BUENO, 2015BUENO, A M. (2015). Para uma gramática da intolerância. Entremeios, v. 10, p. 57-68.).

O racismo estrutural se refere a uma dimensão presente na “organização econômica e política da sociedade” (ALMEIDA, 2019ALMEIDA, S. (2019). Racismo estrutural. São Paulo: Pólen Livros., p. 15). Em outras palavras, o racismo não é apenas a atitude de pessoas más e ignorantes que em uma determinada situação revelam uma atitude discriminatória ou de exclusão definitiva contra pessoas negras, indígenas ou amarelas (em suma, não-brancos). Como dissemos, esta é apenas a dimensão mais escancarada do racismo. Contudo, o debate e o combate devem ser feitos em outro plano, mais abstrato, pois é o caráter sistêmico do racismo que lhe permite reorganizar suas práticas e visões de mundo para manter sua posição e, consequentemente, o lugar de privilégio que ele gera ao estabelecer hierarquias, generalizar caráteres, naturalizar diferenças sociais, tolerar determinados hábitos e comportamentos, culturalizar diferenças individuais biológicas, moralizar a presença do outro em seu campo de visão.

O racismo manifestado por meio da linguagem, na construção das representações e no linguajar das interações cotidianas, também traz consequências práticas que podem levar a diminuição das chances de mobilidade social, acesso a uma certa cultura, objetos materiais e simbólicos, na linha do que afirma Almeida (2019ALMEIDA, S. (2019). Racismo estrutural. São Paulo: Pólen Livros., p. 24).

A dimensão social do racismo também pode ser observada na capacidade de sujeitos poderem consumir, segundo um padrão imposto pela branquitude. Por isso, a depender do poder aquisitivo em questão, pode-se até mesmo levar um sujeito ou grupo social a se tornar “branco” (ALMEIDA, 2019ALMEIDA, S. (2019). Racismo estrutural. São Paulo: Pólen Livros., p. 39). É o que se pode observar, por exemplo, na população asiática. Essa parece ser uma distinção fundamental, na medida em que asiáticos/as, muitas vezes na condição de turistas, estão nos principiais centros de compras em diversas metrópoles do mundo ocidental, adquirindo produtos de marcas consideradas caras para o padrão médio de consumo. Nesses casos, não se leva em conta, por exemplo, o fato de serem amarelos, mas sim de serem consumidores com alto poder aquisitivo, que consome produtos como brancos de alto poder aquisitivo. E por que se busca tal padrão de branquitude? A resposta pode ser encontrada em Moreira: “À identidade racial branca estão associados diversos predicados positivos, como superioridade cultural, beleza estética, integridade moral, sucesso econômico e sexualidade sadia” (2019, p. 29). Trata-se, assim, de desconstruir também o lugar da branquitude nessa dinâmica social e, consequentemente, desvelar os elementos que sustentam a naturalização desse lugar ocupado pelo sujeito branco:

Ser classificado como branco significa que esse indivíduo não pertence a um grupo racial porque apenas minorias raciais possuem raça; pessoas brancas são apenas seres humanos. Por não serem socialmente marcados, pessoas brancas se percebem apenas como indivíduos. O lugar racial no qual são inseridas permite que seus privilégios sociais sejam inteiramente invisíveis porque eles não são interrogados (MOREIRA, 2019MOREIRA, A. (2019). Racismo Recreativo. São Paulo: Pólen Livros., p. 40).

A branquitude é uma forma de dominação manifestada não somente por meio da agressividade, mas também de estratégias sutis de manipulação por conta de suas mediações e consensos. Consequentemente, uma das estratégias mais utilizadas pelo branco é a de construir e veicular estereótipos ligados aos grupos racializados. Esta é, reforçamos, uma maneira de manter a dominação e o controle sobre os grupos, por meio do controle da representação dos estereótipos e dos meios de difusão na sociedade, o que afeta a subjetividade dos grupos e os prejudica ao criar empecilhos materiais e simbólicos na busca por equidade política, econômica e afetiva (ALMEIDA, 2019ALMEIDA, S. (2019). Racismo estrutural. São Paulo: Pólen Livros., p. 53).

Para a necessária operação de desnaturalização das relações sociais é preciso entender que o racismo é uma ideologia (ALMEIDA, 2019ALMEIDA, S. (2019). Racismo estrutural. São Paulo: Pólen Livros., p. 46). Consequentemente, a manifestação dessa ideologia ocorre na linguagem, nas práticas sociais cotidianas, nos meios de comunicação, entre outros canais, o que faz com que se difunda uma mentalidade que prejudica os grupos minorizados. Sobre a relação entre linguagem e ideologia, seguimos com a afirmação de Fiorin:

Por causa dessa indissociabilidade [entre linguagem e pensamento], pode-se afirmar que o discurso materializa as representações ideológicas. As ideias, as representações não existem fora dos quadros linguísticos. Por conseguinte, as formações ideológicas só ganham existência nas formações discursivas” (FIORIN, 1997FIORIN, J. L. (1997). Linguagem e ideologia. São Paulo: Ática., p. 34).

