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Antropologia nas fronteiras entre religião e arte

Anthropology at the boundaries between religion and art

GIUMBELLI, Emerson Alessandro; ARÊAS PEIXOTO, Fernanda. (org.). Arte e Religião: passagens, cruzamentos, embates. Brasília: ABA Publicações, 2021. 302 pp.

Parte dos estudos que se dedicam à relação entre arte e religião tem sido desenvolvida a partir dos debates que se desdobraram nas últimas décadas do século XX sobre o lugar do religioso nas chamadas sociedades modernas. Pela antropologia genealógica de Talal Asad (2003ASAD, Talal. (2003), Formations of the Secular: Christianity, Islam, Modernity. Stanford: Stanford University Press.), considera-se que o paradigma da secularização produziu, em contraponto à ordem social hegemonizada pela religião, uma compartimentalização da vida social assentada na reificação da separação entre religioso e secular. Enquanto o religioso fora encapsulado, a arte autonomizou-se como expressão da modernidade, assumindo na ordem secular a função social outrora atribuída àquela, da qual se tornou radicalmente oposta e crítica (Morgan 2009MORGAN, David. (2009), “Introduction: Enchantment, Disenchantment, Re-Enchantment”. In: J. Elkins; D. Morgan. Re-Enchantment. New York/London: Routledge.) - e não é sem razão que os estudos da religião viriam a oferecer à antropologia um modelo para compreensão da arte (Gell 2018GELL, A. (2018), Arte e agência. São Paulo: Ubu Editora, 2018.).

É a partir das zonas de fronteira que a relação entre esses domínios é abordada em Arte e religião: passagens, cruzamentos, embates, organizada por Emerson Giumbelli e Fernanda Arêas Peixoto, que reúne trabalhos de pesquisadores articulados em torno do MARES - Materialidade, Arte, Religião e Espaço Público: Grupo de Antropologia. Seus oito capítulos focalizam etnograficamente tanto criações artísticas quanto expressões religiosas que borram esses limites e interpelam as narrativas modernas acerca de suas definições e relações.

Embora experimentem caminhos analíticos diversos apontados não só por um repertório teórico heterogêneo, mas também pelas singularidades dos contextos etnográficos, os textos que compõem a coletânea estão afinados pelo entendimento comum ao grupo de pesquisa de que arte e religião não constituem domínios ontológicos ou “modos de existência” estanques e antagônicos (Latour 2013LATOUR, Bruno. (2013), Investigación sobre los modos de existencia. Una antropología de los modernos. Buenos Aires: Paidós-Argentina.); mas, por uma perspectiva pragmática atenta à dimensões materiais (Meyer 2019MEYER, Birgit. (2019), “De comunidades imaginadas a formações estéticas: mediações religiosas, formas sensoriais e estilos de vínculo”. In: E. Giumbelli; R. Toniol (org.). Como as coisas importam: uma abordagem material da religião - textos de Birgit Meyer. Porto Alegre: Editora da UFRGS.), são campos de criações sociais que apresentam interfaces e compartilham modos de fazer, agentes e repertórios, produzindo diálogos nem sempre pacíficos.

A coletânea está estruturada a partir da natureza dos casos investigados, de modo que os capítulos iniciais partem das produções artísticas, enquanto os últimos são dedicados a contextos religiosos em sentido estrito. Trata-se, no entanto, menos de uma estrutura dual do que um continuum e, dentro de cada capítulo, a partir das “performações” analisadas, como apresentam os organizadores, “a religião pode se comunicar ou se transformar em arte, assim como as artes podem se associar à religião, em processos frequentemente marcados por ruídos e dissonâncias” (:14).

No capítulo de abertura, “La Virgen de los mil y un rostros: del mimetismo colonizador al ultrabarroco guadalupano”, Renée de la Torre discute os embates em torno de Nossa Senhora de Guadalupe, símbolo dominante do catolicismo nacional mexicano historicamente associado a uma ideologia da mestiçagem. O foco da análise recai sobre as tensões em torno da escultura Sincretismo, do artista plástico Ismael Vargas, instalada numa importante via pública de Guadalajara. A obra feita em metal e medindo 9 metros de altura sobrepunha a imagem da Virgem à da divindade feminina pré-hispânica Coatlicue, fazendo emergir artisticamente a herança indígena assimilada por esse culto mariano, que teria sido apagada pelo colonialismo. Tanto as reações de grupos católicos quanto o engajamento de coletivos feministas se deram por novas elaborações visuais da Virgem em produções iconográficas que acabavam por enfatizar as diferenças culturais da sociedade mexicana que a imagem guadalupana original e a ideologia associada a ela buscavam assimilar. A autora nos convida a perceber os símbolos religiosos nacionais menos pelo seu poder de síntese e de estabilização de sentidos do que pela sua fluidez semântica aberta a reinterpretações estéticas que possam enfatizar suas contradições e manifestar identidades mais particularizadas, seja pelo prisma conservador, como pelas perspectivas contra hegemônicas.

