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VIVER E MORRER EM SAN JUNIPERO* * Os autores agradecem aos pareceristas que revisaram o artigo.

LIVING AND DYING IN SAN JUNIPERO

Resumo

Este artigo analisa o episódio intitulado San Junipero (2016San Junipero. (2016). Direção: Owen Harris. Estados Unidos/Inglaterra: Netflix. 61 min., color.) da série britânica Black Mirror, dirigido por Owen Harris, de modo a apontar como aparece a conexão entre morte e tecnologia, manifesta no uso do verbo “to pass” e na presença de uma assim chamada “terapia nostálgica” ao longo da trama. Para tanto, o principal recurso metodológico será identificar como tais noções estão construídas no episódio, mobilizando os conceitos de memória coletiva (Maurice HalbwachsHalbwachs, Maurice. (1990). A memória coletiva. São Paulo: Vértice.) e vidas móveis (Anthony Elliot e John UrryElliot, Anthony & Urry, John. (2010). Mobile Lives. Nova Iorque: Routledge.). Pretende-se, pois, uma análise imanente do material, dando ênfase particular aos seus elementos expressivos - enquadramentos, diálogos, canções, as roupas das personagens, entre outros -, de maneira a identificar os grupos sociais presentes no episódio, via sociologia do cinema de Pierre Sorlin, e, a partir daí, discutir os conceitos mencionadas acima.

Palavras-chave:
Sociologia do audiovisual; Black Mirror; San Junipero; Morte e tecnologia; “To pass”

Abstract

This article analyzes the episode San Junipero (2016San Junipero. (2016). Direção: Owen Harris. Estados Unidos/Inglaterra: Netflix. 61 min., color.), directed by Owen Harris, part of the British series Black Mirror, in order to point out how the connection between death and technology appears, which is manifested in the use of the verb “to pass” and in the presence of a “nostalgic therapy” throughout the plot. The main methodological resource is to identify how such notions are built in the episode. In these terms, some concepts are mobilized, such as collective memory (Maurice HalbwachsHalbwachs, Maurice. (1990). A memória coletiva. São Paulo: Vértice.) and mobile lives (Anthony Elliot and John UrryElliot, Anthony & Urry, John. (2010). Mobile Lives. Nova Iorque: Routledge.). So that these concepts are debated, it is intended, therefore, an immanent analysis of the material, a process in which its expressive elements - framing, dialogues, songs, the characters’ clothes, among others - are particularly emphasised in order to identify the social groups present in the episode by means of a discussion centered in the sociology of cinema by Pierre Sorlin.

Keywords:
Sociology of audiovisual; Black Mirror; San Junipero; Death and technology; “To pass”

À professora Maria Helena Oliva Augusto.

PRÓLOGO

Criada por Charlie Brooker, a série britânica Black Mirror foi primeiramente televisionada pelo Channel 4 da BBC, sendo incorporada à Netflix1 1 Fundada em 1977 nos Estados Unidos como um serviço de aluguel de filmes, a Netflix atualmente disponibiliza um farto catálogo que inclui filmes e seriados para cerca de 100 milhões de clientes por meio da tecnologia de streaming online (para isso, ver Kulesza & De Santi Bibbo, 2013). O seriado Black Mirror foi incorporado a essa empresa em 2015, o que significou um aumento substancial no número de episódios por temporada - que dobrou de três episódios na primeira e segunda temporadas para seis episódios na terceira e quarta temporadas - e um incremento de sua audiência, uma vez que o seriado tornou-se acessível em mais de 40 países. em 2015, quatro anos após a sua criação. O seriado é composto por episódios que dispõem de enredos caracterizados pela acentuada presença de aparelhos de tecnologia avançada. As narrativas de cada um dos episódios, conquanto concebidas como obras independentes, possuem aspectos comuns, entre os quais, a mencionada tecnologia e uma indefinida, ainda que familiar, localização temporal, isto é, explorando um tempo que escapa tanto do presente (no sentido de que não há referências factuais que nos permita associá-los a um presente determinado) quanto do futuro afastado, como estamos acostumados a identificar, por exemplo, na ficção científica.

Mesmo sendo apresentado e visto como série, o que caracteriza Black Mirror não é o caráter serial, ou seja, o desdobramento dos acontecimentos na vida de uma personagem ou em um grupo de personagens em episódios distintos, mas sim o fato dos episódios aparecerem, na maioria das vezes, como uma narrativa independente, em cujas tramas se manifestam certas consequências (sejam elas pensadas ou impensadas, porém factíveis) do uso já familiar e cotidiano da tecnologia. Além disso, no aspecto formal, característica comum a todos os episódios é a brevíssima abertura de Black Mirror, espécie de assinatura visual e sonora em que à imagem de uma tela negra (típica dos aparelhos tecnológicos em repouso) segue-se um ruído antes de a vermos estilhaçar-se.

Quando resolvemos analisar o episódio San Junipero (2016San Junipero. (2016). Direção: Owen Harris. Estados Unidos/Inglaterra: Netflix. 61 min., color.), o quarto da terceira temporada, a questão original era identificar o modo como estava construída - e encenada em tramas de produtos audiovisuais de grande circulação e audiência - a relação entre encontros amorosos e novas tecnologias, como era o caso da história das protagonistas Kelly e Yorkie.

Contudo, durante os seguidos visionamentos do episódio, o encantamento amoroso entre as personagens, aspecto predominante na primeira parte do episódio, foi substituído por outra das dimensões da trama: a conexão entre morte e tecnologia, que aparece manifesta no uso do verbo “to pass” ao longo do entrecho. Na verdade, esta dimensão parecia abraçar aquela, ampliando, assim, as implicações sociológicas da “terapia nostálgica”, particularidade predominante na segunda parte da trama. Em outros termos, e para enunciar de modo claro a questão que nos mobilizou, o que passou a nos interessar era menos o relacionamento amoroso e mais a maneira como tecnologia e morte apareciam entrelaçadas no episódio. Não promover uma discussão sobre a morte ou a tecnologia, mas compreender, por meio dos elementos da trama, o “como” esse vínculo estava construído, dando ênfase à utilização do verbo “to pass” e à ideia de uma eternidade associada ao movimento constante.

No que tange à metodologia, tentamos observar o cuidado sugerido por Pierre Sorlin, para quem o cinema (e estendemos a observação ao audiovisual) não reflete a sociedade. Antes, “os filmes são proposições sobre a sociedade”, cabendo ao analista “compreender como tais proposições estão construídas” (Sorlin, 1977Sorlin, Pierre. (1977). Sociologie du cinéma. Paris: Aubier Montaigne.: 287). Partimos, portanto, do conjunto significativo apresentado pelo episódio, de modo a analisar a sua construção, a maneira como encena (e não reflete), filtrando e reordenando, certos aspectos da vida social.

Nesse sentido, em que o esforço de análise está centrado na compreensão das imagens e não sobre um processo de reconhecimento (Francastel, 1987Francastel, Pierre. (1987). Imagem, visão e imaginação. Lisboa: Edições 70.: 141), estamos próximos do que apontou Paulo Menezes quando sublinhava que para esse tipo de investigação, que parte do filme, o contexto do qual se fala é “inerente ao discurso da obra, sendo buscado e reconstruído pela própria obra, pela interpretação de suas imagens e narrativa, pela análise interna que explicita os valores que a constituem”, de modo a compreender “as condições simbólicas da constituição do social” em vez de “as condições sociais de constituição do simbólico” (Menezes, 2017Menezes, Paulo. (2017). Sociologia e cinema: aproximações teórico-metodológicas. Teoria e cultura. Revista do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais - UFJF, 12/2, p. 17-36.: 26, grifo do autor).

Tomamos, então, o episódio San Junipero como um conjunto significativo a partir do qual realizamos a nossa reflexão sociológica. Os diversos prêmios, a recepção da crítica e o sucesso de público expressam, somados aos elementos mobilizados na trama, a relevância do seriado para o estudo proposto2 2 Black Mirror coleciona prêmios desde o seu lançamento. O episódio San Junipero, um dos mais aclamados pelo público e crítica, ganhou dois prêmios Emmy em 2017, de “Melhor Filme Feito para Televisão” e “Melhor Roteiro em Minissérie”. Ainda que outros episódios do seriado abordem amor, tecnologia e morte, San Junipero é o único que mobiliza esses três aspectos confluindo para a ideia de um movimento incessante, oferecendo-nos, assim, material para pensar as conexões entre novas tecnologias e sociedade. .

