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LEGADO DE FLORENCE NIGHTINGALE: REFLEXÃO SOB A ÓTICA DE PIERRE BOURDIEU

RESUMO

Objetivo:

refletir sobre o legado de Florence Nightingale sob a ótica do conceito de habitus de Pierre Bourdieu.

Método:

trata-se de uma reflexão teórica sobre o legado de Florence Nightingale para a enfermagem, a partir da relação da sua contribuição no cuidado à saúde e formação profissional de enfermagem consagrado como um novo habitus profissional, alicerçado no acúmulo de capital simbólico, com destaque para os científicos e sociais.

Resultados:

aspectos importantes da vida familiar de Florence Nightingale, enquanto primeiro contato social e locus da incorporação de um habitus determinou as relações sociais e sua oportunidade de investimento com implicações para sua vida profissional. Além disso, Florence capitalizou para a enfermagem mundial significativo bem simbólico, pois superou desafios e apresentou evidências positivas, produto de um modelo de cuidar.

Conclusão:

o contributo da fundadora da enfermagem moderna deve ser conhecido, apreendido e relembrado, porque seu feito traduz uma identidade profissional esculpida em rituais, símbolos, disciplina e poder.

DESCRITORES:
Enfermagem; História da enfermagem; Identidade; Socialização; Gênero; Capital social

ABSTRACT

Objective:

reflecting on Florence Nightingale’s legacy from the perspective of the concept of habitus, proposed by Pierre Bourdieu.

Methods:

theoretical reflection on Florence Nightingale’s legacy in nursing based on the description of her contribution to health care and professional training in nursing, which allowed them to be consolidated as a new professional habitus grounded in accumulation of symbolic capital, especially scientific and social ones.

Results:

important aspects of Florence Nightingale’s family life, considered the first social contact and locus of incorporation of a habitus, determined her social relationships and investment opportunities, with implications for her professional life. Additionally, Nightingale contributed to global nursing by adding to it meaningful symbolic assets, since she overcame challenges and presented positive evidence that resulted from a care model.

Conclusion:

the contribution of the founder of modern nursing must be known, grasped, and remembered, because her achievements were the result of a professional identity shaped by rituals, symbols, discipline, and power.

DESCRIPTORS:
Nursing; History of nursing; Identity; Socialization; Gender; Social capital

RESUMEN

Objetivo:

reflexionar sobre el legado de Florence Nightingale bajo la óptica del concepto de habitus de Pierre Bourdieu.

Método:

reflexión teórica sobre el legado de Florence Nightingale a la enfermería partiendo de la relación de su contribución al cuidado de la salud y formación profesional de enfermería como nuevo habitus profesional, fundamentado en la acumulación de capital simbólico, destacándose los científicos y sociales.

Resultados:

aspectos importantes de la vida familiar de Florence Nightingale como primer contacto social y locus de la incorporación de un habitus, determinando relaciones sociales y su oportunidad de inversión, con implicancias para su vida profesional. Además, Florence capitalizó para la enfermería mundial un bien simbólico significativo, superando desafíos y presentando evidencias positivas, producto de un modelo del cuidar.

Conclusión:

la contribución de la fundadora de la enfermería moderna debe conocerse, aprenderse y recordarse; su legado traduce una identidad profesional esculpida en rituales, símbolos, disciplina y poder.

DESCRIPTORES:
Enfermería; Historia de la enfermería; Identidad; Socialización; Género; Capital social

INTRODUÇÃO

O ano de 2020 celebrou o bicentenário de Florence Nightingale (1820-2020), precursora e fundadora da Enfermagem Moderna. Nesse contexto, a Organização Mundial de Saúde indicou o ano de 2020 como o “Ano Internacional da Enfermagem e da Enfermagem Obstétrica, conferindo visibilidade mundial à enfermagem, dando crédito às vozes, valores e conhecimentos da enfermagem. Esses marcos aconteceram em um momento histórico ímpar da história da saúde recente, quando o mundo registrou em 31 de dezembro de 2020, 7.675.973 casos de COVID, com 194.949 óbitos. Nesse contexto, o Brasil ocupou o terceiro lugar no mundo com o maior número de casos confirmados, sem falar da subnotificação11. Brasil. Ministério da Saúde. Painel Coronavírus. Dados do Ministério da Saúde. [cited 2021 Mar 02]. Available from: https://covid.saude.gov.br/
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.

