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Na rua, no meio do redemoinho: das mediações de Exu no espaço público à ação político-ritual em dois contextos afro-religiosos

At the crossroads: from Eshu’s mediation at public places to political-ritual agency in two African-Brazilian religious contexts

Resumos

Resumo: Partindo de momentos etnográficos de escalas e durações variadas, que vão da sobrevida de uma árvore ancestral a uma grande peleia jurídica, este artigo analisa a agência de algumas pessoas, coisas e entidades em dois contextos afro-religiosos - um deles situado em Porto Alegre - RS e o outro, em Santo Amaro da Purificação-BA. O batuque e o candomblé são exteriorizados no espaço público dessas duas cidades, sob a forma de objetos e ritos localizados em seus respectivos mercados centrais. Baseando-me nesse paralelo, discuto questões como patrimônio, território e ancestralidade, além da relação entre o pesquisador e seus parceiros de pesquisa, centrando a análise, porém, nas variadas atividades, instanciações e mediações de Exu, divindade fundamental para ambas as comunidades enfocadas.

Palavras-chave:
Exu; religiões afro-brasileiras; materialidade; território; ação político-ritual.


Abstract: Given some ethnographic moments of different scales and length, ranging from the rebirth of an ancestral tree to a great legal dispute, this article aims to analyze the agency of people, things and entities in two African-Brazilian religious contexts - one of them situated at Porto Alegre, the capital city of Rio Grande do Sul state, while the other is located at Santo Amaro, a small town in the state of Bahia. Those two cities´ central public markets host some sacred rites from batuque and candomblé cults, respectively. Based on that parallel, this article discusses some issues concerning cultural heritage, territory and ancestry through an ethnographic account that addresses centrally the role of Eshu, a key divinity, at both contexts.

Keywords:
Eshu; african brazilian cults; materiality; territory; political/ritual agency.


Avamunha 1 1 Toque rápido utilizado para abrir e fechar as festas públicas de candomblé.

A vida após a morte

Passaram-se alguns dias. Darlei enviou-me, no último domingo de maio,2 2 Este artigo foi escrito no final de 2020. Para não o sobrecarregar, adoto a seguinte convenção: todas as indicações temporais mencionadas no texto, sem outras especificações, referem-se àquele ano. a seguinte mensagem:

Depois dê uma olhada. Eu precisei dar uma saída agora e me emocionei ao ver que a árvore tá renovando. A árvore que caiu, a árvore ancestral daqui. Ela está renovando, tem vários lugares renascendo, né? O restante do tronco, que ainda não foi removido, ainda está no lugar dele. Está renascendo.

Seis fotografias de ramos recém-brotados de um tronco enorme, caído à beira do rio que corta Santo Amaro da Purificação, acompanhavam aquele áudio de WhatsApp.

Darlei Sacramento é filho de santo de um dos terreiros que organizam o Bembé do Mercado por lá e estudante universitário. Nessa cidadezinha de 62 mil habitantes localizada no Recôncavo Baiano e longe dali, na populosa capital do Rio Grande do Sul, o candomblé e o batuque - duas das religiões afro-brasileiras3 3 A bibliografia sobre as chamadas “religiões/cultos afro-brasileiras(os)”, “de matriz africana”, “de santo”, etc. é imensa. Indico a respeito, apenas a título de localização do tema, Johnson 2002 & Goldman 2012. Sobre o batuque e de outras religiões afro-rio-grandenses cf. Corrêa 2006 e Oro 1994. - são exteriorizados em áreas urbanas específicas. Nos mercados públicos desses municípios, certa divindade manifesta-se, de forma particularmente concreta, numa série de coisas e de práticas religiosas. Este orixá,4 4 “Dono da cabeça” em Yorubá - língua ritual de origem oeste-africana utilizada em determinadas religiões afro-brasileiras. Esse termo designa as divindades cultuadas nessas comunidades religiosas. que é chamado de Exu ou, em Porto Alegre, Bará,5 5 Como, no batuque, Exu e Bará são equivalentes, mas a recíproca não é exatamente verdadeira, uma vez que, no candomblé baiano, Bará é tido como uma das qualidades dessa divindade, neste artigo utilizo o termo Exu para falar dessa entidade de modo geral e Bará para referir-me especificamente ao contexto gaúcho. As qualidades de um orixá correspondem aos seus atributos distintivos ou às diferentes formas (velho, novo, irascível, apaziguador etc.) que eles podem assumir em seus mitos. anima uma rica trama de histórias performáticas, fortemente territorializadas e dotadas de temporalidades próprias em ambos os casos.

