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O BRANQUEAMENTO ENQUANTO PROJETO BRASILEIRO DE NAÇÃO E SEUS REFLEXOS EM NARRATIVAS DE MULHERES NEGRAS SUBALTERNIZADAS1 1 O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

BLEACHING AS A BRAZILIAN NATION PROJECT AND ITS REFLECTIONS IN NARRATIVES OF UNDERWATERED BLACK WOMEN

RESUMO

Partindo do quadro teórico oferecido pela Análise da Narrativa, este trabalho busca analisar e descrever narrativas de histórias de vida de mulheres negras, pobres, atendidas por programas socioassistenciais, observando as maneiras pelas quais essas mulheres constroem suas identidades e operam discursivamente com determinados aspectos normativos instituídos socialmente acerca do atravessamento “raça” - sobretudo os discursos acerca de uma suposta “ausência de racismo” e o ideal hegemônico de “branqueamento”. Utilizando a entrevista qualitativa como ferramenta de pesquisa, os resultados apontaram para um imbricamento entre os atravessamentos “raça”, “gênero” e “classe social”, comprovando a necessidade apontada pelas teorias interseccionais de gênero em geral e pelo feminismo negro contemporâneo em particular de se considerar o sujeito social sempre interseccionado por tais atravessamentos. Considerando ainda que em todas as entrevistas a existência do racismo é afirmada, coloca-se em questão o mito da democracia racial existente no senso comum e, ainda, ratifica-se a importância atribuída pelo feminismo negro acerca da necessidade de observação de experiências enunciadas por outros lugares de fala subalternizados, distantes das posições hegemônicas. Ademais, em todas as entrevistas analisadas, sobretudo nas avaliações que emergiram nas narrativas, a questão da cor da pele foi performada como um “estigma”, um traço profundamente depreciativo, alicerçado na naturalização da branquitude. No entanto, se nas narrativas de mulheres com idade mais avançada a ideologia do branqueamento não é questionada, nas “avaliações” das narrativas analisadas provenientes de entrevistadas mais jovens observamos o branqueamento hegemônico concorrendo com novos elementos, caracterizados por estabelecer fissuras significativas sobre aspectos normativos acerca da negritude.

Palavras-chave:
análise da narrativa; negritude; branqueamento; gênero

ABSTRACT

Based on the theoretical framework offered by Narrative Analysis, this work seeks to analyze and describe narratives of the life stories of poor black women, assisted by social assistance programs, observing the ways in which these women construct their identities and discursively operate with certain established normative aspects socially about the crossing of “race” - especially the discourses about a supposed “absence of racism” and the hegemonic ideal of “whitening”. Using the qualitative interview as a research tool, the results pointed to an overlap between the crossings of “race”, “gender” and “social class”, proving the need pointed out by intersectional theories of gender in general and by contemporary black feminism in particular of if we consider the social subject always intersected by such crossings. Considering that in all interviews the existence of racism is affirmed, the myth of racial democracy existing in common sense is called into question and, furthermore, the importance attributed by black feminism to the need to observe experiences enunciated by other subalternized places of speech, far from hegemonic positions. Furthermore, in all the interviews analyzed, especially in the assessments that emerged in the narratives, the issue of skin color was performed as a “stigma”, a deeply derogatory trait, based on the naturalization of whiteness. However, if in the narratives of older women the whitening ideology is not questioned, in the “evaluations” of the analyzed narratives from younger interviewees we observe hegemonic whitening competing with new elements, characterized by establishing significant fissures on normative aspects about of blackness.

Keywords:
narrative analysis; blackness; bleaching; genre

INTRODUÇÃO

A presente pesquisa, de inspiração etnográfica, foi concebida a partir do entrecruzamento de experiências profissionais do autor desta pesquisa, especificamente enquanto pesquisador em Análise da Narrativa e coordenador e gestor de assistência social em um pequeno município estabelecido no Noroeste Paulista. Durante o período compreendido entre os anos de 2013 a 2016, o pesquisador envolvia-se em interações com mulheres negras, pobres, beneficiárias de programas socioassistenciais governamentais, vivendo em condições precárias de trabalho e, muitas vezes, de moradia, e ouvia relatos de sofrimento trazidos por muitas dessas mulheres. A construção identitária que emanava dessas histórias de vida, o alinhamento ou desalinhamento em relação às posições hegemônicas atinentes às questões de “raça”, “gênero” e “classe social” nas narrativas construídas ao longo de cada interação foram despertando o interesse por uma análise mais profunda acerca desses aspectos.

Nesse contexto, realizamos posteriormente entrevistas etnográficas com nove dessas mulheres ora atendidas, durante os meses de março e abril de 2018, já no contexto do envolvimento do pesquisador com a pesquisa em narrativa, sendo que quatro dessas entrevistas virão a compor o material a ser analisado neste artigo.

A entrevista qualitativa constitui-se em importante ferramenta da pesquisa interpretativista (cf. DENZIN e LINCOLN, 2006DENZIN, N. K.; LINCOLN, Y. S. (2006). Introdução: a disciplina e a prática da pesquisa qualitativa. In: DENZIN, N. K. LINCOLN, Y. S. (orgs.), O planejamento da pesquisa qualitativa: teorias e abordagens. 2. ed. Porto Alegre: Artmed, p. 15-41.), principalmente no que tange ao estudo da narrativa, posto que “a análise de como e o que as pessoas narram em entrevistas de pesquisa remete a estruturas socioculturais mais amplas, ao universo social no qual transitam os interactantes” (BASTOS e SANTOS, 2013BASTOS, L. C. ; SANTOS, W. S. (2013). Introdução: Entrevista, narrativa e pesquisa. In: BASTOS, L. C.; SANTOS, W. S. (orgs), A entrevista na pesquisa qualitativa. Rio de Janeiro: Quartet/Faperj, p. 9-18., p. 13). De forma análoga, Mishler (1986)MISHLER, E.G. (1986). The analysis of interview-narratives. In SARBIN, T. R. (org.), Narrative Psychology. The storied nature of human conduct. New York: Praeger. defende a entrevista como o método básico de pesquisa, uma vez que, na visão do autor, as entrevistas propiciam a ocorrência de histórias, o que corrobora a decisão desta pesquisa de optar por essa ferramenta.

Mediante a análise das narrativas que emergiram nessas entrevistas, buscamos observar as maneiras pelas quais essas mulheres constroem suas identidades e operam discursivamente com determinados aspectos normativos instituídos socialmente acerca do atravessamento “raça” (em articulação com outros atravessamentos), estabelecendo relações com o contexto macro-contextual ou sócio-histórico. Nesse sentido, avaliamos as maneiras pelas quais os estereótipos acerca da negritude são aceitos ou rejeitados pelas narradoras, quais recorrências ou resistências estão presentes e as maneiras pelas quais as identidades localmente instituídas relacionam-se com discursos especializados ou de senso-comum que circulam na sociedade, tais como os de “eugenia”, “ausência de racismo”, “democracia racial” e “branqueamento”. De um modo mais específico, buscamos analisar como mulheres negras constroem características de sua negritude, enquanto identidade de resistência (ou nãoresistência), em oposição às narrativas de interação com brancos de preconceitos que sofreram - ou seja, frente à leitura do branco.

Ao realizar uma atividade de escuta e ouvir-se escutando a voz de um grupo historicamente silenciado, este trabalho também busca se colocar como um contraponto ao momento político que estamos vivendo no Brasil, referendado por um projeto (des)democratizante, fundamental para que o neoliberalismo se concretize, e materializado pela sustentação do patriarcado branco hegemônico misógino que garante o quadro das desigualdades e dos privilégios. Faz parte do referido processo uma atitude negacionista frente ao problema racial no Brasil, alegando sua “criação” pelos governos de centro-esquerda que antecederam o atual governo e atribuindo a culpa “aos discursos que denunciam sua existência, algo muito comum nas políticas do não-dito que imperavam no Estado Novo” (MELO, 2020MELO, G. C. V. (2020). Discursos sobre raça: quando as Teorias Queer nos ajudam a interrogar a norma. Cadernos de Linguagem e Sociedade. v. 21, n. 2, p. 410-434., p. 422).

Em verdade, o rótulo de “superioridade” reivindicado pelo patriarcado branco é uma das estratégias de manutenção hegemônica de sua superioridade social, ao pressupor o não-branco/não-homem como inferior, imprimindo, assim, marcas na auto-imagem destes últimos, enfraquecendo-os e os desarmando, o que contribui para a sua dominação. Por isso mesmo, pesquisas sob este enfoque “quebram” o pacto de silêncio e problematizam a sistemática das relações raciais no nosso país.

Nesse sentido, este trabalho encampa o compromisso social e político que ecoa na proposta programática para a Linguística Aplicada Crítica contemporânea (cf. MOITA LOPES, 2001MOITA LOPES, L. P. (2001). Práticas narrativas como espaço de construção das identidades sociais: uma abordagem socioconstrucionista. In: RIBEIRO, B. T.; LIMA, C. C.; DANTAS, M. T. L. (orgs.), Narrativa, identidade e clínica. Rio de Janeiro: Ipub., 2006MOITA LOPES, L. P. (2006). Linguística Aplicada e vida contemporânea: problematização dos construtos que têm orientado a pesquisa. In: MOITA LOPES, L. P. Por uma linguística aplicada indisciplinar. São Paulo: Parábola.), debruçada sobre a linguagem e sua relação com a vida social. Ao defender que o significado é construído na alteridade, “co-construído pela ação em conjunto de participantes discursivos em práticas discursivas, situadas na história, na cultura e na instituição” - ideia central do socioconstrucionismo propriamente dito - o que “ressalta as contingências culturais, históricas e institucionais que atuam sobre a ação discursiva”, Moita Lopes (2001MOITA LOPES, L. P. (2001). Práticas narrativas como espaço de construção das identidades sociais: uma abordagem socioconstrucionista. In: RIBEIRO, B. T.; LIMA, C. C.; DANTAS, M. T. L. (orgs.), Narrativa, identidade e clínica. Rio de Janeiro: Ipub., p. 58) entende que o discurso é constitutivo da vida social. A compreensão do discurso como co-construção social implica apreendê-lo enquanto ação através da qual os participantes discursivos se constroem, constroem os outros e, portanto, constituem o mundo social. Estudar o discurso nessa perspectiva é examinar seus efeitos sociais nas práticas discursivas em que agem os interlocutores.