Podemos dizer que a realização do racismo ocorre por meio dos discursos. Consequentemente, por ser uma das estratégias do racismo a “destruição das culturas e dos corpos com ela identificados para a domesticação de culturas e de corpos” (ALMEIDA, 2019ALMEIDA, S. (2019). Racismo estrutural. São Paulo: Pólen Livros., p. 50), observamos como os discursos constroem determinadas marcas morais nos grupos minorizados. É o que ocorre, por exemplo, com o traço de exotismo impresso em determinados grupos, como é o caso de asiáticos. A disputa entre discursos deve, assim, ocorrer no plano mais amplo da formação discursiva que, em outra chave teórica, pode ser compreendida como o imaginário social em que determinadas características associadas à raça são desvalorizadas e, por consequência, reforçam a os privilégios da parcela branca da sociedade.

Entendemos que parte da permanência do racismo se deve à manutenção dos estereótipos. Assim, a discussão sobre a construção dos estereótipos ganha relevância porque é este conceito que está na base do racismo recreativo. O estereótipo pode ser entendido como o produto de um preconceito, por ser um esquema fixo e de caráter redutor. Essa redução decorre de um processo de categorização e de generalização que simplifica as características de uma pessoa ou de um grupo social (AMOSSY; HERSCHBERG-PIERROT, 2007AMOSSY, R.; HERSCHBERG-PIERROT, A. (2007). Stéréotypes et clichés. Paris, Armand Colin.: 26-27). Essa perspectiva, de considerar o estereótipo como o produto de um preconceito, é encontrada principalmente nos estudos de Psicologia Social e Sociologia, mas nada nos impede de tomarmos emprestada essa concepção para os estudos do discurso.

O racismo recreativo pode ser entendido, basicamente, pelo uso do estereótipo negativo para a produção de piadas racistas e brincadeiras jocosas. Por conta do riso que provoca, esse tipo de racismo é considerado, muitas vezes, apenas uma brincadeira sem maiores consequências e não é tomado como uma discriminação racial (MOREIRA, 2019MOREIRA, A. (2019). Racismo Recreativo. São Paulo: Pólen Livros., p. 21). Contudo, a primeira questão a se colocar é: quem faz a piada? Em segundo lugar, é preciso questionar: contra qual grupo? Desse modo, podemos começar a elaborar algumas das questões que perpassam o racismo recreativo, quando ele pode ser considerado racista e quais as consequências para as interações sociais.

Os estereótipos presentes nas piadas racistas apresentam elementos semelhantes aos elementos que impedem o acesso a oportunidades em geral para a população negra. Isso ocorre porque o estereótipo não possui somente um lado descritivo. Ele também apresenta uma face prescritiva (MOREIRA, 2019MOREIRA, A. (2019). Racismo Recreativo. São Paulo: Pólen Livros., pp. 42; 55), o que determina uma maneira de se comportar, de pensar, de gosto e de interações em relação ao grupo minorizado.

Piadas que envolvem a hostilidade contra um determinado grupo e seu rebaixamento se caracterizam por apresentar uma estratégia que atenua possíveis acusações de racismo. Quando se argumenta que “tudo não passa de uma brincadeira”, ocorre a proteção da imagem de quem proferiu a piada (MOREIRA, 2019MOREIRA, A. (2019). Racismo Recreativo. São Paulo: Pólen Livros., p. 22). No entanto, mesmo com essa estratégia, podemos observar implicações nefastas aos alvos de tal tipo de “piada”, uma vez que sua construção discursiva envolve, muitas vezes, uma correlação entre a fenotipia e a qualidade moral das pessoas ou dos grupos sociais (idem, p. 27).

Por ser discursivo, o racismo recreativo cria narrativas que fundamentam o senso comum sobre raça e racismo em uma sociedade. Em outras palavras, o racismo recreativo se baseia na construção de narrativas morais sobre grupos racializados e que sustentam o senso comum (MOREIRA, 2019MOREIRA, A. (2019). Racismo Recreativo. São Paulo: Pólen Livros., p. 30). O senso comum pode ser entendido como consequência uma práxis enunciativa, basicamente entendida como o ato da enunciação em atualizar grandezas significantes sociais consolidadas pelo uso recorrente em uma determinada sociedade. Assim, o sujeito da enunciação mobiliza elementos do sentido já dados coletivamente e reconhecidos pelo uso reiterado que sustenta, inclusive, a face coletiva do pensamento individual. A práxis enunciativa é responsável pela atualização do já conhecido, assim como pela possibilidade de substitui-lo por um discurso novo. Logo, é a práxis enunciativa que reconhece, regula e reorganiza as significações mais ou menos aceitas socialmente nos discursos em circulação (FONTANILLE; ZILBERBERG, 2001FONTANILLE, J.; ZILBERBERG, C. (2001). Tensão e significação. São Paulo: Discurso Editorial/Humanitas.: pp. 171-202), dentre elas os estereótipos ligados a diferentes grupos sociais.

