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A face e a bem-aventurança. A pessoa cristã pentecostal nos ritos funerários

The face and the Bliss. The Pentecostal Christian Person in Funeral Rites

Resumos

Resumo: Durante o velório, os evangélicos de algumas Igrejas Assembleia de Deus em Magé, Rio de Janeiro, desenvolveram um mecanismo de avaliação da condição do morto por meio da observação da face. Quando um morto tem uma “face feliz”, sua condição de bem-aventurança é confirmada. De maneira diferente, quando tem uma “face triste e apavorada”, seguem debates com base na expressão do rosto visando compreender de que forma a trajetória moral em vida pode explicar aquele traço distintivo estampado no cadáver. Neste artigo, exploro a relação entre corpo e alma no rito de morte dos pentecostais pensando-os como componentes para a construção da subjetividade da pessoa cristã pentecostal ao mesmo tempo em que aponto características do rito de morte pentecostal.

Palavras-chaves:
morte; pessoa pentecostal; corpo; ritual


Abstract: During the wake, evangelicals from some Assemblies of God Churches in Magé, Rio de Janeiro, developed a mechanism for evaluate the condition of the dead through observation of the face. When a dead person has a “happy face”, his bliss status is confirmed. In a different way, when he has a “sad and terrified face”, debates follow based on the expression of the face in order to understand how the moral trajectory in life can explain that distinctive feature stamped on the corpse. In this article, I explore the relationship between body and soul in the Pentecostal rite of death, thinking them as components for the construction of the subjectivity of the Pentecostal Christian person, while pointing out characteristics of the Pentecostal rite of death.

Keywords:
death, Pentecostal person; body; ritual


Introdução

Em um pequeno texto publicado em 1921, Marcel Mauss narrou um ritual de culto aos mortos, realizado pelos habitantes das tribos do rio Tully, que se desenvolvia por meio de gritos, cantos e danças. O morto em pessoa assistia ao seu funeral como cadáver dissecado. Um velho era conduzido por feiticeiros para olhar a “necropsia primitiva” do cadáver. O ancião deveria extrair do corpo do morto o objeto mágico que provocara a sua morte. A cerimônia prosseguia com a viúva agitando galhos e folhagens e com o grupo reunido prometendo vingar a morte do parente.

Com a análise dessa e de outras pequenas narrativas, Mauss argumentou que as expressões corporais realizadas nos ritos funerários são sociais e obrigatórias. Os movimentos performados durante os ritos não estão apenas pautados na biologia dos corpos que gritam, cantam e mexem. São formas de ação simbólica do grupo, “são sinais de expressões entendidas, quer dizer, são linguagem” (Mauss 1921MAUSS, M. (1921), “L’expression obligatoire des sentiments (rituels oraux funéraires australiens)”. Journal de psychologie, 18: 425-434.:153).

O ponto de partida deste artigo também é a avaliação de cadáveres. Mais especificamente a avaliação da face dos mortos em velórios de Igrejas Assembleias de Deus (doravante AD) em Praia de Mauá, Magé, Rio de Janeiro. Pode-se afirmar que a avaliação da face está ancorada em um processo histórico ocidental mais amplo a partir do qual os sentidos foram sendo culturalmente constituídos para operar através da primazia da visão (Le Breton 2016LE BRETON, D. (2016), Antropologia dos sentidos. Petrópolis: Vozes. :16) e, dotar o rosto de status especial, como fonte da individualidade (Le Breton 2019:59).

Por meio da educação, o indivíduo percebe sensorialmente o mundo em um exercício povoado de incoerências e diferenças que expressam suas sensibilidades individuais. Assim, se por um lado a face evoca a pessoa, sendo o centro de sua singularidade, as percepções que se tem dela evidenciam relações nas quais aquele que vê está envolvido em trajetória pessoal.

De acordo com os pentecostais, quando um morto tem uma face feliz, sua condição de bem-aventurança está confirmada. Quando tem uma face triste e apavorada, o defunto pode estar condenado. Essas duas possibilidades avaliativas estão ligadas a um modelo moral que garante apenas duas possibilidades de destino após a morte: o céu ou o inferno. O destino póstumo de cada pessoa está diretamente ligado à atitude individual de adesão à fé cristã com todos os comprometimentos morais que essa escolha impõe. Ou seja, o fim de cada indivíduo depende das escolhas feitas em vida - o que acarreta uma preocupação exacerbada com o viver e com os viventes. Durante o velório, eles debatem de que forma a trajetória moral em vida pode explicar aquele traço distintivo estampado no cadáver.

Embora a face sem vida seja alvo de avaliação no velório, o rosto do morto não é analisado apenas com base na pele, nos ossos e nos músculos paralisados.1 1 Meus interlocutores não levam em consideração diversos fatores que podem provocar consequências na expressão fixada na face do morto. Por exemplo: o uso de medicamentos em doentes hospitalizados, traumas físicos provocados por acidentes e maquiagem funerária. Ele é cindido e vivenciado de acordo com significados e práticas culturais específicas (Mauss 1936MAUSS, M. (1936), “Les techniques du corps”. Journal de Psychologie, XXXII, ne, 3-4, 15 mars - 15 avril.) e, por isso mesmo, o centro da reflexão proposta aqui trata de relações que dizem respeito a sujeitos específicos. Articularei tanto uma visão sobre o corpo quanto uma ideia de subjetividade, ambas culturalmente construídas (Rezende 2008REZENDE, C. B. (2008), “Corpo e emoção na reprodução de vidas: uma análise da revista gestante”. 32º Encontro Anual da Anpocs.:2) e integradas a uma visão cosmológica.

A avaliação da face do morto evidencia aspectos que tomo como relacionados à categoria de “pessoa cristã pentecostal”: a trajetória moral do falecido, a cosmologia e a doutrina das igrejas, além de fatores afetivos e emocionais. Meu argumento é que a construção de um consenso coletivo a respeito do destino póstumo está no cerne do velório que como etapa ritual instrumentaliza parâmetros classificatórios e valoriza determinadas características da pessoa.

O debate empreendido aqui se insere numa discussão mais ampla a respeito da vivência da morte entre os evangélicos2 2 Uso aqui o termo “evangélicos” como maneira de englobar a diversidade das variações desse fenômeno religioso. Os estudos a que faço referência analisam tanto protestantes históricos (Campos, 2016) como pentecostais (Novaes, 1983) e neopentecostais (Pinezi, 2009) brasileiros. . De acordo com alguns destes estudos, o modelo de morte evangélico se caracterizaria por um ritual simplificado no qual os vivos não se preocupam com os mortos nem com a morte (Campos 2016CAMPOS, L. (2016), “Protestantes brasileiros diante da morte e do luto: observações sobre rituais mortuários. Rever, 16 (03): 144-173.). Algumas evidências apontadas seriam a supervalorização da vida após a morte (Novaes 1983NOVAES, R. (1983), Os crentes: razões para viver e para morrer. São Paulo: Editora Hucitec.), o abandono dos túmulos e dos cemitérios, a inexistência de mecanismos de interação com os mortos (Pinezi 2003PINEZI, A. K. M. (2003), A vida pela ótica da esperança: um estudo comparativo sobre a Igreja Presbiteriana do Brasil e a Igreja Internacional da Graça de Deus. São Paulo: Tese de Doutorado em Antropologia Social, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade de São Paulo. e 2009PINEZI, A. K. M. (2009), “O sentido da morte para protestantes e neopentecostais”. Paideia, maio-ago. 19 (43): 199-209.). Estas caracterizações são diferenciais no contexto brasileiro no qual o modelo generalizado de convivências entre vivos e mortos e de trânsitos entre mundos é recorrente. Ao explorar a morte pentecostal, percebi especificidades da sua preocupação com os mortos e do seu modelo de rito funerário. Assim, o artigo tem, por um lado, a intenção de apresentar certas características da sua visão a respeito da morte.

Ao mesmo tempo, utilizo dos debates contemporâneos da antropologia do cristianismo para reforçar algumas especificidades deste modelo de rito. Mafra (2011MAFRA, C. (2011), “Saintliness and Sincerity in the Formation of the Christian Person. Ethnos”. Journal of Anthropology, 76: 448-468.) argumentou que o pentecostalismo produz indivíduos mais autoconscientes e disciplinados. Tais características foram elencadas considerando a matriz cultural brasileira na qual a herança histórica de santidade do catolicismo opera em conjunto com o modelo moral de sinceridade protestante. Esta discussão é tributária dos debates internacionais realizados por Keane (2002KEANE, Webb. (2002), “Sincerity, modernity and the protestants”. Cultural Anthropology, 17(1): 65-92.) e Robbins (2011ROBBINS, Joel. (2011), “The obvious aspects of pentecostalism: ritual and pentecostal globalization”. In: M. Lindhardt (ed.). Practicing the faith. The ritual life of pentecostal - charismatic Christian. New York: Berghahn Books. :49-67.) que assumem que o sucesso do pentecostalismo se deve a sua capacidade de se adaptar às realidades locais acionando corpo, intenções, linguagem e pensamento dos adeptos.

