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A transnacionalidade terapêutica antroposófica Brasil-Suíça: uma Bildung decolonial?

Anthroposophical therapeutic transnationality Brazil-Switzerland: a decolonial Bildung?

Resumos

Resumo: Mais da metade das Práticas Integrativas e Complementares (PICs) oferecidas no SUS são estrangeiras. Importadas de outros continentes, elas foram moldadas em diferentes culturas com distintas concepções de corpo, saúde, doença e cura. No fluxo dessas terapias, a Antroposofia apresenta uma transnacionalidade que, a priori, absorvia as práticas terapêuticas europeias, adaptando-as às questões culturais e climáticas, mas também produzia e exportava terapias originalmente brasileiras para a Europa, em um movimento contrário, do Sul para o Norte Global. Promotora de uma bildung nos indivíduos, a Antroposofia busca um forjar a si mesmo como um mote terapêutico. Este artigo reflete sobre essa transnacionalidade terapêutica portadora de um projeto de bildung e se este seria decolonial, rompendo com a lógica e o prestígio europeu.

Palavras-chave:
transnacionalidade; bildung ; terapia; antroposofia; decolonial


Abstract: More than half of the Integrative and Complementary Practices (PICs) offered in the SUS are foreign. Imported from other continents, they were shaped in different cultures with different conceptions of body, health, disease and healing. In the flow of these therapies, Anthroposophy presents a transnationality that, a priori, absorbed European therapeutic practices, adapting them to cultural and climatic issues, but also produced and exported therapies originally Brazilian to Europe, in an opposite movement, from the South to the Global North. Promoter of a bildung in individuals, Anthroposophy seeks to forge itself as a therapeutic motto. This article reflects on this therapeutic transnationality that carries a bildung project and whether it would be decolonial, breaking with European logic and prestige

Key words:
transnationality; bildung; therapy; anthroposophy; decolonial


Introdução

Entre as Práticas Integrativas e Complementares (PICs) oferecidas no Sistema Único de Saúde (SUS), mais da metade das 28 terapias são estrangeiras (Ministério da Saúde 2018MINISTÉRIO DA SAÚDE. (2018), “Práticas Integrativas e Complementares de Saúde”. Glossário Temático. Disponível em: Disponível em: http://portalarquivos2.saude.gov.br/images/pdf/2018/marco/12/glossario-tematico.pdf . Acesso em:07/11/18.
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), importadas de outros continentes e moldadas em diferentes culturas com distintas concepções de corpo, saúde, doença e cura, e trazidas ao Brasil. Entre elas, temos as terapias oriundas do continente europeu com origem no Romantismo alemão, como a homeopatia, o termalismo, a ozonioterapia e a antroposofia. A medicina antroposófica foi organizada com base em uma ciência espiritual com um sistema terapêutico que, em 2006, foi aceita pelo SUS e, em 2011, passou a ser considerada uma Racionalidade Médica, acessando uma política de saúde e ampliando a sua oferta no mercado das terapias espirituais.

Rodrigo Toniol (2016TONIOL, Rodrigo. (2016), “Atas do espírito: a Organização Mundial da Saúde e suas formas de instituir a espiritualidade”. Anuário Antropológico: 267-299 https://doi.org/10.4000/aa.2330.
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) lançou luz aos casos de legitimação da espiritualidade como uma dimensão da saúde oferecendo um oportuno contraponto ao modo como os cientistas sociais da religião usualmente empregam essa categoria e descrevem os fenômenos a ela associados. Para o antropólogo, a definição de espiritualidade sugerida por Paul Heelas (2005HEELAS, Paul et al. (2005), The spiritual revolution: why religion is giving way to spirituality. London: Blackwell.:6) sintetiza aspectos estruturantes do entendimento do termo compreendendo que a espiritualidade é uma forma subjetiva de existência do sagrado. Renée de la Torre (2016DE LA TORRE CASTELLANOS, Renée. (2016), “Presentación: la espiritualización de la religiosidad contemporánea”. Ciencias Sociales y Religión, 18(24):10-17.), em diálogo com Charles Taylor (2007) e Maria Julia Carozzi (1999CAROZZI, Maria Julia. (1999), A nova era no Mercosul. Petrópolis: Vozes.), contribui com uma definição semelhante a essa, em que a prática procura aludir a ações menos dogmáticas, distanciadas dos cânones e dogmas das religiões pautada na autonomização dos sujeitos “na busca por uma relação pessoal com o sagrado e com o transcendente, adensada pelo rechaço ao controle institucional e ao autoritarismo das instituições religiosas” (2016:10).

A Antroposofia, por sua vez, se encontra nesse bojo de espiritualidades que se consideram uma ciência espiritual por terem uma empiria científica e não uma religião. Edificada na Suíça, no início do século XX e idealizada por Rudolf Steiner, - filósofo e esotérico que a fundamentou no método fenomenológico da observação da natureza, elaborado por Goethe, no Romantismo alemão - considera o conceito de Bildung um mote terapêutico para as terapias antroposóficas, de acordo com as categorias nativas, destinadas ao corpo, à alma e ao espírito. Vale a pensa antecipar que entre os pietistas, o conceito de Bildung possuía uma conotação estritamente religiosa. Voltaremos ao assunto na segunda parte do texto, detalhando as fases da secularização do conceito.

No fluxo dessas terapias, a Antroposofia apresenta um contorno instigante. Os membros dessa ciência espiritual que, no Brasil, a priori, absorviam as práticas terapêuticas europeias, adaptando-as às questões culturais e climáticas, também produziam e exportavam terapias originalmente brasileiras com destino à Europa, em um movimento de fluxo contrário, do Sul para o Norte Global. O objetivo deste artigo é rever os encontros etnográficos no Brasil e na Europa, para compreender, nesse percurso, como se dá a transnacionalidade terapêutica, como as terapias brasileiras são levadas e reconhecidas no outro continente, e as de origem europeia são adaptadas ao clima e à cultura nacional, verificando o potencial decolonial desse fluxo.

Os dados foram registrados entre os anos 2011 e 2016, em uma etnografia multissituada em organizações sociais antroposóficas denominadas Ramos (do alemão Zweig). A descrição no Brasil se concentrou em dois Ramos: o Ramo Tobias na cidade de São Paulo (SP) e o Ramo Jatobá, em Botucatu (SP); na Europa, na parte francesa da Suíça, em Lausanne, o Branch Rose Croix (Ramo Rosa Cruz). Nesse percurso, identificamos quatro terapias mais claramente envoltas na experiência da transnacionalidade: as identificadas como nacionais e desenvolvidas no Brasil, como o Método Padovan, ou terapia neurofuncional, e o Panorama Biográfico; e as produzidas na Europa e aclimatadas aos trópicos, como a Euritmia Curativa e a Terapia Artística.

Escolhemos usar o termo “transnacionalidade”, um conceito caro a Antropologia da Religião, por possuir um potencial para compreender o duplo movimento de desterritorialização que questiona a fidelidade a um local ou a uma nacionalidade e, simultaneamente, leva a uma homogeneização cosmopolita das culturas híbridas (Oro, Steil; Rickli 2012ORO, Pedro Ari; STEIL, Carlos Alberto; RICKLI, João. (org.). (2012), Transnacionalização religiosa: fluxos e redes. São Paulo: Terceiro Nome. Coleção Antropologia Hoje. ) e também porque o termo está presente nas investigações com interface com a saúde.