Portanto, trazer a lume uma versão do passado para o presente é por demais oportuna, em face da possibilidade de refletir sobre o legado de Florence Nightingale para a enfermagem, sobretudo, em um momento em que o protagonismo e a visibilidade da profissão, no contexto de uma pandemia, vêm resgatando a sua importância para a saúde das pessoas junto à sociedade e à comunidade científica22. Padilha MICS. De Florence Nightingale à pandemia COVID-19: o legado que queremos. Texto Contexto Enferm [Internet]. 2020 [cited 2021 Mar 16];29:e20200327. Available from: https://doi.org/10.1590/1980-265x-tce-2020-0327
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. Vale ressaltar que, esse acontecimento representa a culminância do projeto de reconhecimento para a profissão iniciado por Florence Nightingale.

Isso, porque nos últimos meses, no Brasil e no mundo, a enfermagem vem vivenciando o resgate de sua grandeza e importância para a saúde das pessoas junto à sociedade e à comunidade científica22. Padilha MICS. De Florence Nightingale à pandemia COVID-19: o legado que queremos. Texto Contexto Enferm [Internet]. 2020 [cited 2021 Mar 16];29:e20200327. Available from: https://doi.org/10.1590/1980-265x-tce-2020-0327
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. Nesse contexto, a Associação Brasileira de Enfermagem e a comunidade científica da enfermagem, especialmente, representada pelas instituições de ensino vem discutindo a atuação profissional, bem como as estratégias eficazes para que possamos ecoar nossas vozes e promovermos ações concretas em prol do reconhecimento profissional.

Decorridos 200 anos do nascimento de Florence Nightingale e 110 anos de seu falecimento, a sua voz e seus feitos repercutem no cotidiano da enfermagem, nos permitindo a aquisição de lucros simbólicos oriundos dos resultados de sua perpetuação. Vale relembrar suas palavras, em 30 de junho de 1890 “quando não muito longe for uma memória, somente um nome, espero que minha voz possa perpetuar o importante trabalho3:1863. Florence Nightingale Museum. Florence the Woman. Florence Nightingale’s Voice, 1890. Display n.186. [cited 2021 Mar 02]. Available from: https://www.florence-nightingale.co.uk/florence-nightingales-voice-1890/
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Assim, as ideias dessa reflexão clarificam-se com o entendimento de que as estratégias exitosas de “enfermeiros da linha de frente”, de “enfermeiros de vanguarda” simbolizam o que Pierre Bourdieu determinou como “a arte de antecipar tendências”, as quais lhes permitem as escolhas das estratégias compensadoras. Essa capacidade está estritamente vinculada a incorporação de capital escolar e profissional angariado no e pelo campo científico44. Grenfell M. Pierre Bourdieu: conceitos fundamentais. Petrópolis, RJ(BR): Vozes; 2018..

Os conceitos de habitus e campo são categorias centrais na teoria explicativa do mundo social de Pierre Bourdieu. A utilização do termo “habitus” por Bourdieu busca romper com teorias passadas que relacionavam o termo à noção de hábito. Visto que Bourdieu enfatiza as estruturas subjacentes das práticas, ou seja, os atos sustentados por um princípio gerador. Assim, o habitus é um conhecimento adquirido, o qual é incorporado sob a forma de disposições permanentes que geram percepções, apreciações e práticas. Também pode ser compreendido como uma propriedade, um capital acumulado. Vale dizer que o conceito de capital tomado por empréstimo da economia por Pierre Bourdieu tem papel nodal no pensamento de Bourdieu, uma vez que a formação do habitus ocorre primeiramente no ambiente familiar e depois no educacional, onde o capital é institucionalizado44. Grenfell M. Pierre Bourdieu: conceitos fundamentais. Petrópolis, RJ(BR): Vozes; 2018..

