Acessibilidade / Reportar erro

Imagens que tocam o tempo: memória e localização histórica das imagens

Images that touch the time: memory and historical location of images

Resenha de DIDI-HUBERMAN, Georges. . Imagens apesar de tudo.Tradução Vanessa Brito e João Pedro Cachopo. São Paulo: Editora 34, [2003] 2020.

Resumo:

Resenha crítica do livro Imagens apesar de tudo, de Georges Didi-Huberman, publicado em 2020 no Brasil, cuja pesquisa examina, a partir de fotografias capturadas de dentro de campos de concentração, o debate em torno dos usos da imagem como documento histórico.

Palavras-chave:
Fotografia; História; Campos de concentração

Abstract:

A critical review of the book Imagens apesar de tudo (Images despite everything), by Georges Didi-Huberman, published in 2020 in Brazil. This research examines the debate around using images as a historical document based on photographs captured inside the concentration camps.

Keywords:
Photographs; History; Concentration camps

Após três anos de pandemia, o ano de 2017 parece tão distante quanto o século passado. Mas foi no final daquele ano que a exposição Levantes chegou ao Brasil, montada sob a curadoria e o olhar atento do historiador da arte e professor da École des Hautes Études en Sciences Sociales, Georges Didi-Huberman. Tendo como tema a visualidade das manifestações populares, do manifestar-se, as emoções e a força que elas evocam, Levantes apresentava a potência da ação, da reação e do resistir.

Em entrevista a Lúcia Ramos Monteiro, realizada por ocasião da inauguração da mostra, a temática da exposição se mesclou com um dos trabalhos mais festejados do historiador, Images malgré tout, que parte de imagens produzidas clandestinamente por prisioneiros em Auschwitz-Birkenau (e que estavam também presentes na exposição), fotografias que são testemunhas do genocídio e da brutalidade dos nazistas. Ao refletir sobre a presença dessas fotografias na exposição, Didi-Huberman afirmava:

essas imagens falam sim de um levante, ainda que o mais desesperado que tenha existido: o projeto de revolta conduzido por esses prisioneiros judeus que, ao mesmo tempo, quiseram fazer essas fotografias para testemunhar para além de sua própria morte. Aqui, são as imagens que se insurgem e que sobrevivem (Didi-Huberman, Monteiro, 2017DIDI-HUBERMAN, Georges ; MONTEIRO, Lúcia . Aparências ou aparições: o filósofo Didi-Huberman comenta a exposição Levantes, em cartaz em São Paulo. Zum: Revista de Fotografia, São Paulo, 28 nov. 2017. Disponível em: Disponível em: https://revistazum.com.br/entrevistas/entrevista-didi-huberman/ . Acesso em: 17 nov. 2022.
https://revistazum.com.br/entrevistas/en...
, p. 5).

A insurgência dessas imagens e as reflexões do historiador francês estão finalmente disponíveis para o público brasileiro, uma vez que Imagens apesar de tudo (Didi-Huberman, 2020DIDI-HUBERMAN, Georges . Imagens apesar de tudo. Tradução Vanessa Brito e João Pedro Cachopo. São Paulo: Editora 34, [2003] 2020.) ganhou sua edição pela Editora 34. Nela, o leitor inicia seu contato com o pensamento de Didi-Huberman a partir de um apelo sobre o inimaginável. Evocar o inimaginável apenas porque não é possível imaginar-se inteiramente, para ele, seria uma fuga daquilo que é possível coletar a partir do que se vê. É no centro dessas impossibilidades imagéticas que Didi-Huberman (2020DIDI-HUBERMAN, Georges . Imagens apesar de tudo. Tradução Vanessa Brito e João Pedro Cachopo. São Paulo: Editora 34, [2003] 2020., p. 16) sugere o nascimento das fotografias nos campos de concentração: “na dobra destas duas impossibilidades - desaparecimento próximo da testemunha, irrepresentabilidade garantida da testemunha - que surgiu a imagem fotográfica”.