O capítulo seguinte, “Circulações e aparecimentos da forma altar entre arte e religião”, assinado por Fernanda Arêas Peixoto e Júlia Vilaça Goyatá, aborda a incorporação de formas e repertórios religiosos em determinadas criações artísticas; especificamente, os altares e objetos domésticos católicos e vodus referenciados nos objetos-oratórios do mineiro Farnese de Andrade e nas esculturas do haitiano Guyodo. Ao traçar homologias entre os materiais e procedimentos mobilizados na criação de altares e de obras de arte, inspiradas pela sacralidade cotidiana de Michel Leiris (2017LEIRIS, Michel. (2017), “O sagrado na vida cotidiana”. Debates do NER, Porto Alegre, vol. 1, nº 3: 15-25.) e pela primazia da técnica proposta por Alfred Gell (2018GELL, A. (2018), Arte e agência. São Paulo: Ubu Editora, 2018.), as autoras exploram com muita sensibilidade estética as aproximações e influências entre esses domínios a partir de arranjos da forma altar e de sua circulação entre espaços domésticos e expográficos, sugerindo movimentos de sacralização da arte e de artificação do sagrado.

O terceiro capítulo, “Sentidos de transformação na street art: religião, arte e política nos anjos de Wark da Rocinha”, também é dedicado aos significados produzidos por criações artísticas contemporâneas que acionam estéticas e imaginários religiosos. Nesse caso, Christina Vital da Cunha e Paola Lins de Oliveira nos apresentam os anjos grafitados por um artista na cidade do Rio de Janeiro. A mobilização das ideias de “vocação” e “inspiração” para compreender a trajetória de Wark da pichação à street art aproximam o fazer artístico de um sentido religioso, o que se reforça quando somos apresentados às suas intencionalidades. Para ele, seus anjos em estilo cute carregam uma “luz”, uma energia potencialmente transformadora do outro e do entorno. Além da aproximação entre arte e religião pelo papel de transcendência e transformação do mundo, essa concepção espiritualista difusa permite ao artista operar numa “ambiguidade produtiva”, agenciando um universo simbólico judaico e cristão sem que isso ameace o seu reconhecimento como artista secular no campo da arte contemporânea. Essa mediação se daria por meio de “um jogo de revelação e ocultação do religioso na forma de um grafite motivacional” (:103).

Os próximos dois capítulos distanciam-se da análise de criações artísticas para refletir sobre artefatos que são realizações monumentais e arquitetônicas de natureza religiosa. As controvérsias em torno da idealização e da construção pelo poder público do Memorial às Vítimas do Holocausto, no alto do Morro do Pasmado, na zona sul do Rio de Janeiro, são investigadas por Edilson Pereira em “Do Holocausto à terra prometida: a criação de um memorial na paisagem carioca”. Atento à biografia e à materialidade desse memorial protagonizado pela edificação de um obelisco com mais de 20 metros de altura numa paisagem patrimonializada pela Unesco, o autor traça uma complexa trama de associações e tensões envolvendo políticos, grupos étnico-religiosos, especialistas do patrimônio e coletivos de moradores. Viabilizado pela articulação entre lideranças políticas das comunidades judaicas e neopentecostais, o memorial ergue-se como inscrição material do sionismo cristão no espaço público e parece contaminar a paisagem carioca. A ideia de contaminação, que inescapavelmente nos remete à “matéria fora de lugar” (Douglas 2012DOUGLAS, Mary. (2012), Pureza e perigo. São Paulo: Perspectiva.), sugere o caráter potencialmente ambíguo da arte (e dos artefatos), iluminando as redefinições entre religião, cultura e política na disposição arquitetural desse dispositivo de memória coletiva.

Em “Monumentais imperfeições: arquitetura e estética de dois grandes templos católicos”, Emerson Giumbelli analisa comparativamente formas arquiteturais associadas a projetos católicos de santuarização no sul do Brasil, o Santuário Santa Paulina, e no centro-oeste do México, o Santuário dos Mártires. Privilegiando uma percepção estética menos focada nos aspectos simbólicos do que nas formas e aparências (Bataille 2018BATAILLE, Georges. (2018), Documents: Georges Bataille. Florianópolis: Cultura e Barbárie.), o autor correlaciona as disposições físicas desses templos com os lugares em que foram construídos e as características das devoções às quais são vinculados. Com suas particularidades, ambos os santuários constituem projetos ambiciosos e modernos que escapam de uma arquitetura sacra convencional e são dedicados a devoções que não estão consolidadas ou que são pouco difundidas nacionalmente, incompatíveis com as suas dimensões monumentais. Coloca-se, então, questões em torno do estatuto religioso de construções que não aparentam ser santuários e cujas formas arquitetônicas, ao perseguirem um ideal estético moderno, produzem imperfeições religiosas em sua execução, quais sejam, “separações e conjunções que subvertem a relação entre sagrado e profano” (:181).

