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O apoio mútuo das políticas comerciais e ambientais na ordem jurídico-penal interna para a repressão do suborno internacional

The mutual support of commercial and environmental policies at internal legal criminal order for the repression of international bribery

Resumo

Este artigo objetiva demonstrar que o controle penal do comércio global, por meio da criminalização do suborno internacional, compreende a proteção do meio ambiente. Neste sentido, sob o modelo da sociedade global de riscos, a criminalidade transnacional interfere na eleição do bem jurídico e na forma de sua tutela penal, excessivamente adiantada e abstrata. Entretanto, a estruturação do bem jurídico não pode, em caráter absoluto, ser dissociada da realidade que determina sua existência. Desde uma base teórica culturalista, a adequação da legislação penal dos Estados às medidas internacionais de combate ao crime é compromisso que se impõe. Mas, como adequar a legislação penal dos Estados signatários das Convenções contra a corrupção às Convenções de proteção do meio ambiente no contexto do comércio internacional? Supõe-se que a adequação da legislação penal demanda a inclusão do meio ambiente na discussão do bem jurídico protegido no crime de suborno em transações comerciais internacionais. Por isso, a adequação da legislação não se constitui numa abordagem unificada, pois sempre haverá alguma diferença cultural a ser avaliada e considerada neste processo.

Palavras-chave:
Meio ambiente; Suborno internacional; Comércio internacional

Abstract

This article aims to demonstrate that the criminal control of global trade, through the criminalization of international bribery, includes the protection of the environment. In this sense, under the model of the global risk society, transnational criminality interferes in the choice of the legal good and in the form of its penal protection, which is excessively advanced and abstract. However, the structuring of the legal asset cannot, absolutely, be dissociated from the reality that determines its existence. From a culturalist theoretical basis, the adequacy of the criminal legislation of the States to international measures to combat crime is an imperative commitment. But, how to adapt the criminal legislation of the signatory States of the Conventions against corruption to the Conventions of protection of the environment in the context of the international trade? It is assumed that the adequacy of criminal legislation requires the inclusion of the environment in the discussion of the legal interest protected at bribery in international commercial transactions. Therefore, the adequacy of legislation does not constitute a unified approach, as there will always be some cultural difference to be evaluated and considered in this process.

Keywords:
Environment; International bribery; International trade

1 INTRODUÇÃO

Este artigo objetiva demonstrar que o controle penal do comércio global, por meio da criminalização do suborno internacional, compreende a proteção do meio ambiente. Tema de profunda importância e atualidade, o meio ambiente cuja sistematização e construção normativa foi propiciada pela Constituição Federal de 1988, alberga inúmeros aspectos em decorrência da ampla e abrangente proteção constitucional.1 1 Neste sentido, Padilha (2011, p.231).

Referido expressamente pela Carta Constitucional no artigo 225, o meio ambiente ecologicamente equilibrado compreende um bem de uso comum do povo, portanto pertence a todos de uma só vez, não sendo possível a sua individualização. Ademais, o Texto Constitucional2 2 O artigo 225 do Texto Constitucional dispõe que: (...) § 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: (...) V - controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente; (...). propõe o controle da comercialização de substâncias que comportem risco para a vida e o meio ambiente a fim de assegurar a efetividade da proteção ambiental.

É sabido que o Direito Internacional consiste naquelas normas e regulações que ocorrem entre dois ou mais Estados e, entre os Estados e as Organizações internacionais que recebem o nome de convenções, declarações, pactos dentre outras.3 3 Neste sentido, Cleves (2009, p. 41). Neste estudo, são analisadas aquelas normas de direito internacional que se estabelecem para garantir o meio ambiente ecologicamente equilibrado e o comércio internacional.

A Convenção Interamericana e a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção e, a Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) trazem o compromisso dos Estados signatários de adequarem sua normatividade penal às medidas necessárias à prevenção e à repressão da corrupção no âmbito do comércio internacional.

Nos acordos multilaterais para o comércio internacional de certas substâncias tóxicas e perigosas, a Convenção de Roterdã, de EstocolmoCONVENÇÃO DE ESTOCOLMO. Sobre Poluentes Orgânicos Persistentes. Disponível em: Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/decreto/d5472.htm . Acesso em: 15 nov. 2022.
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e de BasileiaCONVENÇÃO DA BASILEIA. Sobre o Controle de Movimentos Transfronteiriços de Resíduos Perigosos e seu Depósito. Disponível em Disponível em https://www.icmbio.gov.br/cepsul/images/stories/legislacao/Decretos/1993/dec_875_1993_convencaobasileia_residuospeigosos.pdf . Acesso em: 10 out. 2022.
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reconhecem que as políticas comerciais e ambientais devem apoiar-se mutuamente com vistas ao desenvolvimento sustentável.

Observa-se que, por afetar todas as sociedades e economias, a questão que envolve o comércio internacional de certas substâncias tóxicas e perigosas e, também, o crime de suborno de funcionários públicos estrangeiros em transações comerciais é objeto de atenção compartilhada pela comunidade internacional. Assim, o problema deixou de ser local e se converteu em fenômeno planetário.

Entretanto, a solução passou a requerer decisões locais. Desde este ponto de vista, a adequação da legislação penal dos Estados às medidas internacionais de combate ao crime é compromisso que se impõe.4 4 O Brasil adequou a legislação com a inclusão no Código Penal dos crimes de corrupção ativa e de tráfico de influência em transação comercial internacional nos artigos 337-B e 337-C, pela Lei 10.467/2002. Disto resulta que, o processo de adequação legislativa não pode prescindir de uma discussão que assente a norma penal sobre uma base teórica culturalista.

A compreensão da adequação legislativa, desde uma visão cultural, evidencia que o problema de pesquisa gravita em torno da necessidade de combater a partir de decisões locais o impacto nocivo ao meio ambiente e à saúde humana, no contexto do comércio internacional.