Para Bastos e Biar (2015BASTOS, L. C. ; BIAR, L. A. (2015). Análise de narrativa e práticas de entendimento da vida social. DELTA, v. 31, n. especial, p. 97-126., p. 102), o projeto construcionista “conceberia a ideia de validade de acordo com um compromisso ético: as interpretações válidas são aquelas que se comprometem com a desconstrução de práticas sociais injustas e com a transformação destas (a partir de uma visão aplicada de ciência)”. Assume-se, portanto, um engajamento com práticas contra-hegemônicas de construção do conhecimento que se definem pelo compromisso político com a transformação social, ou mais especificamente com a desnaturalização de “situações de exclusão social em diversas áreas, causadoras de sofrimento humano” (FABRÍCIO, 2006FABRÍCIO, B. F. (2006). Linguística Aplicada como espaço de desaprendizagem: redescrições em curso. In: MOITA LOPES, L. P. (org.), Por uma linguística aplicada indisciplinar. São Paulo: Parábola, p. 45-65., p. 52). É em função deste propósito que este campo de estudos faz escolhas metodológicas com o intuito de privilegiar vozes tradicionalmente silenciadas.

Ademais, segundo Melo (2020MELO, G. C. V. (2020). Discursos sobre raça: quando as Teorias Queer nos ajudam a interrogar a norma. Cadernos de Linguagem e Sociedade. v. 21, n. 2, p. 410-434., p. 412),

para o campo dos estudos linguísticos aplicados, as relações raciais são temáticas caras para a pesquisa e para parte da sociedade brasileira que visa à construção de um país mais justo, igualitário e cidadão. Entrelaçada a outras áreas de saber para compreender como essa existência de raça e seus efeitos também se ocorrem nas práticas sociais, a Linguística Aplicada pode nos ajudar a entender o funcionamento da linguagem nas práticas sociais diversas.

1. O FEMINISMO NEGRO E A INTERSECCIONALIDADE

Ao se propor escutar e ouvir-se escutando vozes historicamente silenciadas de mulheres negras e pobres, o presente trabalho ecoa uma posição fulcral assumida pelo feminismo negro contemporâneo, propriamente a importância atribuída à necessidade de se criar espaços de escuta para que as mulheres negras se auto-definam, o que é entendido como estratégia de enfrentamento à visão colonial (COLLINS, 2016COLLINS, P. H. . (2016). Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica do pensamento feminista negro. Revista Sociedade e Estado. v. 31, n. 1, p. 99-127.). Conforme aponta Ribeiro (2017RIBEIRO, D. (2017). O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento: Justificando., p. 34), “o foco do feminismo negro é salientar a diversidade de experiências (...) de mulheres (...) e os diferentes pontos de vista possíveis de análise de um fenômeno, bem como marcar o lugar de fala de quem a propõe”. Afinal, independentemente do conteúdo dessas autodefinições, “o ato de insistir na autodefinição dessas mulheres valida o poder de mulheres negras enquanto sujeitos humanos” (COLLINS, 2016COLLINS, P. H. . (2016). Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica do pensamento feminista negro. Revista Sociedade e Estado. v. 31, n. 1, p. 99-127., p. 104).

Nesse contexto, cumpre destacarmos que, de acordo com essa perspectiva, o “lugar de fala” de cada enunciador é demarcado tanto pela sua localização geopolítica particular dentro do sistema mundial moderno/ colonial quanto pelas hierarquias sociais de classe, raça, gênero, etc. que o atravessam. Nesse contexto, caberá analisar a partir de qual “lugar de fala” enunciam nossas entrevistadas, a cada momento refletindo tais atravessamentos: “ao reivindicar os diferentes pontos de análises e a afirmação de que um dos objetivos do feminismo negro é marcar o lugar de fala de quem as propõem, percebemos que essa marcação se torna necessária para entendermos realidades que foram consideradas implícitas dentro da normatização hegemônica” (RIBEIRO, 2017RIBEIRO, D. (2017). O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento: Justificando., p. 34). Continua a autora:

Se o conceito de lugar de fala se converte numa ferramenta de interrupção de vozes hegemônicas, é porque ele está sendo operado em favor da possibilidade de emergências de vozes historicamente interrompidas. Assim, quando os ativismos do lugar de fala desautorizam, eles estão, em última instância, desautorizando a matriz de autoridade que construiu o mundo como evento epistemicida; e estão também desautorizando a ficção segundo a qual partimos todas de uma posição comum de acesso à fala e à escuta (RIBEIRO, 2017RIBEIRO, D. (2017). O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento: Justificando., p. 48).

Diferentemente das entrevistadas, o autor desta pesquisa enuncia a partir de outra interseccionalidade e, por conseguinte, outro lugar de fala: coordenador, entrevistador, branco, de classe média. Dessa maneira, a pesquisa apresentada neste artigo apenas lê e analisa as narrativas construídas a partir das intersecções que constituem a fala das entrevistadas, não pretendendo - de forma alguma - enunciar a partir do lugar de fala dessas entrevistadas.

Considerando os atravessamentos que envolvem o material em análise, destacamos desde já que nos ancoramos na posição assumida pelas teorias interseccionais de gênero (cf. COLLINS e BILGE, 2016COLLINS, P. H. ; BILGE, S. (2016). Intersectionality. Cambridge: Polity Press., dentre outros), caracterizadas por considerar que o sujeito social é constituído sócio-histórica e discursivamente a partir da integração entre gênero, classe social, raça, nível de escolaridade, etc. As teorias interseccionais de gênero constituem uma espécie de alicerce para o pensamento feminista negro contemporâneo (cf. COLLINS, 2019COLLINS, P. H. (2019). Pensamento Feminista Negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento. São Paulo: Boitempo Editorial.; RIBEIRO, 2017RIBEIRO, D. (2017). O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento: Justificando., dentre outros). Nesse contexto, Collins (2016COLLINS, P. H. . (2016). Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica do pensamento feminista negro. Revista Sociedade e Estado. v. 31, n. 1, p. 99-127., p. 107) faz uso do conceito de matriz de dominação para refletir sobre a intersecção das desigualdades; de acordo com esse conceito, uma mesma pessoa pode se encontrar em diferentes posições, a depender de suas características. Assim, seria no entrecruzamento entre gênero, raça, classe, geração, sem predominância de algum elemento sobre outro, que experiências das diferentes formas de “ser mulher negra” estariam assentadas.

Cumpre, aqui, abrirmos breve um parêntese para destacarmos que essas categorias se relacionam hierarquicamente a cada momento, não sendo apresentadas, de modo algum, como simples encontros aleatórios. Por exemplo, em que pese que mulheres negras estejam em posições de desigualdade com homens negros2 2 Cumpre destacarmos que, do ponto de vista ontológico, a nossa opção por escolher mulheres negras como participantes, e não homens, têm a ver apenas com as limitações do escopo da pesquisa em geral e deste artigo em particular. Somos conscientes de que, caso tivéssemos contemplado, nesta pesquisa, entrevistas com homens e mulheres, certamente obteríamos resultados bastante relevantes, conforme apontado neste parágrafo. em registros íntimos e familiares, ao ocuparem a maioria das vagas oriundas das políticas afirmativas, e os homens negros serem aqueles que não as ocupam, o homem negro é maioria absoluta em casos de homicídio por armas de fogo no Brasil, diferentemente das mulheres negras. É nesse sentido que se justifica a iniciativa de intelectuais como Creenshaw (1989)CRENSHAW, K. (1989). Demarginalizing the Intersection of Race and Sex: A Black Feminist Critique of Antidiscrimination Doctrine, Feminist Theory and Antiracist Politics. The University of Chicago Legal Forum. n. 140, p.139-167. - que, aliás, cunhou o termo “interseccionalidade” - de buscar examinar o modo pelo qual essas categorias de análises ocorrem em experiências concretas3 3 Grifos nossos. .

No que tange à interseccionalidade enquanto ontologia, podemos afirmar que está relacionada à necessidade levantada pelas mulheres negras latinas de legitimar suas vozes e demandas particulares em face dos ideais feministas atrelados aos anseios de mulheres brancas de um determinado extrato social. Afinal, sobre as mulheres negras incide uma multiplicidade de opressões não vivenciadas, em parte, por mulheres brancas. Nesse sentido, como forma de investigação, a interseccionalidade possibilita o estudo de relações de poder marcadas pela assimetria, em diferentes eixos de opressão, a partir dos quais as mulheres negras constroem suas práticas, performances e experiências identitárias, discursivas e sociais, ampliando a luta feminista por justiça e equidade social (COLLINS, 2017COLLINS, P. H. . (2017). Se perdeu na tradução? Feminismo negro, interseccionalidade e política emancipatória. Revista Parágrafo. v. 5, n. 1, p.6-17.).

Obviamente, uma análise que se proponha interseccional deve compreender a complexidade dessa empreitada, sem se deixar levar pela institucionalização do embranquecimento heteronormativo neoliberal. Afinal,

como tecnologia do bio/necropoder (...), o racismo age no mundo a serviço da branquitude, em meio à ficção da supremacia branca, fabulada a partir da invenção da raça e nenhuma produção de saberes institucionalizada está imune a ele. Desse modo, (...) a racialização do olhar pode elevar o patamar das pesquisas, o que pode ser feito dentro da ética feminista, decolonial e interseccional, e assim, necessariamente antirracista (BORGES, 2020BORGES, T. R. S. (2020). Modos Queer de pesquisar e a questão racial: conjugando epistemologias feministas, interseccionalidade e decolonialidade. Cadernos De Linguagem e Sociedade. v. 21, n. 2, p. 435-451., p. 446).