Para a realização dessas análises, optamos por estruturar o texto em quatro partes. Na primeira, logo após este prólogo, exploramos os identificadores de tempos e lugares em San Junipero e, em seguida, construímos, por meio de uma apropriação particular da noção de sistemas relacionais de Pierre Sorlin, o quadro de relações sociais presentes na trama. Posteriormente, abordamos a “terapia nostálgica” e, por fim, à guisa de conclusão, a noção de “to pass”. Em suma, partimos do episódio para identificar as diretivas de tempos e lugares e o modo como as relações sociais aparecem encenadas para, então, discutir a “terapia nostálgica” e o vínculo entre morte e tecnologia expresso na noção de “to pass”. Em vista disso, a descrição do episódio ao longo do texto é um recurso necessário, não porque acreditemos na neutralidade do procedimento, mas porque assim nos conservamos no nosso norte metodológico ao realizar uma leitura imanente, indo da organização interna da trama para algumas discussões conceituais, e não o contrário.

TEMPOS E LUGARES DA PARTY TOWN

O episódio San Junipero, dirigido por Owen Harris, teve sua primeira transmissão em 2016San Junipero. (2016). Direção: Owen Harris. Estados Unidos/Inglaterra: Netflix. 61 min., color.. Logo após a abertura, comum a todos os episódios, San Junipero tem início com uma sequência de tomadas que apresenta indícios da época na qual se passa a trama. Elementos como a música, a decoração dos ambientes e os adornos das personagens formam um conjunto que sugere o período retratado e estão amarrados a uma dinâmica que veremos se repetir ao longo de boa parte do episódio: a inserção de um letreiro em cores azuis em tela escura que anuncia a passagem por diferentes décadas da segunda metade do século XX e início do XXI.

O primeiro movimento de câmera, em sentido descendente, aponta o cartaz do filme The Lost Boys, de 1987, enquanto uma canção interpretada pela cantora Belinda Carlisle, cuja carreira solo teve início após 1985, é reproduzida pela rádio de um carro conversível. Essas referências são complementadas pelo modelo 1987 dos aparelhos de televisão expostos em uma vitrine e pela indumentária das personagens, caracterizada por roupas brilhantes, cabelos volumosos, colares do tipo maxi e jaquetas. Com uma grande fivela nos cabelos, lábios pintados cor-de-rosa, jaqueta roxa adornada com ombreiras e franjas, surge Kelly. Segundo apontam a música e os objetos mobilizados na cena, trata-se da segunda metade dos anos 1980.

Na tentativa de escapar de um rapaz, Kelly entra em um nightclub e aproxima-se de Yorkie, com quem estabelece a relação que constitui o principal fio condutor da trama. Os primeiros contatos entre as jovens têm início com uma dança na pista dessa danceteria, a Tucker’s. Ao som de Fake de Alexander O’Neal (de 1987), Kelly tenta ensinar alguns passos para a descoordenada Yorkie, que logo foge, abrigando-se da chuva sob um pequeno toldo localizado no exterior da Tucker’s. Findo o breve encontro, um corte. Na sequência, uma tela negra é acompanhada por um sinal sonoro por cerca de três segundos. Em seguida, operando como uma cartela, os dizeres “one week later” (uma semana depois).

A tomada seguinte, portanto, abriga a semana posterior. Nela, o encontro entre Kelly e Yorkie dá-se no mesmo lugar, a cidade de San Junipero, diversas vezes descrita pelas personagens como uma party town, uma cidade festeira onde grupos de jovens dançam, passeiam e rodam em carros conversíveis. Uma vez mais, é sábado à noite. Novamente, elas estão na Tucker’s. Porém, dessa vez, o final do sábado - sempre marcado para a meia-noite, conforme indica um relógio - seria outro. Depois do encontro no nightclub, vão para a casa de Kelly, onde aproximam-se, tocam-se e compartilham confidências sobre relacionamentos passados. Segue a já conhecida tela negra: “one week later”. Outro sábado, Yorkie não avista Kelly na Tucker’s. Em sua busca, sugerem a ela procurar Kelly em uma época diferente, os anos 1980, 1990 ou 2000. Tal indicação apresenta-nos pela primeira vez uma referência à existência de diferentes décadas e à possibilidade de circular por elas.

Seguem-se várias telas pretas - “one week later” -, entremeadas por uma série de marcadores de época (um comercial de automóvel de 1980; a imagem de Alanis Morissette em uma tela de televisão e o cartaz do filme Scream, ambas referências a 1996). Apenas em 2002 - a indicação é A Identidade Bourne - Yorkie reencontra Kelly. A sequência de letreiros “one week later”, portanto, traz uma série de tomadas supostamente localizadas em diferentes anos. A estrutura da cidade é a mesma: os mesmos clubes, lojas e ruas. Há, porém, algumas modificações na decoração destas, bem como nas canções (diegéticas e extradiegéticas) de sucesso e seus intérpretes e na programação da televisão. Esses elementos variáveis mantêm sua função de localizadores temporais, pois mesmo não sendo necessariamente contemporâneos de quem acompanha o episódio, são produtos que fizeram sucesso e circularam como mercadorias em outro tempo. Algo semelhante ocorre com as personagens, dado que suas roupas, acessórios e penteados mudam de acordo com a época encenada.

Nesses termos, a recorrência do letreiro “one week later” em conjunto aos diálogos protagonizados pelas personagens indica, ao menos nessa primeira parte do episódio, que a trama está organizada a partir de uma dupla perspectiva temporal: decenal (os anos 1980, 1990 e 2000) e semanal (afinal, sabemos apenas que o dia que partilham em San Junipero é sábado). Ainda sobre a organização temporal, os três segundos de sinal sonoro que acompanham a tela negra mais a inserção da cartela parecem indicar, nessa primeira parte do episódio, algo da seara do não encenado, como se a elipse condensasse o que até aqui não é exposto na trama: o restante da semana (o cotidiano). A tela negra, no entanto, não apenas sinaliza um salto temporal para o espectador, mas, sobretudo, metaforiza o desconhecimento mútuo que as personagens têm sobre a vida uma da outra fora do pequeno recorte temporal (a noite de sábado em uma determinada década) e espacial (San Junipero).

Referências mais específicas acerca de tempos e lugares aparecem apenas na segunda parte do episódio, quando, depois do minuto 38, novos elementos da vida de ambas fora da party town nos são apresentados. Isso ocorre após um diálogo entre Kelly e Yorkie em um deck de madeira diante do mar, em que, com certa resistência, trocam endereços (uma vive em Nevada, a outra, na Califórnia) e fazem referência a doenças graves. Nesse ponto, o que segue a tela negra não é mais o “one week later”, mas outro salto temporal, agora para o momento atual diegético vivido pelas personagens da trama. Vejamos. Em primeiro plano, uma placa fincada no solo estampa o nome de uma casa de repouso; ao fundo, uma senhora idosa negra de cabelos brancos caminha com dificuldade em direção a um carro. Estamos fora de San Junipero. Tanto o modelo do automóvel (com curvas pouco acentuadas, frente achatada e baixa altura) quanto as funções que apresenta evidenciam avanços tecnológicos até então não exibidos pelo episódio. Outros avançados aparatos tecnológicos também são perceptíveis na chegada dessa senhora - identificada como a personagem Kelly - em uma clínica de saúde onde é possível observar o emprego de robôs e mecanismos automatizados. Do primeiro contato entre Kelly e um médico, concluímos tratar-se da clínica que abriga Yorkie, tão idosa quanto aquela, paralisada sobre a cama de um hospital. Logo, o mesmo médico explicaria a situação da enferma, declarando as limitações de suas funções de movimento e fala e a preservação de sua capacidade auditiva e compreensiva.