O fenômeno da transnacionalidade religiosa com interface com a saúde já foi intensamente abordado nas pesquisas. Atualmente os artigos versam sobre a atual expansão e internacionalização do Santo Daime (Assis 2014ASSIS, Glauber Loures de; LABATE, Beatriz Caiuby. (2014), “Dos igarapés da Amazônia para o outro lado do atlântico: a expansão e internacionalização do Santo Daime no contexto religioso global”. Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 34(2): 11-35. ); os fluxos migratórios dos centros kardecistas, dos terreiros de umbanda e de candomblé e do ritual do Santo Daime, em Berlim, Hamburgo, Munique e demais cidades alemãs (Bahia 2015BAHIA, Joana. (2015), “E o preto-velho fala alemão: espíritos transnacionais e o campo religioso na Alemanha”. Revista del CESLA, nº 18: 181-21. Disponível em: Disponível em: http://www.redalyc.org/pdf/2433/243342822008.pdf . Acesso em: 07/11/18.
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, 2017BAHIA, Joana. (2017), “Religião e as fronteiras migratórias”. Revista Acadêmica & Licenciacturas. Ivoti, vol. 5, nº 2: 44-57, julho/dezembro. Disponível em: Disponível em: http://www.ieduc.org.br/ojs/index.php/licenciaeacturas/article/view/157/132 . Acesso em: 07/11/18.
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); as práticas sociais e terapêuticas da Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd) na Namíbia, África do Sul, Angola, Moçambique e Portugal (Rosas 2016ROSAS, Nina. (2016), “A Igreja Universal do Reino de Deus: ação social além-fronteiras”. Ciências Sociais Unisinos 52(1):17-26, jan./abr. Unisinos. Disponível em: Disponível em: http://www.revistas.unisinos.br/index.php/ciencias_sociais/article/view/csu.2016.52.1.03 . Acesso em: 07/11/18.
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); a Ayahuasca e o uso globalizado e a transnacionalizado nos ritos, igrejas, centros, festivais e encontros (Martini 2014MARTINI, Andrea. (2014), Ayahuasca e conhecimentos indígenas. Disponível em: Disponível em: https://neip.info/novo/wp-content/uploads/2015/04/martini_diversidade_uso_indigena_ayahuasca_2014.pdf . Acesso em: 07/11/18.
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); a Ayurveda no Brasil, considerando as (re)invenções e seus processos de transformação, agência e subjetivação (Alba 2015ALBA, Mariana Palmieri Brandão. (2015), Ayurveda no Brasil: trajetórias e (re)invenções. Florianópolis: Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade Federal de Santa Catarina.).

A maior parte da literatura nacional e estrangeira sobre a medicina e as terapias antroposóficas assume uma postura descritiva e avaliativa da eficácia das práticas (Ghelman 2017GHELMAN Ricardo. (2017), “Abordagem da Antroposofia na Pediatria”. JMPHC - Journal of Management and Primary Health Care. J Manag PrimHeal Care. 8(2): 233-265.; Benevides et al. 2017BENEVIDES, Iracema de Almeida; CAZARIN, Gisele; LIMA, Sebastian Jorge Flôrencio Ferreira de. (2017), “Antroposofia aplicada à Saúde em dez anos da Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares: aspectos históricos e considerações para sua implementação”. JMPHC - Journal of Management and Primary Health Care. J Manag Prim Heal Care. 8(2): 266-277.) sem abordar o fenômeno da transnacionalidade. Entre essas publicações, temos o artigo que descreve a Bildung - palavra-conceito oriunda do Romantismo alemão e noção de pessoa germânica - como mote terapêutico nas terapias do Panorama Biográfico e da Euritmia Curativa (Bastos 2015BASTOS, Raquel Litterio de; PEREIRO, Pedro Paulo Gomes. (2016), “A bildung como cura: a terapia biográfica na antroposofia do Brasil”. Debates do NER, ano 19, nº 33: 151-178., 2020).

Apesar do termo “transnacionalidade” estar vinculado à Antropologia da Religião e a Antroposofia se autodenominar uma ciência espiritual sem dogmas religiosos, as pesquisas no âmbito das ciências da religião que utilizaram a metodologia de análise de Benthall para dimensionar a religiosidade na Antroposofia, verificaram a existência de uma religião considerada implícita pelo autor (Stern 2017STERN, Fábio Leandro; DE FIORI MILANI, Bianca. (2017), “Análise de bibliografias antroposóficas de Rudolf Steiner por meio da metodologia de Benthall para religiões implícitas”. Revista de Estudios Históricos de la Masonería Latinoamericana y Caribeña, vol. 9, nº 1.). Na Ciência das Religiões, as religiões implícitas, nomenclatura cunhada na década de 1960 por Edward Baley, passaram a englobar termos próximos como “quasirreligião”, “pseudorreligião”, “pararreligião”, em menção aos elementos ou função religiosa em coisas que, usualmente, não são consideradas religiosas (Nesti 2005NESTI, Arnaldo. (2005), “Implicit Religion”, In: L. Jones (ed.). Encyclopedia of Religion. Farmington: Thomson Gale. ).

Entre os argumentos, Stern (2017STERN, Fábio Leandro; DE FIORI MILANI, Bianca. (2017), “Análise de bibliografias antroposóficas de Rudolf Steiner por meio da metodologia de Benthall para religiões implícitas”. Revista de Estudios Históricos de la Masonería Latinoamericana y Caribeña, vol. 9, nº 1.) menciona a compreensão de Staudenmaier (2014STAUDENMAIER, Peter. (2014), Between Occultism and Nazism: Anthroposophy and the Politics of Race in the Fascist Era. Leiden: Brill; Boston, vol. 17: 25-63.) que vê na Antroposofia uma variante do esoterismo europeu, fusionada por diversas correntes esotéricas. Por sua vez, Tolcheva (2013TONCHEVA, Svetoslava. (2013), “Antroposophy as Religious Syncretism”, SOTER: Journal of Religious Science, XLVIII: 84.) apresenta a Antroposofia como um sincretismo religioso centrado em uma forma particular de esoterismo cristão. E, ainda em um artigo clássico de Carl Clemen (1924CLEMEN, Carl. (1924), “Anthroposophy”. The Journal of Religion IV, nº 3: 281-292.), publicado no The Journal of Religions, da Universidade de Chicago, a Antroposofia é citada como uma nova forma da Teosofia.