A noção de pessoa cristã pentecostal tomada como parâmetro para analisar a face dos mortos relaciona elementos cosmológicos e doutrinários e dialoga com as subjetividades e trajetórias dos fiéis. Um outro ponto a se considerar é que há uma lacuna de estudos que discorrem a respeito dos rituais de morte pentecostais sobretudo quando nos referimos a questão das subjetividades na antropologia do cristianismo. No entanto, o estudo de Robbins (2011ROBBINS, Joel. (2011), “The obvious aspects of pentecostalism: ritual and pentecostal globalization”. In: M. Lindhardt (ed.). Practicing the faith. The ritual life of pentecostal - charismatic Christian. New York: Berghahn Books. :49-67.:49) é uma trilha para esse debate, já que, para o autor, o alto grau de atividade ritual pentecostal funciona como mecanismos de integração social que se estende por todas as áreas do seu cotidiano. Como defendo, a avaliação da face do morto é parte de um rito no qual princípios e valores cristãos e características da pessoa pentecostal são negociados na construção de consensos.

Os dados etnográficos foram obtidos ao longo dos anos de 2004 a 2011 em visitas a igrejas pentecostais tradicionais. As 5 igrejas nas quais realizei pesquisa eram frequentadas por indivíduos de classes populares,3 3 Dados do IBGE Cidades (2010) confirmam que a população de Praia de Mauá é composta por indivíduos de classes populares dos quais 67% trabalhadores sobrevivem com renda informal e o rendimento médio dos que têm ocupação é menor que dois salários-mínimos. lideradas por homens com a maior parte da membresia composta por mulheres e idosos. Nove velórios4 4 Ao longo dos anos, frequentei semanalmente as congregações e o cemitério para trabalho de campo. Nos intervalos desses períodos, visitei esporadicamente as igrejas para aprofundar dados. foram observados, e 27 interlocutores foram ouvidos individualmente nas igrejas e nas casas em entrevistas abertas com roteiro que procuravam reconstituir eventos relacionados à finitude.5 5 Entrevistar enlutados é um enorme desafio para os pesquisadores. Foi preciso longo tempo de interação antes que pudesse conversar sobre as experiências de morte. A maior parte das entrevistas foi realizada com mulheres, dada a identificação de gênero e a minha inserção de pesquisadora no Círculo de Oração. Os dois velórios apresentados têm desfechos diferentes que me permitirão apontar nuances das performances acionadas e questionar as relações entre as práticas, as representações e as subjetividades.

As fontes documentais utilizadas são materiais denominacionais aos quais tive acesso frequentando a “Escola Bíblica Dominical” e o cemitério em Finados (quando estes distribuem folhetos aos não crentes) - ocasiões nas quais também ouvia explicações a respeito dos temas. Busquei material em páginas institucionais, principalmente da Casa Publicadora das Assembleias de Deus (CPAD).

Antes de entrar na apresentação dos velórios em si, é preciso compreender que os pentecostais da AD compreendem que cada sujeito ao nascer torna-se responsável por sua própria vida. Atuando no mundo a partir do seu “livre arbítrio”,6 6 “Liberdade que o ser humano tem de fazer escolhas, tornando-se, consequentemente, responsável por elas e por seus respectivos resultados […]. O livre-arbítrio é inerente ao homem, o qual não poderia ser julgado, jamais, se as suas decisões fossem involuntárias, e ele fizesse o que não desejasse pelo fato de ser movido por uma força estranha, alheia à sua consciência e vontade”. Disponível em: https://portal.rbc1.com.br/licoes-biblicas/baixar-licao/cod/506. Acesso em: 26/09/2019. o ser vivente pode tomar decisões com liberdade e de acordo com sua vontade.7 7 Autonomia e liberdade como sinônimos de “boa morte” também aparecem em outros contextos etnográficos tais como nos cuidados paliativos estudados por Menezes e Barbosa (2013:2657). Noções de consciência tranquila, cumprimento dos deveres, pedidos de perdão apareceram de forma relacional, ou seja, em relação aos que ficam vivos e foram essenciais para pensar a questão do limite entre a liberdade, o livre arbítrio e os padrões morais. Se desejar assumir-se como pecador e praticar a fé visando à salvação eterna, o cristão deve confessar os seus pecados - fazer uma autoanálise - e construir uma trajetória de vigilância preparando-se para a eternidade.

É comum ouvir nas igrejas evangélicas que o cristão “vive no mundo, mas não é deste mundo”. É no tempo-lugar alongado e infinito da eternidade que cada criatura de Deus deve cumprir seu curso. A pessoa cristã vive um tempo no espaço terreno embora o objetivo central da sua existência seja a eternidade. Na perspectiva pentecostal, cada um é responsável pela própria salvação, mesmo que participe de uma comunidade de fiéis e que esta esteja envolvida coletivamente na determinação dos parâmetros a serem alcançados. Ou seja, “o indivíduo que se basta a si mesmo continua sendo o princípio, mesmo quando age no mundo” (Dumont 1986DUMONT, L. (1986), Essays on individualism: modern ideology in anthropological perspective. Chicago: University of Chicago Press.:40).

O velório pentecostal será examinado como um intervalo ritual8 8 O rito de morte pentecostal se divide em etapas: velório, enterro e luto. Logo que uma morte ocorre, uma rede de solidariedade é formada. Às formalidades burocráticas do estado brasileiro somam-se ao ritual religioso realizado pelos pentecostais. no qual os vivos informados de seus códigos culturais e simbólicos operam classificações e ponderações com base em uma perspectiva situada. Os rituais funerários são momentos especiais, separados do cotidiano (Douglas 1973DOUGLAS, M. (1973), Purity and Danger. An analysis of the concepts of pollution and taboo. New York: Routledge & Kegan Paul Ltda.) e divididos em fases (Van Gennep 1924VAN GENNEP, A. (1924), Les rites de passage. Étude systématique des rites de la porte et du seuil, De l’hospitalité De l’adoption, de la grossesse et de l’accouchement De la naissance, de l’enfance, de la puberté De l’initiation, de l’ordination, du couronnement Des fiançailles et du mariage Des funérailles, des saisons, etc. Paris: Librairie Stock.). Ao longo da sua realização, elementos carregados de sentidos simbólicos são performados, a fim de solucionar determinadas demandas do grupo. A separação entre vivos e mortos e a mudança de status do morto são pontos centrais que dão início ao cerimonial e que precisam gerar explicações para as transformações em curso (Rappaport 1999RAPPAPORT, R. A. (1999), Ritual and Religion in the making of Humanity. New York: Cambridge University Press.). No rito, o corpo é um símbolo, um elemento articulador de percepções e de classificações (Turner 1967TURNER, V. W. (1967), The forest of symbols: aspects of Ndembu ritual. New York: Cornell University Press.).

Visando elucidar o conceito de “pessoa cristã pentecostal” que está presente no ato de avaliar a face do morto, a minha argumentação se dividirá da seguinte forma. Primeiro, para contextualizar, procurarei debater que a cosmologia de corte evangélica estabelece uma incomunicabilidade entre o mundo dos vivos e dos mortos, além de definir no instante da morte o destino eterno do morto. Esse primeiro momento será essencial para compreender “as tramas de sentido” (Le Breton 1992LE BRETON, D. (1992), La sociologie du corps. Paris: Presses Universitaires de France.:32) nas quais se insere o rosto pentecostal. O segundo passo será explorar a avaliação da face como um mecanismo central durante o velório para a definição de status do morto. Nesse ponto será importante considerar que, embora haja uma conduta moral esperada por meio da prática da doutrina, a santidade e a sinceridade são instâncias subjetivas que não podem ser certificadas pelo grupo, o que sugere uma ideia de adaptação às demandas específicas dos enlutados. Por último, o debate centra-se na subjetividade do morto procurando compreender o intrincado jogo entre corpo e alma que ganha sentidos a partir da ênfase na vida eterna. No rito de morte evangélico, o corpo precisa ser definitivamente despojado após o velório, ou seja, o corpo enterrado é abandonado. O morto que dali ressurge tem a mesma aparência, os mesmos traços distintivos que tinha quando viveu.