Kelly e Yorkie apresentam-se agora de forma distinta daquela até então conhecida: duas jovens dão lugar a idosas. A ágil e animada Kelly é uma mulher lenta, levemente encurvada, com problemas de locomoção. Yorkie, por sua vez, aparece acamada, incapaz de mover-se. Não apenas as personagens experimentam mudanças significativas, também entram em cena novos recortes de tempo e espaço. Esse emaranhado geográfico e temporal é esclarecido na medida em que entra em cena a “terapia nostálgica”, procedimento oferecido pela empresa TCKR Systems, dirigida a enfermos e idosos, mas também concebida como uma alternativa à morte. Voltaremos a tratar dessa terapia mais adiante. Antes, contudo, identificaremos o modo como as relações sociais aparecem encenadas no episódio. Tal procedimento nos apartará provisoriamente da trama; no entanto, é crucial fazê-lo, sob a pena de eclipsar uma série de peculiaridades e distinções que, normalmente despercebidas (talvez por serem familiares demais), são o que nos permitem, partindo da obra, levantar hipóteses sobre que tipo de sociedade ali se encena.

AS RELAÇÕES SOCIAIS EM CENA

Partindo da concepção de que a ideologia é um conjunto de possibilidades nos quais os produtos culturais de uma época são inscritos, o historiador Pierre Sorlin, no seu livro Sociologie du Cinéma (1977Sorlin, Pierre. (1977). Sociologie du cinéma. Paris: Aubier Montaigne.), considera a transposição do mundo contida no cinema, atentando para a reconstituição das relações sociais nas telas. Para tanto, ele sugere identificar nos filmes, durante a análise, o que seria ou não visível a uma época, os pontos de fixação (o que se repete em vários filmes) e a proposição de interpretações contidas nos filmes acerca da sociedade e das relações sociais. Considerando que nosso cuidado metodológico destacou para a análise apenas um episódio do seriado Black Mirror, optamos por concentrar nossa atenção na identificação de como aparecem encenadas as relações sociais em San Junipero, deixando fora de nossas preocupações as noções de visível e de pontos de fixação (que teriam sido fundamentais caso tivéssemos aportado outros episódios e séries em nossa seleção). Detenhamo-nos, pois, nos sistemas relacionais.

De modo geral, nos filmes, as relações entre os grupos sociais que aparecem na tela constituem os sistemas relacionais - os quais, conquanto não sejam reproduções idênticas das relações existentes em um meio social, sugerem juízos e concepções acerca dele. Nas palavras de Sorlin:

A existência de uma lógica narrativa cujas regras já nos são bem conhecidas, faz com que uma obra de ficção nunca reproduza diretamente as relações sociais tal como se manifestam em um meio determinado e propõe, inevitavelmente, uma transposição. O papel atribuído aos diversos termos postos em jogo não é, porém, indiferente: sugere certo ponto de vista, um julgamento da sociedade. Para clarear a ideologia subjacente nos filmes de uma época, o historiador é levado a precisar os sistemas relacionais apresentados nas telas […] (Sorlin, 1977Sorlin, Pierre. (1977). Sociologie du cinéma. Paris: Aubier Montaigne.: 241)3 3 A tradução de todas as citações de bibliografia estrangeira é nossa. As únicas passagens em que mantivemos o idioma original são as dos diálogos entre as personagens mencionados na parte quatro. O recurso nos pareceu necessário para sublinhar a ênfase na utilização de determinadas expressões em inglês. .

Originalmente endereçada ao historiador, a noção de sistemas relacionais também suscita interesse ao cientista social que coloca questões para o produto audiovisual, tomando o filme ou, no caso, o episódio de um seriado como um recorte a partir do qual é possível identificar como os grupos sociais e suas respectivas relações estão construídos na tela, bem como pontos de vista e julgamentos a respeito de dada sociedade.

Identificar e discutir alguns dos sistemas relacionais em San Junipero, mais do que um exercício de classificação, é um procedimento importante para destacar tais valorações e julgamentos, que tendem a passar despercebidos - e por isso, ainda que Sorlin tivesse trabalhado com filmes, consideramos pertinente utilizá-lo para a aproximação sociológica que faremos para a análise de San Junipero. Afinal, o episódio pode também fornecer indícios e fragmentos das relações simbólicas das sociedades nas quais circula, haja vista que “A ideologia não é uma unidade coerente que orienta uma sociedade, mas sim um conjunto das possibilidades de simbolização concebíveis em um dado momento” (Sorlin, 1977Sorlin, Pierre. (1977). Sociologie du cinéma. Paris: Aubier Montaigne.: 201). Assim, se tomarmos tais relações simbólicas mais como um conjunto de possibilidades do que uma unidade acabada, será possível identificar os seguintes grupos sociais em San Junipero: o da família, o dos prestadores de serviço e o dos frequentadores dos nightclubs Tucker’s e Quagmire.

Iniciemos, pois, com o grupo familiar. Com exceção das fotografias da filha e do marido de Kelly, que compõem a decoração da casa de praia em que recebe Yorkie, os familiares de ambas não aparecem em cena. A importância deles, contudo, é fundamental para a trama, uma vez que ajudam a construir o sentido das ações empreendidas pelas personagens. No caso de Kelly, a história que conta sobre ter perdido a filha e o marido é a pista por meio da qual começamos a intuir as razões de sua busca por diversão nos nightclubs - além de gostar de dançar, supõe-se que ela também busca passar por variadas experiências, em particular, as sexuais, mas sem compromissos afetivos - e de sua visão a respeito da morte (em princípio, nega ser uma “moradora permanente” da party town). No caso de Yorkie, personagem não afeita à dança, ir ao Tucker’s, nightclub bem comportado de San Junipero, é, por seu turno, a chance de viver uma vida diferente da que viveu, pois, ainda jovem, teria ficado tetraplégica em virtude de um acidente de carro motivado por uma discussão com a família que não aceitava sua orientação sexual.

As famílias de Kelly e Yorkie não são encenadas, porém, encontram-se como que no pano de fundo da trama. Acessadas por meio das narrações das personagens, são paulatinamente desenhadas. Embora não apareçam, os integrantes do grupo família assombram o presente e o futuro das protagonistas e são determinantes na construção de suas respectivas histórias - dado que, sem a referência à família não apenas seriam personagens sem passado, como também seria difícil, para nós, reconstruirmos os sentidos que ambas as personagens dão a sua própria morte. As relações familiares, pois, que logo identificamos e compreendemos, e que são quase invisíveis, mais faladas do que mostradas durante o episódio, dão a dimensão do relacionamento e das escolhas de ambas. Não à toa a relação entre elas culmina no casamento, e mais precisamente na instituição do casamento, legalmente celebrada, inclusive para resolver problemas legais cuja solução depende do posicionamento dos familiares na trama do episódio: a autorização da eutanásia.

Por sua vez, o que chamamos de grupo dos prestadores de serviços recebe esse nome para caracterizar, na nossa análise, todas aquelas personagens que, em contato com as protagonistas, estão inseridas em relações de trabalho. Elas aparecem fora da plataforma San Junipero (isto é, eles estão no tempo e no espaço atuais, aqueles em que vivem Yorkie e Kelly, já avançadas em idade) e prestam serviços vinculados à saúde ou em instituições que assim poderiam ser identificadas, pois é onde as personagens “vivem” a terapia nostálgica. Destarte, como é possível observar, seja em virtude da idade avançada de Kelly e da doença que a consome, seja pelas limitações físicas de Yorkie, ambas vivem naquilo que parecem ser clínicas (a de Yorkie semelhante a um hospital; a de Kelly, a uma casa de repouso), onde recebem cuidados. Excetuando a presença do barman da Tucker’s4 4 Uma vez que o nightclub Tucker’s faz parte de um programa computacional oferecido como uma terapia nostálgica, é possível que o barman seja também uma criação desse programa, ainda que não possamos atestar tal afirmação com certeza. Se nossa observação estiver correta, complica-se seu posicionamento como parte do grupo dos prestadores de serviço. Note-se também que o nome do nightclub nos remete imediatamente à marca da produtora e mantenedora do sistema San Junipero (Tucker’s - TCKR). e de um juiz que celebra o casamento, são esses os únicos dois locais em que as relações de trabalho aparecem encenadas.