Todavia, o que nos importa para este artigo é refletir como a transnacionalidade terapêutica da Antroposofia pode ser considerada decolonizadora. O antropólogo (segundo autor do artigo), ao definir a ação de decolonizar, inspira-se nos autores Santiago Castro-Gomez (2007CASTRO-GOMEZ, Santiago. (2007), “La Hybris del Punto Cero: Biopolíticas imperiales y colonialidad del poder en la Nueva Granada (1750-1810)”. Nómadas. Bogotá, nº 26: 247-250.), Ramón Grosfoguel (2002GROSFOGUEL, Ramón. (2002), “Colonial Difference, Geopolitics of Knowledge and Global Coloniality in the Modern/Colonial Capitalist World-System”. Review. Nova York, vol. 25, nº 3: 203-224., 2007GROSFOGUEL, Ramón. (2007), “The Epistemic Decolonial Turn: Beyond Political Economy Paradigms”. Cultural Studies, vol. 21, nº 2-3: 211-23., 2008GROSFOGUEL, Ramón. (2008), “Para descolonizar os estudos de economia política e os estudos pós-coloniais: Transmodernidade, pensamento de fronteira e colonialidade global”. Revista Crítica de Ciências Sociais. nº 80: 115-147., 2012GROSFOGUEL, Ramón. (2012), “Descolonizar as esquerdas ocidentalizadas: para além das esquerdas eurocentricas rumo a uma esquerda transmoderna descolonial”. Contemporânea - Revista de Sociologia da UFSCar. São Carlos, vol. 2, nº 2: 337-362.), Walter Mignolo (2000aMIGNOLO, Walter D. (2000a), Local Histories/Global Designs. Coloniality, Subaltern Knowledges, and Border Thinking. Princeton: University Press., 2000bMIGNOLO, Walter D. (2000b), “La colonialidad a lo largo y a lo ancho: el hemisferio occidental en el horizonte colonial de la modernidad”. In: E. Lander (comp.). La colonialidad del saber: Eurocentrismo y Ciencias Sociales. Perspectivas Latinoamericanas. Buenos Aires, CLACSO : 34-52., 2008MIGNOLO, Walter D. (2008), “Desobediencia epistemica: a opçao descolonial e o significado de identidade em política”. Cadernos de Letras da UFF. Dossiê: Literatura, língua e identidade, nº 34: 287-324.), Arturo Escolar e Walter Mignolo (2010ESCOBAR, Arturo; MIGNOLO, Walter. (2010), “Globalization and the decolonial option”. Londres; Nova York: Routledge.), Catherine Wash (2004, 2007a, 2009), Rita Laura Segato (2013b, 2012c, 2014b), Eduardo Restrepo e Axel Rojas (2010) para afirmar que para decolonizar é necessário abrir-se aos Outros encobertos pela lógica da colonialidade que os tornou menores, abjetos, desqualificados, segundo autor do artigo (2015).

Verificamos que há uma incipiência de publicações sobre a articulação entre a transnacionalidade e o potencial decolonial das terapias antroposóficas. É sobre isso que iremos nos debruçar no texto com base em uma revisão dos dados etnográficos. Na primeira parte do texto, situamos o debate da transnacionalidade decolonial e avançamos paulatinamente, desenvolvendo o conceito de Bildung enquanto mote terapêutico. Na segunda parte do artigo, descrevemos os encontros com as práticas terapêuticas nos fluxos da transnacionalidade.

Uma Bildung transnacional e decolonial?

A transnacionalidade terapêutica na Antroposofia pode ser considerada um projeto de Bildung decolonial? Partimos do conceito de transnacionalização de Capone et al. (2012 CAPONE, Stefania; MARY, André. (2012), “Las translógicas de una globalización religiosa a la inversa”. In: K. Argyriadis et al. (org.). En sentido contrario. Transnacionalización de religiones africanas y latinoamericanas. Marseille: IRD Éditions, :27-46. :30) e sua implicação de um duplo movimento, de desterritorialização e de “indigenização”, que questiona a oposição entre a fidelidade a um território local ou “nacional”, associado à reinvindicação de uma cultura pura, e o movimento unilateral de homogeneização que conduz ao cosmopolitismo das culturas híbridas ou creolizadas. O duplo movimento versa sobre território, entendido como uma relação de atores com o espaço vivido, percebido ao mesmo tempo enquanto espaço geográfico - o local e sua produção (Appadurai 1996APPADURAI, Arjun. (1996), Modernity at large - Cultural Dimensions of Globalization. Minneapolis: University of Minessota Press.) - e território nacional e suas fronteiras simbólicas, compartilhadas pelo conjunto identitário que se dá sobre um processo de desenraizamento quando se processa a desterritorialização, isto é, a mobilidade de sujeitos, de objetos, de ideias e de imagens. A produção desses imaginários transnacionais passa pelo desenvolvimento de redes que transcendem as fronteiras dos Estados e reinventam “nações” religiosas aptas a fornecerem matrizes de universalidade (Oro 2012ORO, Pedro Ari; STEIL, Carlos Alberto; RICKLI, João. (org.). (2012), Transnacionalização religiosa: fluxos e redes. São Paulo: Terceiro Nome. Coleção Antropologia Hoje. ).

Ainda segundo Oro (2009ORO, Pedro Ari et al. (org.). (2009), “Transnacionalização religiosa”, ano 10, nº 16.), a transnacionalização religiosa e terapêutica está situada no contexto das práticas e ideologias e aparece associada a outros domínios da vida social, em que fatores materiais e simbólicos influenciam constantemente os fluxos para além das fronteiras nacionais. O poder e o reconhecimento social dos atores são, por exemplo, diferentemente distribuídos, configurando relação assimétricas nessa trama de redes (Oro 2009), revelando intencionalidades.

Relembramos que o que é pertinente para este artigo é compreender como a Antroposofia brasileira organiza essa transnacionalidade por meio de redes de pessoas que se reúnem em torno de ideias ou de valores espirituais com base no mote terapêutico do desenvolvimento de uma Bildung, indagando se esse duplo movimento transnacional teria potencial para gestar uma gramática decolonial abrindo espaço para o aprendizado contínuo a partir do Outro não silenciado. Para isso, nos inspiramos nas teorias de Mignolo (2003MIGNOLO, Walter. (2003), Histórias locais/projetos globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Belo Horizonte: EdUFMG.) sobre uma gramática da decolonialidade mantendo uma postura desestabilizadora e decisiva na releitura dos construtos discursivos que moldaram obstinadamente o pensamento ocidental.

Um olhar apressado sobre a Antroposofia no Brasil sugeria, nos primórdios da etnografia, um fluxo decolonial. Essa percepção se dava em decorrência aos pequenos, progressos fomentados aqui e ali na Sociedade Antroposófica do Brasil. Progressos alicerçados nas bases da agricultura biodinâmica, na pedagogia Waldorf e na medicina antroposófica, em que o desconforto de uma transnacionalidade colonial já era motivo de debate entre os adeptos. Nesse desconforto, um dos debates estava situado na escolha e nos fluxos dos materiais preparados para agricultura biodinâmica. A austríaca Ana Primavesi, considerada a maior referência no assunto tanto no Brasil quanto na Europa, passou a substituir elementos europeus presentes nos compostos, como as bexigas de veados e a cascas de carvalho, com alguma resistência, por elementos nacionais, sugerindo uma mudança na mentalidade.