Moreira (2019)MOREIRA, A. (2019). Racismo Recreativo. São Paulo: Pólen Livros. distingue ainda algumas categorias que fundamentam o racismo recreativo. Há um racismo aversivo (p. 32), que surge por meio de preconceitos sutis que podem indicar um desprazer na interação, o que leva a um distanciamento social. Já o racismo simbólico se define pela maneira como os grupos minorizados são representados racialmente (p. 33). Como prática evidente do racismo recreativo, há uma característica de desprezo aos grupos minorizados que se materializa por meio de expressões verbais. É assim que se configuram as microagressões, enquanto um desprezo ou uma agressividade (que não resulta em uma agressão física, mas simbólica) que visa a demarcar o espaço de pertencimento de um indivíduo em relação ao seu grupo social. É com essa sutileza que observamos também os microinsultos que encobrem uma indiferença ou falta de empatia à identidade cultural ou à tradição de uma pessoa ou grupo (p. 36). Já a microinvalidação é uma forma de não dar o devido reconhecimento às experiências vividas por um indivíduo ou grupo racializado (MOREIRA, 2019MOREIRA, A. (2019). Racismo Recreativo. São Paulo: Pólen Livros., pp. 36-37).

Além dessas características, as piadas se baseiam em estereótipos negativos, como dissemos, a partir dos quais imprimem estigmas sociais aos grupos sobre os quais atuam. Por consequência, indivíduos reconhecidos ou pertencentes a determinados grupos sociais carregam certos traços identitários culturalmente negativos, porque considerados distintos ou inferiores ao padrão do grupo dominante (MOREIRA, 2019MOREIRA, A. (2019). Racismo Recreativo. São Paulo: Pólen Livros., pp. 42-43).

Isso ocorre porque o humor também mostra uma necessidade de se distinguir em relação a outras pessoas e grupos. Consequentemente, o humor que atribui características derrogatórias a outros grupos sociais serve para produzir uma sensação de superioridade (moral, social, econômica etc.) a partir de uma certa condição humilhante do outro (MOREIRA, 2019MOREIRA, A. (2019). Racismo Recreativo. São Paulo: Pólen Livros., pp. 47-48). Esse tipo de humor pode ser também utilizado de modo estratégico na medida em que ele pode se apresentar como um contraponto a uma escalada dos grupos minorizados que obtém reconhecimento e uma maior inclusão e direitos em termos de políticas sociais (idem, p. 49), uma vez que essas presenças surgem como uma ameaça à manutenção da condição hegemônica da branquitude em termos de privilégios sociais, políticos, econômicos e culturais.

Além de contribuir para a manutenção da desigualdade e da atribuição de responsabilidade pela sua condição às próprias pessoas dos grupos minorizados, devemos ainda mencionar as consequências sociais e psicológicas que tal tipo de humor produz nos indivíduos: em geral, elas podem se sentir “moralmente degradadas” (MOREIRA, 2019MOREIRA, A. (2019). Racismo Recreativo. São Paulo: Pólen Livros., p. 52) e são socialmente prejudicadas por conta da percepção negativa generalizada. Desse modo, o humor que produz a risada de alguns é também uma forma agressiva de tratar o outro, além de ser um modo de atenuar possíveis expressões atreladas ao racismo explícito e ao ódio franco a outros grupos sociais (MOREIRA, 2019MOREIRA, A. (2019). Racismo Recreativo. São Paulo: Pólen Livros., p. 50). Moreira apresenta, assim, as características que definem o humor racista e as consequências para os sujeitos envolvidos nessa interação: em quem profere e em quem sofre esse tipo de racismo (2019, pp. 52-53):

  1. Defeito moral;

  2. Estereótipos negativos;

  3. Causa danos psicológicos e sociais ao grupo alvo;

  4. Está atrelada ao contexto cultural na qual ocorre;

  5. Perpetua os estereótipos e as desigualdades;

  6. Garante a satisfação do grupo dominante.

Dessas características, observamos que são as representações culturais de grupos sociais que estão em jogo. O tom jocoso das piadas racistas se liga sobretudo ao traço do pertencimento racial e da generalização de características negativas que se consolidam e podem orientar as interações sociais cotidianas, na medida em que faz perdurar as imagens negativas do outro. Nessa operação, está embutida a ideia de julgamento (MOREIRA, 2019MOREIRA, A. (2019). Racismo Recreativo. São Paulo: Pólen Livros., p. 55). Em outras palavras, as piadas racistas trazem uma sanção negativa sobre os supostos comportamentos e valores (porque, no fundo, se referem a estereótipos) e, por meio da repetição e da generalização, ocorre a solidificação de uma imagem por meio desse tipo de expediente racista.

