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Ícone, memória e violência no fotojornalismo mexicano

Icon, memory and violence in the Mexican photojournalism

Resenha de TRONCOSO, Alberto del Castillo. . As mulheres de X´oyep . Rio de Janeiro: FGV Editora, 2022.

Resumo:

Resenha do livro As mulheres de X’oyep, de Alberto del Castillo Troncoso, uma biografia da foto das mulheres indígenas tzotziles, do México, tomada por Pedro Valtierra em 1998 e publicada por vários periódicos como símbolo do conflito entre povos indígenas e forças do Estado mexicano.

Palavras-chave:
Fotojornalismo; Povos indígenas; Cultura visual

Abstract:

Review of the book As mulheres de X’oyep, writen by Alberto del Castillo Troncoso, which is a biography of a photo of the tzotil women, at México, taken by Pedro Valtierra in 1998 and published by a lot of journals as symbol of the conflict between indigenous people and the Mexican State power.

Keywords:
Photojournalism; Indigenous people; Visual culture

Ainda é pouco conhecida fora dos circuitos especializados no Brasil a obra do historiador mexicano Alberto del Castillo Troncoso. Com considerável e vasta abrangência, em artigos e livros, ele tem se debruçado sobre a fotografia documental e o fotojornalismo no México e na América Latina, desde sua tese de doutorado, defendida no Colégio de México, acerca do papel das imagens na construção da infância no regime do porfiriato e na Revolução Mexicana, até seus mais contundentes trabalhos sobre a incidência da fotografia nos movimentos estudantis e na cobertura da história política do México ao longo do século XX. É, portanto, um importante interlocutor para a historiografia brasileira e latino-americana, ao transitar ainda, com domínio de método, pela história oral e pelo diálogo que esta tem oferecido aos estudos da cultura visual.

A recente tradução no Brasil de seu ensaio As mulheres de X’oyep (Troncoso, 2022TRONCOSO, Alberto del Castillo . As mulheres de X´oyep. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2022.), originalmente publicado em 2013, traz em versão ampliada uma contribuição para as pesquisas sobre fotojornalismo e a agência social das imagens, especialmente na abordagem específica sobre a elaboração midiática dos conflitos entre as forças do Estado e os movimentos sociais - tema sempre atual na América Latina, que dialoga com a agenda intelectual de uma história pública que tem problematizado o posicionamento dos estudiosos e dos grupos sociais nos rumos políticos que o continente tem vivido nos últimos anos (Mauad; Santhiago, 2018MAUAD, Ana Maria; SANTHIAGO, Ricardo. Que história pública queremos? São Paulo: Letra & Voz, 2018.).

O livro é uma biografia da imagem, ou seja, um esforço por acompanhar a trajetória de uma única imagem em seu circuito de produção, circulação e consumo, a fim de compreender as demandas editoriais, as circunstâncias arriscadas por que passaram os produtores das notícias, a forma que foi decidida como a imagem circularia e seu alcance, e, no que é possível rastrear, sua recepção e seu impacto junto aos mais diferentes públicos.

Mas de que imagem se trata? De uma foto capturada por Pedro Valtierra, no contexto das manifestações zapatistas no estado de Chiapas, no sul do México, em janeiro de 1998. Na imagem se vê, no primeiro plano, um enfrentamento físico entre soldados armados e mulheres indígenas da etnia tzotzil. Valtierra era fotógrafo do periódico La Jornada, o qual selecionou para publicar uma das fotos daqueles acontecimentos que mais impactaram a opinião pública, daí a relevância do livro em questão, por narrar os bastidores da constituição da imagem até se tornar o que foi chamado de ícone, isto é, uma plataforma estratégica de visualização e interpretação sobre aquela configuração histórica.

Dividido em cinco capítulos, o livro traz a escrita autoconsciente de Alberto, que parece um exercício didático sobre sua metodologia. No capítulo 1, ele situa a irrupção do zapatismo como movimento social, indicando que foram compulsados, na imprensa, os antecedentes do evento fotografado, sobretudo o terrível massacre de Acteal, ocorrido semanas antes, quando 45 indígenas que rezavam numa igreja foram mortos por forças paramilitares.

Desde o começo, é contestado o clichê interpretativo de que a imagem fala mais que mil palavras, pois é ressaltada a função do historiador numa era de ubiquidade das imagens: por exemplo, a função de fazer uma análise do “efeito Televisa” - vindo do nome da emissora mexicana -, por meio do qual a mídia interfere imediatamente na sucessão dos acontecimentos, nas ações individuais e coletivas dos envolvidos e em sua repercussão imediata. Seria algo mais ou menos equivalente a um “efeito Rede Globo”, para o público brasileiro, sobretudo em um período em que a internet e as redes sociais ainda não tinham tanto alcance e a televisão era o principal meio de comunicação.