Em razão de seu caráter estrutural e estruturante na sociedade brasileira, a questão racial se torna o pressuposto básico da perspectiva decolonial no Brasil. Na verdade, a perspectiva decolonial propõe-se a servir como um contraponto às perspectivas coloniais e pós-coloniais4 4 O estudo utiliza o termo decolonial como uma proposta política epistêmica frente às manifestações da colonialidade, entendendo por colonialidade uma herança do passado colonial brasileiro, estruturado por um pensamento responsável por estruturar a realidade nos locais de subalternidade epistêmica e de experiência individual. A perspectiva decolonial considera todas essas estruturas e os pontos de vista daqueles que estão sujeitos a ela, de modo a visibilizar novas formas de pensamento e reflexão acerca dos direitos humanos. , caracterizadas por considerar a ideia de raça e o racismo se constituem como princípios organizadores da acumulação de capital em escala mundial e das relações de poder do sistema-mundo (WALLERSTEIN, 1990WALLERSTEIN, I. (1990). World-System Analysis: The Second Phase. Review, v. XIII, n. 2, p. 287-93., p. 289). Dentro desse novo sistema-mundo, a diferença entre conquistadores e conquistados foi codificada a partir da ideia de raça, mas não só. Apesar de meio milênio já ter se passado, o discurso colonial impacta até hoje o cotidiano de cidadãos brasileiros, dos de outras ex-colônias e também dos de Portugal. É a partir do colonialismo, que opressões estruturais que foram impetradas sobre atravessamentos como “gênero” e “classe social”, e aspectos como homofobia e o machismo foram naturalizadas. Isso porque o nacionalismo teria sido construído a partir da “separação entre corpos “humanos” e “não-humanos”.

Nesse contexto, o racismo é entendido como parte da engrenagem capitalista, perpassando relações sociais, econômicas, ideológicas e subjetivas que estão na base da concepção do processo colonial e do projeto neoliberal enquanto processo civilizatório. Nesta perspectiva, de acordo com Melo (2020MELO, G. C. V. (2020). Discursos sobre raça: quando as Teorias Queer nos ajudam a interrogar a norma. Cadernos de Linguagem e Sociedade. v. 21, n. 2, p. 410-434., p. 419), “a linguagem exerce um papel fundamental, pois é nela e por ela que raça é construída”. Segundo Cardoso (2014CARDOSO, L. ; (2014). O branco ante a rebeldia do desejo: um estudo sobre a branquitude no Brasil, Tese de Doutorado em Ciências Sociais, Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, UNESP, Araraquara., p. 32)

a cor é parte do fenótipo, aquilo que se vê, no entanto, também é uma atribuição social, porque se relaciona com a vida cotidiana, na sua ligação com a ideia de raça e de etnia. Em virtude disso, as pessoas classificam-se, e são classificadas, como branca, negra, mestiça. Reitero, a cor é referente a traços genéticos, a tez. A cor é um aspecto de classificação social fundamental no Brasil. Geralmente, será o primeiro dado utilizado para hierarquizar com base na mentalidade racista, ou seja, com base na construção social da ideia de raça e de etnia.

No caso específico do contexto brasileiro, podemos afirmar que a questão do branqueamento, assentada totalmente sob o eixo do racismo, se constitui como um dos legados mais intensos e permanentes do processo colonizador. Citando Guerreiro Ramos, Cardoso (2010CARDOSO, L. (2010) Branquitude acrítica e crítica: A supremacia racial e o branco anti-racista. Rev. latinoam. cienc. soc. niñez juv., v. 8, n. 1, p.607-630., p. 618) afirma que, na sociedade brasileira, existe

uma patologia social do “branco” que consiste na negação de pessoas com qualquer descendência biológica ou cultural negra. Por outras palavras, o brasileiro no geral considerava vergonhosa qualquer associação com sua ancestralidade negra, seja no âmbito cultural ou biológico. Esse autor sustentou que devido ao passado considerado “positivo” da história da identidade racial branca - a história de uma aristocracia econômica e intelectual - fez com que ocorresse a tendência que o pardo fosse classificado como branco e o preto como pardo, resultando em um branqueamento e empardecimento da sociedade brasileira por consequência na dimuição da classificação do preto.

Em sua tese de doutorado, Bento (2002a)BENTO, M. A. (2002a). Pactos narcísicos no racismo: Branquitude e poder nas organizações empresariais e no poder público. Tese de doutorado em Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da Personalidade. Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da Personalidade, USP, São Paulo. sustenta que a ideia principal a ser desenvolvida, no caso do branqueamento, é o conceito “pacto narcísico”. De acordo com a autora, os brancos procuram unir-se para defender seus privilégios raciais; nesse contexto, a autora analisa como as expressões da branquitude podem colaborar para manter as hierarquias raciais, ou mais concretamente, o lugar do branco, lugar de privilégio racial.

De acordo com Melo (2020)MELO, G. C. V. (2020). Discursos sobre raça: quando as Teorias Queer nos ajudam a interrogar a norma. Cadernos de Linguagem e Sociedade. v. 21, n. 2, p. 410-434. e Carone e Bento (2019)CARONE, I.; BENTO, M. A. S. (2019). Psicologia Social do racismo: estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. Petropolis: Vozes., o ideal do branqueamento emerge no Brasil no final do século XIX, intimamente relacionado ao medo que os(as) negros(as) causavam na nossa elite branca. Considerando que, para essa elite, a raça negra era inferior, a miscigenação era considerada como uma forma de degeneração da raça branca. Como resultado buscou-se, neste primeiro momento, simplesmente extinguir os(as) negros(as) brasileiros.

A segunda etapa da constituição histórica do branqueamento no Brasil está atrelada à visão negativa que o país tinha no exterior em função da grande miscigenação. Para combater essa visão, teve início um novo projeto de nação, materializado numa campanha política e científica, de cunho positivista, comprometida em apresentar a miscigenação como algo positivo, já que ela teria como resultado, inevitavelmente, em algum momento, o branqueamento completo da população brasileira.

Finalmente, na década de 1930, com a subordinação negra, a emergência do luso-tropicalismo5 5 O luso-tropicalismo é um conceito que mobilizou o pensamento de Gilberto Freyre entre as décadas de 1940 e 1960. Para o autor, os ibéricos, em particular os portugueses, seriam capazes de compreender os trópicos e as suas gentes e com eles transigir, conviver e miscigenar. “Tal entendimento o levou, ao menos nos seus momentos mais ideológicos, a defender e justificar o colonialismo português, apesar dos ventos descolonizadores que sopravam desde o fim da Segunda Guerra Mundial” (SCHNEIDER, 2012, P 75). e a necessidade de se impor uma ideia de unidade nacional capaz de contornar os problemas raciais no país, temos a última etapa desse processo. Inicia-se um processo de forte circulação de discursos negacionistas acerca da existência de racismo no país e do mito da democracia racial, a ênfase em uma suposta igualdade de oportunidades para todos e a ideia de uma suposta “identidade mestiça”, conceito elaborado mormente pelo engajamento especial dos literatos brasileiros na busca por constituir, no ainda no século XIX, uma identidade nacional. Aqui, a noção de branquitude é materializada pela oposição entre raças, já que o outro é o não-branco (e, portanto, inferior). A branquitude é privilegiada pelos discursos hegemônicos, naturalizada, sedimentada pela história, pela linguagem e, sobretudo, pelo silenciamento. É contra essa naturalização e esse silenciamento que se levantam o feminismo negro e as perspectivas interseccionais de gênero.

2. ANÁLISE DA NARRATIVA E A QUESTÃO DAS IDENTIDADES

De acordo com Biar, Orton e Bastos (2021)BIAR, L. ; ORTON, N.; BASTOS, L. C. (2021). Tales from the South: doing Narrative Analysis in a “post-truth” Brazil. Narrative Inquiry. v. 22, edição on-line, p. 1-21., ao narrar, os narradores vão dando forma ao mundo social, à medida que o escreve, o discute e o contesta. Quando contamos histórias estamos, inevitavelmente, recriando o contexto do evento narrado, ou seja, criando um mundo da narrativa, localizando-o no tempo e no espaço, introduzindo personagens, suas ações e falas.

Nesse sentido, as pesquisas elaboradas nesta área inscrevem-se no âmbito da mirada socioconstrucionista assumida pela Linguística Aplicada Crítica contemporânea, já que, conforme afirmamos anteriormente, a compreensão do discurso como co-construção social implica apreendê-lo enquanto ação através da qual os participantes discursivos se constroem, constroem os outros e, portanto, constroem o mundo social.

De acordo com Bastos e Biar (2015)BASTOS, L. C. ; BIAR, L. A. (2015). Análise de narrativa e práticas de entendimento da vida social. DELTA, v. 31, n. especial, p. 97-126., a Análise da Narrativa configura-se como uma ferramenta útil ao projeto socioconstrucionista na medida em que:

(i) promove diálogo entre múltiplas áreas do saber; (ii) se debruça sobre a fala dos mais diversos atores sociais, nos mais diversos contextos; (iii) reverbera entendimento do discurso narrativo como prática social constitutiva da realidade; (iv) nega a possibilidade de se delinear as identidades estereotipadamente, como instituições pré-formadas, atentando para os modos como os atores sociais se constroem para fins locais de performação (...) e (v) avança no entendimento sobre os modos como as práticas narrativas orientam, nos níveis situados de interação, os processos de resistência e reformulação identitária (BASTOS e BIAR, 2015BASTOS, L. C. ; BIAR, L. A. (2015). Análise de narrativa e práticas de entendimento da vida social. DELTA, v. 31, n. especial, p. 97-126., p. 102-103).