Portanto, habitus se refere a algo histórico ligado ao individual e deve ser compreendido como uma propriedade de atores (sejam indivíduos, grupos ou instituições) em conformidade com as estruturas objetivas de que ele é produto, pois são nossas condições materiais de existência que geram nossas incontáveis experiências de possibilidades e impossibilidades, moldando nosso senso inconsciente do possível, em outras palavras, nossa compreensão do lugar de direito no mundo social44. Grenfell M. Pierre Bourdieu: conceitos fundamentais. Petrópolis, RJ(BR): Vozes; 2018.. Dessa forma, esse conceito constitui peça-chave da lente que Bourdieu se apropria para enxergar que o habitus gera práticas distintas e distintivas que expressam a interiorização do externo e a exteriorização do interno, em outras palavras, é a estrutura social internalizada e o objetivo tornado subjetivo.

Ademais, na concepção bourdieusiana, qualquer tentativa de analisar o habitus deve levar em consideração sua relação com o campo, pois o habitus é uma estrutura relacional. Assim, as relações dialéticas entre o habitus e o campo são a chave para a compreensão da prática44. Grenfell M. Pierre Bourdieu: conceitos fundamentais. Petrópolis, RJ(BR): Vozes; 2018..

Ao tratar do conceito de campo, Bourdieu esclarece que uma sociedade diferenciada não forma uma totalidade exclusiva, mas sim um conjunto de espaços de jogos mais ou menos autônomos que não devem ser analisados a partir de uma lógica social única, pois cada espaço constitui um campo, que pode ser econômico, político, cultural, científico ou outro44. Grenfell M. Pierre Bourdieu: conceitos fundamentais. Petrópolis, RJ(BR): Vozes; 2018., ou seja, um espaço multidimensional onde o peso e volume do capital possuído vão determinar as ocupações de posições pelo diferentes atores sociais.

Na presente reflexão, cujo objetivo é refletir sobre o legado de Florence Nightingale para a enfermagem sob a ótica do conceito de habitus de Pierre Bourdieu, o interesse se volta para o reconhecimento de sua contribuição no entendimento do legado de Florence Nightingale para a enfermagem. Visto que o habitus enfoca o modo de agir, pensar, sentir e ser, capturando como a história dentro de cada um é trazida para as circunstâncias do presente, determinando as escolhas e os modos de agir, que, por sua vez também são determinadas pelas posições ocupadas no campo social. Nessa direção, a presente reflexão está desdobrada em duas partes: a primeira traz brevemente aspectos importantes e determinantes da vida familiar, sendo a família o primeiro contato social e o lócus da incorporação de um habitus que vai determinar as relações sociais e as oportunidades reais no mundo social; e a segunda parte traz aspectos de sua vida profissional e o seu legado como bem simbólico para a enfermagem.

A FORMAÇÃO DO HABITUS PRIMÁRIO NA FAMÍLIA COMO PONTE PARA A TRANSPOSIÇÃO DE FRONTEIRAS NO ESPAÇO SOCIAL

O nascimento de Florence Nightingale ocorreu em 12 de maio de 1820, durante viagem realizada por seus pais, à cidade italiana de Florença. Sua infância foi basicamente em Londres, alternando as residências conforme as estações do ano, prática comum das famílias burguesas55. McDonald L. Florence Nightingale: a very brief history. Westmont, IL(US): InterVarsity Press; 2018..