Daquela que parece ser a equipe de médicos e enfermeiros encarregada de Yorkie, destaca-se Greg, pois, além de lhe prestar os devidos cuidados hospitalares, torna-se seu noivo para possibilitar o procedimento da eutanásia. No caso de Kelly, uma cuidadora assiste seus passos. Auxiliar as protagonistas nos processos de incursão ao sistema San Junipero é parte dos procedimentos sob a responsabilidade desses trabalhadores que, portanto, cooperam para o consumo do produto de uma empresa sobre a qual pouco sabemos, mas que é essencial no enredo do episódio: a TCKR, produtora e mantenedora do sistema San Junipero. Levando em consideração a inexistência de informações mais consistentes sobre essa empresa, poderíamos supor que tais prestadores sejam as únicas “faces” de um serviço oferecido a partir de operações cibernéticas, algo que, ainda que provável, não pode ser afirmado assertivamente.

Sendo assim, os prestadores de serviços são fundamentais no episódio, uma vez que nos ajudam a compreender tanto a plataforma San Junipero como um serviço consumido, quanto o caráter das relações empreendidas por Kelly e Yorkie, já que seus cuidadores são apresentados como suas únicas companhias. Além disso, durante o episódio, temos informações apenas sobre a posologia da chamada terapia nostálgica e de que ela é consumida por pessoas enfermas e idosas com a ajuda de alguns funcionários, além de ser concebida como uma alternativa à morte. Contudo, não sabemos se a terapia é vendida abertamente ou se é um consumo restrito a determinado segmento da sociedade. O que sabemos é que os cuidadores são as pessoas que acompanham e convivem com as protagonistas até a “passagem” (aspecto que abordaremos mais adiante), e que a presença dessas personagens parece sinalizar apenas a interface entre a empresa de tecnologia, as clínicas e os consumidores.

Por fim, o último grupo que nos chamou a atenção é o formado pelos frequentadores dos nightclubs Tucker’s e Quagmire, em outros termos, por aquelas personagens que, além de representar os consumidores do Sistema San Junipero, ajudam a compor a maior parte do núcleo de relações sociais estabelecidas por Kelly e Yorkie quando conectadas à plataforma cibernética. Já mencionamos o caráter festivo da cidade homônima que, além de belas praias e ruas movimentadas, possui dois locais que parecem ser o ponto de encontro entre os seus frequentadores: os nightclubs Tucker’s e Quagmire. O primeiro conta com uma pista de dança, alguns jogos eletrônicos que nos auxiliam a circunscrever a época evocada e mesas e bancos para atender aos visitantes. Somos tentados a caracterizar a Tucker’s como um espaço dançante e de sociabilidade bem comportado, seja pelas roupas utilizadas pelos seus frequentadores (mesmo mudando de época para época, todas elas podem ser consideradas datadas, isto é, como moda daquele ano ou década), pelo tipo de abordagem em situações de flerte, pelo espaço bem delimitado para a dança (aqui os movimentos de corpo parecem acompanhar o movimento das músicas tocadas), pelas mesas e pelo o balcão (inclusive temos um barman) ou, sobretudo, pela iluminação clara, que permite identificar o colorido da decoração. Por todos esses aspectos, mais a contraposição ao Quagmire, sobre o qual falaremos a seguir, é como se estivéssemos em um espaço de festa para encontro de todas as pessoas com diferentes finalidades: comer, beber algo, jogar nos aparelhos eletrônicos, dançar e flertar.

O segundo, por sua vez, possui uma série de características que aparecem como contraponto do primeiro. Esse contraponto fica expresso logo no início do episódio, quando Yorkie escuta Kelly mencionar o Quagmire pela primeira vez. Ao perguntar sobre o lugar, tem como resposta: “Se você não sabe o que é o Guagmire, provavelmente não vai querer saber”5 5 Transcrevemos as falas em português. Mais abaixo, porém, como alertamos, mantivemos alguns dos diálogos em inglês para melhor explorar o uso de determinadas expressões, disponibilizando uma tradução livre nas notas de rodapé. , indicando tratar-se de um local com certas particularidades. Mais adiante, outra situação ajuda a construir a contraposição entre os nightclubs. Yorkie, buscando por Kelly, pede informação ao barman do Tucker’s. Ao mencionar o Quagmire e perceber que ela não sabe do que se trata, ele apenas sorri, como se conhecer o local não precisasse ser explicitamente mencionado. Logo a veremos em um espaço bem diferente do até agora observado: longe do que parece ser a cidade e suas construções com indicativos de época (vitrines, ruas, cinemas, entre outros), em uma estrada de terra que não combina com as roupas que ela veste (tênis e bermuda) e em meio ao pó que uma gangue de motoqueiros à la Mad Max (1979Mad Max. (1979). Direção: George Miller. Produção: Byron Kennedy. Austrália: Kennedy Miller Productions. 88 min., color.) levanta ao passar por ela, vemos, ao fundo, o que parece ser uma fábrica abandonada. No interior do Quagmire, prevalece o caráter sombrio. Para isso, contribuem não apenas a pouca luz, mas sobretudo sua disposição espacial, composta de corredores em que observamos a presença de várias pessoas muito próximas umas das outras, e de meandros nos quais percebemos o que parece ser a encenação de determinadas fantasias que não teriam espaço no Tucker’s. Tais impressões são reforçadas pelas vestimentas, pois elas também estão orientadas para a realização das cenas temáticas, como podemos observar pelo corte de cabelo, a presença do couro, as inscrições nos corpos, correntes, cordas, jaulas e gaiolas. Envolvido em uma atmosfera mais sombria, a música ali tocada também é diferente. Do mesmo modo, se os dois nightclubs sugerem, no episódio de San Junipero, um espaço de sociabilidade, o do Quagmire parece voltado a temas cujo apelo erótico está prefigurado logo na entrada, como na sequência aos 35’18’’ quando, no corredor escuro, Yorkie passa por uma mulher segurando a cabeça de uma cobra que está enrolada em seu corpo. Assim, a referência bastante conhecida ao mundo do pecado e da tentação baseada na imagem bíblica ajuda a fechar o circuito entre ambiente sombrio e afastado da cidade com as práticas sexuais em suas variantes (sobretudo se compararmos com os elementos mobilizados para construir a noite de sexo entre Kelly e Yorkie, que ocorre em lugar privado, seguro e apropriadamente íntimo - a casa, a cama).

Nesse sentido, a sequência do Quagmire, embora constrangida em um bloco curto entre os 25’10’’ e os 27’40’’, insere, na dimensão que remetia ao paraíso cibernético após a morte (cidade de festa, de praia, sol, vento, mar e chance de viver apenas os “melhores momentos”), o mundo escuro e interdito afastado dos olhos de todos na periferia dessa cidade. É como se no quadro de relações tecido em San Junipero tivéssemos, na periferia do “paraíso”, o “inferno” - ainda que ambos fossem a repetição de vários elementos clichês para caracterizar a contraposição dos dois nightclubs. Aquele, exemplificado pelo Tucker’s e pela vida praiana e agitada; este, ilustrado pelo Quagmire. Ambos poderiam ser igualmente frequentados por todos, como sugere a fala do barman a Yorkie, nova em San Junipero, “Já tentou o Quagmire?”, indicando tratar-se de um local que, apesar de periférico, é conhecido e pode ser visitado por qualquer um. Parece-nos, assim, que a noção de “paraíso” expressa na plataforma de San Junipero funda-se nas várias formas de entretenimento, incluindo o sexo. No entanto, diferentemente do Jardim do Éden bíblico do qual foram expulsos Adão e Eva após comerem do fruto proibido, San Junipero lhes abre as portas, os acolhe e lhes assegura um lugar em uma eternidade nostálgica tecnologicamente concebida.