Cosmologia de corte e incomunicabilidade com o morto

Os pentecostais da AD compreendem a morte como um evento irreversível diante do qual não existem possibilidades de negociação com o sagrado em favor dos que partiram. Essa perspectiva da imutabilidade da situação do morto se deve ao esquema binário de orientação simbólica que pode ser mais bem compreendido pela comparação com o modelo de morte católico.9 9 Embora no universo religioso brasileiro haja outras perspectivas religiosas nas quais há trânsitos entre esferas e relacionamentos entre vivos e mortos, opto por utilizar o catolicismo como recurso contrastivo.

O sistema de orientação espaço-temporal do cristianismo se constituiu privilegiando a perspectiva alto e baixo, o que orientou a dialética dos valores cristãos. Assim surgiram o céu e o inferno, e se traçarmos uma reta entre eles está a terra. Contudo, entre o segundo e o quarto séculos, os cristãos começaram a refletir a respeito da situação das almas que aguardavam o julgamento final. O purgatório surgiu como um local intermediário onde alguns pecadores poderiam receber a salvação sofrendo um período de provação (Le Goff 1981LE GOFF, J. (1981), La Naissance du Purgatoire. Paris: Gallimard .:17). A inserção do purgatório nesse esquema foi essencial para que os ritos católicos fossem construídos com base em uma série de possibilidades de mudança no status.

Os ritos de morte católicos brasileiros têm mecanismos de intercessão dos vivos em relação aos mortos e possibilitam a mudança do local onde permanecem as almas. Recuperando as etnografias que tratam da morte entre católicos, é possível compreender que as velas acesas no cemitério diante dos túmulos servem para iluminar os caminhos dos mortos (Reesink 2012REESINK, M. L. (2012), “Quando lembrar é amar: tempo, espaço, memória e saudade nos ritos fúnebres católicos”. Etnográfica, 16 (2): 365-386. :368). As rezas são mecanismos de intercessão pelos falecidos e servem para lembrar e se comunicar com eles (Reesink 2009REESINK, M. L. (2009), “‘Rogai por nós’: a prece no catolicismo brasileiro à luz do pensamento maussiano”. Religião e Sociedade, 29 (2): 29-57.:50).

Já no entendimento pentecostal, a alma nasce no instante da concepção do feto e é eterna deslocando-se no espaço e no tempo por meio do mundo dos vivos (terra) e do mundo dos mortos (céu ou inferno). Todavia, embora sejam cristãos, os pentecostais concebem o céu e o inferno como espaços incomunicáveis e intransponíveis. A morte do corpo é o instante limite a partir do qual a alma se liberta do biológico (deixa a terra) e define seu destino imutável, ou céu, ou inferno.

O modelo cosmológico pentecostal é dual e trabalha por oposição. Os pastores entrevistados explicaram que o inferno é o local do sofrimento eterno - lá haverá angústia, sofrimento e tristeza. O estudo “Inferno: mito ou realidade”10 10 Disponível em: http://www.cpadnews.com.br/blog/esdrasbentho/cultura-crista/29/inferno:-mito-ou-realidade.html. Acesso em: 9/12/2019. explica as três funções desse espaço: “foi criado para que Satanás e seus demônios recebam o justo castigo pelas suas maldades”; é o “último e definitivo lar daqueles que rejeitam a Jesus e praticam a maldade”; “é uma manifestação da justiça de Deus, que recompensará os justos com o céu e castigará os maus com o Inferno”.

O céu e o inferno são percebidos como instâncias separadas e valorados com base em recursos simbólicos de oposição tais como bem e mal; felicidade e tristeza; gozo e dor. Da mesma forma, os mortos são divididos entre esses espaços utilizando-se como critério valores morais advindos de uma lógica ascética que deve se manifestar no cotidiano do fiel.11 11 Entre as principais crenças e práticas das AD figuram: “ênfase na espiritualidade espontânea; resistência e afastamento do sistema mundano; transformação e mudança social dos fiéis; ênfase no Poder do Espírito Santo, com o falar em novas línguas; ênfase na santificação; ênfase em práticas como jejum, oração e louvor” (Majewski 2010:31). Alguns exemplos classificatórios desse exercício são bom e mau; justo e injusto; santo ou pecador.

A noção de incomunicabilidade dos planos faz com que o evento do falecimento seja vivido como momento de falência biológica do corpo e como fim da interação dos vivos com a pessoa que partiu. A morte biológica interrompe a expressividade comunicativa ativa da pessoa. Ou seja, o sistema representacional determina que aquele que deixou de conviver fisicamente por conta da falência do corpo também teria de deixar de se comunicar com os vivos porque a ordem estrutural do mundo não permite esses prolongamentos.

Não há como negar que, durante o velório, o choque inicial provocado pela perda de alguém com quem se tem vínculos é reforçado por uma cosmologia que impede qualquer outra forma de interação com o morto. Assim, o momento de encontro com o corpo do defunto é um momento limite onde o vivo deve construir-se em relação ao incomunicável.

Acredito que o fato de a cosmologia evangélica romper os espaços de comunicação entre vivos e mortos exerceu enorme influência em sua forma de ritualizar a morte em um contexto brasileiro no qual essa comunicação é naturalizada. A análise dos seus ritos de morte confirma a particularidade da experiência evangélica.

Em nível espacial, a cosmologia prevê locais de atuação separados para vivos e mortos que só se reencontrarão depois do Juízo Final. Os pastores argumentaram que os vivos estão na terra e os mortos estão dormindo.12 12 Para meus interlocutores existe um período de espera para A volta de Cristo (o apocalipse). Os crentes que estiverem vivos nesse evento serão arrebatados e irão para o céu. Já os mortos — e que permaneceram aguardando o apocalipse dormindo — participarão do Juízo Final. Afirmaram que “os mortos não escutam, não falam, não se comunicam com os vivos”. Ao nível das relações, não existem mecanismos representacionais de encontro com os mortos. Eles afirmam que os vivos não podem interferir na situação do morto com orações. A salvação da alma é responsabilidade individual e não há qualquer possibilidade de romper a escolha realizada pelo sujeito a partir do seu livre arbítrio.13 13 No catolicismo desenvolveram-se possibilidades de interferência dos vivos no destino dos mortos. O surgimento dos sufrágios por volta do século XII operou um acréscimo de poder para os vivos reforçando tanto a coerência das comunidades quanto o poder da igreja (Le Goff1993). No Brasil, as irmandades eram “associações corporativas no interior das quais se teciam solidariedades fundadas nas hierarquias sociais” (Reis 1991:51). Os seus associados tinham “enterro decente para si e membros da família, com acompanhamento de irmãos e irmãs de confraria, e sepultura na capela da irmandade”.

Algumas características do rito evangélico reforçam essas afirmações com dados etnográficos. No cemitério, eles não intercedem pelos mortos; não acendem velas; em geral, não retornam para visitar as sepulturas. Todavia, mesmo com todos esses cortes e incomunicabilidades, a preocupação com o falecido persiste embora se expresse de maneira a procurar certificar-se da condição do morto para a eternidade.

“Face feliz, triste ou apavorada?”

Os velórios que acompanhei aconteceram na capela Santo Antônio, do Cemitério Público Municipal de Praia de Mauá. Geralmente, os parentes e os amigos do falecido chegam à capela antes do defunto, como ocorreu no velório de Miguel.14 14 Miguel (54 anos, pedreiro) era presbítero da AD da Itinga e morreu de “ataque cardíaco”, em 2009. Cheguei à capela por volta de 22 h e permaneci até 1h 30 da madrugada. O sepultamento foi realizado às 9h da manhã. Logo que o caixão chegou, a face do morto foi exposta. Essa foi a primeira oportunidade de os familiares visualizarem o corpo e foi um momento de grande emocionalidade. No meio do grupo reunido, pude observar choro, abraços e extrema comoção. A primeira pessoa que se aproximou do caixão foi a esposa, seguida dos filhos. Ela colocou uma bíblia ao lado das mãos do morto. Depois de alguns toques no corpo e lágrimas, outros enlutados foram se aproximando do caixão para olhar rapidamente. Um silêncio profundo marcou esse momento. Ouvi muitos narizes fungando.

Como a capela era pequena e havia cerca de 50 pessoas, a maior parte dos presentes permaneceu do lado de fora. Aqueles que entraram para ver o morto o fizeram em silêncio, aguardando a vez para se posicionar diante do caixão. De maneira geral, essa aproximação concretiza o desejo de visualizar o cadáver, cumprindo a função de materializar a morte. Mas não só. Aproximar-se do corpo é um exercício para “ver o morto”. A visão como sentido está embebida em processos sociais de modelagem da pessoa. Se diferentes culturas têm formas específicas de traduzir a unicidade do rosto por meio do desenvolvimento de padrões de expressividade (Le Breton 2017LE BRETON, D. (2017), “Antropologia da face: alguns fragmentos”. Revista de Ciências Sociais, 47: 153-169.:162), durante o velório dos meus interlocutores, a primazia da visão na avaliação moral da face fica evidente.