Podemos dizer, então, que a origem familiar de Florence Nightingale contribuiu para que ela desenvolvesse padrões comportamentais consoantes com sua condição social e construísse importantes laços sociais, em decorrência de seu capital social e simbólico, ou seja, de sua reputação social conhecida e reconhecida por pessoas ilustres da sociedade à época. Uma vez que as famílias, cujos membros ocupam posições de poder e prestígio, constroem suas identidades sociais com base em suas ascendências.

Nesse sentido, a transmissão de poderes entre membros de uma mesma família caminha de acordo com a herança sociológica, representada por bens, aptidões, cargos e até mesmo prestígio, os quais representam chances hereditárias de reconhecimento social66. Elias N. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro, RJ(BR): Jorge Zahar; 2000..

Florence foi educada em casa, inicialmente, por uma governanta, e depois por seu pai que lhe ensinou matemática e estatística, coisa incomum para um pai vitoriano. Provavelmente, nascera daí a paixão de Florence por estatística. O pai ainda lhe ensinou grego e latim. Florence estudou francês e alemão, além de História Universal e de História Política da Inglaterra55. McDonald L. Florence Nightingale: a very brief history. Westmont, IL(US): InterVarsity Press; 2018., o que era raro às mulheres do século XIX, já que deveriam reproduzir o modelo de mulher consoante com o seu tempo, cuja regularização social colocava o homem na condição absoluta de governo e representação da família, cabendo às mulheres apenas o cuidado com a casa, em consonância com a assimetria entre os sexos, a qual era apregoada como essencial ao regulamento da sociedade da época77. Santos TCF, Gomes MLB, Oliveira AB, Almeida-Filho AJ. The Vargas dictatorship in Brazil (1937-1945) and the primer Franquismo in Spain (1939-1945): power and counter-power of nurses. Rev Bras Enferm [Internet]. 2012 [cited 2021 Apr 20];65(2):347-52. Available from: https://doi.org/10.1590/S0034-71672012000200022
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Florence realizou estágio de três meses no Instituto de Diaconisas de Kaiserswerth na Alemanha onde lhe foram ensinados os primeiros passos da disciplina na enfermagem, os quais comportavam o cumprimento das regras e horários e a divisão do ensino com base nas classes sociais. Kaiserswerth era uma instituição presidida pelo Pastor Fliedner que, com custos subvencionados inclusive pela Rainha Vitória, treinava enfermeiras para atendimento aos doentes no hospital. Florence não treinou cuidados de enfermagem, mas, aprendeu em mínimos detalhes como o trabalho era realizado: especialmente no tocante à organização do currículo, o uniforme das enfermeiras, o período probatório e os critérios para aprovação no treinamento88. Padilha MICS, Mancia JR. Florence Nihghtingale e as irmãs de caridade: revisitando a história. Rev Bras Enferm [Internet]. 2005 Dec [cited 2021 Apr 20];58(6):723-6. Available from: https://doi.org/10.1590/S0034-71672005000600018
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Florence também conheceu o trabalho desenvolvido pelas Irmãs da Caridade de São Vicente de Paulo, no Hôtel-Dieu, em Paris, onde pôde acompanhar o trabalho assistencial e administrativo que era realizado, fazendo anotações, gráficos e listas das atividades desenvolvidas. Num segundo momento, retornou a esse hospital por mais um mês, onde adotou como vestimenta o hábito religioso das irmãs da caridade88. Padilha MICS, Mancia JR. Florence Nihghtingale e as irmãs de caridade: revisitando a história. Rev Bras Enferm [Internet]. 2005 Dec [cited 2021 Apr 20];58(6):723-6. Available from: https://doi.org/10.1590/S0034-71672005000600018
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. Certamente, o convívio com as irmãs da caridade e adoção de uma marca distintiva das religiosas, influenciaram sobremaneira na criação de seu modelo de enfermagem, uma vez que esse estágio lhe permitiu a compatibilização entre o seu habitus e as disposições necessárias às enfermeiras, mediante a incorporação de uma censura tomada por natureza.