Neste sentido, indaga-se: “Como adequar a legislação penal dos Estados signatários das Convenções contra a corrupção às Convenções de proteção do meio ambiente no contexto do comércio internacional?” Oferta-se, assim, uma solução ao problema formulado com a seguinte resposta preliminar: “A adequação da legislação penal demanda a inclusão do meio ambiente na discussão do bem jurídico protegido no crime de suborno em transações comerciais internacionais.”

Supõe-se, então, que o compromisso global de apoio mútuo das políticas comerciais e ambientais pode ser concretizado mediante a repressão ao crime de suborno internacional, na ordem jurídico-penal interna. Portanto, o crime estende sua abrangência para além da seara do comércio internacional uma vez que, está inserido dentro de um dos maiores e mais grave problemas da atual sociedade de alta tecnologia, qual seja, a questão ambiental.

O texto que se oferece à leitura está dividido em duas seções. A primeira apresenta a agenda normativa internacional voltada aos processos de acordos de ação conjunta visando às transações comerciais internacionais e os atos de corrupção. Ademais, o controle penal do comércio internacional traz a preocupação com os vínculos entre a corrupção e o crime organizado e reforça a necessidade de adequação das legislações penais às medidas para a punição da lavagem de dinheiro

A seção seguinte trata da proibição do suborno praticado por funcionário público estrangeiro traduzido na tutela da boa-fé e da regularidade no comércio internacional, com a garantia da boa governança, do desenvolvimento econômico e com as condições internacionais de competitividade, sem deixar de prever o comércio de certas substâncias tóxicas e perigosas, a fim de garantir a saúde humana e o meio ambiente contra danos potenciais.

Revigorado pela nova roupagem constitucional, o meio ambiente deve atuar sobre toda e qualquer área, impondo a reformulação de conceitos, institutos e princípios, exigindo a adaptação e reestruturação do modelo socioeconômico atual com o seu necessário equilíbrio, tendo em vista a sadia qualidade de vida.5 5 Neste sentido, Padilha (2002, pp.22-23) ao demonstrar a interdisciplinaridade do Direito Ambiental.

Pois bem, a relação do Direito Ambiental com os demais ramos do Direito é transversal e suas normas ambientais tendem a se incrustar em cada uma das demais normas jurídicas,6 6 Sobre o caráter transversal do meio ambiente, debate Antunes (2007, pp. 22 a 23). obrigando que se leve em conta a proteção ambiental na criminalização do suborno internacional.

Nesta direção, a proposta da presente pesquisa é uma reflexão sobre a imperiosa necessidade de se construir o espaço de diálogo e interdisciplinaridade entre o Direito Penal e o Direito Ambiental, cujo valor está desenhado em enunciados associados a mandamentos e proibições normativas, as quais não se identifica com o processo de unificação jurídica. Esta pesquisa é, portanto, além de propositiva, compreensiva em relação à não aceitação de condições que possam impor a unicidade legislativa.

2 AS TRANSAÇÕES COMERCIAIS E OS ATOS DE CORRUPÇÃO NA AGENDA NORMATIVA INTERNACIONAL

Os mais diferentes países, de modo regional, iniciaram processos de acordos de ação conjunta visando às transações comerciais internacionais. Neste campo regional, podemos incluir a União Europeia, o Conselho da Europa,7 7 Podemos citar iniciativas como o Ato do Conselho de 26 de maio de 1997 que estabelece, com base no nº 2, alínea c), do artigo K.3 do Tratado da União Europeia, a Convenção relativa à luta contra a corrupção em que estejam implicados funcionários das Comunidades Europeias ou dos Estados-membros da União Europeia, além, é, claro da própria Convenção Penal sobre a corrupção em que estejam implicados funcionários da UE ou de países da UE (vigência na ordem internacional em 01/07/2002) e Protocolo Adicional à Convenção Penal sobre a Corrupção do Conselho da Europa, adotado em Estrasburgo em 15 de maio de 2003, com vigência internacional em 01/02/2005. a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE)8 8 A Convenção sobre o Combate à Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais, com entrada em vigor em 1999. e a Organização dos Estados Americanos (OEA).9 9 Firmada em 1996, a Carta Democrática Interamericana entrou em vigor em 03/06/97, conforme o artigo XXV da Convenção Interamericana Contra a Corrupção da OEA.

A construção desses processos de acordos de ação conjunta destaca que combater a corrupção constitui um aspecto essencial do exercício democrático do poder, como requer a Carta Democrática Interamericana (1997CARTA DA OEA - Organização dos Estados Americanos. Disponível em Disponível em https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/q.carta.oea.htm Acesso em: 22 nov. 2022.
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), sendo uma questão prioritária para todos os Estados membros da OEA. Em 1994, o assunto foi inicialmente tratado pelo Grupo de Trabalho sobre Suborno em Transações Comerciais Internacionais da OCDE e culminou no primeiro acordo multilateral relacionado ao combate do suborno de servidores estrangeiros.

A partir dessa discussão, em 1997, os Estados membros da OCDE celebraram a Convenção sobre o Combate à Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais, com entrada em vigor em 1999. A Convenção reflete, em sua essência, um compromisso dos Estados signatários de adequar suas legislações às medidas necessárias à prevenção e à repressão da corrupção de funcionários públicos estrangeiros no âmbito do comércio internacional.

No marco das organizações internacionais, a Organização das Nações Unidas (ONUCARTA DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Disponível em Disponível em https://www.oas.org/dil/port/1945%20Carta%20das%20Na%C3%A7%C3%B5es%20Unidas.pdf . Acesso em: 15 out. 2022.
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) celebrou sua Convenção anticorrupção (2003).10 10 A Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção foi adotada pela Assembleia-Geral das Nações Unidas em 31 de outubro de 2003. O impulso legislativo que obedece a este movimento provém de forças que protagonizam os processos de globalização e, particularmente, o próprio mundo empresarial.