O caixão com Miguel estava posicionado no centro da capela, apoiado em uma mesa retangular ao redor da qual as pessoas circulavam. Em frente à cabeça do morto havia uma coroa de flores. Segui o movimento dos enlutados e me aproximei para observar o cadáver. Em seu rosto havia um véu. Ele vestia camisa amarela, gravata e um terno marrom. O caixão era de cor clara e forro branco. Cravos brancos e amarelos enfeitavam o corpo. O nariz estava tamponado com algodão, os olhos e a boca fechados.

Em entrevistas, os enlutados me contaram que é nessa fase do rito que se avalia o semblante sem vida buscando nele dados a respeito do destino póstumo da pessoa. O hábito de avaliar a face do morto revela a centralidade do tema vida eterna nos ritos de morte pentecostais. Os debates realizados a respeito da trajetória do morto, de sua moralidade, do céu ou do inferno, da felicidade ou do sofrimento são discussões que se derivam dessa temática. É a expectativa que se tem a respeito do destino do sujeito na eternidade que vai inclusive conduzir ao tipo de solução para o luto com base no equilíbrio das emoções que podem gerar saciedade ou provocar grande frustração no caso da consideração da condenação eterna de um ente querido, por exemplo.

Um morto evangélico tem uma “face feliz” justamente por ser um salvo. Já um morto não crente tem uma “face triste e apavorada”. Ao se atestar uma “expressão serena” reconhece-se imediatamente a salvação daquele que partiu, e os comentários a esse respeito são feitos entre os irmãos trazendo à tona certa “saciedade” emocional - um misto de felicidade e tristeza. Já a “face triste e apavorada” amplifica a inquietação sentida levando os vivos a uma enorme ansiedade e tristeza.

Em geral, depois de se afastar do caixão e sair da capela, alguns enlutados iniciam comentários a respeito do que perceberam no rosto. Tais diálogos costumam ser contidos para não ofender os familiares mais próximos. Presenciei esse tipo de avaliação em 3 velórios dos quais participei, além de ter ouvido a respeito em diversas entrevistas. Nas rodas de conversa que se formam durante o período de espera “pela saída do corpo” para o sepultamento, é comum que se contem histórias do morto e que também se argumente a respeito do seu destino.

Por exemplo, Valéria15 15 Valéria (45 anos, vendedora de cosméticos) estava desviada da AD da Itinga. Eu soube do velório (em 2008) por intermédio das senhoras do Círculo de Oração. Cheguei à capela por volta de 23h e permaneci até o sepultamento. O culto fúnebre foi realizado pelo pastor da AD em Todos os Santos a pedido de sua mãe. morreu vítima de atropelamento. Ela havia participado da igreja na juventude tendo se afastado do templo na vida adulta. Embora o corpo da morta estivesse com visíveis sinais do trauma,16 16 Um dos olhos da morta estava roxo e uma faixa foi colocada a fim de evitar que outros ferimentos da cabeça ficassem aparentes. duas senhoras que a conheciam desde a infância, e com as quais eu conversava durante a madrugada, concordavam que havia sinais de sofrimento em seu rosto. Elas se preocupavam com o destino da morta argumentando se ela teria tido tempo para se arrepender dos seus pecados já que não recuperou a consciência antes de morrer.

No culto fúnebre de um “ímpio ou desviado”,17 17 Expressões utilizadas para classificar aqueles que não fazem parte da igreja. como me explicou pastor Marcos,18 18 Marcos (64 anos) era pastor na AD da Rua 23. Em entrevista realizada 2005, procurei questioná-lo a respeito do perfil do salvo e do condenado, além de pedir explicações a respeito da dinâmica dos cultos fúnebres. não se deve tocar no assunto do destino do morto. “Evitamos aumentar o sofrimento dos familiares” e “seria antiético” fazer afirmações já que ninguém pode ter certeza se uma pessoa foi salva. Nessas ocasiões, segue-se a mesma lógica de todos os velórios: cantando, lendo a bíblia e orando pelos familiares. No entanto, nos dois velórios de não crentes dos quais participei, percebi uma ênfase no tema da conversão como oportunidade de ida para o céu, uma estratégia de prática eficiente acionada pelos fiéis com o objetivo de evitar tensões19 19 Adiante aprofundarei este ponto. (Keane 1997KEANE, Webb. (1997), “Religious language”. Annual Review of Anthropology, 26 (1):47-71.). Foi justamente o que ocorreu no enterro de Valéria, quando o status da morta não foi mencionado.

Os debates sobre o destino póstumo com base na avaliação do rosto do morto vão ser realizados em uma análise que considera a trajetória em vida e o instante da morte como momento de definição do seu status eterno. Os detalhes da conduta moral do falecido são conhecidos por aqueles que conviveram com o morto que observam a sua expressividade facial com base em certas expectativas. Nesse caso, o que se vê no semblante inerte parece confirmar um certo “julgamento moral” feito ainda no decorrer de sua vida. Mas o que baliza essa avaliação?

O resultado da salvação na vida do crente deve envolver uma expectativa de “transformação” em etapas. A primeira é o momento de aceitação a Jesus no qual o converso é considerado redimido de seus pecados. O segundo momento se evidencia no cotidiano de santificação e exige uma atitude de separação em relação aos prazeres da vida terrena e dedicação a obra de Deus. O último momento é a glorificação que só ocorrerá no céu.

Para os pentecostais, “a teologia e a experiência religiosa são uma coisa só” (Contins 2002CONTINS, M. (2002), “Pentecostalismo e umbanda: identidade étnica e religião entre Pentecostais negros no Rio de Janeiro”. Interseções, 2: 83-98.:87). Acreditam na salvação pela fé que envolve a aceitação do sacrifício de Cristo na cruz e que o comportamento guiado por uma moral estrita é fator de demonstração dessa salvação. Essa moral se assenta principalmente em uma interpretação fundamentalista literal da bíblia.

Há uma série de normas doutrinárias previstas como ideais para a conduta de um pentecostal. A já tradicional pesquisa Novo Nascimento realizada na década de 1980 demonstrou em números que a AD era a igreja evangélica com maior rigor moral dentre as comunidades arroladas nas respostas dos entrevistados. O índice de intenção ficava em torno dos 60% quando se tratava de analisar a homoafetividade e o adultério. Os pesquisadores descreveram a existência de uma “moral generalizada” de contenção da sensualidade que recai sobre ambos os sexos e que diz respeito a um compromisso intenso com a perspectiva da família. Critica-se o consumo de álcool e drogas, a presença em bailes e festas tais como carnaval, assim como são incentivados roupas e costumes castos (Fernandes 1998FERNANDES, R. C. et al. (1998), Novo nascimento: os evangélicos em casa, na política e na igreja. Rio de Janeiro: Mauad.:86 e 117). Esses mesmos padrões morais foram confirmados por mim durante o trabalho de campo. Os pentecostais preocupavam-se com o comprimento de roupas e cabelos, apresentação pública, preservação da família nuclear e conjugal, padrões de sexualidade rigorosos e limites de frequentação de pessoas e espaços.

Por exemplo, no caso da morte de Valéria, ouvi Gilmar20 20 Gilmar (18 anos, estudante). argumentando que ela “gostava de uma cervejinha”, ao passo que Edivaldo21 21 Edivaldo (27 anos, pescador). Participava do grupo de jovens da AD de Todos os Santos tocando violão. afirmou que ela sempre usava “shorts curtos”. Tais juízos de valor embasados no comportamento e na aparência pública foram emitidos quando estávamos sentados no banco da praça, ao lado da capela, aguardando o enterro e conversando sobre temas aleatórios. Parte da conversa que se desenvolveu ali, versava sobre a preocupação que os enlutados tinham com o destino da morta - o que se traduzia em uma recuperação de certos detalhes conhecidos por eles de sua trajetória.

Ao mesmo tempo, os interlocutores frisaram que não é a moralidade que determina o status eterno de uma pessoa, e sim a aceitação do sacrifício de Cristo pela humanidade por meio do autorreconhecimento como pecador. Todavia, as normas doutrinárias levam um indivíduo a ser reconhecido pelos seus pares como capacitado para alcançar o reino celestial. Ou seja, é o cumprimento dos preceitos morais que confirma e atesta publicamente o “rompimento com o mundo” por meio da adoção de uma nova etiqueta comportamental após a “conversão”. Como bem frisou Taylor (1989TAYLOR, C. (1989), Sources of the Self: The Making of the Modern Identity. Cambridge: Harvard University Press.:29), a afirmação da vida cotidiana como expressão de um padrão de moralidade específico afeta a performance do indivíduo no espaço público já que é percebida de maneira relacional. Os enlutados me explicaram que, se as normas doutrinárias forem descumpridas repetidamente, considera-se que o morto pode estar condenado já que não representou publicamente o padrão de “rompimento com o mundo” imposto pela conversão.