Os capítulos finais se aproximam não apenas por cobrirem produções voltadas para o universo religioso, mas também por consistirem em trabalhos produzidos no âmbito de pesquisas de mestrado e doutorado, todas orientadas por Giumbelli. Compartilham ainda o interesse pela relação entre religião e mídia, trazendo ao centro de suas análises as mediações materiais da religião em diferentes modalidades estéticas e sensoriais.

Em “Ver, visitar, participar: a produção do “bíblico” com base em telenovelas brasileiras”, Jorge Scola articula o tema da religião com os circuitos turísticos, a cultura de massa e a indústria do entretenimento. O texto é dedicado às correlações entre a teledramaturgia bíblica da Record TV, emissora da Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd), e o turismo brasileiro com destino a locais identificados como cenários bíblicos, promovido por empresas de viagem seculares. O autor recompõe as operações estéticas mobilizadas tanto nas novelas quanto nas viagens para produção de efeitos de autenticidade e persuasão em suas “paisagens bíblicas”, de modo que essas iniciativas, embora sejam autônomas entre si, possuem implicações recíprocas e um público em comum (:193). Ao refutar interpretações que enquadrem as produções midiáticas evangélicas sob a rubrica gospel ou as reduzam a ações de proselitismo, Scola argumenta que, nesses casos, o sentido bíblico autonomiza-se do religioso, alcançando públicos distintos e reconfigurando as relações entre religião e espaço público a partir da performance sensorial e material de “estados bíblicos”.

Se a coletânea é majoritariamente dedicada a casos que perpassam o universo judaico e cristão, o capítulo assinado por Leonardo de Almeida traz as religiões afro-brasileiras, mais especificamente o batuque no Rio Grande do Sul. “Entre o fundamento e o popstar: concepções de arte em circulação no contexto religioso afro-gaúcho” aborda o processo recente de profissionalização dos alabês, os tocadores de tambor desse culto, que está associado à emergência de uma produção midiática comercial voltada para esse segmento religioso. Na etnografia da circulação de tamboreiros nesse novo mercado, o autor analisa as implicações da incorporação de elementos estéticos e performáticos associados à arte secular por esses agentes em suas práticas religiosas, como a apresentação em palcos, o uso de microfones e a gravação de DVDs. A noção de “artificação” (Shapiro & Heinich 2013SHAPIRO, Roberta; HEINICH, Natalie. (2013), “Quando há artificação?” Sociedade e Estado, Brasília, vol. 28, nº 1: 14-28.) é acionada numa acepção menos institucionalizada desse processo para pensá-lo com base em uma teoria nativa da arte, a artisticidade, segundo a qual esses repertórios artísticos, especialmente os recursos de mídia, podem potencializar as práticas mágico-religiosas na medida em que respeitem o fundamento; isto é, a legitimação desses agentes e de suas práticas artificadas dependerá da negociação que possam estabelecer com um conjunto de códigos morais e preceitos rituais associados à ideia de tradição religiosa.

No último capítulo, “A adoração na “cultura: margens e mediações entre música congregacional, arte religiosa e produção comercial na atuação de uma banda de jovens evangélicos”, as mídias e a profissionalização de práticas musicais religiosas seguem em discussão pela sua inserção em circuitos comerciais. Taylor de Aguiar nos apresenta o caso da banda musical da Brasa Church, um ministério de vertente batista carismática de Porto Alegre, que se caracteriza pelo worship, uma tendência teológica-musical que o autor define pela “estética da adoração”, destacando as mediações materiais e formas sensoriais desse culto. Se a música está relacionada à dimensão ritual da adoração, tensões em torno dos sentidos que lhe são atribuídos emergem à medida que a banda tem a sua produção reconhecida como arte religiosa e atua no mercado fonográfico. De música congregacional à produção comercial, o autor atenta às negociações e combinações empregadas por esses adoradores-artistas para contornar os riscos de banalização da produção religiosa em contato com formas mundanas. A análise amplia o entendimento não apenas sobre o que se reconhece como música evangélica contemporânea e sua circulação entre o culto e o mercado fonográfico, como também sobre o papel dessas formas estéticas nas experiências espirituais da adoração e a sua relação com um modo de ser evangélico socializado entre os jovens.