No capítulo 2, o texto recorre à história oral para traçar o percurso de Valtierrra e do jornalista Juan Balboa até às comunidades indígenas, na zona rural da Serra Madre del Sur. São pontuados os quase 15 anos que separaram as entrevistas dos acontecimentos, intervalo que é relevante para se compreender a incompletude da rememoração, pois a história oral não trata de recuperar o que se deu na sua totalidade, mas a espessura da memória, com suas lacunas e interpolações. Além disso, em relação à versão original em espanhol, a versão traduzida acrescenta informações e a citação de uma entrevista do jornalista Juan Balboa para a revista Cuartoscuro, em 2018.

As entrevistas com Balboa e Valtierra sobre as circunstâncias da cobertura fotográfica permitem acessar também, minimamente, o ponto de vista dos grupos indígenas - especialmente das lideranças femininas - sobre o conflito, no momento em que elas próprias acionam o fotógrafo como testemunha ocular e convocam a fotografia como tática de produção de documentos visuais sobre as violências militares, o que, de acordo com o “efeito Televisa” mencionado, suspende momentaneamente a ação do Estado, que poderia ter sido mais agressiva. Talvez, em outra investigação posterior, coubesse entrevistar as próprias mulheres sobre o concurso da imagem para seu empoderamento ante os soldados, que lhes levou, em sua baixa estatura, a ousar enfrentar homens mais altos e fortemente armados. Como enfatiza o autor, o efeito dessas violências ainda se faz sentir na disputa pela memória pública e no agenciamento da imagem fotográfica, cuja recepção se interpolou entre o passado e o presente.

O diálogo metodológico com a história oral confronta meticulosamente os relatos numa crônica do conflito que também é a crônica da construção da notícia, da escolha dos protagonismos, da emergência da foto como suporte privilegiado, embora parcial, do que ele chama de “atmosfera caótica” dos eventos. Chega-se a outra importante constatação, cara aos estudos de fotojornalismo: embora a cena da foto não seja fabricada, a presença de Valtierra no terreno do enfrentamento não é neutra, e, por óbvio, contradiz o discurso de imparcialidade dos meios de comunicação, ainda que La Jornada seja um veículo identificado politicamente com a esquerda progressista.

O capítulo 3 é um relato sintonizado com o que se nomeou virada arquivística no tratamento analítico das imagens (Edwards, 2021EDWARDS, Elizabeth. Fotografias: a forma material e o arquivo dinâmico. In: FLORES, Teresa M.; CORREA, Sílvio M. de S.; VASCONCELOS, Soraya. Imagens & arquivos: fotografias e filmes. Lisboa: Instituto de Comunicação Nova, 2021. p. 14-29.). Ao acessar as tiras fotográficas eleitas como prova do testemunho do fotógrafo e visualizar um encadeamento de fotogramas ao qual nem os leitores de La Jornada nem dos demais periódicos em que a imagem foi publicada tiveram acesso, na época, o historiador desmonta a teoria da fotografia como captura do instante decisivo, na medida em que este é apresentado como apenas mais um dos instantes fotografados em série. No fotojornalismo o que é decisivo, ao contrário, é o trabalho do fotógrafo e de seus editores, que definem efetivamente qual imagem compõe a notícia, nesse conjunto de negativos imediatamente revelados em San Cristóbal de las Casas e cujas cópias foram remetidas à Cidade do México.

Para essa virada arquivística, o historiador das imagens, como profissional do arquivo, pode visualizar o que Walter Benjamin chamou de centelhas do acaso com que a luz produziu a fotografia. Mas ele tem diante de si e apresenta a seu leitor folhas de contato com as séries de imagens, o que lhe permite desdobrar, na materialidade arquivística, a compreensão do que se alojou na câmera - aquilo que Ariella Azulay e Louise Bethlehem (2015AZULAY, Ariella; BETHLEHEM, Louise. Civil imagination: a political ontology of photography. London: Verso, 2015.) nomeiam o evento fotografado, em franca negociação com aqueles que figuram na imagem. Ou seja, Alberto restitui o acaso à expertise profissional e aos próprios posicionamentos da imprensa em dada circunstância histórica, posicionamentos de um olhar engajado que pouco têm de acaso (Mauad, 2008MAUAD, Ana Maria. O olhar engajado: fotografia contemporânea e as dimensões políticas da cultura visual. ArtCultura, v. 10, n. 16, p. 33-50, jan.-jun. 2008.). O mesmo capítulo se encerra com uma análise formal da fotografia biografada, das escolhas estéticas que foram feitas e de sua relação com a visualidade dos camponeses e dos povos indígenas mexicanos apresentados historicamente de forma folclórica, especialmente as mulheres, na perspectiva de um diálogo tenso entre imagens e a disputa por representação atualizada na história moderna do México.