De modo análogo ao avocado por esta pesquisa, ao lado do viés epistemológico, as pesquisas em narrativa - sobretudo no Grupo Narrativa e Interação Social (NAVIS), do qual o autor deste trabalho toma parte - têm assumido o mesmo compromisso social e político encampado pela Linguística Aplicada Crítica contemporânea, privilegiando reflexões contra-hegemônicas capazes de garantir visibilidade a grupos excluídos socialmente e sustentar a luta por justiça social. Por isso mesmo questões de gênero, raça, classe social e sexualidade têm pautado as pesquisas no referido Grupo.

As primeiras pesquisas sobre narrativa foram elaboradas por Labov e Waletsky (1968) e Labov (1972)LABOV, W. (1972). Language in the inner city: studies in the Black English Vernacular. Philadelphia: University of Pennsylvania Press., assentadas em uma concepção de narrativa enquanto um método de se recapitular experiências passadas. Nas palavras de Labov (1972)LABOV, W. (1972). Language in the inner city: studies in the Black English Vernacular. Philadelphia: University of Pennsylvania Press., “a narrativa será considerada (...) uma técnica para construir unidades narrativas que correspondem à sequência temporal daquela experiência” (p. 37).

Labov (1972)LABOV, W. (1972). Language in the inner city: studies in the Black English Vernacular. Philadelphia: University of Pennsylvania Press. apresenta uma proposta de estruturação de narrativas bem formadas, composta basicamente pelos seguintes itens: 1) “sumário”: resumo inicial, com introdução do assunto e da razão por que a história é contada; 2) “orientação”: identificação de personagens, tempo, lugar e atividades narradas; 3) “ação complicadora”: sequenciação temporal de orações narrativas, em que o narrador efetivamente conta o que aconteceu (de acordo com o autor, se ao menos duas orações no passado estiverem sequencializadas, remetendo a um passado temporal, se está diante de uma narrativa); 4) “avaliação”: explicitação da postura do narrador em relação à narrativa, bem como da razão de ser da narrativa; 5) “resultado”: desfecho da narrativa, em que o narrador revela o que “finalmente aconteceu” (LABOV, 1972LABOV, W. (1972). Language in the inner city: studies in the Black English Vernacular. Philadelphia: University of Pennsylvania Press., p. 370); 6) “coda”: encerramento do relato com uma síntese, avaliação dos efeitos da história ou retomada do tempo presente.

Segundo Labov, as “avaliações” são responsáveis pelo clima emocional da história e mostram as diversas atitudes do narrador em relação aos eventos que aparecem em sua própria narrativa. Elas apontam, ainda, para o ponto de cada episódio narrado: se figura para apresentar um comportamento bem conceituado socialmente, se aparece para que o narrador tenha a oportunidade de mostrar como mudou ao longo do tempo e agora passou a agir de outra forma, ou se apresenta uma divergência de valores do narrador em relação ao senso comum. Essas mudanças emergem, nas histórias de vida, como “quebras de expectativas” (MOITA LOPES, 2001MOITA LOPES, L. P. (2001). Práticas narrativas como espaço de construção das identidades sociais: uma abordagem socioconstrucionista. In: RIBEIRO, B. T.; LIMA, C. C.; DANTAS, M. T. L. (orgs.), Narrativa, identidade e clínica. Rio de Janeiro: Ipub.).

Para Bastos (2005)BASTOS, L. C. (2005). Contando estórias em contextos espontâneos e institucionais - uma introdução ao estudo da narrativa. Calidoscópio, v. 3, n. 2, p. 74-87., é por meio da “avaliação” que o enunciador encontra espaço para comentar aspectos do que foi narrado, deixando entrever suas crenças, valores, afiliações, posicionamentos na hierarquia social e qualificações. Por isso mesmo, Biar (2012)BIAR, L. (2012). “Realmente as autoridades veio a me transformar nisso”: narrativas de adesão ao tráfico e a construção discursiva do desvio. Tese de Doutorado em Estudos da Linguagem. Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem, PUCRio, Rio de Janeiro. afirma que a avaliação se configura, então, “como o aspecto mais fundamental para a construção de identidade” (p. 117).

Para Linde (1997)LINDE, C. (1997). Evaluation as linguistic structure and social practice. In: GUNNARSSON, B. L.; LINELL, P.; NORDBERG, B. (orgs.), The construction of professional discourse. Londres: Longman, p. 151-172., a avaliação é justamente o momento em que emergem pistas sobre as maneiras pelas quais as narrativas devem ser compreendidas e quais valores morais estão atribuídos aos personagens e eventos narrados. Nesse sentido, de uma maneira mais aberta que aquela observada no modelo canônico de Labov (1972)LABOV, W. (1972). Language in the inner city: studies in the Black English Vernacular. Philadelphia: University of Pennsylvania Press. e Labov e Waletzky (1968), a autora entende, por “avaliação”, “qualquer instanciação produzida pelo falante que tenha sentido social ou indique o valor de uma pessoa, coisa, evento ou relacionamento” (LINDE, 1997LINDE, C. (1997). Evaluation as linguistic structure and social practice. In: GUNNARSSON, B. L.; LINELL, P.; NORDBERG, B. (orgs.), The construction of professional discourse. Londres: Longman, p. 151-172., p. 152). Amplia-se, portanto, a associação entre avaliação e dimensão moral da narrativa.

Embora esse modelo dito “canônico” continue a influenciar muitas pesquisas na área, as propostas atuais, ditas “não canônicas”, vêm apontando críticas e revisões ao modelo laboviano. Considerando-se os objetivos que norteiam este trabalho, utilizamos alguns elementos da proposta laboviana para a identificação formal de aspectos da narrativa, mas foi especialmente útil a proposta dita “não-canônica” apresentada por Linde (1993)LINDE, C. (1993). Life stories. The creation of the coherence. Nova York: Oxford University Press., voltada para análise de narrativas de histórias de vida e experiências pessoais coletadas em entrevistas (de modo análogo ao material a ser analisado neste artigo).

De uma maneira geral, podemos dizer que Linde (1993)LINDE, C. (1993). Life stories. The creation of the coherence. Nova York: Oxford University Press. busca demonstrar de que forma as estruturas narrativas, entendidas enquanto encaminhamentos sociais e discursivos, atuam na construção das identidades. Isso porque, de acordo com o ponto de vista da autora, ao elaborar suas histórias de vida, os enunciadores buscam apresentarse e marcar sua existência a partir de critérios de propriedade e aceitação cultural, os quais estão estabelecidos socialmente: os fatos são organizados em sintonia com as crenças que circulam na sociedade. Nesse contexto, as identidades sociais se deixam transparecer nas histórias de vida porque, a partir delas, constroem-se os sentidos de adesão que os enunciadores reivindicam para si mesmos.

Além da observação da sequência na qual as ações são narradas, a autora destaca a importância de se observar a construção da coerência do relato, por meio das relações de causalidade, para interpretar adequadamente os significados pessoais e sociais das histórias de vida. Essa construção de coerência é chamada por Linde (1993LINDE, C. (1993). Life stories. The creation of the coherence. Nova York: Oxford University Press., p. 165) de “sistemas de coerência”, e correspondem aos discursos estruturantes das crenças, dos valores, da cultura e dos interesses compartilhados pelo narrador durante a interação.

Em um âmbito maior, coloca-se a pertinência da Análise da Narrativa para a abordagem de questões atinentes à construção das identidades sociais, questões estas que têm sido entendidas, contemporaneamente, como centrais. Nesse sentido, conforme bem lembra Bastos (2005)BASTOS, L. C. (2005). Contando estórias em contextos espontâneos e institucionais - uma introdução ao estudo da narrativa. Calidoscópio, v. 3, n. 2, p. 74-87., ao se referir à Análise da Narrativa, as escolhas que fazemos ao nos introduzirmos como personagens em certos cenários, em meio a outros personagens e ações, se dão em função do modo como nos posicionamos em relação a esses elementos e nos afiliamos a certas categorias sociais, mesmo que contingencialmente, sendo parte de um processo de apresentação e interpretação de pelo menos algumas dimensões de quem somos: “ao contar estórias, situamos os outros e a nós mesmos numa rede de relações sociais, crenças, valores, ou seja, ao contar estórias, estamos construindo identidades” (p. 81). A partir dessas histórias, pode-se elaborar articulações com o contexto macro-contextual ou sócio-histórico. Afinal, conforme afirma Bastos (2005BASTOS, L. C. (2005). Contando estórias em contextos espontâneos e institucionais - uma introdução ao estudo da narrativa. Calidoscópio, v. 3, n. 2, p. 74-87., p. 80), sobre a Análise da Narrativa

padrões sociais relativos a identidades nacionais, gênero, idade, profissão, religião, classe social também informam a produção e a interpretação de narrativas, o que, por sua vez, vai atuar na manutenção desses mesmos padrões. Por outro lado, a cada performance, o narrador necessariamente transforma a estória em função das especificidades da situação, o que traz também a possibilidade da interferência na estrutura social normativa. O interesse por essas questões vem aumentando nos últimos anos, grande parte em função das lutas das minorias sociais.

Nesse contexto, partimos da premissa de acordo com a qual experiências refletidas em histórias de vida importam, já que por meio dessas histórias pode-se buscar entender as condições sociais que constituem o grupo do qual as entrevistadas fazem parte e quais são as experiências que compartilham enquanto grupo (cf. COLLINS, 2019COLLINS, P. H. (2019). Pensamento Feminista Negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento. São Paulo: Boitempo Editorial.). O que está em jogo quando clamamos pela identificação do próprio sujeito social sobre determinadas representações sociais é a valorização das suas experiências, entendidas enquanto lugares específicos de vivência e construção de saberes, assentadas sobre o eixo da estrutura social e da história.