Ao final da leitura, percebe-se que atravessa os capítulos a discussão sobre os efeitos de sacralização da arte secular pela incorporação de referências religiosas, e de artificação das produções do campo religioso por sua relação com formas estéticas associadas a diferentes universos artísticos. No livro, a cidade emerge como locus privilegiado desses intercruzamentos. Das intervenções da street art aos dispositivos de memória no espaço público, vemos como as margens entre arte e religião abrem-se na cena urbana a outros domínios, como política, patrimônio e turismo.

Além de passagens, cruzamentos e embates, outros termos como contatos, colisões e contágios são acionados pelos autores e autoras na tentativa de dar conta dessas múltiplas possibilidades de relação. Eles não apenas correspondem à proposta de uma antropologia atenta às dinâmicas de demarcação e superação desses campos, mas também enfatizam as dimensões estéticas e espaciais de suas fronteiras.

Pode-se reconhecer a preeminência das passagens e cruzamentos na própria abordagem teórica e metodológica dos ensaios, que deslizam entre uma antropologia da arte e uma antropologia da religião. É nessa perspectiva que se encontra aquela que talvez seja a sua principal contribuição, a saber, a conjunção de reflexões etnográficas que ampliem a compreensão sobre a vida social em suas interfaces artísticas e religiosas na contemporaneidade e, em especial, no contexto latinoamericano.

Arte e religião apresentam-se aqui como organizadores discursivos que recobrem campos e contextos diversos. Sente-se falta, contudo, de um esforço mais reflexivo sobre como a própria obra se realiza num jogo de encapsulamento e transbordamento dos fenômenos sociais nesses domínios. Por um lado, poderia ser perguntado em que medida, ao se ater a essas duas noções, as análises estão a desmontar demarcações que elas mesmas produziram. Por outro, seria interessante reconhecer a importância analítica das categorias intermediárias (Amit, 2015AMIT, Vered (ed.). (2015), Thinking through sociality: an anthropological interrogation of key concepts. Oxford, New York: Berghahn Books.) que emergem na coletânea, como mídia, estética e paisagem. Entre abordagens tão distintas, elas tanto enfatizariam os sentidos particularizados das etnografias, quanto permitiriam o empreendimento comparativo com modelagens menos universalizantes.

Não se trata de superar, mas de assumir uma dimensão paradoxal que é constitutiva da própria disciplina. Como nos lembra Michael Lambek (2012LAMBEK, Michael. (2012), “Facing Religion, From Anthropology.” Anthropology of this Century, nº 4.), ao conformar-se elaborando para si uma concepção secular de religião, a antropologia estaria implicada no estabelecimento dessa ideologia de exclusão mútua, ao mesmo tempo em que opera em suas fronteiras, desafiando ou desautorizando-as.

Referências

  • AMIT, Vered (ed.). (2015), Thinking through sociality: an anthropological interrogation of key concepts Oxford, New York: Berghahn Books.
  • ASAD, Talal. (2003), Formations of the Secular: Christianity, Islam, Modernity Stanford: Stanford University Press.
  • MORGAN, David. (2009), “Introduction: Enchantment, Disenchantment, Re-Enchantment”. In: J. Elkins; D. Morgan. Re-Enchantment New York/London: Routledge.
  • GELL, A. (2018), Arte e agência São Paulo: Ubu Editora, 2018.
  • LAMBEK, Michael. (2012), “Facing Religion, From Anthropology.” Anthropology of this Century, nº 4.
  • LATOUR, Bruno. (2013), Investigación sobre los modos de existencia. Una antropología de los modernos. Buenos Aires: Paidós-Argentina.
  • MEYER, Birgit. (2019), “De comunidades imaginadas a formações estéticas: mediações religiosas, formas sensoriais e estilos de vínculo”. In: E. Giumbelli; R. Toniol (org.). Como as coisas importam: uma abordagem material da religião - textos de Birgit Meyer Porto Alegre: Editora da UFRGS.
  • LEIRIS, Michel. (2017), “O sagrado na vida cotidiana”. Debates do NER, Porto Alegre, vol. 1, nº 3: 15-25.
  • DOUGLAS, Mary. (2012), Pureza e perigo São Paulo: Perspectiva.
  • BATAILLE, Georges. (2018), Documents: Georges Bataille Florianópolis: Cultura e Barbárie.
  • SHAPIRO, Roberta; HEINICH, Natalie. (2013), “Quando há artificação?” Sociedade e Estado, Brasília, vol. 28, nº 1: 14-28.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    27 Dez 2021
  • Aceito
    08 Mar 2022
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