No geral, entretanto, é a existência dos clubes e a possibilidade da livre circulação entre eles que indica a sorte de opções oferecida em San Junipero e, com isso, a chance de melhor compreender o sentido das ações de Kelly e Yorkie em busca de diversão e de uma alternativa à morte. Assim, enquanto as relações sociais na plataforma cibernética San Junipero são construídas principalmente nesses nightclubs (e a visibilidade das relações de trabalho é escassa), as configuradas no presente diegético da trama localizam-se na casa de repouso e no ambiente hospitalar, em que as relações de trabalho estão sugeridas na presença de enfermeiros, cuidadores e do juiz que celebra o casamento, por exemplo.

A TERAPIA NOSTÁLGICA

Ao considerarmos a estrutura de San Junipero, deparamo-nos com uma narrativa descontínua que articula distintas temporalidades de forma não linear. O aparecimento de Kelly e Yorkie envelhecidas imprime uma nova perspectiva à trama, e o momento caracterizado pela idade avançada das personagens passa a ser a referência a partir da qual as demais temporalidades são percebidas.

Em outras palavras, a lógica interna do episódio ganha novos contornos, e o que é vivido fora da party town aparece como preponderante. Isso ocorre, especialmente, pela contraposição - de porosas e complexas fronteiras - entre o que as personagens vivenciam na cidade de San Junipero e no agora de suas respectivas vidas em duas cidades dos Estados Unidos. Conforme mencionamos anteriormente, a cidade de San Junipero é parte de uma terapia. O diálogo entre Kelly e o funcionário Greg entre os 41:24 e os 44:06 elucida tratar-se de uma “terapia de imersão nostálgica” em que a pessoa “mergulha em um mundo de memórias”. Ainda de acordo com a fala das personagens, essa terapia segue os princípios da computação em grade, operando, segundo afirma Kelly, “em nuvem”6 6 A computação “em nuvem” pode ser definida como a execução de serviços de computação, tais como armazenamento e banco de dados, pela internet. Como não há necessidade de unidades físicas, o acesso a programas e dados é móvel, podendo ser realizado em qualquer lugar, desde que com internet disponível. por meio de funções previamente estabelecidas combinadas às memórias de seus frequentadores, dando origem a vivências individuais singulares. Prescrito como um tratamento para diversas enfermidades, teria horas de frequência reduzidas para os pacientes, restritas ao até então apresentado no episódio sob o título de “noites de sábado”.

Portanto, complexas estruturas temporais são construídas e ao menos duas dimensões relacionam-se: a física e a cibernética. A primeira é geograficamente estabelecida nos Estados Unidos. Por sua vez, a dimensão cibernética, vinculada ao sistema San Junipero, é impulsionada por lembranças que a caracterizam como uma terapia nostálgica. Nela, marcadores de determinadas décadas - músicas, adornos e produtos comerciais, como apontados na parte um - impulsionam processos mnemônicos particulares em cada uma das protagonistas. Detenhamo-nos nesses termos para que possamos abordar a questão da memória.

Diante das considerações de Maurice Halbwachs ([1925] 1990Halbwachs, Maurice. (1990). A memória coletiva. São Paulo: Vértice.), segundo as quais a memória é construída a partir da relação entre o indivíduo e o grupo do qual faz ou fez parte, tentemos refletir acerca da teia de lembranças elaborada no sistema em questão e sua relação com a articulação de distintas temporalidades no episódio. Nas palavras de Halbwachs,

Não é suficiente reconstituir peça por peça a imagem de um acontecimento do passado para se obter uma lembrança. É necessário que esta reconstrução se opere a partir de dados ou de noções comuns que se encontram tanto no nosso espírito como no dos outros, porque elas passam incessantemente desses para aquele e reciprocamente, o que só é possível se fizeram e continuam a fazer parte de uma mesma sociedade. Só assim podemos compreender que uma lembrança possa ser ao mesmo tempo reconhecida e reconstruída (Halbwachs, 1990Halbwachs, Maurice. (1990). A memória coletiva. São Paulo: Vértice.: 34).

Os movimentos de reconhecimento e reconstrução de lembranças operam, aponta-nos, por meio de noções compartilhadas. A partir da inserção e permanência do indivíduo em um dado meio coletivo, lembranças podem ser reconstituídas mediante a combinação de variadas influências de natureza social. Nesse sentido, “cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva” - (Halbwachs, 1990Halbwachs, Maurice. (1990). A memória coletiva. São Paulo: Vértice.: 51) -, variável de acordo com o lugar ocupado pelo indivíduo nos meios sociais. Ainda que as lembranças tenham caráter pessoal, tanto o seu reconhecimento quanto suas possíveis reelaborações dependem das relações com um ou mais grupos, o que significa que a transformação dos meios sociais, em parte ou em seu conjunto, ajuda a definir processos mnemônicos.

Em San Junipero, determinados marcadores permitem a localização de décadas passadas. Por meio de elementos como músicas, jogos de videogame, propaganda, filmes e carros, cenários de tempos pregressos são construídos de forma a incitar as personagens a revisitá-los, estimulando a reconstituição e reelaboração de lembranças. Esse processo, ao que parece, é experienciado tanto coletiva quanto individualmente. Vivido em grupo, a base dessa terapia nostálgica parece emergir de marcadores sociais padronizados: vetores significativos de um determinado momento são reconstituídos no cenário, estimulando o acesso às lembranças individuais das personagens, cada qual uma perspectiva do coletivo, parte invariavelmente vinculada ao todo sem o qual a sua própria construção não seria possível. No entanto, no episódio, os marcadores usados para caracterizar as épocas “oferecidas” por esse sistema (vemos os anos 1980, 1990 e 2000) são menos coletivos do que padronizados, e as personagens mais os consomem como mercadorias do que os partilham. Eles são fruto de produções culturais como o cinema e os programas de televisão e de rádio e, assim, conformam aquilo que se entende como característico de uma determinada época. Tais marcadores, portanto, parecem fazer alusão não a um passado efetivamente vivido, partilhado ou de conhecimento comum, mas a um determinado momento, que usa referências partilhadas em larga escala do que seria o passado, outrora construído pelo consumo de mercadorias culturais (músicas, filmes, seriados etc.). A “terapia nostálgica”, nesse sentido, parece atuar como um olhar apaziguador sobre um tempo caracterizado por produtos que, em determinada época, foram consumidos e desejados como mercadorias.

Podemos supor que as personagens não tenham efetivamente vivido durante as décadas eleitas no sistema, porém, e isso é significativo, podem compartilhar processos mnemônicos a elas associados, uma vez que identificam vetores das épocas em questão pelos produtos culturais a elas associados, como sugere a fala Kelly, aos 54’20’’, sobre o esforço dos frequentadores da party town em adotar o estilo da época, dizendo: “Devem ter visto isso em algum filme”. Dessa perspectiva, essa terapia implica certa tragicidade, pois se a memória é de algum modo mobilizada, não o é pela experiência vivida, que singulariza a trajetória de cada personagem, mas pela repetição do que foi sucesso (que teve audiência, ouvintes, espectadores, consumidores de modo geral) em uma época.

Se tomarmos o caso de Yorkie, concordaremos que, de acordo com a biografia apresentada durante o episódio, ela provavelmente viveu os anos 2000 em uma cama de hospital e, portanto, distante das festas e da moda vigentes no período. Ainda assim, quando visita a estrutura representativa dessa década em San Junipero, veste-se e penteia-se de acordo com as tendências da época - cabelos mais longos e levemente ondulados, camiseta e jaqueta jeans -, que se encaixam perfeitamente com a vestimenta das demais personagens. Mesmo que Yorkie não tenha experimentado certas particularidades de um período, é capaz de mobilizá-las por sua natureza intercambiável, padronizada, associada às produções em massa e de grande circulação de produtos em determinadas épocas. A empresa TCKR, no caso do sistema San Junipero, organiza uma série de vetores coletivos, combinando-os de forma a caracterizar o que seria o “passado”, que, como temos tentado mostrar, baseia-se em produtos culturais de ampla circulação e consumo, uma espécie de passado que será comprado e vendido, colocado em circulação sob a forma de mercadoria em um presente que poderá ser perpétuo - se o cliente assim o quiser.