Nas escolas Waldorf, em um convívio com os professores e os pais de alunos no Ramo Jatobá, era habitual escutarmos críticas a utilização dos mitos nórdicos nos processos de educação infantil, suscitando debates acalorados sobre a importância dos mitos originários nacionais. Por último, as mudanças ocorridas na direção da Clínica Tobias, no Ramo Tobias, onde os trabalhos terapêuticos serviam de referência para as outras partes do país, durante a etnografia, apresentaram sinais de nacionalização da administração da clínica, associados a uma ampliação no mercado das terapias com a institucionalização do sistema terapêutico antroposófico no Sistema Único de Saúde (SUS) em 2006, situando a Medicina, a partir de 2011, no patamar das Racionalidades Médicas.

Esses eventos disparadores no levaram a questionar se seria a transnacionalidade terapêutica potente para mobilizadora para uma posição decolonial. Aníbal Quijano (2010QUIJANO, Aníbal. (2010), “Colonialidade do poder e classificação social”. In: B. de Sousa Santos; M. Paula Meneses (org.). Epistemologias do sul. São Paulo: Cortez :84-130.) explica que a lógica da “colonialidade” é um conceito distinto do de “colonialismo”, ainda que vinculado a ele. A colonialidade instruiria os poderes/instituições, os saberes/ciências, o ser/consciência, a estética/crença das populações não europeias inferiores, a conferir prestígio e sentido à Europa. Para Pereira (2015PEREIRA, Pedro Paulo Gomes. (2015), “Queer decolonial: quando as teorias viajam”. Contemporânea - Revista de Sociologia da UFSCar. São Carlos, vol. 5, nº 2, jul./dez.: 411-437.), é imprescindível despegar do eurocentrismo, de sua lógica e de seu aparato. Seria a Antroposofia capaz desse desapego?

Bildung como mote terapêutico

A Antroposofia chega à América Latina durante a Segunda Guerra Mundial, e no Brasil, em 1939. Na década de 1960, inauguram a primeira clínica terapêutica na América Latina e a primeira fora do continente europeu, a Clínica Tobias: dirigida pela médica antropósofa e brasileira Gudrum Krokel Burkhard, e localizada na cidade de São Paulo, no bairro de Santo Amaro. Durante a etnografia, o conceito de Bildung, de uma formação de si mesmo, enquanto um mote terapêutico, assumiu distintas agências. Na Clínica Tobias e no Ramo Tobias, o conceito surgia em situações de pompa, mais proferida pelos convidados estrangeiros em explicações e argumentações da empiria espiritual. No interior, na comunidade da Demétria, no Ramo Jatobá, o conceito quase não era mencionado e surgia nos diálogos traduzido, simplificado, apresentado com “experiência de vida”. Na Europa, o conceito era compreendido com certa banalidade, em desuso, apesar de ainda carregar forte apelo entre os adeptos.

Bildung é considerado um dos conceitos mais fundamentais da modernidade, apesar de ambíguo no bojo da pedagogia alemã, propiciando uma diversidade de usos e interpretações. Outros conceitos germânicos sobre educação não têm os ecos e as ressonâncias que cercam essa noção. Georg Bollenbeck (2012:162) o compreende como um processo que pode ser pensado como ativo, passivo e reflexivo, individual e mais raramente coletivo (destaque do autor). No que se refere ao seu significado, está impregnado por distintas concepções: místico-pietistas, filosóficas, estéticas e pedagógicas (Alves 2019ALVES, Alexandre. (2019), “A Tradição Alemã do Cultivo de si (Bildung) e sua Significação Histórica”. Educação & Realidade, Porto Alegre, vol. 44, nº 2: e83003. http://dx.doi.org/10.1590/2175-623683003
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).

Historicizando a palavra-conceito Bildung, é possível notar suas fases seculares. Cunhada no Romantismo alemão para falar sobre a importância da formação de um indivíduo, um povo, uma língua (Berman 1984BERMAN, Antoine. (1984), “Bildung et Bildungsroman”. Le temps de la réflexion, vol. 4. Paris: Flammarion.), e na formação de uma nação (Suarez 2006SUAREZ, R. (2005), “Nota sobre o conceito de Bildung (formação cultural)”. Kriterion [online], vol. 46, nº 112: 191-198. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/kr/v46n112/v46n112a05.pdf . Acesso em: 26/11/12
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), é portadora do status da noção de pessoa da cosmologia germânica (Duarte 2003DUARTE, Luiz Fernando Dias. (2003), “Indivíduo e pessoa na experiência da saúde e da doença”. Ciência e Saúde Coletiva, vol. 8, nº 1: 173-183.). Há um leque de associações com a palavra que, para essa filosofia da humanidade (Humanitätsphilosophie), se exprime segundo uma concepção organicista e que deve muito às ciências da vida e em particular à botânica: o desenvolvimento humano é concebido como uma semente que cresce e floresce segundo suas próprias forças e disposições (AusBildung), adaptando-se às restrições do seu meio ambiente (AnBildung). Bildung expressa, sobretudo, “o processo de formação cultural” (Suarez 2006:132).

Entretanto, consideramos importante destacar que a noção de Bildung tem uma origem anterior, religiosa e mística. Antes do século XVIII, ela era o equivalente à noção de imitação ou Imitatio (Bild), a Imitação de Jesus Cristo, herdada do monge holandês Thomas Kempis (1379-1471). Na primeira inscrição, a Bildung está no centro da mística alemã, e designa o movimento pelo qual o cristão dá uma forma à sua alma, esforçando-se para nela imprimir a imagem de Deus. O conceito se aproxima do luteranismo, assumindo um papel central na doutrina e na pedagogia dos pietistas no século XVII (Lichtenstein 1966LICHTENSTEIN, Ernst. (1966), Zur Entwicklung des Bildungsbegriffs von Meister Eckhart bis Hegel. Heidelberg: Quelle & Meyer.).

Georges Gusdorf (1991), ao pesquisar os movimentos religiosos europeus, em particular, ingleses e alemães, constatou o papel inovador na exploração do Eu na esfera católica, o Molinismo espanhol e o Quietismo francês no domínio protestante e no Pietismo alemão que gostaríamos de destacar. Nos escritos de Mestre Eckhart, Bildung já aponta para a ideia de uma promessa a ser realizada e de um esforço do indivíduo para merecê-la, afirmação que retomaremos nas discussões posteriores.

Delory-Momberger (2011DELORY-MOMBERGER, Christine. (2011), “Narrativa de vida: origens religiosas, históricas e antropológicas”. Tradução Maria da Conceição Passeggi. Revista Educação em Questão, Natal, vol. 40, nº 26: 31-47, jan/jun. ) demonstra que o Pietismo foi o que buscou a maior interioridade nos processos de autocontrole do Eu. Na atitude pietista, ainda segundo o autor, o crente, ao descrever uma narrativa do próprio itinerário espiritual, fazia um exame rigoroso de sua fé cotidianamente, fortalecendo o espírito humano das criações enganosas das forças do mal. O interior de um pietista era considerado um labirinto que ocultava e confundia em suas dobras as luzes e as sombras, o bem e o mal. Buscava-se uma maior interioridade nos processos de autocontrole do Eu (Gusdorf 1991:225).