As narrativas relacionadas às trajetórias de vida podem ser entendidas como elaborações produtoras da “raça” e dos demais atravessamentos sob análise justamente porque atualizam os sistemas gerais vigentes na sociedade, articulando, certamente, estrutura e prática social. Nesse sentido, faz-se imperiosa a necessidade de evocar teorias que fazem referência aos grandes discursos que circulam na sociedade, uma vez que grande parte das imagens e representações sobre o racismo, branqueamento, eugenia, etc. emergem por meio dos discursos que Gee (2005)GEE, J. P. (2005). An introduction to Discourse Analysis: theory and method. London/New York: Routledge. denomina “CapitalD Discursos”, associações socialmente aceitas “entre formas de uso da linguagem, outras expressões simbólicas e artefatos, de pensamento, sentimento, acreditar, valorizar e agir que pode ser usado para se identificar com um membro de um grupo significativo ou ‘rede social’” (p. 131). Tais discursos, repetidos tanto por práticas institucionais quanto não institucionais, são amplamente colocados em divulgação por meio de uma variedade de modos semióticos, estabelecendo relações desiguais de poder e determinando a “ordem dos discursos” (FOUCAULT, 1996FOUCAULT, M. (1996). A Ordem do Discurso. Tradução: Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Loyola.).

3. NARRATIVAS DE MULHERES NEGRAS SUBALTERNIZADAS

Dentre as nove entrevistas analisadas por esta pesquisa, foram selecionadas, para este trabalho em particular, quatro entrevistas, com mulheres de diferentes faixas etárias: Michele (28 anos), Fernanda (34 anos), Josefa (59 anos) e Maria6 6 Todos os nomes empregados na transcrição são fictícios, excetuando-se o do entrevistador. (78 anos). Dessa maneira, buscamos observar as variâncias e invariantes que emergiram nas narrativas de mulheres que vivenciaram períodos cronológicos distintos, buscando descrever eventuais traços de mudança e permanência a propósito das diferentes formas semióticas com que o racismo (ou eventual ausência) e o traço performativo “raça” foram experimentados e enunciados.

Quanto à análise propriamente dita, partimos de alguns princípios norteadores, tais quais estabelecidos por Collins (2016COLLINS, P. H. . (2016). Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica do pensamento feminista negro. Revista Sociedade e Estado. v. 31, n. 1, p. 99-127., p. 114):

a pergunta sobre se estruturas de opressão e escolhas limitadas estimulam o comportamento das mulheres negras, caracterizado por apatia e alienação, ou um comportamento demostrando subjetividade e ativismo, é vista como, em última análise, dependente da percepção de mulheres negras de suas escolhas. Em outras palavras, a consciência das mulheres negras - a sua perspectiva analítica, emocional e ética de si mesmas e do seu lugar na sociedade - torna-se uma parte crítica da relação entre o mecanismo da opressão e a ação das mulheres negras. Por fim, essa relação entre opressão, consciência e ação pode ser vista como relação dialética. Nesse modelo, estruturas opressivas criam padrões de escolha que são percebidos de formas variadas por mulheres negras. Dependendo de suas consciências de si mesmas e de suas relações com essas escolhas, mulheres negras podem ou não estruturar esferas de influência nas quais desenvolvem e legitimam o que será apropriado.

Uma primeira constância que emergiu nas quatro narrativas analisadas foi o fato de todas as narradoras relatarem a experiência de episódios de racismo em suas vidas. Nesse sentido, ratifica-se a opção ontológica de se propor observar, em consonância com o que é defendido pelo feminismo negro contemporâneo, a voz de enunciadores que partam de um lugar de fala distinto daqueles que vêm sendo historicamente legitimados. Afinal, ao atestarem a presença do racismo, concretiza-se a irrupção de posições anti-hegemônicas capazes de colocar em questão o mito da democracia racial, legitimado por parte do senso comum da nossa sociedade.

Por outro lado, no entanto, a questão da cor da pele foi performada, pelas narradoras, como um “estigma” (cf. GOFFMAN, 1988GOFFMAN, E. (1988). Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: Guanabara., p. 7), um traço potencialmente capaz de inabilitá-las “para a aceitação social plena”. “O estigma pode ser definido como um atributo profundamente depreciativo; algo que possa ser considerado um defeito, uma fraqueza, uma desvantagem, (...) resultado de uma tensão entre atributo e estereótipo” (BIAR, 2012BIAR, L. (2012). “Realmente as autoridades veio a me transformar nisso”: narrativas de adesão ao tráfico e a construção discursiva do desvio. Tese de Doutorado em Estudos da Linguagem. Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem, PUCRio, Rio de Janeiro., p. 50), envolvendo invariavelmente relações sociais assimétricas de poder. Observe7 7 Todos os eventos comunicativos foram transcritos de acordo com adaptações do modelo de transcrição elaborado por Loder (2008). :

(1)

001 002 003 Fábio o o Josefa e na tua vida assim isso pra mim é importante na tua vida toda assim por ser do bairro por ser negra você já enfrentou preconceito? 004 Josefa humm humm ((risos)) ahh já 005 Fábio já 006 007 008 009 010 011 Josefa Já . entendeu quando ah vamos supor assim quantas vezes que eu ia trabalhar assim numa casa de família A mi- ((risos)) entendeu? ia trabalhar na casa de família a:: a filha da pes- da patroa falava assim “porque você é negra? preta?” aí a patroa falou “NÃO ela não não é negra ela é morena entendeu?” 012 Fábio hum 013 014 015 016 017 018 019 Josefa né? eu vivi muito preconceito eu sei o que é isso . é a gente fica assim só porque a gente é negro? a gente vamos supor assim vamos supor assim você vai numa festa você vai numa festa se tiver mais gente de cor >você ainda sente bem< tiver pouca gente de cor lá você não sente bem no meio dos brancos você se sente coisado entendeu? porque você é negro 020 Fábio é duro né? 021 022 023 Josefa ahh com certeza é horrível sim você percebe quando você é desfeita o:: a pessoa desfaz de você Fábio . você percebe 024 Fábio você já passou por isso várias vezes? 025 026 027 028 029 030 031 032 Josefa passei por isso e ta=e daí a gente passa ainda entendeu? que a gente é:: com- que é assim branco trata bem quando é branco como é negro trata mal . sério mesmo meu filho é maltratado meu filho é maltrata::do entendeu? por causa que ele é filho de negro:: de negra né? entendeu? . ainda eu falo assim ai só porque a gente é negro por isso que nego faz isso com a gente né? fala aí da gente porque é:: os brancos trata bem os negros trata mal 033 Fábio quantos filhos você tem? 034 Josefa só tenho um só tive um ainda bem graças a Deus 035 Fábio e pra criar ele foi difícil? 036 Josefa foi 037 Fábio foi? que=quais dificuldades assim 038 039 040 041 042 043 044 045 046 047 048 049 050 051 052 053 054 055 056 Josefa ah dificuldade que a gente queria dar do bom e do melhor pra ele né? aí a gente não podia . entendeu? é onde que eu fui comecei trabalhar PRA pra dar do bom e do melhor pra ele . dar um bom estudo pra ele entendeu? aí é onde que eu comecei a trabalhar de empregada doméstica . onde que eu passei humilhação né? doze anos humilhada . entendeu? tinha que ir trabalhar doente se você não trabalhar doente te mandava você embora . foi muita humilhação . bastante e também às vezes por ser negra né? isto também a menina na real ela não gostava de mim a família tudo gostava menos ela é a neta entendeu? e a netinha eu criei ela desde pequenininha e ela perguntou ainda falava pra vó vó porque que ela é preta? aí que olha a vó entendeu? e a mãe não a mãe falou NÃO ela não é preta ela é morena morena bonita ainda ela é morena bonita ela falou ainda falava né? por causa de- todo mundo meio branco com uma negra no meio entendeu? eu ficava assim meio sem jeito entendeu? mas tudo passava tudo

Goffman (1988)GOFFMAN, E. (1988). Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: Guanabara. define “estigma” como “um sinal visível de uma falha oculta, iniquidade ou torpeza moral proporcionando ao indivíduo um sinal de aflição ou um motivo de vergonha” (p. 12-13). Com base nessa definição, é possível concluir que a pessoa portadora de um traço estigmatizado é facilmente identificável como menos desejável e inferior. O conceito indica, portanto, a inferioridade do indivíduo que porta determinadas marcas, funcionando como elemento que predetermina a conduta do sujeito - embora seja preciso destacar que essa construção é exterior ao negro. De acordo com Schilling e Miyashiro (2008SCHILLING, F.; MIYASHIRO, S. G. (2008). Como incluir? O debate sobre o preconceito e o estigma na atualidade. Educação e Pesquisa. v.34, n.2, p. 243-254., p. 249), “o que determina se uma condição é estigmatizante ou não é a representação que possui no contexto das relações e dos diferentes grupos nos quais o indivíduo estigmatizado circula e mantém relações”.

É exatamente no contexto das relações vivenciadas com outro grupo - no caso, os indivíduos de cor branca - que observamos a emergência do “estigma” nos excertos narrativos destacados a seguir: vamos supor assim você vai numa festa você vai numa festa se tiver mais gente de cor você ainda sente bem tiver pouca gente de cor lá você não sente bem no meio dos brancos você se sente coisado entendeu?, seguido pela avaliação porque você é negro e, ainda, outra avaliação presente no final do excerto (todo mundo meio branco com uma negra no meio entendeu? eu ficava assim meio sem jeito entendeu?).