Ao afetar países, minando as instituições democráticas e os próprios direitos humanos, o enfrentamento da corrupção interessa tanto pelos seus efeitos devastadores para o desenvolvimento econômico, social e político; como em sua faceta de comportamento empresarial que, por seu caráter desleal, viola a concorrência, acarreta danos às empresas que valorizam práticas justas em suas transações comerciais e supõe, também, uma contribuição para a instabilidade governamental.11 11 Essa afirmação pode ser encontrada na obra de MARTÍN, Adán Nieto (2004, 47).

Visando à cooperação jurídica internacional, o Estado brasileiro vem ampliando e fortalecendo sua relação com outros países na prevenção e na repressão à corrupção.12 12 Lei n. 10.467 de 11/06/2002 que acrescenta o Capítulo II-A ao Título XI do Decreto-Lei no2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal. Com esse objetivo, o Brasil já ratificou três acordos que preveem a cooperação internacional nessa área: a Convenção Interamericana contra a Corrupção, a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção e a Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais da OCDE.13 13 A Convenção da OCDE foi ratificada em 15 de junho de 2000 pelo Brasil e promulgada pelo Decreto n. 3.678 de 30/11/2000. A Convenção da ONU foi assinada pelo Brasil em 9 de dezembro de 2003, ratificada em 15/06/2005 e promulgada pelo Decreto n. 5.687 de 31/01/2006. No Brasil, a Convenção Interamericana contra a Corrupção foi aprovada pelo Decreto Legislativo nº 152, de 25 de junho de 2002, e promulgada pelo Decreto Presidencial nº 4.410, de 7 de outubro de 2002.

No contexto do comércio global, no nível mais geral, as Convenções promovem a cooperação internacional no combate à corrupção de funcionários públicos, incluindo ações das Nações Unidas, do Banco Mundial, do Fundo Monetário Internacional, da Organização Mundial de Comércio, da Organização dos Estados Americanos, do Conselho da Europa e da União Europeia.

A cooperação internacional, compreendida como o espaço para a criação de “regras do jogo”, são capazes de orientar os entendimentos e, consequentemente, as interações entre os países com a finalidade de buscar a solução local para conflitos de amplitude global. Neste espaço no qual as regras do jogo são criadas, situa-se a necessidade de adequação da legislação penal dos Estados signatários às medidas de combate à corrupção de funcionários públicos estrangeiros no comércio internacional.

Dentre as medidas, os documentos internacionais preveem a criminalização, pelos Estados signatários, do oferecimento, da promessa ou da concessão de vantagem indevida, pecuniária ou de qualquer outra natureza, a funcionário público estrangeiro que, direta ou indiretamente, por meio de ação ou omissão no desempenho de suas funções públicas, realize ou dificulte transações na condução de negócios internacionais.

Há medidas de adequação legislativa quanto à solicitação ou aceitação por um funcionário público estrangeiro ou funcionário de organização internacional pública, de forma direta ou indireta, de um benefício indevido que redunde em proveito próprio ou no de outra pessoa ou entidade, com o fim de que tal funcionário atue ou se abstenha de atuar no exercício de suas funções relacionadas à transação comercial internacional e, ainda, a necessidade de proibir que o funcionário público abuse de sua real ou suposta influência.14 14 Na Convenção da ONU, o suborno de funcionários públicos estrangeiros e de funcionários de organizações internacionais públicas está previsto no artigo 16, além do tráfico de influência no artigo 18, este último crime sem correspondência nas demais Convenções. O suborno transnacional previsto no artigo VIII da Convenção Interamericana contra a Corrupção. Na Convenção da OCDE, o Delito de Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros está previsto no artigo 1º.

Ademais, no comércio internacional, a preocupação com os vínculos entre a corrupção e o crime organizado reforça a necessidade de adequação das legislações penais às medidas para a punição da lavagem de dinheiro.15 15 Conforme previsto no artigo 23 da Convenção da ONU, cada Estado Parte adotará as medidas legislativas e de outras índoles que sejam necessárias para qualificar como delito a lavagem de dinheiro. Na Convenção da OCDE está no artigo 7º. Na Convenção Interamericana contra a Corrupção, a preocupação está na letra “d” do artigo VI. Neste sentido, há o compromisso dos Estados com a tipificação da lavagem de dinheiro, crime que se caracteriza por um conjunto de operações comerciais ou financeiras que buscam a incorporação na economia de cada país, de modo transitório ou permanente, de recursos, bens e valores de origem ilícita.

Desenvolvido por meio de um processo dinâmico, o crime envolve, teoricamente, três fases independentes que, com frequência, ocorrem simultaneamente. A primeira fase consiste na colocação do dinheiro no sistema econômico cuja movimentação ocorre em países com regras mais permissivas e naqueles que possuem um sistema financeiro liberal. Na segunda fase, ocorre a ocultação para dificultar o rastreamento contábil dos recursos ilícitos; e, na terceira ocorre a fase da integração porque os ativos são incorporados formalmente ao sistema econômico. Nesta fase, as organizações criminosas buscam investir em empreendimentos que facilitem suas atividades de modo a permitir que tais sociedades prestem serviços entre si.

De tudo que foi dito até aqui, podemos afirmar que a agenda normativa internacional contempla uma criminalização para a proteção da ordem econômica ou financeira, bem jurídico típico das “sociedades de risco.”16 16 A expressão, como se sabe, é do sociólogo alemão Ulrich Beck, que é autor da obra: La sociedade del riesgo: hacia uma nueva modernidade. Madrid: Paidós, 1998. Na perspectiva do risco, a técnica mais compatível de tipificação seria aquela dos crimes de perigo abstrato. Com base nesta técnica legislativa, há o argumento de que o Direito Penal frente aos novos riscos não conseguiria cumprir uma função de proteção fragmentária e subsidiária do bem jurídico.