A segunda fase secular do conceito Bildung, ocorre no final do século XVIII, pela ação de pensadores do Iluminismo alemão como Lessing, Herder, Humboldt, Schiller e Goethe: o conceito perde a referência a uma divindade pessoal, mas não o alcance de uma realização de cunho universal, inscrito em um pensamento da totalidade, de movimento da formação de si pelo qual o ser, próprio e único (Eigentümlich), que constitui todo homem, manifesta suas disposições e participa assim da realização do humano como valor universal, tornando-se o que ela é ainda hoje para a cultura alemã: uma prática da formação de si, o cuidado com o desenvolvimento interior, que considera qualquer situação, qualquer acontecimento como ocasião de uma experiência de si e de um retorno reflexivo sobre si mesmo, na perspectiva do aperfeiçoamento e de uma completude do ser pessoal (Delory-Momberger 2011).

Nos Bildungsroman, romances de formação, as narrativas se aproximam do mote terapêutico da Antroposofia, pois a saga do aprendiz está alicerçada em três perspectivas de vida e conduta, a saber: Bildung como trabalho, compreendido com base em uma ideia de formação ligada à prática; Bildung como viagem ou jornada, relacionado à experiência de alteridade; Bildung como tradução, isto é, como um “lançar-se além-de-si” (Suarez 2006). Nos relatos dos interlocutores terapeutas formados fora do Brasil, essas perspectivas se destacam ainda mais, quando na autonarrativa surgiu um enaltecimento do compromisso com o autodesenvolvimento espiritual e profissional.

Essa concepção de formação baseada em regras e o cumprimento das mesmas perpassavam também as confrarias estudantis duelistas, incumbidas da formação de seus jovens, preparando-os para a vida pública, em complemento da educação especializada e orientada para uma área científica que se recebe nas universidades, com a função de cunhar um “código comum de conduta e sentimento para as classes altas alemãs” (Elias 1997ELIAS, Norbert. (1997), Os Alemães: a luta pelo poder e a evolução do habitus nos séculos XIX e XX. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. :58). Para Wilhelm von Humboldt (2012HUMBOLDT, Wilhelm. (2012), Theorie der Bildung des Menschen. In: H. Hastedt, (ed.). Was ist Bildung? Eine Textanthologie. Berlin: Reclam, :93-99.), o humanismo como ideal normativo coloca-se acima dos corpos sociais, dos sexos, das confissões religiosas e das nações. Assim, formar-se e educar-se significa se religar à imagem da humanidade dentro de si.

Havia na época uma tentativa de formação cultural e, mesmo, pessoal, em que as pessoas desse grupo formassem uma identidade de pertencimento. Contudo, esse conhecimento mútuo se dava principalmente pela reputação, ou seja, a necessidade e o reconhecimento do cumprimento das regras e costumes aceitos formalmente por uma elite aristocrática preocupada, principalmente, em preparar seus sucessores. Tal preparação estava inserida em um ambiente de formação de valores morais e políticos pautados em uma ideia de cultura e comportamento (Silva 2013SILVA, Marlon Ribeiro. (2013), Experimentando Goethe: o romance “Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister” como desencadeador de reflexão e humanização em um cenário de formação humanística na área da saúde. São Paulo: Dissertação de mestrado, Universidade Federal de São Paulo - Escola Paulista de Medicina.). Humboldt e Goethe afirmavam que o indivíduo deve ser cultivado e visto como síntese simbólica de toda a humanidade. Sem o cultivo de si, não poderia haver individuação (Alves 2019ALVES, Alexandre. (2019), “A Tradição Alemã do Cultivo de si (Bildung) e sua Significação Histórica”. Educação & Realidade, Porto Alegre, vol. 44, nº 2: e83003. http://dx.doi.org/10.1590/2175-623683003
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).

A complexidade da palavra-conceito Bildung influencia a forma e o pensamento sobre as práticas terapêuticas da Antroposofia, pois, com o enfraquecimento dessa referência cosmológica e organicista, o mote terapêutico assume agências diferentes na transnacionalidade. Nas próximas linhas, nos empenhamos em descrever os passos da transnacionalização dessas terapias. Para isso, elencamos as quatro terapias que se destacam. São elas: o Método Padovan, o Panorama Biográfico, a Terapia Artística e a Euritmia Curativa. As duas primeiras terapias foram elaboradas no Brasil seguindo o fluxo da periferia para o centro. As duas outras fazem o percurso mais habitual, do Norte para o Sul Global, e buscam formas de aceitação e adaptação em culturas distintas da europeia.

O Método Padovan

Iniciamos com o Método Padovan por ser a terapia mais explicitamente elaborada no Brasil - desenvolvida pela pedagoga Beatriz Padovan, no ano de 1964. Beatriz era professora na Escola Rudolf Steiner, em São Paulo, que, ao descobrir que alguns de seus alunos eram portadores de dislexia, buscou por mais informações sobre essa condição e acabou fazendo o curso de Fonoaudiologia da Escola Paulista de Medicina com a intenção de ajudá-los em seu desenvolvimento. Segundo os relatos dos interlocutores antropósofos, só encontrou as respostas para seus questionamentos nas teorias de Rudolf Steiner, especificamente na Pedagogia Waldorf. Foi esse processo que fundamentou sua terapia corporal nas concepções esotéricas sobre o sistema neuropsicomotor do homem, ou o “andar, falar e o pensar” elaborados por essa ciência espiritual.

O Método Padovan se inspirou também nas teorias do americano Temple Fay, criador da abordagem intitulada Reorganização Neurológica, cultivando estreita relação com as universidades e a ciência convencional. Essa informação ganha maior destaque entre os profissionais que não são adeptos à Antroposofia. Em paralelo, o primeiro consultório para a realização da terapia foi inaugurado em 1975. O reconhecimento da prática pelo antropósofos europeus só ocorreu em 1978, quando o Dr. Otto Wolf, germânico médico antroposófico, assistiu à palestra da Sra. Padovan sobre problemas orais na escola e a convidou para apresentar a mesma palestra em Stuttgart, na Alemanha. Nesse mesmo ano, a terapeuta proferiu duas palestras e um workshop e, no ano seguinte, lançou o primeiro curso de formação do Método Padovan na Europa, antes mesmo de ter ocorrido no Brasil.

A partir do reconhecimento do método pela sede da Antroposofia, na Suíça, ofertaram-se inúmeros cursos de formação. Foram realizados cursos em 12 países (Alemanha, Suíça, Áustria, França, Espanha, Itália, Inglaterra, Grécia, Índia, Marrocos, Tunísia e Canadá). Atualmente existem sete Associações espalhadas pelo mundo: Assimp (Internacional e sediada no Brasil), Syncronicite (França), AQMP (Canadá), ASS (Alemanha), Cecamp (Rio de Janeiro), Cebamp (Bahia), Canomp (Rio Grande do Norte). Aproximadamente quatrocentos profissionais da área de saúde se formam no Método Padovan todo ano.