Cumpre destacarmos que, ainda de acordo com Goffman (1988)GOFFMAN, E. (1988). Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: Guanabara., o estigma constitui-se em uma relação entre atributo — o que é próprio e peculiar a alguém — e estereótipo — uma ideia ou convicção classificatória preconcebida sobre alguém ou algo — resultando em julgamentos ou generalizações. Nesse sentido, um atributo que estigmatiza alguém pode confirmar a normalidade de outrem. No caso da entrevista em análise, a convicção classificatória assenta-se na longa história de eugenia e a consoante rejeição dos corpos ébanos na sociedade brasileira, baseada na circulação de discursos acerca da inferioridade do negro presente no senso comum; por outro lado, como contraparte, o que pode ser considerado como a “normalidade” (mesmo que aceita implicitamente) é a branquitude, que emerge enquanto modelo universal de humanidade, um grupo simbolicamente privilegiado cuja pertença traz mais vantagens que a associação a um grupo estigmatizado.

É exatamente esse aspecto que pode ser identificável nos excertos narrativos presentes em (2) a filha da pes- da patroa falava assim “porque você é negra? preta?” aí a patroa falou “não ela não não é negra ela é morena entendeu?” e eu criei ela desde pequenininha e ela perguntou ainda falava pra vó vó porque que ela é preta? aí que olha e a mãe falou nâo ela não é preta ela é morena morena bonita ainda ela é morena bonita ela falou ainda falava né?.

No caso específico dos excertos destacados no parágrafo anterior, observamos o alinhamento da narradora com a personagem de cor branca, colocada em posição de enunciar um discurso de autoridade, a partir de um lugar de fala privilegiado. Afinal “ser branco no Brasil é uma função social e implica desempenhar um papel que carrega em si uma certa autoridade ou respeito automático, permitindo trânsito, eliminando barreiras” (SOVIK, 2004SOVIK, L. (2004). Aqui ninguém é branco: Hegemonia branca e media no Brasil. In: WARE, V. (org.), Branquidade: identidade branca e multiculturalismo. Rio de Janeiro: Garamond., p. 36 apudBARBOSA, 2014BARBOSA, L. C. (2014). Identidade, Estigmas e Branquitude: Reflexões sobre a mídia brasileira. Revista Interação. v. 1, nº 1, p. 59-73., p. 23).

É à enunciadora de cor branca que são atribuídas, por meio do discurso citado, as avaliações “morena” e “morena bonita”, presentes em dois momentos distintos da narrativa em curso, e que buscam construir aspectos da identidade da entrevistada. Segundo Fairclough (1995)FAIRCLOUGH, N. (1995). Critical Discourse Analysis: the critical study of language. London and New York: Longman., a representação do discurso de outrem carrega um processo ideológico cuja relevância deve ser considerada. Analisar quais vozes estão presentes e as consequências disso para valoração ou depreciação do que foi dito e daqueles que pronunciaram o discurso citado pode lançar luz sobre questões de poder e controle no uso da linguagem.

Nesse sentido, o discurso é mais aberto a alguns setores socialmente dominantes, enquanto “fontes confiáveis” e como “vozes acessadas” que emergem no discurso reportado (cf. HARTLEY, 1982, p. 111 apudFAIRCLOUGH, 1995FAIRCLOUGH, N. (1995). Critical Discourse Analysis: the critical study of language. London and New York: Longman., p. 63), representando, no mais das vezes, as posições hegemônicas de uma sociedade.

Ainda, de acordo com Munanga (2004)MUNANGA, K. (2004). A difícil tarefa de definir quem é negro no Brasil. Estudos Avançados. v. 18, n. 50, p. 51-57., a opção por chamar o negro de “moreno” evidencia a tentativa de embranquecê-lo e a dificuldade de denominá-los “negros”, “pretos”, construídos na sociedade brasileira como ruins. E, além disso, conforme apontam Melo e Moita Lopes (2015MELO, G. C. V. ; MOITA LOPES, L. P. (2015). “Você é uma morena muito bonita”: a trajetória textual de um elogio que fere. Trabalhos em Linguística Aplicada. vol. 54, n. 1, p. 53-78., p. 73-74),

nas práticas sociais, elogiar mulheres negras como morenas, ou na perspectiva de Muñoz (1999), identificá-las como morenas, moreninhas ou morenas escuras, escamoteia a dificuldade de olhar ou abordar a questão racial em contexto brasileiro. Além disso, ao proferir tais atos de fala performativos ou elogios, a materialidade negra que constitui essas mulheres seria apagada ou embranquecida para que elas sejam aceitas. Neste sentido, tais atos mascarados de elogios encobertam um racismo e/ou as identificam a valores que as tornam aceitáveis para uma parte da sociedade.

Ao fazermos referência ao atravessamento “raça” (negra) e “gênero” (mulher), este trabalho vai ratificando a posição sustentada pelas teorias interseccionais de gênero em geral e pelo feminismo negro em particular de se compreender o sujeito social sempre interseccionado por determinados atravessamentos, como traços performativos imbricados, que constroem, no caso desta investigação, as narradoras como mulheres negras.

Ademais, no que tange ao “embranquecimento” reivindicado pela narradora em (1) (“ela não é negra ela é morena entendeu?” “ela não é preta ela é morena morena bonita ainda ela é morena bonita ela falou ainda falava né?”), podemos afirmar que a presente pesquisa vai corroborando a posição sustentada Bastos e Biar (2015)BASTOS, L. C. ; BIAR, L. A. (2015). Análise de narrativa e práticas de entendimento da vida social. DELTA, v. 31, n. especial, p. 97-126. de acordo com a qual as práticas narrativas orientam, nos níveis situados de interação, os processos de resistência e reformulação identitária. Confirmase, ainda, o que é descrito por Biar, Orton e Bastos (2021BIAR, L. ; ORTON, N.; BASTOS, L. C. (2021). Tales from the South: doing Narrative Analysis in a “post-truth” Brazil. Narrative Inquiry. v. 22, edição on-line, p. 1-21., p. 2) sobre as práticas narrativas. De acordo com as autoras, ao narrar os narradores

(i) (re)criam ou sustentam, naturalizam ou desafiam, crenças, valores, identidades, rótulos, categorias sociais e as expectativas a elas atreladas, ordens econômicas e políticas; (ii) organizam, conferindo sequência e coerência as suas experiências de vida; (iii) cultivam relações e negociam suas “ficções identitárias”, construindo sentido sobre si mesmas; (iv) posicionam-se avaliativamente em relação a personagens, objetos ações narradas; (v) reivindicam pertencimento e exclusão em relação a grupos sociais e (vi) condensam e tomam parte em embates discursivos.

É exatamente a exclusão aos grupos que compreendem os corpos ébanos que a narradora reivindica em (2), ao avaliar como um “xingamento” a definição de sua cor (me xingou eu de negra; negra “ó negra (...)” dentre outros) por um membro de seu mesmo grupo étnico (ela também é negra). Diferentemente do que foi observado em (1), em que a narradora se alinha com o que foi dito por uma personagem de cor branca, a narradora em questão não se alinha com o posicionamento assumido pelo discurso citado, aqui depreciado: afinal, nesta lógica, o próprio fato de a enunciadora citada possuir a mesma cor de pele que a narradora desautorizaria por completo tal avaliação:

(2)

001 Fábio e a senhora já foi discriminada? . na vida? 002 Maria JÁ 003 004 Fábio me conta assim me conta alguma história, a senhora lembra de alguma história? A Josefa lembrou de uma 005 006 007 008 Maria a minha- °que quem foi que me xingou eu de negra?° . ai quem me xingou eu de negra num tá longe não tá aqui no bairro a:: você conhece a:: >e ela também é negra< você conhece a Martinha? 009 Fábio ahamm [a Martinha ] 010 011 012 013 014 015 016 Maria [então a Marta] a:: a Marta:: da Silva foi ela que me xingou eu de negra, ainda me xingou eu de ↑NEGRA ainda me bateu ainda por cima ainda >que ela veio aqui falar pra mim que era pra mim ir lá que o meu menino tava brigando com a mãe dela< aí eu peguei eu desci quando chegou lá ela falou assim “ó Dona Maria tem uma coisa” Dona Maria não Dona- a:: negra “ó negra tem uma coisa”

Todos esses aspectos vão denunciando, mediante a análise das entrevistas, o quanto a ideologia do branqueamento, além de causar a inferiorização, autorejeição e a não aceitação do outro assemelhado étnico por parte das pessoas negras ainda serviu para a elite branca brasileira manter sua hegemonia política e econômica. Para tanto, essa elite

construiu ideologias e representações sociais etnocêntricas e hierárquicas, utilizando os aparelhos ideológicos de estado para reproduzilas. A saturação dessas ideologias e representações converteu-as em hegemônicas e em consequência as mesmas foram internalizadas, em grande parte, pelos mesmos e por outros grupos subordinados na sociedade (SILVA, 2007SILVA, A. C. (2007). Branqueamento e branquitude: conceitos básicos na formação para a alteridade. In: NASCIMENTO, A. D.; HETKOWSKI, T. M. (orgs.), Memória e formação de professores. Salvador: EDUFBA, p. 87-101., p. 93).