Passemos, então, à descrição e à análise das significações identificadas nos dois vídeos selecionados. Procuraremos mostrar, nesta etapa do trabalho, como o racismo recreativo funciona discursivamente para, na conclusão, fazer o enlace final entre teoria e objeto da pesquisa.

2. O RACISMO RECREATIVO CONTRA OS RACISTAS: INVERSÕES E REELABORAÇÕES DOS SENTIDOS

A partir de uma estrutura relativamente simples, de pergunta ou afirmação e uma resposta negativa, em geral, não verbal, os vídeos do grupo Yo Ban Boo retratam discursos e valores projetados sobre os descendentes de asiáticos/as em suas interações com sujeitos brancos. Em um primeiro momento, vamos elencar os temas presentes nos diálogos simulados nos dois vídeos selecionados. Em seguida, passaremos para uma discussão conceitual a partir das propostas da semiótica discursiva de linha francesa, com a explicitação dos conceitos na medida em que forem necessárias outras explicações teóricas.

Identificamos alguns temas que orientam os dois vídeos comparativos. O primeiro vídeo (“Coisas que asiáticos brasileiros sempre ouvem”2 2 Vídeo disponível no seguinte link: <https://www.youtube.com/watch?v=nhNYxzQn_XU>. ) apresenta o que sujeitos amarelos vivenciam em algumas de suas interações cotidianas. Os temas destacados são: a) corpo asiático; b) família; c) relações sociais; d) questões linguísticas; e) comida; f) diferenças entre asiáticos/as.

Em relação ao corpo oriental, ocorrem algumas pequenas narrativas cotidianas, como o questionamento sobre a aparência oriental: “Quantos anos você tem? 18 anos, né?” (há uma ideia generalizada de que os asiáticos/as parecem mais jovens do que são). Além disso, há questionamentos quando a identidade asiática não parece seguir o padrão imaginado pelo branco: “Você é mestiço, não é? Quem é oriental lá, seu pai ou sua mãe?”; “Pra você ter essa barba aí, seu pai deve ser bem peludo, né?”; “Pra uma oriental, você tem um corpão, hein? Ah, mas isso é um elogio”. Mesmo em caso de um suposto elogio, há sempre algo a se destacar, em uma estratégia essencialista: “Nossa, eu sempre quis ter cabelo de japonesa”; “É permanente isso aqui?” (pegando no cabelo ondulado).

Sobre o corpo oriental, assim como em outros aspectos da interação mostrada no vídeo, o sujeito branco interpela o sujeito amarelo em termos de conformidade ou desconformidade em relação a um padrão corpóreo ou de aparência que é o próprio branco que constrói em seu imaginário. Trata-se da explicitação do simulacro que o branco constrói do amarelo e o julga positiva ou negativamente. É o caso, por exemplo, de falar que uma japonesa tem “corpão”, enquadrando-a em um padrão supostamente não-asiático ao mesmo tempo em que deixa implícito que as japonesas não possuem o “corpão” mencionado e, por isso, não entram em suas considerações nas interações em que se busca um envolvimento sexual, por exemplo, como se efetivamente importasse a opinião ou o gosto branco em questão. Em relação à frase sobre a barba do sujeito amarelo e a consequente conclusão de que alguém na família não é asiático/as para o sujeito branco explicar, para si mesmo, uma suposta relação causal quando ele se depara com um corpo asiático que não corresponde ao seu imaginário estereotipado.

O tema da família se cruza com questões, no vídeo, ligadas à culinária: “Vocês comem de palitinho na sua casa?”; “E quando vocês comem lá na casa de vocês, você usa palitinho sempre? Até para tomar sopa?”, sempre destacando o uso do hashi, instrumento usado no lugar do garfo, faca ou colher. Um elemento que sustenta tal tipo de curiosidade ou brincadeira é a suposta ligação obrigatória dos/as asiáticos/as e seus descendentes à cultura asiática em geral e à manutenção de seus elementos culturais, linguísticos, religiosos, como se a cultura fosse hereditária e todo descendente de asiático/as fosse, na realidade, um imigrante. Em relação ainda ao tema da família, duas outras frases aparecem no vídeo: “Vocês são irmãs?”; “Você é sansei, nissei ou ‘não sei’?”; “Seus pais são rígidos?”. A primeira frase se refere, jocosamente, à suposta semelhança que todo/a asiático/a teria em relação a outro/a asiático/a. A segunda frase joga com a sonoridade de sansei (terceira geração de descendentes de japoneses no Brasil) e nissei (segunda geração de descendentes de japoneses no Brasil) com o fato de muitos não saberem tal tipo de classificação geracional vinda da língua japonesa. A terceira frase se refere à suposta rigidez das famílias japonesas no controle do comportamento e da educação de seus filhos, também em um movimento de generalização que se aplicaria a todos os/as descendentes de asiáticos/as e de suas conformações familiares.