Em 1944, a partir da vontade de alguns membros do Sonderkommando1 1 Os Sonderkommandos eram unidades de trabalho dentro dos campos de concentração. Em geral, os encarregados dessas unidades eram os próprios judeus, que executavam tarefas variadas, desde a recepção de judeus e judias nos campos até o momento da execução nas câmaras de gás. de arrancar daquela realidade alguma fração de imagem, concedeu-se espaço para a imaginação de outras pessoas do inimaginável, do indescritível, da memória a partir do ocorrido. Para o autor, essa vontade dos Sonderkommando é intrigante, pois o pensamento e a imaginação obtiveram um lugar de sufocamento dentro do regime totalitário alemão. Como ele aponta “tempo, espaço, pensamento, pathos - tudo era ofuscado pela enormidade maquinal da violência produzida” (Didi-Huberman, 2020DIDI-HUBERMAN, Georges . Imagens apesar de tudo. Tradução Vanessa Brito e João Pedro Cachopo. São Paulo: Editora 34, [2003] 2020., p. 18). Deve-se perguntar, então, por que coletar esses fragmentos de realidade quando o real parece supramundano, tamanha é a sua improbabilidade? Ao que parece, era o perfeito estado de funcionamento em contraposição à brutalidade que a objetividade dos fatos propunha. As fotografias tiradas no crematório V de Auschwitz possuíam a estética da normalidade, da regra, da organização. Mas eram camufladas quase sempre, segundo as imagens apresentadas e discutidas ao longo de toda a primeira parte da obra, por barreiras vegetais cercadas com galhos, folhas e folhagens. Uma curiosa metáfora entre a natureza e a artificialidade da violência implementada pelos nazistas.

A ruptura do isolamento parece, para o autor, uma tentativa de romper também com a própria proposta do sistema totalitário alemão, oferecendo para as outras pessoas a possibilidade de projetar um cenário que contenha partículas da realidade presas nas fotografias, mesmo que com qualidade duvidosa. A tentativa dos Sonderkommando de mostrar o que passam não deixa de ser, de alguma forma, captar suas próprias angústias e percepções. E na contramão dessa dicotomia entre o natural e o artificial, entre a informação manipulada e produzida, os Sonderkommando fotografam. Hannah Arendt (2015ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. Tradução Mauro W. Barbosa. São Paulo: Perspectiva, [1954] 2015a. , 2019ARENDT, Hannah. A vida do espírito. Tradução Antônio Abranches. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, [1971] 2019.)2 2 As reflexões de Arendt acerca desse tema podem ser encontradas em duas de suas obras: Entre o passado e o futuro (2015) e A vida do espírito (2019). aponta que a imaginação também é constitutiva de uma esfera política, uma vez que permite, de certa forma, uma ponte entre o passado e o futuro a partir de um presente incompleto. Ou, no caso das imagens, a partir de fragmentos concedidos sobre um contexto tangível. Nesse sentido, a imaginação não precisa necessariamente ter uma lógica, mas se modula, sobretudo, a partir de determinadas lógicas de funcionamento existentes na realidade e na sociedade presente.

Por isso, talvez, a ideia de mandar para longe as imagens segundo propõe o autor estabeleceria o contato com “uma zona ocidental do pensamento, da cultura, da decisão política, onde tais coisas pudessem ainda ser ditas como inimagináveis” (Didi-Huberman, 2020DIDI-HUBERMAN, Georges . Imagens apesar de tudo. Tradução Vanessa Brito e João Pedro Cachopo. São Paulo: Editora 34, [2003] 2020., p. 33), pudessem oferecer justamente a condição para que se projetasse a realidade dos acontecimentos daquela época. E, ainda que sob o guarda-chuva do inimaginável: poderia se conhecer um pouco da violência e da morte como base de funcionamento de um sistema político. As fotografias são, nesse sentido, uma tentativa de romper esse isolamento também imaginário, objetivo, político. E, assim como a memória dos acontecimentos nos campos, a fotografia permanecia intocada pela inviabilidade de sua própria existência. Quem ousaria documentar tais fatos?

Didi-Huberman aponta que as narrativas trazidas pelas imagens são como as memórias que constituem uma ideia de posteridade. E, por isso, as fotografias são extremamente relevantes aos estudos da memória e da história. Especialmente no caso das fotografias do campo, o fotógrafo carrega o sentimento de ter praticamente certeza de sua morte. A não sobrevivência já anuncia a ele o olhar de posteridade e, é dentro dessa dicotomia entre vida e morte - passado-futuro - que o nascimento da imagem carrega a perspectiva da história. O filósofo aponta que a relação desse ímpeto de registro diante da falta de possibilidade do pensar não seria apenas uma ausência de pensar em sua plenitude. Mas, sim, instantes de pensamento, instantes de verdades construídas e registradas que se mobilizam para organizar, internamente, a exterioridade dos momentos de caos. E, para Didi-Huberman, é exatamente isso que são as quatro imagens retiradas do crematório V de Auschwitz sobre as quais ele elabora suas reflexões na primeira parte do livro: instantes de verdade retirados daquele contexto pelos Sonderkommando.