Embora, existam legislações que contemplam uma criminalização exageradamente antecipada em relação à ofensa do bem jurídico a fim de fazerem a prevenção de riscos, o que se pode desde logo sublinhar é que a polêmica relacionada com a referida antecipação está centrada na ideia do Direito Penal do risco.17 17 Neste sentido, Gomes et al, (2007, 345). Mas, ainda que o risco constitua a noção-chave da dialética da ilicitude penal, não se pode pretender transformar o Direito Penal do bem jurídico em um Direito Penal do risco.18 18 Neste sentido, Dias, (1999, 72).

É preciso esclarecer que a expressão Direito Penal do risco pode compreender tanto o risco como centro das reflexões da teoria da imputação objetiva de Claus Roxin, como também, o juízo de desaprovação da conduta como exigências decorrentes da denominada sociedade de riscos. De qualquer forma, não se pode supor que o Direito Penal seja o único instrumento capaz de oferecer segurança contra os riscos da sociedade pós-industrial.

Impõe-se sublinhar que, o problema da tutela preferencial da ordem econômica ou do meio ambiente não reside tanto na eleição desses bens jurídicos, senão sobretudo na forma da tutela penal, excessivamente adiantada e, por isso, compatível com o perigo abstrato e com a punição de atos preparatórios. Os Estados se valem do Direito Penal mediante a antecipação de tutela para não deixar que se criem riscos, porque não estão em condições de prevenir a criminalidade transnacional, sobretudo a organizada. Com esta lógica, a chamada sociedade de riscos, que faz do risco de procedência humana um fenômeno social estrutural, antecipa as barreiras de proteção penal com a exacerbação das técnicas do perigo abstrato.

Com a promessa de ser extenso e certamente frutífero, não pretendemos exaurir neste artigo o debate sobre os limites do Direito Penal na sociedade pós-industrial. Todavia, afirmamos que a boa-fé, a equidade, a lealdade e a regularidade nas relações comerciais são valores encarnados no bem jurídico-penal extraído tanto da Constituição Federal quanto da adesão do país ao combate da corrupção internacional.

A Constituição Federal do Brasil de 1988BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988. Disponível em Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm Acesso em: 10 nov. 2022.
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, em seu artigo 4º, inciso IX, contempla dentre outros, o princípio da cooperação internacional para a garantia do interesse da lisura e da probidade nas transações comerciais internacionais. Além da Carta Magna, a edição da Lei 10.467, de 11 de junho de 2002 objetivou dar efetividade ao Decreto n. 3.678, de 30 de novembro de 2000 que promulgou a Convenção sobre o combate à corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em transações comerciais, concluída em Paris, em 17 de dezembro de 1997.

Fenômeno difundido nas relações comerciais, afirmamos que todos os países signatários compartilham a responsabilidade de combater a corrupção de ato de ofício relacionado à transação comercial internacional de certas substâncias químicas e de agrotóxicos perigosos, tendo em vista a consciência do impacto nocivo à saúde humana e ao meio ambiente.

3 ATO DE OFICÍO RELACIONADO À TRANSAÇÃO COMERCIAL INTERNACIONAL DE PRODUTOS TÓXICOS E PERIGOSOS

A explicação sobre a qual se deseja chamar a atenção é o elemento normativo “ato de ofício” que deve corresponder a ato de competência funcional e territorial de funcionário público estrangeiro corrompido.19 19 Neste sentido, afirma Soler (1951, 160) sobre o ato de ofício. “Para que exista cohecho, es preciso que éste corresponda a um acto relativo a las funciones: acto de la competência funcional e territorial.” Com efeito, para a configuração do crime exige-se que o ato cuja ação ou omissão é pretendida esteja compreendido nas específicas atribuições do servidor público visado no comércio internacional. Observa-se, pois, que faz parte do injusto penal uma finalidade que exige o elemento subjetivo especial do tipo, representado pelo especial fim de agir, ou seja, “para determinar o funcionário público estrangeiro a praticar, omitir ou retardar ato de ofício.”

Embora amplie o aspecto subjetivo do crime, o especial fim de agir não integra o dolo e nem com ele se confunde. O especial fim de agir do sujeito ativo, ao integrar o crime de suborno transnacional, fundamenta a ilicitude do fato, constituindo, assim, elemento subjetivo do tipo de ilícito, de forma autônoma e independente do dolo. Mas, esse fim especial deve existir antes de o ato de ofício ser praticado, caso contrário não há como exigir a prática de um ato já realizado.

Ao fundamentar a ilicitude do suborno transnacional, o “ato de ofício” torna-se elemento normativo reitor, e por isso, especial para a compreensão da axiologia do tipo penal. Neste sentido, a proibição do ato de ofício relacionado à transação comercial internacional se traduz na tutela da boa-fé e da regularidade no comércio internacional. Ou seja, o bem jurídico-penal tutelado desperta preocupações com a garantia da boa governança, do desenvolvimento econômico e com as condições internacionais de competitividade.

Entretanto, na proibição de ato de ofício relacionado à transação comercial internacional, as medidas adotadas para promover responsabilidade compartilhada e esforços cooperativos entre países devem prever o comércio de certas substâncias tóxicas e perigosas, a fim de garantir a saúde humana e o meio ambiente contra danos potenciais.