No tema das relações sociais, as sanções aparecem de modo mais explícito em relação ao comportamento social dos descendentes de asiáticos/as. É o caso, por exemplo, de sentenças como: “Por que você só anda com orientais?”; “Por que você nunca anda com orientais? Você é o japonês mais brasileiro que eu conheço”; “Nossa! Vocês são um casal japonês muito fofo”; “Você só namora japonês?”.

Questionamentos desse tipo não são encontrados, frequentemente, em relação a sujeitos brancos. Ninguém pergunta se um desses sujeitos anda somente com brancos. Ao mesmo tempo, ter amigos não amarelos pode levar ao mesmo questionamento, mas agora contrabalançado pelo fato de supostamente não andar nunca com amarelos. Observa-se uma espécie de julgamento do comportamento do outro e o questionamento que leva a uma tentativa de controle sobre o que o outro pode ou não poder fazer pelo olhar branco julgador. No fundo, o que atravessa essa e outras questões é a ideia de que o/a asiático/a (entendido como “japonês”) está em uma comunidade fechada e homogênea. Então, ele/ela é questionado/a por supostamente manter essa comunidade fechada ou é acusado de não seguir o comportamento de todo/a e qualquer descendente asiático/a (ou seja, de todo “japonês/japonesa”). É também por esse motivo que uma frase como a que aparece no vídeo (“Eu tenho um amigo chinês, acho que você deve conhecer ele”) é frequente: é como se todo descendente de asiático/a conhecesse todos os/as outros/as descendentes de asiáticos/as, como se tratasse de uma comunidade homogênea, uniforme e fechada, em que todos os seus membros necessariamente se conhecessem.

Ao lado dessa questão, há comentários como “Nossa! Vocês são um casal japonês muito fofo” que mostra uma tentativa de infantilização do casal em questão, na medida em que mesmo sendo um comentário aparentemente positivo, revela a percepção de um exotismo atrelado ao casal, na medida em que se lhe atribuiria uma determinada qualidade (“fofinho”) que se presta a outras situações (um determinado comportamento) ou outros sujeitos (como bebês ou animais). Desse modo, o outro, o exótico, é tratado como um sujeito muitas vezes despossuído de maturidade, como se ele/ela fosse infantil como uma criança ou com menos atributos humanos que equivaleriam a um animal doméstico.

O comentário positivo é também uma espécie de justificativa para um suposto preconceito positivo. Assim, na frase “Sabe que pra passar na USP é só matar um japonês, né?” observa-se como o sujeito branco considera os estudantes de ascendência asiática como fortes concorrentes no vestibular mais concorrido do país. De todo modo, a violência simbólica se revela na medida em que a piada se mostra como uma maneira de o sujeito branco tratar a questão: ao invés de pensar em estudar e se esforçar o máximo possível, ele recorre a ideia de abater o outro, tal como em uma caçada, para conseguir realizar seu desejo. Essa frase pode ser, assim, interpretada também como um modo de se ver as relações estudantis pelo viés do sujeito branco: em uma vida cheia de privilégios, ele não precisaria se esforçar como acredita que outros devam fazer para conseguir o que se deseja. Basta usar de sua força (física, material, financeira, simbólica) para eliminar concorrentes e assim obter aquilo que estaria, em sua visão, predestinado a receber (BUENO, 2020BUENO, A. M. Imigrantes japoneses e a língua portuguesa: um caso de preconceito linguístico. (2020). Revista de Estudos da Linguagem, v. 28, p. 455-478.).

O discurso do sujeito branco se revela então portador de uma dimensão deôntica, ou seja, de atribuir um determinado dever-ser do/a descendente de asiático/a ou lhe cobrando justamente tal comportamento que só existe no imaginário estereotipado elaborado pelo olhar branco.

Outros enunciados seguem na mesma linha que orienta as interações entre brancos e amarelos mostradas no vídeo. Trata-se da suposta ligação entre descendentes de asiáticos/as e os elementos culturais, gastronômicos e linguísticos trazidos pelos imigrantes há muito tempo. Assim, frases como “Você sabe o que significa isso aqui?” (mostrando uma tatuagem com ideograma japonês); “Vocês falam português em casa, né? Porque sua mãe é brasileira”; “Vocês comem de palitinho na sua casa?”; “Você já comeu cachorro?”; “Você consegue diferenciar assim se é... tipos de orientais né, se é japonês, chinês... coreano...”. Assim, o/a descendente de japonês/japonesa (porque todo asiático seria, no ponto de vista do branco, um japonês/uma japonesa) deveria sempre saber falar japonês (além de saber ler e escrever), ter a capacidade perceptiva de diferenciar as origens de cada um dos povos asiáticos (afinal, para o olhar branco, todos são iguais, mas para o/a asiático/a seria fácil e até natural diferenciar as origens nacionais de cada um dos indivíduos) e deveria ter a experiência gastronômica herdada de seus antepassados.