No diálogo com a própria imagem, Didi-Huberman indica que se pede a elas equivocadamente: ou se quer a verdade ou se assume sua simulação. Ambos pensamentos são apressados na análise do filósofo e, portanto, deixam passar a relevância desse material que é o registro humano de um momento. De toda forma, as imagens são inadequadas, e é precisamente nessa inadequação que habitam as diversas possibilidades de interpretações históricas. Ou seja, daquilo que não é visível é que surgem as visualidades, os enquadramentos, as intercorrências entre fotógrafo, fotografia e fotografados. É também dessa dinâmica que a memória pode se erigir. É necessário, portanto, uma crítica da imagem. Historiadores necessitam se despir do preciosismo de encontrar a revelação do corpus documental tradicional nas imagens. Pois nelas há um elemento antropológico presente, que lhes é ontológico e criativo.

Didi-Huberman considera, dessa forma, discutir a fragilidade estética do inimaginável diante da tomada das imagens por parte dos historiadores. Há, no caso da Shoá, uma sensibilidade estética interessante que pode estar contraposta sob duas perspectivas: uma, de que não se pode discutir a profundidade desses fatos a partir de imagens, e a outra, de não os discutir, mesmo que apenas a partir de fragmentos imagéticos. Essa contradição coloca historiadores e historiadoras em uma encruzilhada analítica e crítica, mas não exime a ciência histórica de aprofundar-se na possibilidade trazida pela visualidade através das fotografias. As críticas a ele direcionadas por Gérard Wajcman e Elisabeth Pagnoux são erguidas sob o argumento de que, ao deparar-se com tais imagens, o filósofo tenha encerrado de alguma forma diversas discussões que ainda necessitavam ser aprofundadas. Não há, no entanto, uma busca ou mobilização de uma única verdade que pode ser construída a partir de qualquer fonte, seja ela da natureza que for. De fato, é sabido que o trabalho de historiadores é justamente a localização histórica do seu corpus documental, bem como clareza nas estratégias críticas de metodologias na análise. Dito em outras palavras, nem mesmo nos documentos mais tradicionais e oficiais a presença da verdade factual poderia ser tomada como possível dentro da perspectiva única e, sim, parcial.

Ao longo dessa discussão, um conceito importante trazido por Georges Didi-Huberman citando as reflexões de Susan Sontag (2021SONTAG, Susan. Sobre fotografia. Tradução Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, [1973] 2021.) em sua obra Sobre fotografia é o do duplo regime das imagens. Elas se apresentam como um fluxo-refluxo, oferecem e retiram, são tudo daquele momento e, ao mesmo tempo, podem oferecer um vazio ontológico que deve ser interpretado como construtor de sentidos. A permissão estética que deve ser dada à imagem, revelando suas subjetividades e intersubjetividades, não a exime de comprometimento crítico e analítico. É através desse sentido de conjuntura que ela deve ser tomada como um documento, um registro frágil, conciso e necessário.

Mas Didi-Huberman volta a discutir um aspecto fundamental da imagem: poder ser tomada como imagem-arquivo. Didi-Huberman explora a possibilidade argumentativa de utilização da imagem, de fato, como documento, como arquivo histórico. E é aqui também que o autor demonstra como o uso da imagem como fetiche, universalizando-a, pode deixar de lado interpretações críticas dessas imagens-arquivo na tentativa de fugir da própria objetividade que evocam, supostamente. E quais fontes seriam válidas se os fragmentos documentais deixados pelos próprios agentes históricos daquela época não são considerados documentos? Ao fim, retoma a importância da imaginação como horizonte político e interpretativo das imagens. A essa altura, Didi-Huberman já ofereceu em sua argumentação a perspectiva de que o inimaginável parece estar amparado em uma perspectiva de fetiche analítico ou resistência interpretativa e crítica das imagens como forma de denúncia de um tempo. E esses vestígios entendidos como imagem-arquivo foram, muitas vezes, difíceis de ser assimilados tanto por testemunhas e sobreviventes como por espectadores-leitores e também por cientistas das humanidades mais desconfiados com o uso da fotografia como evidência histórica.