É exatamente sob este ângulo que podemos enquadrar a avaliação narrativa você se acha daquele jeito mesmo, que você é feia você é preta enunciada em (4):

(3)

001 Fábio você já ENFRENTOU situações de [preconceito?] 002 003 004 005 006 007 008 Michele [já já ]já f- da cor na escola né? a gente além de ser tipo muito humilde pobre é assim que as pessoas nos viam né? não tinha como se vestir bem não se arrumava direito e:: da cor . daí você chegava lá sempre eles cantavam musiquinha “negra preta do sobaco fedorento” eles cantavam, inventavam um monte de apelido e:: sempre enfrentei preconceito na escola 010 Fábio °certo° 011 012 013 Michele nessa parte da escola eu sempre en- enfrentei é:: piadinhas no ponto de você ficar com raiva não querer estudar mais 014 Fábio é chegou a esse [ponto] 015 Michele [isso ]chegou a esse ponto 016 Fábio em outras situações da vida? 017 018 019 020 021 022 023 024 025 Michele ai é:: ↑DEPOIS a gente assim acaba às vezes nem presta a atenção porque a gente aprende lidar umm se VALORIZAR se GOSTAR e >vê que não é aquilo que a pessoa colocava na tua cabeça porque< na época de criança imatura você fica acreditando no que a pessoa tá falando e você se ↑ACHA daquele jeito mesmo, que você é FEIA você é PRETA mesmo que você é isso você é aquilo . e aí já depois pra mim:: nem sei num num importava mais >num prestava atenção muito mais nas pessoas< 026 Fábio °certo° e aí você conseguiu viver melhor 027 028 Michele é consegui viver melhor aceitar isso ver de outra maneira né? 029 Fábio aceitar 030 Michele isso 031 Fábio certo 032 Michele ver de outra maneira

Cumpre destacar que já na “orientação” da narrativa destacada em (3) observamos uma interseccionalidade entre os atravessamentos “raça”, “gênero” e “classe social”, à medida que a narradora se apresenta, desde o início, como mulher, pobre e subalterna (a gente além de ser tipo muito humilde pobre é assim que as pessoas nos viam né? não tinha como se vestir bem não se arrumava direito e da cor). A orientação é seguida por ações complicadoras que fazem referência direta à experiência do racismo na infância (da cor daí você chegava lá sempre eles cantavam musiquinha “negra preta do sobaco fedorento” eles cantavam, inventavam um monte de apelido e sempre enfrentei preconceito na escola). Seus traços fenotípicos e suas vestimentas são performados, mais uma vez, como “estigmas”, marcas visíveis trazidas no corpo que se opõem aos atributos “considerados como comuns e naturais para os membros de cada uma dessas categorias” (GOFFMAN, 1988GOFFMAN, E. (1988). Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: Guanabara., p. 11).

No entanto, diferentemente das demais narrativas analisadas até aqui, a narradora circunscreve as ações complicadoras atinentes à experiência do racismo à infância, e o tempo cronológico é colocado como o “ponto de virada” (cf. MISHLER, 2002MISHLER, E.G. (2002). Narrativa e identidade: a mão dupla do tempo. In: MOITA LOPES, L. P; BASTOS, L. C. (orgs.), Identidades: recortes multi e interdisciplinares. Campinas: Mercado das Letras, p. 97-119.), um evento específico e disruptivo - mas, no caso da narrativa em análise, operado de forma gradual - que transforma sua vida (a gente assim acaba às vezes nem presta a atenção porque a gente aprende lidar se valorizar se gostar e vê que não é aquilo que a pessoa colocava na tua cabeça porque na época de criança imatura você fica acreditando no que a pessoa tá falando). Se, por um lado, esse novo posicionamento demonstra resignação e apatia perante a construção de um imaginário extremamente negativo sobre o negro, capaz de solapar sua identidade racial, danificar sua auto-estima e justificar, por fim, as desigualdades raciais vigentes (aceitar isso), a narradora também se coloca, por outro lado, como a verdadeira agente de mudança na sua vida, mudança operada a partir da adoção da prática do cuidado de si, materializada pela apropriação de novas ferramentas que buscam fortalecê-la e protegê-la.

É nesse sentido que, a partir do exercício de olhar para si mesma, um novo trajeto é percorrido, com transformação de condutas e pensamentos, fruto do caráter violento do racismo. A quebra de expectativa aponta para uma mudança da narradora ao longo do tempo, a qual passa a agir de outra forma e a apresentar divergências de valores em relação ao senso comum.

De acordo com Andrade (2018ANDRADE, F. (2018). “Mas vou até o fim”: narrativas femininas sobre experiências de amor, sofrimento e dor em relacionamentos violentos e destrutivos. Tese de Doutorado em Antropologia Social. Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, USP, São Paulo., p. 249), as práticas do cuidado de si

abrem possibilidades múltiplas e imprevisíveis para a construção de maneiras de habitar mundos pelas mulheres (conexões alineares entre passado-presente-futuro). Seja no controle dos excessos, pela busca do autoconhecimento e da autonomia ou pelo fortalecimento da autoestima, suas proposições constroem noções e parâmetros de subjetividade: o cuidado de si é libertador e produz não somente mudanças internas, mas também mudanças nas relações com o outro. (p. 249).

Neste ponto da análise, cumpre-nos destacar que, conforme afirmamos anteriormente, não devemos considerar os sujeitos sociais subalternizados apenas como seres passivos: eles podem tanto encampar as propostas globais que estão sendo forjadas pela colonialidade do poder (cf. WALLESTEIN, 1990) como podem rejeitá-las. Observar a atuação dos sujeitos das narrativas sob análise, no que tange a essa agência ou passividade face à normatização colonial, é um dos objetivos centrais deste trabalho.

Nesse sentido, as entrevistadas enunciaram diferentes trajetos que se mostraram mecanismos polissêmicos de produção de subjetividades, refletidos nas maneiras pelas quais passam a se relacionar com a cor da sua pele na interação como o outro (o branco) e consigo mesmas. Na verdade, a pesquisa aponta a impossibilidade de se estabelecer perfis rígidos para as categorias de “raça”, “gênero” e de “classe social” e muito menos de se estabelecer determinados caminhos fixos nas buscas dessas mulheres para suportar, superar ou enfrentar as experiências de racismo.

Na verdade, por vezes, a resignação face à branquitude hegemônica e às condições desiguais sofridas pela população negra no Brasil podem ser questionadas, gerando transgressões sobre as normas atreladas a questões raciais que estão presentes no senso comum. Observe, a esse respeito, o trecho a seguir:

(4)

001 002 003 Fábio tá certo é::-deixa eu te falar é:: você antes da gente começar a entrevista né? você tava dizendo que você é de família negra 004 Fernanda uhumm 005 Fábio né? e:: 006 Fernanda minha avó minha mãe é tudo de raça NEGRA 007 Fábio certo:: e:: você já enfrento::u humilhação? 008 009 010 011 012 013 014 Fernanda JÁ:: muita né? é:: negrinha daqui negrinha dali cabelo rui::m às vezes até pra arrumar emprego né? você ia num lugar assim o povo já OLHAVA aí perguntava sua mãe descendente do que? ↑raça NEGRA? que cor que você é? eu sou sangue NEGRO eu sou da família NEGRA era meio complicado na escola tinha aquele racismo de criança eu era a mais negra da sala 015 Fábio ummm 016 Fernanda mas nunca me deixei abater por isso não 017 Fábio certo certo 018 Fernanda entendeu? assumi minha cor negra mesmo 019 Fábio Certo se::m sem que isso seja um:: um trauma ou 020 Fernanda uhumm nunca tive trauma com isso 021 022 Fábio certo e você lembra de alguma história assim? em algum momento algum trabalho que você foi procurar? 023 024 025 026 027 028 029 030 031 032 033 Fernanda ahh sim foi de faxineira né? na casa de um pessoal branco e eu ainda tinha o que doze anos? que eu fui trabalhar de babá aí eu trabalhava de babá e pousava no serviço ia embora uma vez por MÊS então lá o pessoal tudo branco né? sempre humilhava era babá então você tinha que comer separado você tinha que ficar separado suas coisas tudo separado não podia chegar na sala se tivesse visita era aquele lugar seu reservado pra lá então você tinha o direito de cuidar DAS CRIANÇAS e limpar a CASA era sábado domingo com doze anos . era muito sofrimento 034 Fábio e:: você acha que pesava a cor? 035 036 037 038 039 040 041 042 043 Fernanda uhumm sim porque era família de branco só tinha branco então eu era a única negra que tava ali no meio então era sempre ó Fernanda quando tiver gente você não venha pra cá fica lá no fundo . não tudo bem ia pra prainha? então nós íamos pra praia viajar Fernanda ó tem o quartinho da empregada lá↑ no fundo você fica lá a hora do jantar você pega as crianças e vai a hora que terminar a janta a gente vai lá te chama e aí você faz seu prato na cozinha era tudo

De modo análogo ao observado nos exemplos anteriores, observamos mais uma vez a performatividade da cor da pele como um estigma (negrinha daqui negrinha dali cabelo ruim; eu era a mais negra da sala; era família de branco só tinha branco então eu era a única negra que tava ali no meio). No entanto, diferentemente das narrativas analisadas anteriormente, neste caso, mediante diversas “avaliações” (eu sou sangue negro eu sou da família negra; mas nunca me deixei abater por isso não, assumi minha cor negra mesmo), a enunciadora reivindica sua identidade “negra”, operando fissuras significativas sobre o ideal do branqueamento hegemônico.

Ao observamos que a narradora, ao contar sua história de vida, desafia rótulos e categorias sociais, posicionase avaliativamente e ativamente em relação a personagens, objetos ações narradas, reivindica pertencimento em relação a um determinado grupo social e toma parte no embate discursivo que circunscreve a questão da negritude no Brasil, podemos afirmar que fica ratificado, portanto, o que foi descrito por Biar, Orton e Bastos (2021BIAR, L. ; ORTON, N.; BASTOS, L. C. (2021). Tales from the South: doing Narrative Analysis in a “post-truth” Brazil. Narrative Inquiry. v. 22, edição on-line, p. 1-21., p. 2) como funções da prática narrativa. Ademais, podemos afirmar que as “transgressões” operadas sobre a ideologia hegemônica do branqueamento, materializadas sobretudo pela reivindicação da narradora de pertencimento a um grupo social estigmatizado, ratifica ainda a posição assumida por Bastos (2005BASTOS, L. C. (2005). Contando estórias em contextos espontâneos e institucionais - uma introdução ao estudo da narrativa. Calidoscópio, v. 3, n. 2, p. 74-87., p. 80) de acordo com a qual, “a cada performance”, as histórias sofrem influência “em função das especificidades da situação, o que traz também a possibilidade da interferência na estrutura social normativa”.

De uma forma mais geral - e portanto mais atrelada ao contexto “macro” - podemos apontar que a ideologia do branqueamento emergiu como um grande sistema de coerência (cf. LINDE, 1993LINDE, C. (1993). Life stories. The creation of the coherence. Nova York: Oxford University Press.) que governou as narrativas em questão, a grande crença do senso comum que determinou relações entre muitos elos (sequenciais e causais) dos elementos da narrativa.