Portanto, a tutela do comércio internacional não consiste apenas na conduta de proibir ato de ofício como forma de garantir a boa-fé e a regularidade nas transações, mas, sobretudo, garantir o apoio mútuo das políticas comerciais e ambientais com vistas ao desenvolvimento sustentável, porque precisamos de um enfoque amplo e multidisciplinar para prevenir e combater eficazmente a corrupção.

A Convenção de Roterdã20 20 O Decreto nº 5.360 de 31/01/2005 promulga a Convenção sobre Procedimento de Consentimento Prévio Informado para o Comércio Internacional de Certas Substâncias Químicas e Agrotóxicos Perigosos, adotada em 10 de setembro de 1998, na cidade de Roterdã. sobre o Procedimento de Consentimento Prévio Informado para o Comércio Internacional de Certas Substâncias Químicas e Agrotóxicos Perigosos, conhecida no jargão diplomático simplesmente como “Convenção PIC” (Prior Informed Consent), insere-se no contexto de combate contra a poluição do meio-ambiente por meio da regulamentação das substâncias químicas. Para ser eficaz, esse combate deverá extrapolar o âmbito puramente estatal e incidir, também, no âmbito das relações interestatais de natureza comercial.

A Convenção de Roterdã, juntamente com a de Estocolmo sobre Poluentes Orgânicos Persistentes (POP)21 21 A Convenção de Estocolmo foi adotada e aberta para assinaturas em maio de 2001, em Estocolmo, Suécia e entrou em vigor em 17/05/2004. O Decreto 5472 de 20/06/2005 promulga o texto da Convenção de Estocolmo sobre Poluentes Orgânicos Persistentes. e com a Convenção de Basiléia sobre Movimento Transfronteiriço de Resíduos Tóxicos,22 22 O Decreto nº 875 de 19/07/1993 promulga o texto da Convenção sobre o Controle de Movimentos Transfronteiriços de Resíduos Perigosos e seu Depósito. constituem o tripé das normas que regulam o campo de produção, comércio e transporte internacional de certas substâncias perigosas.

A Convenção da Basiléia funda-se sobre dois pilares principais: o primeiro é o de que qualquer Estado tem soberania para proibir a entrada de resíduos perigosos em seu território, e o segundo de que os resíduos perigosos devem ser por regra depositados nos locais onde foram gerados.

A Convenção procurou criar um sistema de controle entre as partes acerca do transporte de resíduos perigosos, dando sempre ao Estado de importação a possibilidade de escolha da recepção de resíduos perigosos para depósito. Pois bem, no movimento transfronteiriço entre as partes - mesmo em se falando de países de trânsito apenas - a Convenção tem como regra que o resíduo não poderá ser exportado se o país de importação tiver previamente informado sua proibição de entrada.

Neste sentido, o país de exportação deverá proibir que ela se realize. Acaso não houver esta proibição prévia, o exportador deverá solicitar para cada caso específico autorização ao setor competente do Estado importador para o transporte, sendo que a saída do país exportador só poderá ocorrer após o assentimento respectivo, conforme artigo 6° da Convenção da Basileia.

Já, a Convenção de Estocolmo tem por objetivo banir e restringir o uso de substâncias químicas classificadas como Poluentes Orgânicos Persistentes (POPs). Neste sentido, é uma das mais inovadoras convenções por destacar a inserção do princípio da precaução, o fortalecimento das capacidades nacionais além de determinar responsabilidade compartilhada dos setores produtivos.

Os poluentes são aqueles compostos de substâncias químicas tóxicas e bioacumulativas, capazes de serem transportados pelo ar, água e por espécies migratórias, acumulando-se em ecossistemas terrestres ou aquáticos. A própria POPs elenca em seus anexos os poluentes que assim considera; mas, a importância da adequada apreensão do conceito está na possibilidade da inclusão de outros poluentes a pedido das partes, desde que tenham tais características.

O Direito trata de fenômenos que afetam a coletividade global. Quando falamos em proteger o meio ambiente, pensamos na necessidade de sobrevivência de toda a humanidade. Então, se o meio ambiente é um problema global, significa que terá que ser tratado globalmente. Mas, o modo como são tratados os problemas obedece a critérios diferentes (culturais) porque a reação, seja ela penal ou não, além de temporal, é diferente de um lugar para o outro.

3.1 O modo cultural de pensar a ordem jurídica interna dos estados signatários das convenções internacionais

A teoria culturalista de Recaséns Siches (1971) fixa a estreita relação entre a ideia espaço-temporal e a ordem jurídica interna de cada Estado signatário das Convenções. Tendo em vista que Siches refutou a velha discriminação que fizeram as filosofias naturalista e formalista entre o ser e o dever-ser, podemos incluir tanto um como outro na pauta da ordem jurídico-penal dos Estados.

É preciso ter sempre presente que o discurso se baseia na cultura e que ela não é nomeada explicitamente, mas está inserida como pressuposto e condição para a adequação da legislação penal às medidas de combate ao suborno transnacional de substâncias tóxicas e perigosas. Portanto, enquanto as medidas de combate ao crime previstas nas Convenções sugerem que os problemas globais sejam tratados globalmente, a necessidade de adequação das legislações penais à normatividade internacional deve ser compreendida como reação cultural (espaço-temporal) a problemas globais.

Quando se fala em Direito Penal, pensa-se logo em fatos humanos classificados como crimes; pensa-se igualmente, nos responsáveis pelos fatos e, ainda, na especial forma de consequência jurídica por meio da sanção penal.23 23 Neste sentido, Toledo (1999, p. 1). Sob esse ângulo, o Direito Penal é aquela parte da ordem jurídica interna que estabelece e define o fato-crime.