A situação eterna do crente pode se alterar a qualquer momento já que a conversão precisa ser constantemente praticada. A atitude contrita, a ascese deve ser colocada no centro do viver e retomada de maneira cuidadosa e vigilante (Taylor 1989TAYLOR, C. (1989), Sources of the Self: The Making of the Modern Identity. Cambridge: Harvard University Press.:26). A possibilidade de mudança na condição eterna do crente é premente. Se um fiel se desviar, ele se tornará passível de punição; se um desviado se arrepender também poderá ser salvo; e se um ímpio passar a crer será salvo. A fé é fundamental para determinar a sua condição e é atestada por meio dos comportamentos cotidianos.

A condição eterna só é consolidada no instante da morte quando a alma deixa o corpo e dirige-se a eternidade. Essa compreensão levou alguns fiéis a não opinarem a respeito do destino dos falecidos. Já a maior parte dos entrevistados reconheceram a salvação ou a condenação com base na análise dos comportamentos dos seus conhecidos ou parentes - o que denominei de “avaliação moral”.

O caminho do inferno (...) é largo e espaçoso. É tudo ao contrário do caminho do céu. Você pode fazer o que você quiser sem prestar conta a ninguém, nem a Deus. (...). Por exemplo... tudo, tudo. Você pode matar, roubar, se prostituir, pode fazer tudo o que você quiser. O caminho é largo e no final te espera o lago de fogo.22 22 Entrevista realizada 2005 com Alessandra (28 anos, vendedora de loja), na AD em Suruí. Ela me contou a respeito da morte da avó (“era uma pessoa muito difícil”) e do avô (“era um crente fervoroso e muito amado”).

A avaliação da moralidade do morto é um tema muito controverso e varia entre o reconhecimento de uma “ideologia da santidade e da sinceridade” (Mafra 2014:174). Ou seja, embora haja um ideal moral de santidade que demanda certa padronização dos corpos por meio da adoção dos princípios doutrinários, existem outros fatores tais como a relacionalidade e o desconhecimento por outrem da interioridade ou da sinceridade daquele que morreu que inviabilizam uma padronização na avaliação moral. Essa multiplicidade de fatores levou alguns enlutados a terem opiniões distintas a respeito do que informa a face do morto. Há sempre possibilidade de vereditos diferentes a respeito da sua trajetória ou mesmo parâmetros éticos e emocionais distintos utilizados na avaliação. Dependendo da proximidade com o morto e do teor dos relacionamentos, é possível que seja mais difícil assumir a possibilidade de condenação do falecido.

A discordância nos parâmetros em jogo na avaliação pode levar a debates discretos. Conversam sobre o “testemunho do morto”, ou seja, os comportamentos públicos da pessoa, mas também imaginam que possa haver enganos nessa avaliação já que sinceridade a respeito da conversão não pode ser avaliada, pois é exclusiva da relação do crente com Deus. Nesse ponto é relevante considerar que as práticas cotidianas são centrais para a definição da conversão e da transformação mobilizada pelo protestantismo, do qual o pentecostalismo é uma variação regional. A adesão ritual não é suficiente para garantir a salvação dos pecados. A autoconsciência e o reconhecimento pessoal são essenciais para a salvação (Keane 2002KEANE, Webb. (2002), “Sincerity, modernity and the protestants”. Cultural Anthropology, 17(1): 65-92.:67), como procurou me contar Aline23 23 Entrevista realizada em 2004 com Aline (22 anos, manicure) na AD da Itinga. por ocasião da morte de seu pai.

Marcos24 24 Marcos (52 anos, comerciante). foi crente. Depois de várias idas e vindas, foi disciplinado pelo pastor e se afastou da congregação. Foi diagnosticado com câncer de intestino

Antes de falecer ele teve um sonho no hospital que Deus estava chamando para ele fazer uma obra que ainda não tinha sido realizada como se Deus tivesse pedido a ele um conserto. Quando ele chegou em casa, pediu o pastor da igreja para ir lá em casa que ele queria conversar com ele. Aí a gente que acredita que ele deve ter conversado com o pastor, se ele fez alguma coisa de errado, ele deve ser confessado. E quando você pede perdão a Deus e se tiver alguma pessoa como testemunha, Deus perdoa. Então eu creio que ele foi perdoado no último momento.25 25 Aline, idem.

Aline tinha certeza da salvação do pai. Todavia, no prosseguimento da conversa, ela explicou que não se pode julgar o destino póstumo de uma pessoa.

Aliás eu nem poderia julgar, porque na hora você, de repente, pode falar assim: Deus, perdoa os meus pecados! Na hora ali, você pode ser perdoado. Porque no céu nós vamos ter três tipos de surpresa: aquelas pessoas que a gente pensa que vai pro céu que não vai encontrar lá, aquelas pessoas que você nem esperava que a gente vai ver - ué você tá aqui? E aquelas pessoas que você acha que andava certinho na igreja, você acha que era perfeito que você acha que vai estar lá e não vai estar.26 26 Aline, idem.

O fato é que a conversão pode ocorrer a qualquer momento, mesmo no último suspiro. Esse dado é essencial para que se compreenda os limites entre o que se pode recuperar da trajetória da pessoa e o potencial de transformação recorrentemente retomado da conversão. Para o infiel ou para o ímpio, o instante do falecimento pode ser uma oportunidade de arrependimento ou de condenação. Somente na falência do corpo, o destino da alma é definido quando a sinceridade vivente for julgada.

Levando em consideração essas possibilidades, Aline me explicou o que ocorreu no caso da morte de seu pai. “Na bíblia diz que quando você se arrepende tudo é esquecido. Então ele aproveitou muito, ele aprontou muito. E quando ele já estava no leito de morte dele ele se arrependeu. Procurou o pastor e pediu perdão. Confessou os pecados dele e conseguiu o perdão de Deus.”27 27 Aline, idem.

Enfim, mesmo diante de alguma incerteza, a expressão estampada no rosto do morto é um dos parâmetros utilizados para cogitar o destino póstumo da pessoa. Mas quais são as características elencadas pelos enlutados quando olham a face de um morto?

Face e subjetividade pentecostal

A pessoa cristã pentecostal é composta em uma relação constante de forças entre o corpo mortal e temporal e a alma imortal e eterna. Como duas partes da pessoa cristã, corpo e alma se intercambiam na definição do status para o plano da eternidade.

Para meus interlocutores, “não há uma fragmentação do sujeito no qual o corpo e a alma pressupõem-se ao ator” (Le Breton 1992:35), mesmo que a morte física opere uma separação entre as duas partes da pessoa. Digo isso porque, o morto velado cujo corpo inerte está diante dos vivos é o mesmo cuja alma viverá eternamente.28 28 Importante ressaltar, como argumentam Duarte e Giumbelli (1985:85), para o período paulino que a pessoa cristã era uma alma em relação filial com Deus. Naquele contexto, a totalidade do indivíduo era formada pelas duas partes: corpo e alma. A aparência da pessoa permanecerá a mesma na eternidade, de maneira que, quando estão diante do corpo e avaliam a expressão do rosto, eles estão discutindo a respeito do destino daquela pessoa.

O fato de o rosto representar o centro do processo de avaliação do morto deve ser considerado por sua simbologia ritual. A aparência física, principalmente do rosto, é fator essencial para compreender processos de identificação. “Na cultura ocidental moderna, o corpo humano estabelece a fronteira da identidade pessoal” (Menezes 2011MENEZES, R. A.; BARBOSA, P. de C. (2011), “Demanda por eutanásia e condição de pessoa: reflexões em torno do estatuto das lágrimas”. Sexualidad, Salud y Sociedad, (9):137-153.:145). Como os ritos de morte têm a característica de sintetizar padrões de pessoa e vida (Hertz 1960HERTZ, R. (1960), Death and the right hand. Illinois: The Free Press.), para os pentecostais, olhar o rosto e avaliar sua expressividade demonstra uma preocupação constante com o teor da vivência eterna daquele sujeito em específico, além de apontar as condições para realização desta no imaginário dos participantes.

Retorno à cosmologia pentecostal para problematizar a relação entre a conservação da identidade na eternidade e as evidentes consequências da falência do equipamento biológico no processo de classificação operado no rito de velório.