O capítulo 4, dedicado à história de um ícone, começa pela constituição do olhar de Valtierra, desde as condições colocadas pelas mudanças editoriais e políticas do México, no final dos anos 1970, à existência de uma robusta história da fotografia documental mexicana e às opções individuais da formação profissional do fotógrafo. Mas a formulação do conceito de ícone se mostra sobretudo na disputa de interpretações em torno da mesma imagem: se ela expressa uma opressão universal/global ou específica dos povos indígenas daquele país, se ela ressalta a resistência das mulheres indígenas à violência do Estado ou a tolerância dos soldados em não agredir de volta as mulheres. A multiplicação dos usos dessa fotografia por diversos periódicos mundo afora, e mesmo por representantes dos grupos chiapanecos, assinala aquilo que W. J. T. Mitchell (apudSantiago Jr., 2019SANTIAGO JR., Francisco das Chagas Fernandes. A virada e a imagem: história teórica do “pictorial/iconic/visual turn” e suas implicações para as humanidades. Anais do Museu Paulista, Nova Série, v. 27, p. 1-51, 2019.) deslindou acerca da relação entre image (a imagem mental que se fixa na memória) e picture (as diferentes vidas materiais, ou encarnações, que atualizam as leituras da imagem em contextos por sua vez específicos e não necessariamente relacionados com sua produção).

O último capítulo narra a visita do próprio historiador a X’oyep, a fim de compreender os espaços onde se desenrolaram os conflitos e se possível dialogar com os remanescentes daquele passado. O poder de reencarnação da image em uma nova picture na esfera pública surpreendeu o autor e igualmente toma o leitor de surpresa, dada à força de sobrevivência da imagem em suporte imprevisto e certamente na memória das comunidades chiapanecas.

Dado o poder de agenciamento que essa foto cria em torno de si, suscitando das lágrimas ao protesto, o que o historiador mexicano nos ensina também é que não há história contemporânea sem a forte participação das imagens, especialmente das imagens da mídia, seja do ponto de vista do Estado, da política partidária, dos movimentos sociais, ou do amplo espectro de temas e problemas a que a historiografia se dedique. Se a imagem participa das relações sociais, como ato, coisa material e suporte da experiência (Bredekamp, 2015BREDEKAMP, Horst. Teoria do ato icônico. Lisboa: KKYM, 2015.; Meneses, 2003MENESES, Ulpiano T. B. de. Fontes visuais, cultura visual, história visual: balanço provisório, propostas cautelares. Revista Brasileira de História, v. 23, n. 45, p. 11-36, 2003., p. 14; Knauss, 2006KNAUSS, Paulo. O desafio de fazer história com imagens: arte e cultura visual. ArtCultura, v. 8, p. 97-119, jan.-jun. 2006.), chegamos a tal compreensão heurística em virtude de trabalhos como esse que nos levam muito além da apreciação das imagens como meras ilustrações.

Para nosso aprendizado, resta ainda a pertinência de analisar a imagem em meio aos processos de racialização e de generificação, que, longe de serem temas minoritários, ocupam lugar de destaque na história política da América Latina, especialmente quando se pondera que as mulheres e os grupos racializados de forma subalternizante, como os povos originários e a população negra, disputam a visualidade e a memória, em suas lutas por cidadania.

Por fim, numa breve nota, o ensaio aponta para a contribuição do Centro da Imagem, na Cidade do México, para a difusão de imagens do zapatismo (Troncoso, 2022TRONCOSO, Alberto del Castillo . As mulheres de X´oyep. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2022., p. 78). Instituições públicas como essa, como também certas instituições privadas, têm se destacado na veiculação de fotografias e audiovisuais, com vistas ao letramento histórico de seus públicos e à luta pelos valores democráticos. Para a narrativa histórica, como a que Alberto nos brinda, as instituições de guarda e de exposição acenam como agentes imprescindíveis que atravessam a biografia das imagens e materializam os sentidos de um passado ainda vivo.

Referências

  • AZULAY, Ariella; BETHLEHEM, Louise. Civil imagination: a political ontology of photography London: Verso, 2015.
  • BREDEKAMP, Horst. Teoria do ato icônico Lisboa: KKYM, 2015.
  • EDWARDS, Elizabeth. Fotografias: a forma material e o arquivo dinâmico. In: FLORES, Teresa M.; CORREA, Sílvio M. de S.; VASCONCELOS, Soraya. Imagens & arquivos: fotografias e filmes Lisboa: Instituto de Comunicação Nova, 2021. p. 14-29.
  • KNAUSS, Paulo. O desafio de fazer história com imagens: arte e cultura visual. ArtCultura, v. 8, p. 97-119, jan.-jun. 2006.
  • MAUAD, Ana Maria. O olhar engajado: fotografia contemporânea e as dimensões políticas da cultura visual. ArtCultura, v. 10, n. 16, p. 33-50, jan.-jun. 2008.
  • MAUAD, Ana Maria; SANTHIAGO, Ricardo. Que história pública queremos? São Paulo: Letra & Voz, 2018.
  • MENESES, Ulpiano T. B. de. Fontes visuais, cultura visual, história visual: balanço provisório, propostas cautelares. Revista Brasileira de História, v. 23, n. 45, p. 11-36, 2003.
  • SANTIAGO JR., Francisco das Chagas Fernandes. A virada e a imagem: história teórica do “pictorial/iconic/visual turn” e suas implicações para as humanidades. Anais do Museu Paulista, Nova Série, v. 27, p. 1-51, 2019.
  • TRONCOSO, Alberto del Castillo . As mulheres de X´oyep Rio de Janeiro: FGV Editora, 2022.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    25 Mar 2023
  • Aceito
    05 Abr 2023
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