Temos, pois, que os processos mnemônicos impulsionados pelo “sistema terapia nostálgica” ajudam a compor a articulação de distintas temporalidades no enredo de San Junipero. Passado e presente mesclam-se, embaralham-se não apenas na estrutura do episódio, mas também nas percepções das personagens. Ao mencionar que o alargamento do tempo de permanência no sistema terapêutico poderia levar os pacientes à loucura, a personagem Greg, que cuida de Yorkie, aponta a dificuldade em separar a vivência nas dimensões física e não física ofertada pelo sistema. As palavras de Yorkie, a certa altura, são elucidativas a esse respeito: “Parece tão real! É possível tocá-lo! É real. Isso é real”, referindo-se à vida na plataforma cibernética. Sua fala expressa não apenas a comparação com a dimensão física, mas a de outra realidade, tão real quanto, indicando a porosidade das fronteiras entre o que é vivido nas dimensões cibernética e física. Tal porosidade, nesta leitura, é facilitada pelo caráter intercambiável do que seria a memória do vivido, uma vez que, em San Junipero, o que eram os traços mnêmicos são, agora, algoritmos. A chamada “terapia nostálgica” torna-se uma espécie de mercadoria particular e específica, pois oferece um tratamento para as dores e os sofrimentos vividos, não pela nostalgia do que foi partilhado coletivamente um dia - uma memória - mas do que foi repetido, padronizado e vendido em determinada época. Se no presente estendido do episódio a terapia em tela estabelece uma clivagem entre os que podem ou não usufruir dela (por terem ou não dinheiro, por exemplo), isso não é possível afirmar.

TO PASS - A MORTE COMO TRANSFERÊNCIA

Há, ainda, outra faceta fundamental do sistema San Junipero, a de que os frequentadores da party town dividem-se em dois grupos: o formado por aqueles que o utilizam semanalmente com fins terapêuticos (“terapia nostálgica”) e o formado por pessoas que, com a morte, passaram a utilizá-lo ininterruptamente. Isto é, por meio de procedimentos não explicitados durante o episódio, haveria a opção do que parece ser a transferência da pessoa que morre para a plataforma cibernética. Com essa opção, ela controlaria uma cópia de seu corpo jovem após a morte.

Para fazer referência a esse processo, as personagens usam alguns termos que aparecem na trama como sinônimos: os verbos to pass, to pass over e to pass through. Enquanto estes dizem respeito à transferência para a plataforma cibernética, o verbo to die, também empregado pelas personagens, designa a morte (morte natural, independente da plataforma da TCKR). Ou seja, to pass (e suas variações) e to die aludem a coisas diferentes. Vejamos dois diálogos expressivos. O primeiro, entre o enfermeiro Greg e Yorkie, aos 41’47’’: ao afirmar que se casaria com Yorkie no dia seguinte, Greg esclarece que a causa da cerimônia estaria na negativa dos familiares diante da autorização da eutanásia desejada por Yorkie, de forma que o casamento seria uma alternativa para possibilitar esse procedimento. Ele diz: “she’s scheduled to pass tomorrow afternoon”. Ao que Kelly responde: “‘Scheduled to pass’. Let’s just call it dying”. Em seguida, Greg: “If you can call it dying”. Kelly, então, rebate ironicamente: “Uploaded to the cloud, sounds like heaven”7 7 Tradução livre: Ela tem um agendamento para a passagem amanhã à tarde. “Agendamento para a passagem”. Vamos simplesmente chamar isso de morrer. Se você puder chamar isso de morrer. Enviada para a nuvem, parece o paraíso. .

O segundo diálogo ocorre aos 52’47’’, quando, durante uma discussão, Yorkie critica o marido de Kelly, Richard, que optara pela morte (to die) por egoísmo. Diz Kelly: “Richard was dying when they offered him this to pass over, to pass through, spend eternity in this fucking graveyard”8 8 Tradução livre: Richard estava morrendo quando ofereceram a ele essa passagem, essa travessia, passar a eternidade nessa droga de cemitério. .

No primeiro, Greg e Kelly usam o verbo to pass em referência à eutanásia de Yorkie e a passagem para a plataforma cibernética, explicitando a inadequação do emprego de to die nessa situação, afinal, ao responder a sugestão de Kelly com as palavras “Se você puder chamar isso de morrer”, ele sugere a incompatibilidade entre a morte (to die) e a utilização permanente da plataforma San Junipero (to pass). No segundo diálogo, Kelly emprega to pass over e to pass through em alusão à proposta para que seu marido utilizasse tal plataforma e to die para caracterizar a opção escolhida por ele, isto é, a negativa de fazê-lo e a opção por morrer.

Com mais de nove definições no Oxford Dictionary, “to pass” abarca significados relacionados à mobilidade, passagem, mudança, transferência e término. Vejamos as duas primeiras definições: “1. Move or cause to move.” e “2. Go past or across; leave behind or on one side in proceeding9 9 Tradução livre: mover-se ou causar movimento. Ir além ou através de; deixar para trás ou de um lado no processo. ”. Nelas, os sentidos de movimento (mover-se em uma direção específica) e superação (ir além e deixar para trás) são aludidos. No mesmo dicionário, to pass over é definido como um eufemismo para “to die”, ou seja, morrer. Ainda segundo o Oxford Dictionary, to pass through seria “to move in a specified direction10 10 Tradução livre: mover-se em uma direção específica. , contendo o sentido de movimento e travessia. Assim, to pass e a variação to pass through relacionam-se à mobilidade, ao passo que to pass over, na qualidade de eufemismo, transparece uma alternativa mais branda se comparada ao verbo to die que, segundo o mesmo dicionário, tem como primeira definição “stop living”, ou seja, parar de viver, significado que em nada se aproxima das acepções disponibilizadas para o termo to pass e to pass over.

O emprego desses termos em contraste com “to die” - centrado nas alusões à morte da filha e marido de Kelly - parece-nos expressivo, pois atravessa diversos aspectos e relações da trama e imprime significados particulares à morte. As acepções de mobilidade, passagem e mudança contidas nesses termos condizem com a concepção de morte projetada pelo episódio em questão, haja vista que a morte para Yorkie trata-se antes da transferência para uma plataforma cibernética, a cidade de San Junipero, na qual, conscientemente, operará uma identidade virtual delineada de acordo com sua vontade11 11 O encurtamento e alongamento de seus cabelos nas passagens pelas décadas disponibilizadas no sistema San Junipero permitem-nos perceber que não apenas adereços como vestimenta e maquiagem podem ser transformados, mas também as características da aparência corporal. . Nesse sentido, a morte não exprime o findar da vida, mas um trânsito de caráter digital. A falência das funções orgânicas vitais constitui, assim, a possibilidade de continuar existindo novas experiências, não o fim da existência. Aliás, a característica desse “cemitério”, a plataforma San Junipero, não custa lembrar, é a diversão, a festa, ou, como aparece no episódio, situações que envolvem movimento constante - o oposto da associação recorrente ao cemitério, a do descanso.

A busca pelo movimento incessante (em troca do descanso eterno) nos remete às discussões contidas em “The new mobilities paradigm” (2006), no qual Mimi Sheller e John Urry, centrados nas noções de tempo e distância, propõem, como indica o título do artigo, um paradigma das novas mobilidades a partir do enfoque nos deslocamentos e fluxos. A observação da crescente quantidade de meios de transporte, da velocidade dos deslocamentos e do uso de ferramentas tecnológicas de comunicação à distância teria impulsionado a elaboração teórica de um paradigma que busca contemplar fenômenos sociais contemporâneos. Trata-se de uma concepção que procura ir além da imagem de terrenos geograficamente fixos enquanto contentores para processos sociais, privilegiando, por sua vez, noções que abarcam “o oposto do sedentarismo, ou seja, metáforas da viagem e voo. Essas metáforas celebram mobilidades que, progressivamente, vão além tanto das fronteiras geográficas quanto dos limites disciplinares” (Sheller & Urry, 2006Sheller, Mimi & Urry, John. (2006). The new mobilities paradigm. Environment and Planning, 38/2, p. 207-226.: 210). As elaborações contidas em “The new mobilities paradigm” foram, posteriormente, desenvolvidas por Anthony Elliott e John Urry em Mobile Lives (2010Elliot, Anthony & Urry, John. (2010). Mobile Lives. Nova Iorque: Routledge.), obra na qual a não fixação geográfica é apontada como indicativa de que a organização social contemporânea é pautada na mobilidade, sendo expressões de tal fenômeno a popularização de ferramentas tecnológicas de comunicação à distância e o avanço de produtos de software e hardware12 12 Por outros caminhos, Richard Sennett detectou a transformação do espaço público em “derivada do movimento”, cuja consequência seria a sua supressão, pois valorizaria não a permanência (to be in), mas a passagem (to move throught). Nas palavras do autor, “a tecnologia da movimentação moderna substitui o fato de estar na rua por um desejo de eliminar as coerções da geografia” (Sennett, 2002: 14). . Ao explorar as consequências do desenvolvimento e proliferação da tecnologia digital, Elliott e Urry examinam como as vidas são reformuladas em processos denominados de tecnomobilidades, concluindo que