Segundo ele, a potência das imagens se dá justamente na sobreposição de diversas “verdades”, o que possibilitaria a provocação da imaginação. São os espaços e oportunidades de vazios que geram a fagulha imaginativa que desperta a curiosidade, dando origem à imaginação política - que pode e deve ser situada em determinada lógica de funcionamento dentro do campo político. Sua importância reside na investigação dos detalhes, das singularidades. Como força documental, Didi-Huberman acrescenta que a memória da Shoá não será ferida pela oportunidade de imaginação concedida através das imagens. Ao contrário, criar-se-ia uma lacuna analítica nunca antes visitada.

O autor conclui seu livro retomando que se confunde “fato com fetiche, arquivo com aparência, trabalho com manipulação, montagem com mentira e semelhança com assimilação’’ (Didi-Huberman, 2020DIDI-HUBERMAN, Georges . Imagens apesar de tudo. Tradução Vanessa Brito e João Pedro Cachopo. São Paulo: Editora 34, [2003] 2020., p. 215). Utiliza como norteador do debate a exposição fotográfica Memória dos campos, de Eric Schawab e Lee Miller. Para o historiador, os autores da exposição não tinham a pretensão de revelar, com as fotografias, o funcionamento dos campos, mas de apontar uma discussão sobre as intercorrências que ali se desenvolveram e, sobretudo, interrogar sobre os testemunhos, sobre as condições que essas pessoas viviam. Isso tudo de forma dialógica, pois, para Didi-Huberman, a montagem de imagens, uma série ou uma coleção, não é finalização: é a possibilidade de assimilação que se gera a partir da montagem.

É principalmente sobre a possibilidade interpretativa múltipla e viva da fotografia, comprometida com a historicidade, a localização que Georges Didi-Huberman constrói no livro Imagens apesar de tudo. É sobre a construção da memória coletiva, que é modulada por uma multiplicidade de fatores, eventos e contextos acerca de um mesmo fato. As imagens são, na defesa de Didi-Huberman, a construção de uma memória edificada e acontecimentos do passado que dialogam com o presente e livram-se do purismo historicista de época, pois viabilizam a reflexão a partir também do tempo presente, das montagens possíveis e das interpretações dialéticas, do não dito, do não vivido, do espaço imaginado e projetado.

Referências

  • ARENDT, Hannah. A vida do espírito Tradução Antônio Abranches. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, [1971] 2019.
  • ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro Tradução Mauro W. Barbosa. São Paulo: Perspectiva, [1954] 2015a.
  • DIDI-HUBERMAN, Georges . Imagens apesar de tudo Tradução Vanessa Brito e João Pedro Cachopo. São Paulo: Editora 34, [2003] 2020.
  • DIDI-HUBERMAN, Georges ; MONTEIRO, Lúcia . Aparências ou aparições: o filósofo Didi-Huberman comenta a exposição Levantes, em cartaz em São Paulo. Zum: Revista de Fotografia, São Paulo, 28 nov. 2017. Disponível em: Disponível em: https://revistazum.com.br/entrevistas/entrevista-didi-huberman/ Acesso em: 17 nov. 2022.
    » https://revistazum.com.br/entrevistas/entrevista-didi-huberman/
  • SONTAG, Susan. Sobre fotografia Tradução Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, [1973] 2021.
  • 1
    Os Sonderkommandos eram unidades de trabalho dentro dos campos de concentração. Em geral, os encarregados dessas unidades eram os próprios judeus, que executavam tarefas variadas, desde a recepção de judeus e judias nos campos até o momento da execução nas câmaras de gás.
  • 2
    As reflexões de Arendt acerca desse tema podem ser encontradas em duas de suas obras: Entre o passado e o futuro (2015) e A vida do espírito (2019).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    19 Set 2022
  • Aceito
    01 Fev 2024
EdUFF - Editora da UFF Instituto de História/Universidade Federal Fluminense, Rua Prof. Marcos Waldemar de Freitas Reis, Bloco O, sala 503, 24210-201, Niterói, Rio de Janeiro, Brasil, tel:(21)2629-2920, (21)2629-2920 - Niterói - RJ - Brazil
E-mail: tempouff2013@gmail.com