A teoria culturalista adverte que o fato do Direito Penal não é o modo regular de acontecer um fenômeno e que, em seu conjunto, por consequência, não pode representar o esquema do mundo dado realmente. O fato do Direito Penal encontra-se na vida humana e não é algo cuja constituição seja dada, acabada ou terminada, como por exemplo, um objeto com uma trajetória predeterminada; ao contrário, o fato tem uma constituição vital. É um fazer-se a si mesmo, pois não está pronto e completo. Portanto, aquilo que funda o Direito Penal não é natural, senão que um fato cultural.

Somente este fato vital se manifesta como duração e espaço de uma vivência ou de um conjunto de vivências. Assim, a pauta normativa deriva de um determinado propósito ou interesse humano inspirado por valores, levando-se em conta o horizonte das possibilidades que se apresentam ao homem - os fatos - com os quais se tem que operar ou atuar.

Trata-se, portanto, de um fundamento jurídico inspirado por propósitos ou interesses, condicionado por circunstâncias humanas, a partir das quais se cria o bem jurídico tutelado, de modo a tornar possível a elucidação do conteúdo das normas penais e dos institutos em que elas se agrupam, com vistas a sua aplicação aos casos concretos, segundo critérios de justiça.

Neste sentido, o Direito Penal em escala global pode ser pensado a partir de um conjunto de conhecimentos voltados à solução de casos práticos. É a ciência penal, nesta perspectiva, uma ciência prática, não apenas porque está a serviço do sistema de justiça, mas por ser uma teoria do agir humano. Atribui-se à ciência penal uma função criadora, não se limitando a repetir as palavras da lei ou a traduzir-lhes o sentido estático.

Portanto, a necessidade de adequação da legislação penal às medidas previstas nas Convenções para o combate da criminalidade deve orientar-se pela função, reconhecidamente valorativa, da ciência penal. Este aspecto valorativo possibilita afirmar que o efeito da globalização sobre o Direito Penal o torne cada dia mais uniforme no mundo todo,24 24 Baptista (2013, p.17) diz que é possível que o Direito se torne mais uniforme no mundo todo. o que exclui qualquer aventura em propor sua unificação.

Concretizar a adequação da legislação penal aos documentos internacionais a partir da cultura é pensar no que está escrito na norma e na circunstância ao redor dela. Ou seja, cada norma é aquilo que está escrito nela e aquilo que a circunstância ao redor dela determina que ela seja.

O debate sobre os limites do Direito Penal em escala global está vinculado à assertiva de que “eu sou eu e a minha circunstância”, expressão utilizada por Ortega y Gasset (1957ORTEGA Y GASSET, José. Meditación de la técnica - vicisitudes de las ciências, bronca em la física. 3ª edición. Madrid: Revista de Occidente, 1957., p.10). Implica dizer que, o culturalismo permite afirmar que a fonte para traçar os limites não deriva exclusivamente da natureza fática das coisas, senão que é resultado da combinação dos fatos com critérios axiológicos.

Em efeito, o culturalismo implica e explica as profundas transformações na esfera da tipificação da conduta que criminaliza o suborno em transação comercial internacional e fornece uma interrogação em torno dos valores que o compõem em cada lugar e época.25 25 Neste sentido, Souza (2006, p. 44). Por isso, a adequação da legislação não se constitui numa abordagem unificada, pois sempre haverá alguma diferença cultural a ser avaliada e considerada neste processo.

Uma adequação, reconhecidamente valorativa, da legislação penal implica em duas exigências de inegável responsabilidade política e, não só, tecnocrática. Primeiro, cada Estado signatário precisa fixar os interesses e propósitos que deve perseguir a adequação da legislação penal às Convenções, com a consequente abertura para a crítica; segundo, uma adequação legislativa com pretensão cultural deve começar por admitir que será válida se serve adequadamente à finalidade da aplicação da lei.

O culturalismo situa o ilícito penal no fato valorado a fim de não legitimar a técnica da antecipação da tutela e sim, para garantir a manutenção do critério teleológico que traça as suas diferenças fundamentais, a tutela bens jurídicos concretos, em tipos legais específicos, singulares, e segue critérios de ofensividade, e de imputação individual de um injusto que pertence ao seu autor.26 26 Gomes et al, (2007, 293) faz uma distinção entre ilícito penal e ilícito administrativo. Mas, há o processo de administrativização do Direito Penal que apregoa mais intervenção, para a proteção de interesses setoriais que representam, e acabam privilegiando a busca por soluções de caráter penal e antigarantista.

Uma outra linha prevencionista e expansionista é aquela que supõe que o Direito Penal seja o único instrumento que possa oferecer segurança contra os perigos da sociedade pós-industrial ou “sociedade de riscos, segundo expressão de Ulrich Beck. Uma política criminal internacional, descrita a partir da teoria do risco, é compatível com o chamado movimento neocriminalizador e traz implicações na dogmática. A política criminal tem, como correlato inevitável, uma dogmática penal com perfil próprio, que excepciona sistematicamente os princípios e categorias clássicas e a teoria do bem jurídico se abre para os interesses difusos de caráter supraindividual.

O Direito Internacional Público, especialmente dedicado à proteção dos direitos humanos, foi inaugurado com a Declaração Universal dos direitos humanos de 1948. Todavia, procura em cada momento vincular e subordinar os Estados aos seus mandamentos. O conflito normativo entre o direito externo e o interno tornou-se inevitável quando, por exemplo, o Estatuto de Roma cria o TPI - Tribunal Penal Internacional. Vários dispositivos do Estatuto contrariam as Constituições dos países que o subscreveram como é o caso da pena de prisão perpétua que colide com a Constituição brasileira.

Em que pese o avanço representado pelo TPI no Direito Internacional Público, na verdade, nem todas as garantias asseguradas pelas Constituições internas foram contempladas no Estatuto. Embora, por exemplo, a entrega do criminoso não se confunda com a extradição; o Estatuto prevê a entrega do nacional para o TPI. A entrega do criminoso é solicitada por um órgão supranacional e, na extradição quem faz a solicitação é um outro Estado soberano. Neste caso, é válido questionar se o Brasil poderia entregar um nacional para cumprir a pena de prisão perpétua embora haja proibição constitucional.