Por fim, sustenta-se a tese defendida pelo feminismo negro acerca da importância e da necessidade de as mulheres negras se auto-definirem. Afinal,

quando mulheres negras definem a si próprias, claramente rejeitam a suposição irrefletida de que aqueles que estão em posições de se arrogarem a autoridade de descreverem e analisarem a realidade têm o direito de estarem nessas posições. Independentemente do conteúdo de fato das autodefinições de mulheres negras, o ato de insistir na autodefinição dessas mulheres valida o poder de mulheres negras enquanto sujeitos humanos. Quando mulheres negras escolhem valorizar os aspectos da condição feminina afro-americana que são estereotipados, ridicularizados e criticados na academia e mídia popular, elas estão na verdade questionando algumas das concepções básicas que são usadas para controlar grupos dominados em geral (COLLINS, 2016COLLINS, P. H. . (2016). Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica do pensamento feminista negro. Revista Sociedade e Estado. v. 31, n. 1, p. 99-127., p. 104-105).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Adotando como pressuposto teórico o quadro oferecido pela Análise da Narrativa, inscrito no âmbito da mirada socioconstrucionista assumida pela Linguística Aplicada Crítica contemporânea e evocando, portanto, o mesmo compromisso desta vertente com a construção do conhecimento atrelado à denúncia de práticas sociais injustas e transformação dessas práticas sociais, o presente trabalho analisou e descreveu narrativas de histórias de vida de mulheres negras, pobres, atendidas por programas socioassistenciais, buscando observar as maneiras pelas quais essas mulheres constroem suas identidades e operam discursivamente com determinados aspectos normativos instituídos socialmente acerca do atravessamento “raça”, em articulação com outros atravessamentos, tais como “gênero” e “classe social”.

Nesse contexto, ao se propor realizar uma atividade de “escuta” e “ouvir-se escutando” um grupo historicamente silenciado, o presente trabalho buscou ecoar uma posição fulcral assumida pelo feminismo negro contemporâneo, propriamente a importância de proporcionar espaços de escuta para que as mulheres negras se auto-definam, o que é entendido como estratégia de enfrentamento à visão colonial, atrelada à normatização hegemônica estabelecida pelos grupos privilegiados.

Ao observarmos que nas quatro narrativas analisadas foram relatadas experiências de episódios de racismo na vida das narradoras, ratifica-se, desde já, a importância da observação de experiências enunciados por outros lugares de fala distantes daqueles que vêm sendo historicamente legitimados por posições hegemônicas da nossa sociedade, na medida em que essas constatações sobre o racismo colocam em questão o mito da “democracia racial”, “ausência de racismo” e “identidade mestiça” que constituíram um projeto brasileiro de nação desde os anos de 1930, e que vem sendo questionado por autores como Bento (2002b)BENTO, M. A. ; (2002b). Branqueamento e Branquitude no Brasil. In: CARONE, I.; BENTO, M. A. S. (orgs), Psicologia social do racismo: estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. Petrópolis: Vozes, p. 25-58., Ribeiro (2017)RIBEIRO, D. (2017). O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento: Justificando., dentre vários outros.

Ao procurarmos analisar como mulheres negras constroem características de sua negritude, enquanto identidade de resistência (ou não-resistência), em oposição às narrativas de interação com pessoas brancas que desvelam o preconceito sofrido, observamos que em todas as entrevistas analisadas a questão da cor da pele foi performada, por todas as narradoras, como um “estigma”. Nesse sentido, podemos afirmar que a negritude é construída como oposição ao “outro” - o branco “normal” - classe privilegiada que tem o poder tanto de elaborar diversas modalidades de discriminações e estereótipos quanto de construir e reforçar uma ideologia para explicar a suposta inferioridade do “outro”. Nesse sentido, podemos afirmar que, inequivocadamente, a negritude emergiu, na maior parte das entrevistas, como um traço profundamente depreciativo, fundado sob a ideologia do embranquecimento e naturalização da branquitude. Essa constância observada indica que, possivelmente, é dessa maneira que os corpos ébanos vivenciam a experiência da cor da pele na sociedade brasileira contemporânea.

Retomando a proposta “canônica” de análise de narrativa elaborada por Labov e Waletsky (1968) e Labov (1972)LABOV, W. (1972). Language in the inner city: studies in the Black English Vernacular. Philadelphia: University of Pennsylvania Press., e em especial as propostas ditas “não canônicas”, sobretudo aquela apresentada por Linde (1993LINDE, C. (1993). Life stories. The creation of the coherence. Nova York: Oxford University Press., 1997LINDE, C. (1997). Evaluation as linguistic structure and social practice. In: GUNNARSSON, B. L.; LINELL, P.; NORDBERG, B. (orgs.), The construction of professional discourse. Londres: Longman, p. 151-172.), e ratificando a associação estabelecida entre “avaliação” e dimensão moral da narrativa, foram justamente nos momentos avaliativos que emergiram as crenças, valores, afiliações e posicionamentos assumidos pelas narradoras, sustentando ou operando fissuras significativas sobre as normas de “raça”, gênero” e “classe social” vigentes.

Se, nas narrativas das mulheres com idade mais avançada observamos que o sistema de coerência guiado pelo branqueamento não é questionado, causando inferiorização, auto-rejeição, e ratificando que as teorias racistas “ainda estão presentes na atualidade e mantém sua força ideológica não apenas entre a comunidade branca, mas entre parcelas significativas da comunidade negra” (GOMES, 1996, p. 70, apudMELO, 2020MELO, G. C. V. (2020). Discursos sobre raça: quando as Teorias Queer nos ajudam a interrogar a norma. Cadernos de Linguagem e Sociedade. v. 21, n. 2, p. 410-434., p. 420), a análise da performação do traço “raça” entre as narradoras mais jovens apontaram para novas formas de habitar mundos. Nesse sentido, a pesquisa aponta para as interseccionalidades de idade, ou questões etárias, nas performances identitárias estudadas. No caso de mulheres mais jovens, observamos que um novo trajeto foi percorrido, com transformação de condutas e pensamentos, fruto da agência individual de cada uma das narradoras diante da hierarquização dos povos cravada desde o contexto colonial, a partir do qual foi realizado todo o esforço possível para configurar os corpos ébanos como integrantes de uma raça inferior.

É exatamente nesse sentido que este artigo propõe oferecer uma leitura - a partir do “lugar de fala” do pesquisador - sobre as maneiras pelas quais as mulheres negras e pobres se constroem como agentes de mudanças em suas vidas face ao racismo e à ideologia hegemônica do branqueamento, oferecendo assim narrativas “positivas” para o ativismo feminista negro contemporâneo. A agência dessas mulheres foi construída frente a experiências de sofrimento intenso, como a pobreza extrema, a opressão e a violência perpetrada por pessoas de pele branca inscritas em classes sociais superiores. Nesse sentido, “talvez possamos concluir que uma boa maneira de se compreender melhor a branquitude e o processo de branqueamento é entender a projeção do branco sobre o negro, nascida do medo, cercada de silêncio, fiel guardião dos privilégios” (BENTO, 2002aBENTO, M. A. (2002a). Pactos narcísicos no racismo: Branquitude e poder nas organizações empresariais e no poder público. Tese de doutorado em Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da Personalidade. Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da Personalidade, USP, São Paulo., p. 54).

  • 1
    O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.
  • 2
    Cumpre destacarmos que, do ponto de vista ontológico, a nossa opção por escolher mulheres negras como participantes, e não homens, têm a ver apenas com as limitações do escopo da pesquisa em geral e deste artigo em particular. Somos conscientes de que, caso tivéssemos contemplado, nesta pesquisa, entrevistas com homens e mulheres, certamente obteríamos resultados bastante relevantes, conforme apontado neste parágrafo.
  • 3
    Grifos nossos.
  • 4
    O estudo utiliza o termo decolonial como uma proposta política epistêmica frente às manifestações da colonialidade, entendendo por colonialidade uma herança do passado colonial brasileiro, estruturado por um pensamento responsável por estruturar a realidade nos locais de subalternidade epistêmica e de experiência individual. A perspectiva decolonial considera todas essas estruturas e os pontos de vista daqueles que estão sujeitos a ela, de modo a visibilizar novas formas de pensamento e reflexão acerca dos direitos humanos.
  • 5
    O luso-tropicalismo é um conceito que mobilizou o pensamento de Gilberto Freyre entre as décadas de 1940 e 1960. Para o autor, os ibéricos, em particular os portugueses, seriam capazes de compreender os trópicos e as suas gentes e com eles transigir, conviver e miscigenar. “Tal entendimento o levou, ao menos nos seus momentos mais ideológicos, a defender e justificar o colonialismo português, apesar dos ventos descolonizadores que sopravam desde o fim da Segunda Guerra Mundial” (SCHNEIDER, 2012SCHNEIDER, A. L. (2012). Iberismo e luso-tropicalismo na obra de Gilberto Freyre. História da Historiografia: International Journal of Theory and History of Historiography, Ouro Preto, v. 5, n. 10, p. 75-93, 2012., P 75).
  • 6
    Todos os nomes empregados na transcrição são fictícios, excetuando-se o do entrevistador.
  • 7
    Todos os eventos comunicativos foram transcritos de acordo com adaptações do modelo de transcrição elaborado por Loder (2008)LODER, L. L. (2008). O modelo Jefferson de transcrição: convenções e debates. In: LODER, L. L.; JUNG, N. M (orgs.), Falaem-interação social: introdução à Análise da Conversa Etnometodológica. Campinas: Mercado de Letras, p. 127-160..

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    15 Mar 2021
  • Aceito
    02 Dez 2021
  • Publicado
    10 Fev 2022
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