As vidas móveis são, em primeiro lugar, vividas, experimentadas e refletidas no decorrer do dia-a-dia - com todos os seus prazeres e pressões. A mobilização cotidiana está intrinsecamente entrelaçada com o que as pessoas sentem, desejam e pensam sobre suas vidas. No entanto, mobilidades - físicas, comunicativas, virtuais - também estão no centro de processos institucionais mais amplos. Sistemas complexos, poderosos e interdependentes baseados no conhecimento constituem a mobilização da produção, do consumo, das comunicações, das redes e das viagens pelo mundo (Elliott & Urry, 2010Elliot, Anthony & Urry, John. (2010). Mobile Lives. Nova Iorque: Routledge.: 155).

Para os autores, as vidas móveis - existências reformuladas em processos de tecnomobilidades - operam tanto no registro individual e cotidiano quanto no coletivo e institucional. Por seu turno, e alargando as percepções de Elliott, Sheller e Urry, em San Junipero tais processos são projetados também para além da morte, como nos estimulam a pensar os vocábulos empregados no episódio. Assim, o uso de to pass e to pass through sugerem que a noção de morte é construída na trama por meio de acepções de mobilidade e passagem, uma vez que a “terapia nostálgica” funciona a partir da mobilidade entre a dimensão física e a digital. Retomemos a frase de Kelly “Uploaded to the cloud, sounds like heaven”, na qual a personagem brinca com o duplo sentido da palavra “cloud”, que poderia aludir tanto às nuvens enquanto execução de serviços de computação quanto às nuvens do céu, que a personagem associa ao paraíso. A empresa TCKR ofereceria, então, a opção de “subir” as pessoas da sua dimensão física para a digital, o que faz de San Junipero o sistema para onde convergem as duas dimensões da cloud: a dos serviços de computação e a do paraíso (construído no episódio por elementos associados à mobilidade, belas praias, festas intermináveis, sexo e juventude eterna). Essa espécie de éden, contudo, é acessado, repetimos, pelas possibilidades de mobilidade ofertadas por um produto tecnológico que, por meio de algoritmos que veiculam produtos culturais de épocas distintas, sucessos de paradas musicais e de bilheteria, moda, entre outros, permitiria às pessoas “viverem” perpetuamente em meio ao que passaram a vida consumindo ou sonhando em fazê-lo.

A recorrência a essa ideia de passagem presente na narrativa do episódio, como vimos, não está limitada à transferência no momento da morte física, dado que é também uma “terapia” cuja posologia é cuidadosamente observada pelos cuidadores aos doentes terminais, mas é a morte como uma transição de caráter computacional que emerge como o ponto último, como o vértice da mobilidade. Nesse sentido, se Sheller, Elliott e Urry concentram-se nas possibilidades de movimento e transição dadas na sociedade contemporânea, destacando a velocidade da passagem e a impossibilidade de cercear os processos sociais em contendas geográficas, o episódio San Junipero extrapola tais perspectivas, apresentando a morte como uma transferência (upload) e o paraíso como um espaço digital que oferece, após a falência do corpo físico, uma eternidade repleta de vetores que sugerem movimento na forma de mercadorias.

Na nossa leitura, a celebração da mobilidade expressa em San Junipero, encenada por meio de elementos bem determinados, como carro em velocidade, festa, roupas diversas, passos de dança encaixados à música, o sexo e suas várias práticas, é tão marcante que até a morte, a passagem, está subsumida à lógica do movimento, pois ela agora é transferência. Por isso é significativa a sequência em que um avião cruza a tela, cena imediatamente posterior àquela em que Kelly, após decidir ter chegado o momento de sua própria eutanásia, anuncia a sua transferência para o sistema.

O final do episódio, quando as “almas”13 13 Utilizamos o termo provisoriamente, afinal, como apontou Hartmut Rosa, “o que um dia foi chamado de nossas almas, nossa psique, talvez não seja rápido o bastante para a alta velocidade da sociedade digital” (Sesc São Paulo, 2017). (é o que intuímos pela trama) das personagens aparecem presas em minúsculas cápsulas que são alocadas uma ao lado da outra em uma robotizada empresa cibernética, a TCKR (sigla prefigurada desde o início no nome Tucker’s), em contraponto ao plano em que um esquife é baixado, parece sugerir, entre outros aspectos, que a morte como “transferência” a um mundo construído por meio de algoritmos que mobilizam mercadorias outrora consumidas (operando como um cemitério cibernético) dormita no horizonte do tempo presente encenado no episódio de Black Mirror. Se o quadro das relações sociais entretecidas no episódio é, como apontamos, atual, presente e habitual, o que chamou a nossa atenção, por sua vez, foi a coloração que a noção de morte assume sob a lógica do movimento dos dispositivos tecnológicos. A morte em San Junipero se apresenta como mais um procedimento na tentativa de finalmente separar o corpo, que é provisório, falhado e falece, da mente, que viverá para sempre na imagem de um corpo desejado em um paraíso.

A novidade, contudo, não é o paraíso construído na trama, um sistema construído pela empresa cibernética TCKR e caracterizado pela presença pronunciada de produtos - culturais - que outrora fizeram sucesso, sendo largamente consumidos em suas respectivas épocas, entre o final do século XX e início do XXI. Antes, a novidade é que nesse futuro aproximado a morte não é mais descanso ou passagem de um mundo a outro, desconhecido ou sonhado, mas transferência, movimento, uma escala para chegar à nuvem e, assim, viver perpetuamente no sistema de uma empresa, um cemitério cibernético, cujo repouso é estar em constante movimento. A morte, pois, deixa de ser descanso, uma condenação à mobilidade, o que remete à tese de Paul Virilio em Vitesse et politique, da velocidade como lógica, a lógica da riqueza no mundo contemporâneo, em que estacionar equivale a morrer: “o estacionamento é a morte” (Virilio, 1977Virilio, Paul. (1977). Vitesse et politique. Paris: Éditions Galilée.: 73).

* * *

Se na conferência de Max Weber - “Ciência como vocação” - o autor sublinhou a diferença entre os que viveram outrora, que, ao final da vida, sentiam-se “velhos e plenos de vida” e de “sentido”, pois “estavam instalados no ciclo orgânico”, ao passo que “o homem civilizado”, sob o signo do progresso (cuja expressão mais significativa encontra-se no pensamento científico), pode sentir-se “cansado”, mas não pleno, viver e morrer em San Junipero parece flertar com o desejo de permanecer em movimento fora tanto do “ciclo orgânico” quanto da linha progressiva que caracteriza a vida do “homem civilizado”14 14 A citação completa é: “Abraão ou os camponeses de outrora morreram ‘velhos e plenos de vida’, pois que estavam instalados no ciclo orgânico da vida, porque esta lhes havia ofertado, ao fim de seus dias, todo o sentido que podia proporcionar-lhes e porque não subsistia enigma que eles ainda teriam deixado de resolver. Podiam, portanto, considerar-se satisfeitos com a vida. O homem civilizado, ao contrário, colocado em meio ao caminhar de uma civilização que se enriquece continuamente de pensamentos, de experiências e de problemas, pode sentir-se “cansado” da vida, mas não ‘pleno’ dela” (Weber, 2013: 31). .