O olhar do sujeito branco sobre o amarelo se revela, assim, o de um construtor dos traços que o outro deve carregar. É como se o/a asiático/a que não corresponde às expectativas elaboradas pelo olhar branco devesse ser julgado como pouco asiático ou cujo estranhamento seria naturalmente manifestado pelo sujeito branco. Esse olhar branco reduz a diversidade e a potencialidade dos sujeitos amarelos a traços estereotipados que sustentam o imaginário branco. Decorre, assim, a consequência de que é o outro que deve se adaptar ao crivo do sujeito branco e não o contrário: o branco não necessita se preocupar em conhecer e reconhecer a diversidade que toda e qualquer alteridade comporta nem precisa estar mais aberto para acolher os sentidos que não fazem parte de seu horizonte (reduzido) de expectativas e imagens (muitas vezes estereotipadas) em relação ao outro. Em outras palavras, um procedimento discursivo recorrente no racismo recreativo é a construção de uma suposição, baseada em estereótipos que são acionados e atualizados pela práxis enunciativa, o que faz restringir a presença do sujeito asiático na interação a determinados hábitos e valores que nunca se alteram, na medida em que a etapa seguinte é a da generalização dos sentidos que são aplicados em todas as interações possíveis com os sujeitos amarelos.

Desse modo, o olhar branco, em seu papel de julgador, a terceira característica discursiva que identificamos nos vídeos, mostra que o sujeito parece ser asiático/a, mas não é. A questão é que o fenótipo asiático se imprime, pelo olhar branco, como uma marca que não comporta em larga escala o uso dos elementos culturais ocidentais, como se os descendentes de asiáticos/as devessem permanecer em uma espécie de gueto cultural e linguístico para serem exibidos ao espetáculo formado pelo público branco. Assim, o olhar branco analisa a presença amarela para mantê-la segregada da identidade padrão hegemônica, ou seja, a identidade branca (LANDOWSKI, 2002LANDOWSKI, E. (2002). Presenças do outro. São Paulo: Perspectiva.).

É preciso, então, reeducar esse olhar branco por meio de diferentes estratégias. Uma delas, em nossa compreensão, foi proposta em um vídeo do mesmo canal do YouTube intitulado “Se asiáticos brasileiros fizessem perguntas que fazem para eles”3 3 Vídeo disponível no link: <https://www.youtube.com/watch?v=gjJnZZr_hOw>. . Trata-se de colocar os brancos na mesma situação em que os amarelos se encontram nas interações sociais com sujeitos brancos. Assim, invertem-se os papeis e o que julga e controla a imagem do outro passa agora a ser o foco de suas limitações e de seus próprios estereótipos.

Por essa razão, o vídeo em questão recorre aos mesmos temas, como se fosse um espelho do primeiro vídeo sobre o que os descendentes de asiáticos/as escutam com frequência. Para iniciar, mencionamos a frase que se refere ao tema do corpo branco: Você é alemão, né? Porque você é loiro. Você sabe o que significa? (fala frase em alemão)”. Assim, observamos a mesma operação de ligação como uma causalidade natural a relação entre característica corporal (cor do cabelo) e sua origem nacional. Além disso, se estende essa causalidade em termos de conhecimento linguístico, estabelecendo uma rede de ligações que naturalizariam um estereótipo do sujeito branco e loiro: seria descendente de alemães e, obrigatoriamente, falaria alemão.

Outra relação causal se encontra na frase “Mas você tem algum parentesco com Al Capone?”, na medida em que se ligaria a ideia de uma italianidade atrelada às práticas mafiosas de uma figura histórica importante para a comunidade italiana nos EUA. Ao mesmo tempo, é um modo de incluir o sujeito branco em uma rede causal (genealógica) semelhante à ideia de que todo/a asiático/a conhece todo/a asiático/a, como na seguinte frase: “Eu tenho um amigo italiano que você com certeza conhece! Eu esqueci o nome dele, mas é alguma coisa com ‘one’...”. Atribui-se, assim, a mesma ideia de que a comunidade italiana é fechada e homogênea, tal como é imaginada a comunidade asiática pelo olhar branco.

A ideia de que o branco pode ser também exótico (tal como negros e amarelos são muitas vezes construídos) se encontra na seguinte frase: “Nossa, que legal! Eu nunca conheci uma portuguesa”. Assim, coloca-se diante do termo mais geral “pessoa” o elemento semântico que a especificaria (e a tornaria exótica): sua nacionalidade.