Em 1853, a Rússia invadiu a Turquia, dando início a Guerra da Crimeia (1853-1856). O Ministro da Guerra da Grã-Bretanha, Sydney Herbert aceitou o oferecimento de Florence para cuidar dos soldados feridos e pediu que ela se encarregasse de uma missão de enfermeiras na Crimeia. Florence, sua governanta particular e 38 enfermeiras seguiram, em 21 de outubro de 1854, para Uskudar, que hoje faz parte de Istambul, onde encontraram cinco mil soldados britânicos alojados em prédios imundos e dilapidados, sem equipamentos médicos, nem mesmo, artigos de primeira necessidade. Sua primeira providência, ao chegar a Scutari, foi a de organizar a infraestrutura dos hospitais, evidenciando sua capacidade de administração99. Figueiredo MAG, Peres MAA. The identity of the female nurse: a reflection from the perspective of Dubar. Rev Enf Ref [Internet]. 2019 Mar [cited 2021 Apr 21];IV(20):149-54. Available from: https://doi.org/10.12707/RIV18079
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Vale ressaltar que nos anos que antecederam o conflito, Florence vinha se preparando como enfermeira. Era uma mulher ainda jovem, com 34 anos e profundo conhecimento sobre as condições dos hospitais da Inglaterra. Ao partir para o “front”, liderando um grupo de enfermeiras, tornava-se uma servidora oficial do seu país, posição inédita para a mulher. Não obstante, Florence, ao levar consigo um grupo de enfermeiras para atuar em hospitais militares dos campos de batalha - espaço público tradicionalmente consagrado aos homens e negado às mulheres - subverteu a ordem social vigente que consagrava a mulher como imaculada e frágil.

Portanto, Florence foi uma mulher à frente do seu tempo, cujo capital simbólico herdado pela família, mas também acumulado no e pelo campo por meio de sua trajetória nos espaços hospitalares, constituiu em ponte para legitimar o argumento irrecusável da necessidade de sua aparição em público. Não obstante, também fincou cercas para as interdições e demarcações de espaços para as enfermeiras nos locais públicos, os quais, historicamente pertenciam ao sexo masculino.

Florence deu visibilidade à atuação da enfermeira não apenas no cuidado direto ao doente, mas também no ambiente, por meio da organização dos serviços de lavanderia, rouparia, cozinha, dietética, almoxarifado e limpeza, tendo o controle do ambiente hospitalar por meio de observação e supervisão rigorosas: organizou a hierarquia no trabalho e uma rigorosa disciplina na enfermagem.

Florence não permitia que as enfermeiras sob seu comando andassem sozinhas no período noturno. Todas as noites, sob a luz de um lampião que carregava, Florence terminava seu dia de 20 horas de trabalho inspecionando pessoalmente cada enfermaria. Esse quadro da solitária figura na sua ronda pelo silencioso hospital apoderou-se da imaginação popular e originou-se o seu famoso título de “Dama da Lâmpada”.

A “Lâmpada” presente nas sessões solenes de colações de graus e demais rituais acadêmicos das instituições de ensino, desde a década de 1920, celebra, transmite e perpetua o legado de Florence Nightingale. Na atualidade, a lâmpada continua a fazer parte desses rituais: ela é acesa sempre por um enfermeiro, cujos atributos lhe conferem a honra de encarnar e simbolizar os seus ideais.

A honra de ser eleito para acender a Lâmpada, que evoca Florence Nightingale, ao tempo em que representa o reconhecimento público daquele que se destaca na enfermagem, digno de ser homenageado, anunciando um modelo a ser seguido, também opera como uma espécie de responsabilização em relação a permanente necessidade de fazer jus a tal reconhecimento, uma vez que uma das funções dos rituais de institucionalização é desestimular de forma duradoura quaisquer possibilidades de incumprimento daquilo que é esperado da pessoa consagrada.