O para-além-da-morte, no episódio, caracterizado pela circulação perpétua de pessoas e mercadorias, o entretenimento sem fim, é como se pusesse em cena o desejo de reviver para sempre experiências (relações sociais) pelas quais as pessoas passaram sem sentir, em virtude mesmo da mobilidade que caracteriza a vida. Nessa leitura de San Junipero, porém, o retorno a tais experiências (como já indicava a “terapia nostálgica”), não é fazer durar o que passou e se perdeu, mas o encenar de um desejo: tomar parte em um todo (um sistema cibernético) que faz todas as “coisas” circularem - inclusive o esquecimento e a lembrança que se tem delas. A memória torna-se uma espécie de mercadoria cujo apelo é oferecer, segundo algoritmos, a experiência do que não se viveu.

REFERÊNCIAS

  • Elliot, Anthony & Urry, John. (2010). Mobile Lives Nova Iorque: Routledge.
  • Francastel, Pierre. (1987). Imagem, visão e imaginação Lisboa: Edições 70.
  • Halbwachs, Maurice. (1990). A memória coletiva São Paulo: Vértice.
  • Kulesza, Juliana & De Santi Bibbo, Ulysses. (2013). A televisão a seu tempo: Netflix inova com produção de conteúdo para o público assistir como e quando achar melhor, mesmo que seja tudo de uma vez. Revista de Radiodifusão, 7/8, p. 44-51.
  • Menezes, Paulo. (2017). Sociologia e cinema: aproximações teórico-metodológicas. Teoria e cultura Revista do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais - UFJF, 12/2, p. 17-36.
  • Sheller, Mimi & Urry, John. (2006). The new mobilities paradigm. Environment and Planning, 38/2, p. 207-226.
  • Sorlin, Pierre. (1977). Sociologie du cinéma Paris: Aubier Montaigne.
  • Virilio, Paul. (1977). Vitesse et politique Paris: Éditions Galilée.
  • Weber, Max. (2013). Ciência e política: duas vocações São Paulo: Cultrix.
  • Sesc São Paulo. (2017). Aceleração social, estabilização dinâmica e dessincronização da sociedade com Hartmut Rosa Youtube. Disponível em: Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Zsf_Wg1ll4A Acesso em: 31 mar. 2022.
    » https://www.youtube.com/watch?v=Zsf_Wg1ll4A
  • San Junipero. (2016). Direção: Owen Harris. Estados Unidos/Inglaterra: Netflix. 61 min., color.
  • Mad Max. (1979). Direção: George Miller. Produção: Byron Kennedy. Austrália: Kennedy Miller Productions. 88 min., color.
  • 1
    Fundada em 1977 nos Estados Unidos como um serviço de aluguel de filmes, a Netflix atualmente disponibiliza um farto catálogo que inclui filmes e seriados para cerca de 100 milhões de clientes por meio da tecnologia de streaming online (para isso, ver Kulesza & De Santi Bibbo, 2013Kulesza, Juliana & De Santi Bibbo, Ulysses. (2013). A televisão a seu tempo: Netflix inova com produção de conteúdo para o público assistir como e quando achar melhor, mesmo que seja tudo de uma vez. Revista de Radiodifusão, 7/8, p. 44-51.). O seriado Black Mirror foi incorporado a essa empresa em 2015, o que significou um aumento substancial no número de episódios por temporada - que dobrou de três episódios na primeira e segunda temporadas para seis episódios na terceira e quarta temporadas - e um incremento de sua audiência, uma vez que o seriado tornou-se acessível em mais de 40 países.
  • 2
    Black Mirror coleciona prêmios desde o seu lançamento. O episódio San Junipero, um dos mais aclamados pelo público e crítica, ganhou dois prêmios Emmy em 2017, de “Melhor Filme Feito para Televisão” e “Melhor Roteiro em Minissérie”. Ainda que outros episódios do seriado abordem amor, tecnologia e morte, San Junipero é o único que mobiliza esses três aspectos confluindo para a ideia de um movimento incessante, oferecendo-nos, assim, material para pensar as conexões entre novas tecnologias e sociedade.
  • 3
    A tradução de todas as citações de bibliografia estrangeira é nossa. As únicas passagens em que mantivemos o idioma original são as dos diálogos entre as personagens mencionados na parte quatro. O recurso nos pareceu necessário para sublinhar a ênfase na utilização de determinadas expressões em inglês.
  • 4
    Uma vez que o nightclub Tucker’s faz parte de um programa computacional oferecido como uma terapia nostálgica, é possível que o barman seja também uma criação desse programa, ainda que não possamos atestar tal afirmação com certeza. Se nossa observação estiver correta, complica-se seu posicionamento como parte do grupo dos prestadores de serviço. Note-se também que o nome do nightclub nos remete imediatamente à marca da produtora e mantenedora do sistema San Junipero (Tucker’s - TCKR).
  • 5
    Transcrevemos as falas em português. Mais abaixo, porém, como alertamos, mantivemos alguns dos diálogos em inglês para melhor explorar o uso de determinadas expressões, disponibilizando uma tradução livre nas notas de rodapé.
  • 6
    A computação “em nuvem” pode ser definida como a execução de serviços de computação, tais como armazenamento e banco de dados, pela internet. Como não há necessidade de unidades físicas, o acesso a programas e dados é móvel, podendo ser realizado em qualquer lugar, desde que com internet disponível.
  • 7
    Tradução livre: Ela tem um agendamento para a passagem amanhã à tarde. “Agendamento para a passagem”. Vamos simplesmente chamar isso de morrer. Se você puder chamar isso de morrer. Enviada para a nuvem, parece o paraíso.
  • 8
    Tradução livre: Richard estava morrendo quando ofereceram a ele essa passagem, essa travessia, passar a eternidade nessa droga de cemitério.
  • 9
    Tradução livre: mover-se ou causar movimento. Ir além ou através de; deixar para trás ou de um lado no processo.
  • 10
    Tradução livre: mover-se em uma direção específica.
  • 11
    O encurtamento e alongamento de seus cabelos nas passagens pelas décadas disponibilizadas no sistema San Junipero permitem-nos perceber que não apenas adereços como vestimenta e maquiagem podem ser transformados, mas também as características da aparência corporal.
  • 12
    Por outros caminhos, Richard Sennett detectou a transformação do espaço público em “derivada do movimento”, cuja consequência seria a sua supressão, pois valorizaria não a permanência (to be in), mas a passagem (to move throught). Nas palavras do autor, “a tecnologia da movimentação moderna substitui o fato de estar na rua por um desejo de eliminar as coerções da geografia” (Sennett, 2002: 14).
  • 13
    Utilizamos o termo provisoriamente, afinal, como apontou Hartmut Rosa, “o que um dia foi chamado de nossas almas, nossa psique, talvez não seja rápido o bastante para a alta velocidade da sociedade digital” (Sesc São Paulo, 2017Sesc São Paulo. (2017). Aceleração social, estabilização dinâmica e dessincronização da sociedade com Hartmut Rosa. Youtube. Disponível em: Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Zsf_Wg1ll4A . Acesso em: 31 mar. 2022.
    https://www.youtube.com/watch?v=Zsf_Wg1l...
    ).
  • 14
    A citação completa é: “Abraão ou os camponeses de outrora morreram ‘velhos e plenos de vida’, pois que estavam instalados no ciclo orgânico da vida, porque esta lhes havia ofertado, ao fim de seus dias, todo o sentido que podia proporcionar-lhes e porque não subsistia enigma que eles ainda teriam deixado de resolver. Podiam, portanto, considerar-se satisfeitos com a vida. O homem civilizado, ao contrário, colocado em meio ao caminhar de uma civilização que se enriquece continuamente de pensamentos, de experiências e de problemas, pode sentir-se “cansado” da vida, mas não ‘pleno’ dela” (Weber, 2013Weber, Max. (2013). Ciência e política: duas vocações. São Paulo: Cultrix.: 31).
  • *
    Os autores agradecem aos pareceristas que revisaram o artigo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    13 Set 2021
  • Revisado
    03 Abr 2022
  • Aceito
    11 Abr 2022
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