Enfim, com a era da transnacionalização dos crimes, agravou-se sensivelmente o processo de transformação do Direito Penal tradicional. Diversas são as suas características, algumas novas, destacando-se, dentre elas, desde logo a sua expansão.27 27 Conforme Silva Sanchez (1999, p. 15) A era da transnacionalização do crime caracteriza-se pela presença de novos riscos inerentes à sociedade tecnologicamente avançada. Contras essas ameaças já não funcionam os meios repressivos tradicionais, cuja tendência é sofrerem os efeitos de uma ampla cooperação internacional, de uma nova concepção de justiça internacional e de uma política criminal com articulações mundializadas.

Neste sentido, não basta a harmonização jurídica porque, o processo de adequação da legislação penal às medidas convencionais para a repressão do suborno internacional na esfera ambiental requer que, todos os países passem a colaborar uns com os outros para que o controle social do crime transnacional tenha resultado em escala global.

4 CONCLUSÃO

Neste artigo, o ponto que merece destaque é o fato de que no controle penal do crime de suborno em transações comerciais internacionais, a responsabilidade e a assistência compartilhadas entre países devem ser consideradas em relação à proteção ambiental. Desde os anos 90, a corrupção constitui tema relevante dentro da política criminal internacional tendo vista que, com a intensificação das relações comerciais internacionais e o avanço da criminalidade transnacional, o problema atingiu escala mundial.

Desde este ponto de vista, a origem do problema não está apenas na visão pluralista clássica da ordem mundial, fundada no reconhecimento mútuo da soberania nacional, a qual vem sendo colocada em xeque pela ampliação da agenda normativa internacional; mas, sobretudo, na crescente tendência em criminalizar comportamentos abstratamente perigosos que escapam da ideia de ofensa aos bens jurídicos relevantes. Por isso, a política criminal que surge no contexto internacional sustenta uma mudança semântico-dogmática: risco ao invés de ofensa efetiva ao bem jurídico.

Entretanto, essa espécie de política interfere na técnica legislativa, na teoria do crime, altera a dogmática jurídico-penal e, distancia-se dos princípios constitucionais penais limitadores do ius puniendi estatal. Observando-se mais atentamente, não é difícil concluir que nesse contexto, há produção de políticas criminais descontextualizadas do perfil garantista das Constituições democráticas.

A ampliação da agenda normativa internacional para o enfrentamento da criminalidade transnacional requer o reforço de uma discussão pertencente aos desafios práticos no combate ao crime. Para lidar com os desafios práticos, há aqueles que continuam a exigir a formação de algo comparável a um sólido Direito mundial, dotado de poderes coercitivos sobre Estados-nação recalcitrantes a fim de realizar um interesse planetário comum.

Contudo, os argumentos tradicionais contra a centralização mundial e qualquer coisa que se pareça com um Direito Penal único permanecem fortes, porque não há evidências de que uma autoridade global irá cumprir mais eficientemente a maior parte das funções hoje desempenhadas pelo Estado-nação. Ademais, um Leviatã global poderia ameaçar a liberdade e ser foco de conflitos ao invés de resolver temas práticos urgentes. Portanto, o processo de adequação da legislação penal pelo viés cultural garante uma representação e um controle sobre o abuso do poder mais eficaz.

De qualquer forma, a existência de um interesse planetário comum para a proteção do meio ambiente e do comércio mediante a criminalização do suborno internacional não nos desautoriza a requerer um debate sobre os limites do Direito Penal no contexto global. Nesta direção, não podemos supor que o controle social penal seja o único instrumento capaz de oferecer segurança contra os riscos da sociedade pós-industrial, tendo em vista que a previsão de medidas de prevenção em documentos internacionais as quais, somadas à repressão, devem integrar a reação global ao crime e, assim, reforçar o caráter fragmentário do Direito Penal.