“O corpo é pó” e transitório, mas não pode ser compreendido apenas como um invólucro. É com ele e em sua condição de pecado que a alma precisa estar durante a vida na terra para cumprir o período de provação da sua fé. É a passagem por esse período que define o status eterno do sujeito. Para ter uma existência feliz, é preciso que o vivente assuma a finitude da matéria, domestique o corpo e reconheça a sua imperfeição preparando-se para o futuro com Cristo. É a esse período de convivência entre o corpo e a alma durante a vida que se chama santificação. O projeto moderno protestante de transcender o mundo carnal encontra-se invariavelmente atrelado a alguns ingredientes materiais, tais como linguagem, coisas e pessoas (Keane 2002KEANE, Webb. (2002), “Sincerity, modernity and the protestants”. Cultural Anthropology, 17(1): 65-92.:69).

Retorno ao velório de Miguel. Depois de o corpo ser recepcionado e observado pelos parentes e irmãos, o pastor iniciou a cerimônia de despedida do “servo do senhor”, “fiel” que “já está morando na glória”. Uma oração foi realizada pedindo o consolo dos familiares, e a bíblia foi lida em Coríntios 15 - passagem que trata da ressurreição dos mortos. Várias músicas foram cantadas, entre as quais o hino “Na Jerusalém de Deus” - que, era do gosto do morto. O pastor frisou aos participantes que o semblante do morto era o de um “justo que dormia nos braços do senhor”.

O vocábulo utilizado na avaliação dos rostos demonstra de que forma eles buscam consolidar um padrão explicativo para a trajetória pregressa do sujeito que define o seu destino. A ênfase da argumentação recai no futuro do morto demonstrando que aquela pessoa continua vivendo na eternidade. “Quando um cristão fiel morre, nós devemos nos alegrar, afinal é mais um salvo que está na presença de Cristo. Tristeza mesmo acontece quando um ímpio morre porque, irmãos, se um ímpio morre, nós sabemos que ele fica sofrendo para sempre.29 29 Fátima (59 anos). Entrevista realizada em 2009, na AD da Figueira.

O verbo “está” é utilizado para descrever a situação de um morto. Enquanto salvo, ele está na presença de Cristo. Ao verbo está é adicionado o advérbio de tempo “sempre”, que enfatiza a circunstância do sofrimento do ímpio que morre. “Está sempre” mostra a centralidade da eternidade no rito evangélico. Conhecer o estado definitivo do morto é o que em última instância nos informa o hábito de olhar a expressão do rosto.

Os adjetivos utilizados para avaliar a face de um salvo foram: feliz, bonito, alegre, lindo (grifos meus).

Gosto de ver como aquela pessoa está. Aí eu chego, olho aquela pessoa, tá [sic] com um aspecto feliz, bonito. Então eu penso assim pra mim: essa [...] Eu acho, não sei né, só Deus é quem sabe. [...] A diferença, sabe por que que eu falo pra você. A diferença de um crente eu posso olhar no rosto. Um rosto bonito, feliz. Parece, sabe, que se encontrou com Jesus.30 30 Alessandra, idem. Neste trecho, ela falava da morte do avô.

O caso da morte de Adalberto31 31 Adalberto (aposentado, 69 anos). Era membro da AD da rua 21. que me foi contado por seu filho32 32 Entrevistei João (40 anos, auxiliar de escritório) em sua casa. Ele me contou a respeito da morte do pai que havia acontecido há alguns anos. pode ajudar a entender o emprego dos adjetivos associados à bem-aventurança. De acordo com João, Adalberto já estava doente há vários anos quando teve um sonho: “Meu filho, sonhei que estava num lugar lindo, e tinha uma árvore branca cheia de bolas, parecia uma árvore de Natal. Embaixo da árvore estava a sua mãe. E eu não sentia mais dor, eu estava tão feliz.”

Alguns dias depois do sonho, Adalberto faleceu. De acordo com o filho: “ele está num lugar lindo e em breve vamos nos reencontrar. Ele estava com uma aparência feliz.”

Todas as pessoas cristãos quando falece [sic], você pode reparar. As pessoas cristãos [sic] você vê o semblante de alegria no coração deles, na feição deles, no rosto você vê. O semblante fica muito lindo. Tem um esplendor da pessoa, do corpo que tá [sic] ali. Uma coisa muito linda. Eu presto atenção muito nisso.33 33 Léa (45 anos, do lar). Entrevista realizada em 2010 AD da Itinga.

Nota-se uma continuidade entre os ideais ascéticos da vivência do crente e a expressão corporificada. Ou seja, o corpo que foi domesticado adquiriu, para os meus interlocutores, certa conformação facial dada pela moral. A trajetória de uma vida dedicada à contenção dos impulsos e a domesticação dos desejos está no cerne da doutrina pentecostal. A especificidade do pentecostalismo brasileiro, em relação ao catolicismo, por exemplo, foi reforçar o dualismo entre bem e mal provocando uma atitude militante de fiéis mais autoconscientes e disciplinados (Mafra 2014:274).

O corpo é formado em diálogo com os elementos culturais e é lido com base nesse mesmo nível nas relações sociais. Na face de um salvo vê-se a culminância de uma trajetória em que o autorreconhecimento como pecador levou à construção de um corpo consagrado com base na renúncia e na provação. Os “irmãos” reconhecem no rosto traços que o distinguem dos “ímpios”. Atente-se para o fato de que esse autoconhecimento é fundamental para a produção da “pessoa cristã pentecostal” no cotidiano ao mesmo tempo em que aponta para uma operação relacional no velório.

O corpo da pessoa cristã exterioriza um padrão moral que é relacional. Há enorme apreço na produção de um corpo limpo, cuidado e arrumado de acordo com a “ética pentecostal”34 34 Weber (1930:45) explicou que a ética (do trabalho) não apenas como “uma técnica de vida, mas uma ética peculiar cuja violação não é tratada apenas como desatino, mas como uma espécie de falta com o dever: isto é a essência da coisa. Ethos (...) assume caráter de uma máxima de conduta de vida eticamente coroada”. . É nesse corpo que o momento limite no qual a alma se encontra com Deus fica marcado. São as últimas sensações do vivente que podem ser visualizadas no rosto de maneira que, segundo os pentecostais, quando o crente vai para a eternidade feliz, registra-se um semblante alegre. O rosto tornou-se, a partir do século XVIII, “o centro da alma” (Le Breton 2019LE BRETON, D. (2019), Rostos: ensaios de antropologia. Petrópolis: Vozes .:31). Essa perspectiva encontra-se reforçada nesse contexto, no qual o rosto centraliza a fixação no corpo do ideário ascético de salvação.

Os cristãos pentecostais são sujeitos morais que devem se constituir, controlar seus impulsos, examinar a própria consciência, passar por provações e reconhecerem-se como imperfeitos (Foucault 1984FOUCAULT, M. (1984), Histoire de la sexualité: le souci de soi. Paris: Gallimard.:71). Esses parâmetros morais e éticos desenvolvem um sentido de santidade e sinceridade que guardam estreita relação com a crença na eternidade daquela pessoa. É preciso ser sincero, e essa sinceridade deve ser avaliada pelo próprio sujeito em sua interioridade, assim como demonstrada publicamente.

É preciso também notar que, quando avaliam a face do morto, buscam sinais que revelem as últimas emoções de um sujeito. Felicidade ou tristeza, alegria ou apavoramento seriam emoções e sensações passíveis de serem encontradas no rosto paralisado. Esses sentimentos não são sentidos nem percebidos de forma abstrata ou puramente biológica. Eles estão relacionados ao contexto das interações e se expressam por meio de linguagem simbolicamente informada. Como participantes de um grupo específico, aprendemos “como, quando e com quem expressar (certos) sentimentos” (Rezende e Coelho 2010REZENDE, C. B.; COELHO, M. C. (2010), Antropologia das emoções. Rio de Janeiro: Editora FGV.:31) de maneira que a dualidade entre possíveis expressões, emoções e sensações encontradas na face do morto demonstram a abrangência dos pressupostos cosmológicos do grupo.

O rosto do salvo expressa a realização de um corpo disciplinado pela doutrina que em última instância objetiva produzir um “sujeito feliz” para a eternidade. No rosto ficam gravadas as experiências que levaram a esse destino. Já a eternidade no inferno é de sofrimento e, portanto, imprime no rosto um caráter apavorado, conforme pode ser percebido na narrativa de Marina, quando me explicou, entre lágrimas, a respeito da morte da avó.