A intenção deste artigo não é fazer um compilado do trabalho terapêutico, mas destacar os principais pontos com potência para elucidar o desenvolvimento da transnacionalidade. O Método Padovan é dividido em duas partes: uma abordagem corporal seguida de um trabalho oral. A abordagem corporal se baseia no fato de que o ser humano passa por um desenvolvimento ontogenético constituído por determinadas etapas (rolar, rastejar e engatinhar), movimentos naturais no processo natural de maturação do sistema nervoso central. A terapia procura recuperar os movimentos naturais, seguindo-se então o trabalho oral com base nas funções reflexo-vegetativas de respiração, sucção, mastigação e deglutição. Essas funções são todas trabalhadas numa mesma sessão, uma vez que são consideradas pré-linguísticas e preparam os mecanismos da linguagem articulada (Gurfinkel 2010GURFINKEL Viviane K. (2010), “Fonoaudiologia: uma visão sob o prisma da reorganização neurofuncional - Método Padovan”. Disponível em: Disponível em: http://www.profala.com/arttf52.htm . Acesso em: 01/01/18
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).

Beatriz Padovan adequou essas descobertas para a ontologia antroposófica do andar-falar-pensar, utilizando categorias nativas como a organização do Corpo Etérico, responsável pelos padrões de pensamento, as estruturas inconscientes e somáticas do indivíduo, e acrescentou elementos práticos e estéticos que ampliaram o método original. Ao reorganizar essas etapas, por meio de exercícios corporais e sequenciais, a terapeuta refaz a estruturação atributiva filogeneticamente implantada no ser humano e realizada pelo Corpo Etérico. Esses exercícios determinariam os padrões de pensamento, as estruturas inconscientes e somáticas do indivíduo. Refazer as etapas reorganizaria o Eu do indivíduo (Moraes 2007MORAES, Wesley Aragão de. (2007), Medicina Antroposófica: um paradigma para o século XXI. São Paulo: ABMA.). O objetivo era reeducar o corpo por meio de uma educação estética, reconhecendo no processo uma proposta de formação, uma Bildung corpórea.

Nas sessões etnografadas na Suíça e na França, os exercícios terapêuticos, realizados sempre com crianças, objetivavam a recuperação dos movimentos naturais que eram trabalhados em conjunto com a recitação de poemas e canções consideradas encorajadoras de atitudes nobres que as levassem ao máximo do seu esforço de autoaperfeiçoamento, alinhando a terapia a uma formação estética e moral. Na França, o trabalho terapêutico era mais contido nos aspectos morais, mas a estética poética e musical permanecia, em uma clara alusão a educação dos sentidos. Para os suíços adeptos à Antroposofia, o gosto pelo esforço é algo a ser aprendido como necessidade de sobrevivência. Era habitual ouvir relatos dos interlocutores sobre as viagens para o topo das montanhas nevadas levando apenas um canivete suíço e os filhos pequenos para que aprendessem a lição.

Apesar do Método Padovan ser amplamente reconhecido, dentro e fora do Brasil, ele ganhou notoriedade internacional somente após o seu reconhecimento pela Antroposofia europeia, como se a terapia elaborada fora das fronteiras culturais só pudesse ser legitimada em um fluxo internacional, sugerindo um crivo e um alinhamento com essa ciência espiritual. O reconhecimento, no entanto, não preservou as origens da terapia ou talvez não houvesse a intenção de preservar. Nos diálogos com os suíços, nenhum reconhecia o Método Padovan como uma terapia elaborada no Brasil. O reconhecimento só ocorria quando o terapeuta que atuava na Suíça era também brasileiro.

Entre os franceses, não adeptos à Antroposofia, mais especificamente em Mulhouse, na Alsácia, fronteira com a Suíça e sede do Goetheanum, em Dornach, ou seja, com relativa proximidade geográfica, ocorria outro fenômeno. Os terapeutas do Método Padovan não reconheciam a terapia como algo elaborado pela Antroposofia e muito menos como tendo uma origem brasileira. O trabalho não se apoiava nas categorias nativas, mas realizava os mesmos movimentos e utilizava as mesmas técnicas.

A transnacionalidade terapêutica assume também contornos e agências distintas entre brasileiros e europeus, apresentando fronteiras porosas e borradas sobre a origem, as teorias que a fundamentam, os aspectos espirituais e, principalmente, sobre quem a pode executar. Na Europa a terapia é realizada por um leque mais amplo de profissionais: psicólogos, professores, fonoaudiólogos e fisioterapeutas, enquanto no Brasil a terapia é reserva de mercado dos profissionais da fonoaudiologia. Nesse mercado brasileiro são raríssimas as menções à origem antroposófica da terapia. O conceito de Bildung não é mencionado na França e no Brasil quando desvinculado da Antroposofia. O discurso científico dos terapeutas brasileiros evita enaltecer os aspectos espirituais da terapia, enquanto se beneficiam de sua notoriedade internacional.

O Panorama Biográfico

O Panorama Biográfico é uma terapia antroposófica que objetiva realizar uma narrativa do percurso de vida dos indivíduos e o processo de formação nas diversas etapas da vida, estimulando a observação do seu processo de autoformação, uma Bildung (Bastos 2015, 2018). Chamado também de terapia biográfica, está alicerçada na teoria de arquetipicidade cíclica da vida humana a partir da elaboração dos setênios (ciclos de sete anos). O médico holandês Bernand Lievegoed é considerado o que mais se dedicou em detalhar as possibilidades terapêuticas desse conhecimento. No entanto, a teoria só se torna terapia no Brasil a partir das iniciativas da médica Gudrum Krokel Burkhard, a mesma que fundou a Clínica Tobias na década de 1960, difundindo essa terapia somente a partir da década de 1970 e realizando-a depois de 1993 (Moraes 2007MORAES, Wesley Aragão de. (2007), Medicina Antroposófica: um paradigma para o século XXI. São Paulo: ABMA.).

No Brasil, a terapia desenvolveu uma autonomia na forma de conduzir o trabalho. Essa autonomia gerou uma abertura para que outros terapeutas, adeptos ou não à Antroposofia a instrumentalizassem, ampliando consideravelmente a oferta e o formato. Em todos os casos, aqui no Brasil, ou na Europa, é realizada com a mesma fundamentação teórica, os ciclos da vida balizada em setênios. A diferença está na técnica de condução. Enquanto alguns usam a pintura em aquarela, outros utilizam a música e as notas musicais. A narrativa de si mesmo é sempre o objetivo, e o leque de possibilidades é amplo.

Apesar das possibilidades de aplicação serem amplas, a cosmologia dos setênios é respeitada igualmente no Brasil como na Europa, mas somente os adeptos se apoiam nas categorias nativas referentes à organização dos quatro corpos: físico, etérico, astral e o eu, que conteria todos os outros corpos. Segundo o referencial da literatura nativa, o Panorama Biográfico é uma terapia que parte do quarto corpo, o “Eu”, e que envolve um tipo de Bildung de autocultivo, centrado na auto-observação do desenvolvimento da existência do indivíduo, dos passos percorridos, do que foi vivido, conquistado (os fatores aquisitivos), herdado (fatores atributivos), realizado e do que não foi (Moraes 2007MORAES, Wesley Aragão de. (2007), Medicina Antroposófica: um paradigma para o século XXI. São Paulo: ABMA.). Os setênios têm uma forte conotação moral de adequar as ações conforme a faixa etária a partir de um esforço consciente em ser disciplinado e ritmado para obter maior vitalidade e longevidade.