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  • TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. São Paulo: Saraiva, 1999.
  • 1
    Neste sentido, Padilha (2011PADILHA, Norma Sueli. Equilíbrio do meio ambiente do trabalho: direito fundamental do trabalhador e de espaço interdisciplinar entre o direito do trabalho e o direito ambiental. In:70 Anos da Justiça do Trabalho. Brasília: Revista TST. vol. 77, n. 4, out/dez 2011, p. 231-258., p.231).
  • 2
    O artigo 225 do Texto Constitucional dispõe que: (...) § 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: (...) V - controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente; (...).
  • 3
    Neste sentido, Cleves (2009CLEVES, Gonzalo Ramírez. Pobreza, globalización y derecho: ámbitos globais, internacional y regional de regulación. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2009., p. 41).
  • 4
    O Brasil adequou a legislação com a inclusão no Código Penal dos crimes de corrupção ativa e de tráfico de influência em transação comercial internacional nos artigos 337-B e 337-C, pela Lei 10.467/2002.
  • 5
    Neste sentido, Padilha (2002PADILHA, Norma Sueli. Do meio ambiente equilibrado. São Paulo: LTr, 2002., pp.22-23) ao demonstrar a interdisciplinaridade do Direito Ambiental.
  • 6
    Sobre o caráter transversal do meio ambiente, debate Antunes (2007ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito ambiental. 10 ed. rev. Ampliada e atualizada. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007., pp. 22 a 23).
  • 7
    Podemos citar iniciativas como o Ato do Conselho de 26 de maio de 1997 que estabelece, com base no nº 2, alínea c), do artigo K.3 do Tratado da União Europeia, a Convenção relativa à luta contra a corrupção em que estejam implicados funcionários das Comunidades Europeias ou dos Estados-membros da União Europeia, além, é, claro da própria Convenção Penal sobre a corrupção em que estejam implicados funcionários da UE ou de países da UE (vigência na ordem internacional em 01/07/2002) e Protocolo Adicional à Convenção Penal sobre a Corrupção do Conselho da Europa, adotado em Estrasburgo em 15 de maio de 2003, com vigência internacional em 01/02/2005.
  • 8
    A Convenção sobre o Combate à Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais, com entrada em vigor em 1999.
  • 9
    Firmada em 1996, a Carta Democrática Interamericana entrou em vigor em 03/06/97, conforme o artigo XXV da Convenção Interamericana Contra a Corrupção da OEA.
  • 10
    A Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção foi adotada pela Assembleia-Geral das Nações Unidas em 31 de outubro de 2003.
  • 11
    Essa afirmação pode ser encontrada na obra de MARTÍN, Adán Nieto (2004MARTÍN, Adán Nieto. La corrupción en las transaciones comerciales internacionales. In Estudios de derecho penal. Adán Nieto Martín (Coordinador). Universidad de Castilla-la Mancha: Instituto de Derecho Penal, Europeo e Internacional, 2004., 47).
  • 12
    Lei n. 10.467 de 11/06/2002 que acrescenta o Capítulo II-A ao Título XI do Decreto-Lei no2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal.
  • 13
    A Convenção da OCDE foi ratificada em 15 de junho de 2000 pelo Brasil e promulgada pelo Decreto n. 3.678 de 30/11/2000. A Convenção da ONU foi assinada pelo Brasil em 9 de dezembro de 2003, ratificada em 15/06/2005 e promulgada pelo Decreto n. 5.687 de 31/01/2006. No Brasil, a Convenção Interamericana contra a Corrupção foi aprovada pelo Decreto Legislativo nº 152, de 25 de junho de 2002, e promulgada pelo Decreto Presidencial nº 4.410, de 7 de outubro de 2002.
  • 14
    Na Convenção da ONU, o suborno de funcionários públicos estrangeiros e de funcionários de organizações internacionais públicas está previsto no artigo 16, além do tráfico de influência no artigo 18, este último crime sem correspondência nas demais Convenções. O suborno transnacional previsto no artigo VIII da Convenção Interamericana contra a Corrupção. Na Convenção da OCDE, o Delito de Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros está previsto no artigo 1º.
  • 15
    Conforme previsto no artigo 23 da Convenção da ONU, cada Estado Parte adotará as medidas legislativas e de outras índoles que sejam necessárias para qualificar como delito a lavagem de dinheiro. Na Convenção da OCDE está no artigo 7º. Na Convenção Interamericana contra a Corrupção, a preocupação está na letra “d” do artigo VI.
  • 16
    A expressão, como se sabe, é do sociólogo alemão Ulrich Beck, que é autor da obra: La sociedade del riesgo: hacia uma nueva modernidade. Madrid: Paidós, 1998BECK, Ulrich. La sociedade del riesgo: hacia uma nueva modernidade. Madrid: Paidós, 1998..
  • 17
    Neste sentido, Gomes et al, (2007GOMES, Luiz Flávio; MOLINA, Antonio García-Pablos de; BIANCHINI, Alice. Direito penal, introdução e princípios fundamentais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007., 345).
  • 18
    Neste sentido, Dias, (1999DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões fundamentais do direito penal revisitadas. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1999., 72).
  • 19
    Neste sentido, afirma Soler (1951SOLER, Sebastian. Derecho penal argentino. Buenos Aires: TEA, t. IV, 1951., 160) sobre o ato de ofício. “Para que exista cohecho, es preciso que éste corresponda a um acto relativo a las funciones: acto de la competência funcional e territorial.”
  • 20
    O Decreto nº 5.360 de 31/01/2005 promulga a Convenção sobre Procedimento de Consentimento Prévio Informado para o Comércio Internacional de Certas Substâncias Químicas e Agrotóxicos Perigosos, adotada em 10 de setembro de 1998, na cidade de Roterdã.
  • 21
    A Convenção de Estocolmo foi adotada e aberta para assinaturas em maio de 2001, em Estocolmo, Suécia e entrou em vigor em 17/05/2004. O Decreto 5472 de 20/06/2005 promulga o texto da Convenção de Estocolmo sobre Poluentes Orgânicos Persistentes.
  • 22
    O Decreto nº 875 de 19/07/1993 promulga o texto da Convenção sobre o Controle de Movimentos Transfronteiriços de Resíduos Perigosos e seu Depósito.
  • 23
    Neste sentido, Toledo (1999TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. São Paulo: Saraiva, 1999., p. 1).
  • 24
    Baptista (2013BAPTISTA, Luiz Olavo. O Brasil e a Globalização: Pensadores do Direito Internacional. Organizado por Mauricio Almeida Prado e Renata Duarte de Santana. São Paulo: Cultura, 2013., p.17) diz que é possível que o Direito se torne mais uniforme no mundo todo.
  • 25
    Neste sentido, Souza (2006SOUZA, Cláudio Macedo de. Direito penal no Mercosul: uma metodologia de harmonização. Belo Horizonte: Mandamentos, 2006., p. 44).
  • 26
    Gomes et al, (2007GOMES, Luiz Flávio; MOLINA, Antonio García-Pablos de; BIANCHINI, Alice. Direito penal, introdução e princípios fundamentais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007., 293) faz uma distinção entre ilícito penal e ilícito administrativo.
  • 27
    Conforme Silva Sanchez (1999SILVA SÁNCHEZ, Jesus Maria. La expansión del derecho penal - aspectos de la política criminal em las sociedades postindustriales. Madrid: Civitas, 1999., p. 15)

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    24 Nov 2022
  • Aceito
    02 Mar 2023
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