Há pouco tempo agora eu perdi minha avó, a mãe do meu pai. Então nós corremos atrás, falamos de Jesus para ela e ela nada, nada. Não queria. O negócio dela era o São Jorge dela. E então ela faleceu. E eu vi o rosto dela, um rosto muito apavorado. Sabe aquele que mostra apavoramento. E quando vi minha avó eu vi que o rosto dela estava apavorado. Então eu achei uma diferença muito grande nisso aí. Do salvo para o ímpio.35 35 Marina (costureira, 27 anos). Entrevista realizada em 2009 na Igreja AD da Fé.

Imprecisões, disputas e contradições também povoam esses cenários subjetivos de avaliação moral. Finalizar a narrativa do caso de Valéria pode ajudar a entender como omissões e recuos são recursos utilizados visando impedir mais sofrimento ou confrontos de avaliações nos casos em que o destino do morto é reivindicado. Durante o velório, um mal-estar incomodava os presentes. Maria, a mãe, pertencia ao Círculo de Oração e era a líder do grupo de assistência social da igreja. O sofrimento dela, de acordo com as amigas, não era apenas decorrente da morte da filha, mas também dizia respeito a sua preocupação com a salvação eterna da alma da morta.

O culto fúnebre de Valéria foi conduzido pelo pastor Jorge36 36 Pastor da AD de Todos os Santos. e transcorreu como de rotina, com cânticos, leitura e orações. Quando a cerimônia estava quase terminando, Maria pediu para falar. Contou a respeito da infância de Valéria, como era uma criança levada. Argumentou que sempre conversava com a filha sobre a sua volta para a igreja e que ela gostava muito de cantar nos cultos domésticos. De acordo com a mãe, Valéria afirmou amar Cristo. Maria terminou sua palavra olhando para o corpo e dizendo: “a minha filhinha está tão linda. Tenho certeza de que está com Cristo nas mansões celestiais.”

Muitos participantes do velório caíram em prantos. Conforme alguns interlocutores me disseram depois, eles compartilhavam a tristeza da amiga que, desesperada, procurava construir um relato que reservasse à filha um destino feliz. Depois que o culto acabou, segui para fora da capela, e, nas conversas, foi possível ouvir comentários a respeito do ocorrido. As impressões das irmãs de oração e dos jovens da igreja, conforme esclareci anteriormente, pareciam diferentes daquela verbalizada pela mãe, embora quando perguntados diretamente, eles sempre me respondiam com a frase: “só Deus é quem sabe...”

Os elementos em jogo, seja o rosto, sejam cânticos, sejam leituras, sejam palavras ou silêncios, podem ser pensados aqui como “economias de representação”. Afinal, pessoas, objetos, relações, significados e valores juntos compõem um quadro que supre explicações disponíveis pelo grupo e capazes de saciar emocionalmente cada um dos envolvidos (Keane 2002KEANE, Webb. (2002), “Sincerity, modernity and the protestants”. Cultural Anthropology, 17(1): 65-92.). As tensões existentes entre o sistema representativo e as demandas da situação foram sendo dirimidas com base em uma habilidade de falar e calar, acionada por cada um deles em momento oportuno (Keane 1997).

O culto fúnebre finaliza a fase do velório na capela. Em geral, nesses cultos a impressão geral construída com base na avaliação da face e da trajetória moral da pessoa já estão consolidados. Nessa fase do rito, o cadáver começa a ser despojado, e a sua condição de profanação e de mortalidade é enfatizada para que posteriormente possa ser enterrado. Ao encerrar o culto fúnebre de Miguel, o pastor Josias insistiu: “a casa já está vazia. Nosso irmão não está aqui. Já está com Cristo.”

O caixão foi fechado. Seis homens seguraram suas alças e iniciaram o cortejo. Desceram as escadas da capela, viraram à direita e seguiram para o portão do cemitério. Atrás deles, seguiu o grupo reunido até o local escolhido para o sepultamento. A cova já estava aberta, e o coveiro aguardava com a pá em mãos. O caixão foi colocado no chão, e mais um hino cantado:

No Céu Não Entra Pecado Fadiga, tristeza e nem dor Não há coração quebrantado Pois todos são cheios de amor As nuvens da vida terrestre Não podem a glória ofuscar Do reino de gozo celeste Que Deus quis, pra mim, preparar! (...)37 37 Hino 422 da Harpa Cristã. Disponível em: https://www.letras.mus.br/harpa-crista/463425/. Acesso em: 28/04/2021.

O caixão foi fechado e descido até a sepultura. Enquanto todos observavam em silêncio, o coveiro começou a jogar terra sobre a madeira.

Conclusão

Na bibliografia que analisa a morte entre os evangélicos existe a premissa já consagrada de que estes se afastam dos mortos. A morte enquanto fenômeno seria vivida como um marco biológico que abre um ritual simples e breve a partir do qual estes abandonam os corpos e os túmulos dos seus entes queridos.

O argumento de simplificação da morte tem feito com que pesquisadores percam de vista a especificidade do enfrentamento pentecostal da ruptura fúnebre, além de negligenciar as soluções propostas por eles para a implacabilidade da falência do corpo. Para além de propor uma reflexão específica a respeito da relação dos evangélicos com os mortos, essas questões também servem para que prossigamos na problematização de algumas características das novas modalidades da vivência da morte contemporânea, já que em muitos aspectos algumas destas se aproximam das dinâmicas presentes nos ritos de morte evangélicos. Algumas dessas características são o despojo do corpo, a higienização e a secularização dos ritos.

Argumentei neste artigo que os pentecostais vivenciam a morte em uma dinâmica ritual produzida a partir da cosmologia de corte que prevê a incomunicabilidade entre vivos e mortos e a separação das esferas. A ideia de eternidade da pessoa se coloca como elemento central do rito de morte notadamente na fase do velório. Há uma preocupação em definir o status do morto já que esse destino terá consequências para aquela pessoa em uma perspectiva espaço temporal infinita.

Quando o rosto é avaliado no velório e quando o corpo é despojado no enterro, a alma imortal ressurge com as mesmas características do sujeito com quem se conviveu. Ou seja, o morto permanece o mesmo. Nos ritos de morte evangélicos, o morto é personagem central embora haja uma separação em fases com ênfases no corpo moral e na alma imortal. Esses aspectos me levam a duas conclusões, uma geral e outra específica.

Sigo questionando as afirmações de que na contemporaneidade ocidental urbana esteja ocorrendo um processo de abandono dos mortos e de silenciamento da morte (Ariès 1975ARIÈS, P. (1975), Essais sur l’histoire de la mort en Occident du moyen âge à nos jours. Paris: Éditions du Seuil.; Morin 1976MORIN, E. (1976), L’Homme et la mort. Paris: Ed du Seuil.). O que o caso dos pentecostais demonstra é que despojar o corpo e se afastar do cemitério não necessariamente informa descaso. Há um trabalho de elaboração que prossegue no luto. Precisamos nos dedicar a compreender que simbologias estão presentes nas novas modalidades de vivência da morte atualmente praticadas.

De forma mais específica, a avaliação da face do morto parece ser mais um recurso que visa dialogar com a cosmologia de corte e que nos ajuda a avançar na compreensão das características da pessoa cristã pentecostal e nas possibilidades de adaptação do pentecostalismo aos contextos nos quais ele se desenvolve. Se após a morte não há comunicação oficial com o morto e não há possibilidades de interações entre vivos e mortos, a expressão gravada no rosto inerte informa o destino, da mesma forma que foi componente essencial na busca pela salvação da alma por meio de uma trajetória moral.

A avaliação da face demonstra que corpo e alma cindidos pela falência física são reconhecidos como elementos que compõem a subjetividade da pessoa cristã pentecostal cuja existência imortal está definida a partir do instante da decretação da sua morte. Os vivos preocupados com seus mortos dedicam-se a determinar o status da sua existência na eternidade ao mesmo tempo em que se preparam para o momento em que também terão destino semelhante àquele que veem na face de seu morto.