Nesse sentido, os ritos institucionais têm a função de estabelecer cercas mágicas, capazes de impedir a transgressão ou deserção do indivíduo ou grupo consagrado. A regularidade desses rituais, representados especialmente pelas recepções de toucas e formaturas, vinculados aos emblemas (bandeiras, medalhas, estátuas, retratos) e testemunhados por pessoas importantes da história do Brasil, em especial, história da saúde e da história da enfermagem, divulgaram as disposições duradouras inerentes a identidade instituída, de modo a conservar as condições de conservação de tal identidade1010. Santos TCF, Oliveira AB, Gomes MLB, Peres MAA, Almeida-Filho AJ, Abrão FMS. Rituales patrióticos y religiosos: contribución a la identidad de las enfermeras brasileña y española (1937-1945). Esc Anna Nery [Internet]. 2013 Mar [cited 2021 Apr 20];17(1):104-10. Available from: https://doi.org/10.1590/S1414-81452013000100015
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-1111. Santos TCF. Meaning of the emblems and rituals in the identity formation of the Brazilian nurse: the reflection after eighty years. Esc Anna Nery [Internet]. 2004 Jan [cited 2021 Apr 20];8(1):81-6. Available from: http://revistaenfermagem.eean.edu.br/2017/detalhe_artigo.asp?id=1042
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Em sua atuação na Guerra da Crimeia num espaço de poucos meses, as mortes devido à infecção diminuíram de 42% para 2,2%. Usou a estatística para avaliar o impacto do cuidado ao paciente e a redução da mortalidade. Criou o Diagrama da Rosa, demonstrando graficamente a importância das adequadas condições de higiene dentro dos hospitais, pois a maioria dos soldados morria por conta de doenças infecciosas. Demonstrou ainda a importância da estatística para comunicação com a sociedade e autoridades sanitárias. Foi a primeira mulher a publicar dessa natureza e a ser aceita como membro da Royal Statistical Society e membro honorário da American Statistical Association99. Figueiredo MAG, Peres MAA. The identity of the female nurse: a reflection from the perspective of Dubar. Rev Enf Ref [Internet]. 2019 Mar [cited 2021 Apr 21];IV(20):149-54. Available from: https://doi.org/10.12707/RIV18079
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,1212. Peres MAA, Aperibense PGGS, Dios-Agaudo MM, Gómes-Catarino S, Queirós PJP. El modelo teórico enfermeiro de Florence Nightingale: una transmisión de conocimientos. Rev Gaúcha Enferm [Internet]. 2021 [cited 2021 Apr 20];42(spe):e20200228. Available from: https://doi.org/10.1590/1983-1447.2021.20200228
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Ademais, certamente, as qualidades pessoais de Florence, em muito favoreceu a ordem ao caos de Scutari. Dotada de uma determinação inabalável e extremamente metódica e atenta aos detalhes, impôs uma rígida disciplina para si e para os outros. Tal imposição levou a inculcação de um habitus compatível com as qualidades requeridas de uma enfermeira, na ótica de Florence Nightingale. Dessa forma, os ensinamentos mais determinantes para a inculcação do habitus são transmitidos por meio de uma espécie de domesticação do corpo, os quais são transmitidos pelos olhares desaprovadores e por falas com tons de censura44. Grenfell M. Pierre Bourdieu: conceitos fundamentais. Petrópolis, RJ(BR): Vozes; 2018..

Sidney Herbert, o Ministro da Guerra, e outros do governo reconheciam Florence Nightingale como porta-voz de um discurso autorizado sobre as reformas necessárias a serem operadas nos hospitais militares, suas práticas administrativas e medidas de higiene. Tanto assim que o Jornal The Times dava-lhe o suporte necessário, informando ao público sobre o seu trabalho na Crimeia e, portanto, construindo sua imagem de heroína, visto que as relações de comunicação são, de modo irrepartível, relações de poder porque têm a capacidade de nomear, ou seja, de fazer ver, de levar a existência, e, assim, comunicar e consagrar uma identidade social1313. McDonald L. Florence Nightingale: The Crimean war: Collected Works of Florence Nightingale. Westmont, IL(US): InterVarsity Press; 2011..