Aspectos mais esotéricos da cosmologia como o ciclo de evolução planetária que envolve, por analogia, o desenrolar dos setênios, por meio de metamorfoses que levam ao desabrochar de elementos constitutivos do indivíduo, são pouco abordados. A noção mitopoética da história de vida é apresentada como trilha carregada de sentido e de processos arquetípicos em constante, independentemente do continente. Apesar de o trabalho poder ser realizado por um leque de profissionais com equipes multidisciplinares e existirem vários núcleos de formação, a Clínica Tobias é a referência considerada mais legítima porque segue as orientações do Goetheanum, legitimando os terapeutas que a seguem. A certificação desses terapeutas, no entanto, está emancipada das diretrizes e do controle do Goetheanum, apesar de manterem o que se considera “uma relação de respeito” em relação as diretrizes da Sede Oficial, em Dornach (Suiça).

A origem europeia da elaboradora da terapia, a médica Gudrum Krokel Burkhard, nos estimula a refletir sobre a possibilidade de ter facilitado a transnacionalidade. Contudo, a nacionalidade da origem da prática só é comentada no Brasil. Para os antropósofos europeus, a descendência europeia da inventora assume uma agência que legitima a terapia, como se estivesse assegurado que a iniciativa possuísse as bases do esforço tão desejado para a obtenção do sucesso que objetiva a cura. Na Europa, está vinculada ao nome de Gudrum, mas a terapia é considerada nativa da Suíça.

A Terapia Artística

A Terapia Artística é considerada uma “terapia da alma” e se fundamenta principalmente na observação fenomenológica da natureza elaborada pelo intelectual alemão Johann Wolfgang von Goethe, em sua obra Doutrina das Cores (Farbenlehre). No Brasil, essa terapia apresenta um fluxo de adaptação, competição e hierarquização entre os terapeutas de acordo com o país de origem da formação.

Sobre a adaptação, os profissionais se esforçam sobremaneira em aclimatar as orientações das cores destinadas a determinadas reflexões, como as estações do ano no Brasil. As pinturas destinadas ao período do Advento do Natal, por exemplo, deveriam estimular recolhimento e a reflexão ética. Realidade diferente do calor e da exuberância das cores que temos no mesmo período. Nesse descompasso climático, a terapia, elaborada em um continente com características muito diferentes, exige outras interpretações com as mesmas cores. Ocorre o fenômeno da aclimatação entre as cores e as pinturas, enfatizando as sutilezas das transformações da paisagem regional com uma variação sutil da temperatura. O inverno rigoroso da Europa é capaz de proporcionar maiores contrastes, facilitando a observação do despontar e do fenecer da natureza.

Os terapeutas artísticos, assim como os demais, também têm uma formação específica, havendo uma celeuma sobre o país de origem. Há uma divisão não explícita que separa os formados na Europa dos formados no Brasil, localizando-os em uma rede que lhe confere status ou não. Os formados na Inglaterra, na Alemanha e na Suíça não são considerados apenas terapeutas, mas artistas plásticos, sendo a terapia uma das funções que esse artista poderia desenvolver. No Brasil, a formação de terapeutas é totalmente vinculada à saúde. A experiência do internato é outro componente responsável pelo sucesso do terapeuta, uma vez que em nosso país não há vivência como no exterior.

O objetivo dessa terapia é contribuir para que os pacientes compreendam os processos cósmicos na natureza, ativando uma percepção maior dos processos naturais, do equilíbrio de força, de formação estética e movimento da vida. A Terapia Artística teria uma função pedagógica em uma formação dos sentidos voltada para a Bildung dos indivíduos, em que a experiência estética possibilitaria uma potencialização na ampliação de nossa sensibilidade moral, ou seja, uma “educação ético-estética” (Hermann 2008:26 apud Mollmann 2010MOLLMANN, Andrea Dorothee Stephan. (2012), “Bildung na contemporaneidade: qual o sentido?” V CINFE. Congresso Internacional de Filosofia da Educação.).

No entanto, aclimatar a terapia nos leva a pensar se o “gosto pelo esforço” não teria relação com as ideias fora do lugar, de Roberto Schwarz, em que a entrada do liberalismo no Brasil do século XIX converte-se nos trópicos, gerando uma ideologia de “segundo grau”, perdendo o caráter universalista e passando a defender interesses particulares. Nos diálogos com as terapeutas formadas na Europa, a edificação de uma Bildung está intimamente atrelada novamente ao esforço de exercitar os sentidos para além das formas cartesianas: horas de dedicação que levavam os terapeutas a se curarem antes de passarem a curar a alma dos demais. Os formados no Brasil não.

A Euritmia Curativa

A Euritmia Curativa é uma terapia do corpo e é uma metamorfose da Euritmia Artística. Essa arte do movimento teve seu início em 1912, mas a euritmia já existia como palavra desde a época clássica, (em grego, eurythmia, εγώρυθμικής), ela foi definida em 440 a.C. como o equilíbrio de forças atuantes no corpo humano; eu (εγώ) mais rhythmos (ρυθμικής) = ritmo equilibrado, belo e harmonioso. Para os antropósofos, é na Grécia Antiga que se constatou a origem de duas formas artísticas fundamentais para a euritmia: a Apolínica e a Dionisíaca, a primeira tem um carácter objetivo, é clara e transparente; a segunda é subjetiva e jorra das profundidades da natureza volitiva do homem. Como arte, a euritmia torna visível a linguagem poética, musical e a prosa. Ao falarmos, por exemplo, modelaríamos o ar com os nossos órgãos da fala - laringe, boca, lábios. Assim, na linguagem poética existiriam vários aspectos que poderiam ser exprimidos além da palavra falada - o ritmo, o sentimento, as imagens, a atmosfera, o conteúdo específico expressado pelo poeta ou pelo compositor (Kirchener-Bockholt 2009). Na poesia, mais ainda que na prosa, a linguagem é elevada à sua maior expressão artística. Não só o conteúdo e as palavras são importantes, como também elementos como o ritmo, a rima e a cadência. Por meio da euritmia, os sons, o ritmo e a atmosfera de um poema poderiam tornar-se visíveis.

A Euritmia Curativa tem um abrangente poder de resolver um amplo leque de doenças (Ama 2015AMA. (2015), O que é euritmia? Associação para a Medicina Antroposófica. Disponível em: Disponível em: http://www.a-ama.com.pt/ama/ter_euritmia.php . Acesso em: 15/02/15.
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). A causa do adoecimento estaria no processo civilizatório, na mecanização das diversas áreas do trabalho e na perda dos movimentos naturais ricos em interioridade. Um movimento mecânico poderia reprimir o fluxo dos movimentos permeados de elementos anímicos e espirituais, relevantes para o fortalecimento da vontade própria (Kirchener-Bockholt 2009KIRCHENER-BOCKHOLT, Margarete. (2009), Elementos Fundamentais da Euritmia Curativa. São Paulo: Editora Antroposófica.).