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  • PINEZI, A. K. M. (2003), A vida pela ótica da esperança: um estudo comparativo sobre a Igreja Presbiteriana do Brasil e a Igreja Internacional da Graça de Deus São Paulo: Tese de Doutorado em Antropologia Social, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade de São Paulo.
  • PINEZI, A. K. M. (2009), “O sentido da morte para protestantes e neopentecostais”. Paideia, maio-ago. 19 (43): 199-209.
  • RAPPAPORT, R. A. (1999), Ritual and Religion in the making of Humanity New York: Cambridge University Press.
  • REIS, J. J. (1991), A morte é uma festa. Ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX São Paulo: Companhia das Letras.
  • REZENDE, C. B. (2008), “Corpo e emoção na reprodução de vidas: uma análise da revista gestante”. 32º Encontro Anual da Anpocs
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  • WEBER, M. (1930), The Protestant Ethic and the Spirit of Capitalism London; Boston: Unwin Hyman,
  • 1
    Meus interlocutores não levam em consideração diversos fatores que podem provocar consequências na expressão fixada na face do morto. Por exemplo: o uso de medicamentos em doentes hospitalizados, traumas físicos provocados por acidentes e maquiagem funerária.
  • 2
    Uso aqui o termo “evangélicos” como maneira de englobar a diversidade das variações desse fenômeno religioso. Os estudos a que faço referência analisam tanto protestantes históricos (Campos, 2016) como pentecostais (Novaes, 1983) e neopentecostais (Pinezi, 2009) brasileiros.
  • 3
    Dados do IBGE Cidades (2010) confirmam que a população de Praia de Mauá é composta por indivíduos de classes populares dos quais 67% trabalhadores sobrevivem com renda informal e o rendimento médio dos que têm ocupação é menor que dois salários-mínimos.
  • 4
    Ao longo dos anos, frequentei semanalmente as congregações e o cemitério para trabalho de campo. Nos intervalos desses períodos, visitei esporadicamente as igrejas para aprofundar dados.
  • 5
    Entrevistar enlutados é um enorme desafio para os pesquisadores. Foi preciso longo tempo de interação antes que pudesse conversar sobre as experiências de morte. A maior parte das entrevistas foi realizada com mulheres, dada a identificação de gênero e a minha inserção de pesquisadora no Círculo de Oração.
  • 6
    “Liberdade que o ser humano tem de fazer escolhas, tornando-se, consequentemente, responsável por elas e por seus respectivos resultados […]. O livre-arbítrio é inerente ao homem, o qual não poderia ser julgado, jamais, se as suas decisões fossem involuntárias, e ele fizesse o que não desejasse pelo fato de ser movido por uma força estranha, alheia à sua consciência e vontade”. Disponível em: https://portal.rbc1.com.br/licoes-biblicas/baixar-licao/cod/506. Acesso em: 26/09/2019.
  • 7
    Autonomia e liberdade como sinônimos de “boa morte” também aparecem em outros contextos etnográficos tais como nos cuidados paliativos estudados por Menezes e Barbosa (2013MENEZES, R. A.; BARBOSA, P. de C. (2013), “A construção da ‘boa morte’ em diferentes etapas da vida: reflexões em torno do ideário paliativista para adultos e crianças”. Ciência & Saúde Coletiva, 18 (9): 2653-2662.:2657). Noções de consciência tranquila, cumprimento dos deveres, pedidos de perdão apareceram de forma relacional, ou seja, em relação aos que ficam vivos e foram essenciais para pensar a questão do limite entre a liberdade, o livre arbítrio e os padrões morais.
  • 8
    O rito de morte pentecostal se divide em etapas: velório, enterro e luto. Logo que uma morte ocorre, uma rede de solidariedade é formada. Às formalidades burocráticas do estado brasileiro somam-se ao ritual religioso realizado pelos pentecostais.
  • 9
    Embora no universo religioso brasileiro haja outras perspectivas religiosas nas quais há trânsitos entre esferas e relacionamentos entre vivos e mortos, opto por utilizar o catolicismo como recurso contrastivo.
  • 10
    Disponível em: http://www.cpadnews.com.br/blog/esdrasbentho/cultura-crista/29/inferno:-mito-ou-realidade.html. Acesso em: 9/12/2019.
  • 11
    Entre as principais crenças e práticas das AD figuram: “ênfase na espiritualidade espontânea; resistência e afastamento do sistema mundano; transformação e mudança social dos fiéis; ênfase no Poder do Espírito Santo, com o falar em novas línguas; ênfase na santificação; ênfase em práticas como jejum, oração e louvor” (Majewski 2010MAJEWSKI, R. G. (2010), Assembleia de Deus e teologia pública: o discurso pentecostal no espaço público. São Leopoldo: Dissertação de mestrado em Teologia, Escola Superior de Teologia.:31).
  • 12
    Para meus interlocutores existe um período de espera para A volta de Cristo (o apocalipse). Os crentes que estiverem vivos nesse evento serão arrebatados e irão para o céu. Já os mortos — e que permaneceram aguardando o apocalipse dormindo — participarão do Juízo Final.
  • 13
    No catolicismo desenvolveram-se possibilidades de interferência dos vivos no destino dos mortos. O surgimento dos sufrágios por volta do século XII operou um acréscimo de poder para os vivos reforçando tanto a coerência das comunidades quanto o poder da igreja (Le Goff1993). No Brasil, as irmandades eram “associações corporativas no interior das quais se teciam solidariedades fundadas nas hierarquias sociais” (Reis 1991REIS, J. J. (1991), A morte é uma festa. Ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras.:51). Os seus associados tinham “enterro decente para si e membros da família, com acompanhamento de irmãos e irmãs de confraria, e sepultura na capela da irmandade”.
  • 14
    Miguel (54 anos, pedreiro) era presbítero da AD da Itinga e morreu de “ataque cardíaco”, em 2009. Cheguei à capela por volta de 22 h e permaneci até 1h 30 da madrugada. O sepultamento foi realizado às 9h da manhã.
  • 15
    Valéria (45 anos, vendedora de cosméticos) estava desviada da AD da Itinga. Eu soube do velório (em 2008) por intermédio das senhoras do Círculo de Oração. Cheguei à capela por volta de 23h e permaneci até o sepultamento. O culto fúnebre foi realizado pelo pastor da AD em Todos os Santos a pedido de sua mãe.
  • 16
    Um dos olhos da morta estava roxo e uma faixa foi colocada a fim de evitar que outros ferimentos da cabeça ficassem aparentes.
  • 17
    Expressões utilizadas para classificar aqueles que não fazem parte da igreja.
  • 18
    Marcos (64 anos) era pastor na AD da Rua 23. Em entrevista realizada 2005, procurei questioná-lo a respeito do perfil do salvo e do condenado, além de pedir explicações a respeito da dinâmica dos cultos fúnebres.
  • 19
    Adiante aprofundarei este ponto.
  • 20
    Gilmar (18 anos, estudante).
  • 21
    Edivaldo (27 anos, pescador). Participava do grupo de jovens da AD de Todos os Santos tocando violão.
  • 22
    Entrevista realizada 2005 com Alessandra (28 anos, vendedora de loja), na AD em Suruí. Ela me contou a respeito da morte da avó (“era uma pessoa muito difícil”) e do avô (“era um crente fervoroso e muito amado”).
  • 23
    Entrevista realizada em 2004 com Aline (22 anos, manicure) na AD da Itinga.
  • 24
    Marcos (52 anos, comerciante).
  • 25
    Aline, idem.
  • 26
    Aline, idem.
  • 27
    Aline, idem.
  • 28
    Importante ressaltar, como argumentam Duarte e Giumbelli (1985DUARTE, L. F. D.; GIUMBELLI, E. (1995), “As concepções cristã e moderna da pessoa”. Anuário Antropológico, 93: 77-109.:85), para o período paulino que a pessoa cristã era uma alma em relação filial com Deus. Naquele contexto, a totalidade do indivíduo era formada pelas duas partes: corpo e alma.
  • 29
    Fátima (59 anos). Entrevista realizada em 2009, na AD da Figueira.
  • 30
    Alessandra, idem. Neste trecho, ela falava da morte do avô.
  • 31
    Adalberto (aposentado, 69 anos). Era membro da AD da rua 21.
  • 32
    Entrevistei João (40 anos, auxiliar de escritório) em sua casa. Ele me contou a respeito da morte do pai que havia acontecido há alguns anos.
  • 33
    Léa (45 anos, do lar). Entrevista realizada em 2010 AD da Itinga.
  • 34
    Weber (1930WEBER, M. (1930), The Protestant Ethic and the Spirit of Capitalism. London; Boston: Unwin Hyman,:45) explicou que a ética (do trabalho) não apenas como “uma técnica de vida, mas uma ética peculiar cuja violação não é tratada apenas como desatino, mas como uma espécie de falta com o dever: isto é a essência da coisa. Ethos (...) assume caráter de uma máxima de conduta de vida eticamente coroada”.
  • 35
    Marina (costureira, 27 anos). Entrevista realizada em 2009 na Igreja AD da Fé.
  • 36
    Pastor da AD de Todos os Santos.
  • 37
    Hino 422 da Harpa Cristã. Disponível em: https://www.letras.mus.br/harpa-crista/463425/. Acesso em: 28/04/2021.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Set 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    10 Maio 2021
  • Aceito
    20 Out 2021
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