Florence Nightingale como bem simbólico para a enfermagem

Em 24 de junho de 1860, no hospital St Thomas, em Londres, foi fundado o sistema de ensino pensado por Florence, por meio da criação de uma escola para formar enfermeira. Esse sistema estabelecia, para a seleção de futuras estudantes, o cumprimento de exigências físicas, morais, intelectuais e de aptidão profissional; direção da escola por enfermeira; vinculação da escola aos hospitais, porém, com autonomia financeira e administrativa; residência para as estudantes em formação, próxima ao hospital55. McDonald L. Florence Nightingale: a very brief history. Westmont, IL(US): InterVarsity Press; 2018..

O Sistema Nightingale foi difundido pelo mundo, especialmente pelas enfermeiras inglesas e norte-americanas. No Brasil, a Escola de Enfermagem Anna Nery, inaugurada em 19 de fevereiro de 1923, simboliza a transposição do modelo nightingale adaptado à sociedade americana há quase meio século1414. Santos TCF, Barreira IA. Anna Nery School of Nursing: a center for diffusion of native traditions. Esc Anna Nery [Internet]. 1999 Aug [cited 2021 Apr 20];3(2):18-33. Available from: http://www.eean.edu.br/2017/detalhe_artigo.asp?id=1984
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As ideias de Florence Nightingale estão presentes atualmente, configurando-se em bases para o cuidado de enfermagem - nos conceitos de pessoa, ambiente - enfermagem e saúde e doença. É reconhecida por seu pioneirismo na construção de uma teoria para a enfermagem - hoje denominada Teoria Ambientalista -, no século XIX. Portanto, Florence já escreveu uma base explicativa para a profissão, apresentado a importância do ambiente na prevenção das doenças ou contribuição para a cura ou a morte1515. Medeiros ABA, Enders BC, Lira ALBC. The Florence Nightingale’s environmental theory: a critical analysis. Esc Anna Nery [Internet]. 2015 [cited 2020 Jun 27];19(3):518-24. Available from: https://doi.org/10.5935/1414-8145.20150069
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-1616. Haddad VCN, Santos TCF. The environmental theory by Florence Nightingale in the teaching of the nursing school Anna Nery (1962 - 1968). Esc Anna Nery [Internet]. 2011 [cited 2021 Mar 16];15(4):755-61. Available from: https://doi.org/10.1590/S1414-81452011000400014
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Florence viveu 90 anos e deixou registrada sua recusa por um funeral nacional e um jazigo na capela de Westminster, preferindo ser sepultada ao lado dos pais em Romsey, perto de Embley Hall. Após sua morte, no dia 13 de agosto de 1910, foi erguido um monumento em sua homenagem, em Waterloo Place, Londres, em 191555. McDonald L. Florence Nightingale: a very brief history. Westmont, IL(US): InterVarsity Press; 2018..

Essa importante homenagem póstuma contribuiu para a consagração da fundadora da enfermagem mundial, conferindo-lhe vida eterna, uma vez que o monumento imortaliza a pessoa homenageada44. Grenfell M. Pierre Bourdieu: conceitos fundamentais. Petrópolis, RJ(BR): Vozes; 2018.. Isto posto, no mundo e no Brasil, ao longo do século XX e nas duas primeiras décadas desse século, a trajetória exitosa de Florence Nightingale é rememorada, de modo a converter a memória digna de ser preservada, em um bem simbólico para a enfermagem.