Um tema bastante desenvolvido no vídeo é o das questões linguísticas. Esse tópico está ligado, como dissemos, à ideia de obrigatoriedade de que todo descendente deve falar fluentemente a língua trazida pelos seus antepassados ao país. Assim, as perguntas dirigidas aos brancos são: “Na sua casa, vocês falam português de Portugal ou português brasileiro?”; “Seu pai é italiano, então? Ah, mas você não fala italiano?”. Nesse caso, a surpresa é a sanção negativa que recai sobre o não-saber do sujeito branco, nesse discurso fictício em que orientais se surpreendem com a falta de conhecimento da língua imigrante dos antepassados, quebrando a imagem de que todo descendente, como dissemos, seria obrigado a saber a língua dos antepassados.

Além disso, há perguntas relativas a uma aparente curiosidade também ligada a um suposto modo de falar, como é o caso do italiano: “Todo mundo na sua casa fala assim? Como que é? É assim? (fazendo gestos com as mãos)”. Nesse caso, há um equivalente no que se refere ao uso de hashis em casas de descendentes orientais. A estratégia é mostrar como um elemento cultural muito distinto serve de base para uma suposta curiosidade que é generalizada para todos os integrantes de uma determinada comunidade étnica. Por fim, ainda na questão linguística, a sanção negativa aplicada ao branco é equivalente ao que se fala aos/às descendentes de asiáticos/as que não falam nada da língua dos antepassados: “Almondega, porpeta? Não fala? Pô, você é italiana paraguaia, hein?”. O uso da figura do paraguaio serve para sustentar uma postura duplamente xenófoba: uma contra o próprio paraguaio (tomado como um representante de falsidade) e contra a outra nacionalidade em questão.

Outro tema largamente empregado no vídeo é o da comida. Aqui, entram em questão o conhecimento sobre fazer determinado prato (bacalhau) ou executar de modo tradicional um elemento estereotipado de uma culinária europeia (molho de tomate), como se os descendentes sempre fossem obrigados a ter e manter um conhecimento supostamente tradicional do grupo étnico em questão: “Você sempre come bacalhau? Você sabe fazer? Não? Nossa, que portuguesa fajuta, hein?”; “Você faz seu próprio molho de tomate em casa, não é? Você tem plantação de tomate na sua casa?”. Além disso, a frase “Você é metade italiano, metade português... vocês comem macarrão com bacalhau?” toca em uma outra questão importante quando se refere aos grupos étnicos: a mestiçagem, nunca mencionada no caso dos brancos. Costuma-se questionar pouco as misturas entre diferentes nacionalidades europeias, ao contrário dos/as descendentes de asiáticos/as ou mestiços/as de asiáticos/as e europeus. Além disso, a frase “Você é português, né? Adoro pastelzinho de Belém!” se estrutura também em um pensamento causal, como se, por portar uma determinada nacionalidade, o sujeito branco deveria sempre obrigatoriamente conhecer e gostar de um determinado prato estereotipado de sua cultura.

Essa relação causal é também encontrada na seguinte frase: “Com certeza você é italiana! Pelo menos você deve ter ido uma vez já para lá... Porque as pessoas dessa cultura [italiana], que eu saiba, né... os italianos, eles têm umas peculiaridades, né? Eles são...”. A diferença é que haveria uma espécie de obrigatoriedade, em um contrato imaginário, de os descendentes sempre tentarem conhecer o país de origem de seus pais, avós ou bisavós, como uma espécie de renovação desse contrato de ligação intrínseca entre descendentes e uma suposta cultura de origem.

Nesta seção, apresentamos as principais características dos vídeos em que se identificam elementos do racismo recreativo. Além disso, foram apontados alguns elementos recorrentes na organização das interações. Esses elementos serão foco de nossa conclusão, com a aplicação mais robusta da teoria escolhida para isso. Assim, fechamos o trabalho com uma discussão de caráter mais geral e abstrato sobre a estrutura do racismo recreativo.

CONCLUSÕES: REEDUCAR O OLHAR BRANCO

Pensando um momento na estrutura de enunciados que os/as descendentes de asiáticos/as ouvem em suas interações com brancos, observamos uma tendência a naturalizar uma estrutura estereotipada do grupo amarelo. Assim, identificamos essa naturalização de sentidos por meio da estrutura básica implicativa (ZILBERBERG, 2011ZILBERBERG, C. (2011). Elementos de semiótica tensiva. São Paulo: Ateliê Editorial., pp. 263-264), que se organiza da seguinte maneira: Se A, então B. Assim, se “japonês/japonesa”, então fechado, ligado à comunidade, falante da língua japonesa etc. Contudo, se esse sujeito amarelo, pelo olhar branco, “questiona” em seu imaginário esta estrutura fundamental de pensamento, ele entra em uma organização concessiva (idem, pp. 242245) e, assim, passa a ser julgado por meio da seguinte estrutura: Embora A, B. Assim, embora “japonês/japonesa”, ele não parece tanto oriental. Desse modo, a estrutura fixa do estereótipo que sustenta o preconceito generalizado e o racismo, em particular recreativo, se mantém, independentemente de discursos contrários que circulam de maneira forte na sociedade. O pensamento implicativo, nesse caso, tenta impor à alteridade uma regularidade de comportamentos (LANDOWSKI, 2014LANDOWSKI, E. (2014). Interações arriscadas. São Paulo: Estação das Letras e Cores., pp. 22-23), cujo descumprimento das expectativas é então sancionado negativamente. Desse modo, podemos entender ainda que o estereótipo está ligado ao conceito de programação, enquanto um papel temático (idem): o/a japonês/japonesa, enquanto japonês/japonesa, só faz coisas de japonês/ japonesa...