A formação dos terapeutas da Euritmia Curativa, assim como as demais terapias antroposóficas, está envolta de uma áurea de autossuperação e esforço pessoal, ao ponto de demonstrar a Bildung no corpo. Com poucos especialistas no Brasil, em comparação com as demais terapias, em 2016, surgiu o primeiro espaço de formação nacional, com o objetivo de “criar uma nova Formação em Euritmia Terapêutica, um polo para a toda a América Latina” (Abre 2016ABRE. (2016), “Formação em Euritmia Terapêutica”. Associação Brasileira dos Euritmista. Disponível em: Disponível em: http://www.euritmia.org.br/news/default.html . Acesso em: 07/11/18.
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). A disputa e a hierarquização que ocorre entre os profissionais da Terapia Artística também ocorre na Euritmia Curativa. Os que receberam formação pelo Goetheanum gozam de um status mais elevado dentro do grupo, eles teriam alcançado um patamar de esforço que teria lapidado seus corpos e sua espiritualidade.

Os relatos dos interlocutores sobre os percalços na formação no Goetheanum são enaltecidos e funcionam como medalhas de honra pela persistência. Adoecer e se autocurar por meio do próprio esforço é de grande distinção. Ser rejeitado inúmeras vezes antes de ser aceito na formação na Suíça é considerado um traço de imaturidade espiritual superado. Jamais é questionado como submissão cultural. A Bildung se metamorfoseia disciplinarmente o estado corpóreo forjado em um princípio estético e moral. Como se fosse necessário se tornar dócil para tornar o corpo útil. Uma terapia da postura corporal em relação à vida, em analogia com a superação da língua, percebido com um obstáculo importante de ser transposto e capaz de demonstrar determinação pessoal.

No trabalho terapêutico, os fonemas germânicos, indizíveis em língua portuguesa, que ora são minimizados ou pronunciados somente pela terapeuta na Euritmia Curativa durante a sessão, carregam a agência de estreitar as diferenças culturais. Os fonemas são as marcas indeléveis das fronteiras culturais entre os germânicos e os brasileiros, e sofrem insistentemente adaptações. Repetidos diversas vezes, têm um valor curativo depositado na intensidade de como é pronunciado. Os exercícios fonéticos podem se estender por indeterminadas sessões semanais (Kirchener- Bockholt 2009), pois é na prática exaustiva que se compreende a importância da disciplina: forjar o corpo com atenção plena e o gosto pelo esforço. A adaptação linguística se aclimata como na terapia artística. Quando necessário, ficam reservados ao domínio da terapeuta que já demonstrou sua evolução espiritual em uma Bildung corporificada (Bastos 2020BASTOS, Raquel Litterio de. (2020), “Uma bildung corporificada na cura antroposófica”. Dossiê Saúde, Corpos e Saberes, nº 1, vol.15: 137-147. ).

Considerações finais

A Antroposofia ainda exerce uma lógica eurocêntrica no Brasil? Revendo os dados etnográficos, podemos ousar dizer que sua origem europeia ainda confere prestígio colonial, apesar dos avanços. Quando, por exemplo, no Método Padovan a terapia se fortaleceu por intermédio de um homem europeu para ganhar notoriedade no exterior, hierarquizando os gêneros e as nacionalidades estabelecendo relação assimétricas. Ou quando o Panorama Biográfico utiliza setênios anacrônicos oriundos de uma concepção conservadora e que pretende imputar uma estética comportamental e é aceito mais facilmente porque o organizador é oriundo de uma linhagem europeia. E, na aclimatação das cores na Terapia Artística, continua a se enaltecer a reclusão invernal em um país tropical, sugerindo normas de comportamento e saberes, bem como objetivando o disciplinamento dos corpos na Euritmia Curativa. Refutamos a hipótese que a transnacionalidade, nesse caso específico, não tem um potencial decolonial.

Os contornos revelados sobre a transnacionalidade terapêutica na Antroposofia nos leva a pensar que não há de fato uma proposta de universalizar a Bildung com um caráter libertário e decolonial, uma vez que o processo pode ser pensado como ativo, passivo e reflexivo, individual e (mais raramente) coletivo. O conceito de Bildung em sua origem é uma promessa a ser realizada com base em um esforço individual, que não pode ser considerado ausente em povos de outros continentes, muito menos mensurado pela régua de outra cultura. O conceito de Bildung por si carrega uma estrutura ambivalente de uma racionalidade que, por um lado, conduz a emancipação ao esclarecimento do homem e de sua sociedade e, por outro, a coerções sociais e formas de repressão autoritária (Dalbosco & Eidam 2009:57-8, apud Mollmann 2010).

Para decolonizar é necessário abrir-se aos Outros encobertos pela lógica da colonialidade que os tornou menores, abjetos, desqualificados (Pereira 2015PEREIRA, Pedro Paulo Gomes. (2015), “Queer decolonial: quando as teorias viajam”. Contemporânea - Revista de Sociologia da UFSCar. São Carlos, vol. 5, nº 2, jul./dez.: 411-437.), e a transnacionalidade apresentada neste artigo revela uma lógica subjacente aos empreendimentos coloniais. Uma lógica que valoriza e hierarquiza diferenças culturais, geopolíticas, raciais e de gênero, controlando o conhecimento e as pedagogias do self nas práticas de cura. Se essa lógica constrói uma Bildung transnacional, não a constrói em um formato decolonial, pois ainda pode-se perceber as relações de poder classificando e hierarquizando, características que os torna cúmplice do universalismo, do sexismo e do racismo.

Do disciplinamento dos corpos à sujeição dos saberes, existe uma lógica moderna hegemônica de classificação do mundo e das pessoas no mundo (Miglievich-Ribeiro 2014MIGLIEVICH-RIBEIRO, Adelia. (2014), “Por uma razão decolonial: Desafios ético-político-epistemológicos à cosmovisão moderna”. Civitas, Porto Alegre, vol.14, nº 1: 66-80.), que são hoje, segundo Aníbal Quijano (2010QUIJANO, Aníbal. (2010), “Colonialidade do poder e classificação social”. In: B. de Sousa Santos; M. Paula Meneses (org.). Epistemologias do sul. São Paulo: Cortez :84-130.), os efeitos dessas relações de poder que objetiva a internalização da subalternidade nas estruturas subjetivas do colonizado expressas nas cenas de aceitação e divulgação do Método Padovan na Europa, quando um homem europeu conduz a terapia e a legitima ao mesmo tempo que aniquila a sua origem. No disciplinamento dos corpos dos terapeutas e no prestígio somente quando a formação é realizada no exterior. Na adaptação das terapias como forma de sujeição dos saberes a uma lógica híbrida e etnocêntrica travestida de alteridade. A Terapia Artística e a Euritmia Curativa geram em sua beleza estética a classificação do mundo e das pessoas que o habitam. Dos que sabem, viram e experimentaram um mundo com distinção.

Essas considerações não determinam o devir da Antroposofia no Brasil, muito menos questiona a eficácia de sua medicina e de suas terapias, pois o desejo entre os adeptos é pujante para o desapego da lógica eurocêntrica. Mas qual será o futuro da Antroposofia brasileira sem os aparatos que a legitimam?

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    06 Abr 2021
  • Aceito
    20 Out 2021
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