No ano em que se celebrou o bicentenário de Florence Nightingale, o Brasil manteve-se fundamentalmente nas primeiras posições em termos de número de casos confirmados e mortes, apesar da subnotificação, em um contexto de negação da gravidade da doença e do entendimento da importância do isolamento social e uso de máscaras. Dessa forma, tais circunstâncias se constituíram cabalmente em uma violência simbólica, uma vez que a mesma, embutida nos discursos ideológicos é exercida quando os destinatários lidam com o discurso como o ele quer ser percebido, ou seja, como um desconhecimento que precisa permanecer nesta condição. Assim, depreende-se que a violência simbólica bem-sucedida é aquela que desqualifica a realidade objetiva.

Dessa forma, é possível apreender que a luta atual é incessante e também uma batalha pela ocupação de espaços, no interior de uma ordem simbólica. Mas, é também o combate pela revisão dessas reivindicações, pois quando a violência simbólica é percebida, o espaço social é reconfigurado, pela força de tornar visível o que não era e de declarar o que antes se calava.

Nesse contexto, a enfermagem brasileira, atuante na “linha de frente” no tratamento dos doentes graves, ou não, acometidos pela COVID-19, ganhou visibilidade nacional, com exaltação da sua importância para o SUS (Sistema Única de Saúde), fazendo eco às palavras de Florence Nightingale, a qual tinha um projeto de reconhecimento para a profissão22. Padilha MICS. De Florence Nightingale à pandemia COVID-19: o legado que queremos. Texto Contexto Enferm [Internet]. 2020 [cited 2021 Mar 16];29:e20200327. Available from: https://doi.org/10.1590/1980-265x-tce-2020-0327
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,1717. Costa R, Padilha MI, Amante LN, Costa E, Bock L. Florence Nightingale's legacy: a travel in time. Texto Contexto Enferm [Internet]. 2009 [cited 2021 Apr 20];18(4):661-9. Available from: https://doi.org/10.1590/S0104-07072009000400007
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. Também os enfermeiros das instituições de ensino articulados com as associações profissionais, especialmente, a Associação Brasileira de Enfermagem, promoveram encontros, seminários, palestras, entre outros, de forma virtual, que deram visibilidade ao capital científico dos enfermeiros no enfrentamento da pandemia, evidenciando a contribuição da pesquisa ao aperfeiçoamento do cuidado.

No ano do bicentenário de Florence Nightingale, vemos resgatada nossa visibilidade, nossas vozes e nossas ações representam um poderoso instrumento de luta para que possamos romper com as disposições inculcadas sobre as estruturas objetivas de que as primeiras constituem o resultado, bem como subverter a ordem estabelecida.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao refletirmos sobre o legado de Florence Nightingale para a enfermagem sob a ótica do conceito de habitus de Pierre Bourdieu, podemos afirmar que essa mulher visionária, instituiu uma identidade profissional esculpida em rituais, símbolos, disciplina e poder. O Sistema Nightingaleano difundido pelo mundo definiu e consolidou essa identidade profissional adaptando-se a realidade em diferentes culturas, porém sempre fiel aos princípios da Escola de Florence. Sendo assim, a existência da fundadora da enfermagem mundial, celebrada como ícone da enfermagem, deve ser conhecida, reconhecida e eternizada.

A rememoração de sua atuação exitosa no espaço de cuidado aos feridos de uma grande guerra permite, por meio de uma ponte entre o passado e o presente, refletir sobre o momento atual em que, no contexto de uma pandemia, vemos que a expertise da enfermagem é necessária nas grandes crises sanitárias. Além disso, deslindar sua importância na prevenção e no cuidado aos acometidos por COVID constitui também uma possibilidade de subversão de uma ordem social que nega a ciência, contribuindo que se produza realidades danosas à sociedade.

REFERENCES

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EDITORES

Editores Associados: Gisele Cristina Manfrini, Ana Izabel Jatobá de Souza. Editor-chefe: Roberta Costa.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Fev 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    28 Maio 2021
  • Aceito
    23 Set 2021
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