Além disso, a inversão de papeis proposta pelo segundo vídeo mostra duas questões: a) existem estereótipos ligados à branquitude; b) esses estereótipos são muito mais ligados a temas gastronômicos e linguísticos do que a temas comportamentais. Assim, apesar da ironia que perpassa o vídeo, vemos que não há uma tentativa de se controlar o comportamento do branco (“por que você só anda com branco?” ou “por que você nunca anda com branco?” são perguntas que parecem até absurdas de tão improváveis em sua realização discursiva) nem de se julgar o corpo branco (“até que você tem um corpão para um a branca, hein?” seria um caso). Isso ocorre porque, efetivamente, o branco é a norma hegemônica nas interações sociais (LANDOWSKI, 2002LANDOWSKI, E. (2002). Presenças do outro. São Paulo: Perspectiva., p. 37).

Por ser o suposto padrão de referência, não é possível elaborar um paralelo completo entre as situações vividas pelos amarelos e as vivenciadas pelos brancos, pois na gestão discursiva que a práxis enunciativa (FONTANILLE; ZILBERBERG, 2001FONTANILLE, J.; ZILBERBERG, C. (2001). Tensão e significação. São Paulo: Discurso Editorial/Humanitas., pp. 171-202) realiza, mesmo enunciados paralelos como os mencionados acima por nós se torna improvável de serem realizados por um determinado enunciador. Assim, o racismo, sendo estrutural, administra até mesmo o que é possível ou não pensar sobre a branquitude, mesmo em se tratando de um humor. De todo modo, é também por meio da práxis enunciativa que temos a entrada de novos enunciados e o seu estabelecimento como uma nova normatividade. Por isso, discursos como o segundo vídeo do Yo Ban Boo se mostram fundamentais para descontruir o lugar do racismo recreativo, substituindo-o por um discurso que coloca o racista no lugar de quem sofre o racismo diário. Com isso, é possível pensar em um deslocamento do olhar branco, ao colocá-lo no lugar que historicamente é de silêncios e de opressão.

A disputa pelos sentidos relacionados aos grupos minorizados deve ser realizada, como dissemos, em um plano mais abstrato que prevê, entre outras possibilidades, o desvelar das estruturas elementares que sustentam o pensamento racista que limita a imagem do outro a um número reduzido de características para, assim, controlálo melhor e manter o regime de privilégios que caracteriza o grupo racialmente hegemônico em nossa sociedade. Colocar esse grupo em um lugar outro, impor uma experiência de silêncio (mesmo enquanto um simulacro) e construir igualmente uma representação reduzida pode fazer esses sujeitos pensarem em seu lugar de fala e o espaço que ocupam na sociedade para torná-la menos desigual e, sobretudo, menos racista. Os estudos discursivos podem, assim, contribuir um pouco com essa discussão ao apresentar um instrumental analítico capaz de desnaturalizar o olhar do outro, assim como se faz para desaprender para escapar do lugar de subalterno que muitas vezes a sociedade impõe a esses sujeitos.

REFERÊNCIAS

  • ALMEIDA, S. (2019). Racismo estrutural São Paulo: Pólen Livros.
  • AMOSSY, R.; HERSCHBERG-PIERROT, A. (2007). Stéréotypes et clichés Paris, Armand Colin.
  • BUENO, A M. (2015). Para uma gramática da intolerância. Entremeios, v. 10, p. 57-68.
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  • FIORIN, J. L. (1997). Linguagem e ideologia São Paulo: Ática.
  • FONTANILLE, J.; ZILBERBERG, C. (2001). Tensão e significação São Paulo: Discurso Editorial/Humanitas.
  • KILOMBA, G. (2019). Memórias da plantação Rio de Janeiro: Cobogó.
  • LANDOWSKI, E. (2002). Presenças do outro. São Paulo: Perspectiva.
  • LANDOWSKI, E. (2014). Interações arriscadas São Paulo: Estação das Letras e Cores.
  • MOREIRA, A. (2019). Racismo Recreativo São Paulo: Pólen Livros.
  • SANTOS, J. R. dos. (1984). O que é racismo. São Paulo, Editora Brasiliense.
  • ZILBERBERG, C. (2011). Elementos de semiótica tensiva São Paulo: Ateliê Editorial.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    30 Out 2020
  • Aceito
    03 Mar 2021
  • Publicado
    26 Ago 2021
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