A pesquisa que havia planejado fazer tratar-se-ia, então, de uma etnografia comparativa, situada em uma fronteira analítica sugerida tanto pelas qualidades, as características dessa entidade de origem Yorubá, quanto pela inter-relação entre tais fenômenos religiosos e a produção/fluxo de mercadorias, pessoas e memórias nesses lugares. Tinha em mente não só produzir um estudo sobre Exu, mas, sim, adotá-lo a partir de seus símbolos, efeitos e afetos (Strathern1999STRATHERN, Marilyn. (1999), “O Efeito Etnográfico”. In: M. Strathern. (2014), O Efeito Etnográfico. São Paulo: Cosac Naify . ; Favret-Saada 2005FAVRET-SAADA, Jeanne. (2005) [1990], “Ser Afetado”. Cadernos de Campo, vol. 13, nº 13: 155-161.) como um agente e um ponto de vista privilegiado.6 6 Exu detém uma importância primordial em diversos cultos da diáspora oeste-africana, sendo venerado, no Brasil, também em algumas religiões de matriz centro-africana (umbanda, quimbanda etc.). Além de ser mencionado em toda a bibliografia específica, por conta de sua centralidade cosmológica, esse orixá vem ganhando popularidade. Assim, aos raros livros clássicos dedicados exclusivamente a Exu na bibliografia oeste-africanista e brasileira (cf., e.g. Santos e Santos 1971) somaram-se, recentemente, inúmeras produções acadêmicas e extra-acadêmicas sobre ele. Tal popularidade, ademais, tem alterado a ritualística de algumas dessas religiões, é o caso da expansão da quimbanda no sul do país, e do aumento de iniciações de adeptos consagrados a Exu nos candomblés.

Nos primeiros meses deste ano comecei meu trabalho de campo. Fui a Porto Alegre imediatamente antes do agravamento da crise causada pelo novo Coronavírus (Covid-19) no Brasil. Telefonei para alguns pais de santo, encontrei-os, assisti, convidado por um deles, Pai Tiago de Bará Onilú, a uma audiência pública sobre “a condição de Patrimônio Cultural do Mercado Público” (TV ALRS 2020) da cidade na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul (ALRS) e percorri o centro da capital gaúcha muitas vezes na companhia de alguns membros da comunidade negra local.

A abertura simultânea de tantos caminhos impressionou-me. Voltei para casa, em contraste, junto ao isolamento social e o fechamento de tudo. Planejava ir a Santo Amaro em maio, para assistir ao meu primeiro Bembé, mas esse projeto tornou-se inviável. Em seguida, contatei meus parceiros recém-conhecidos do Sul só para saber como eles estavam. Para minha surpresa, outros momentos etnográficos (Strathern 1999STRATHERN, Marilyn. (1999), “O Efeito Etnográfico”. In: M. Strathern. (2014), O Efeito Etnográfico. São Paulo: Cosac Naify . ) surgiriam dessas mensagens. Com agilidade, uma rede virtual de pesquisa logo se estabeleceu por meio de encargos modestos e, sobretudo, da confiança mútua. Este texto como um todo, incluindo minhas intervenções hesitantes nos movimentados enredos (Queiroz 2019QUEIROZ, Vítor. (2019), “O Corpo do Patriarca: uma etnografia do silêncio, da morte e da ausência”. Mana , vol. 25, nº 3: 743-776.; 2021) porto-alegrenses que acompanharemos a seguir, baseia-se exatamente nesse intenso convívio on-line.

Com o auxílio de outras interações remotas consegui acompanhar também o atípico Bembé desse ano. Conheci Darlei por intermédio de amigos ligados ao ensino universitário santo-amarense. Por intermédio dele, acessei uma série de fontes valiosas - dos panfletos oficiais que circularam por Santo Amaro nos dias do ritual aos fóruns locais de discussão on-line -, além de vivas descrições da cidade durante todo o mês de maio. Por volta do 13º dia desse mês bate-se anualmente o Bembé. Devido à Covid-19, em 2020, a cerimônia realizou-se sumariamente, em caráter enlutado.

Em nosso primeiro contato, uma videochamada realizada no dia 2 de maio, Darlei estava triste. Além de não poder saudar os orixás no Largo do Mercado dali a duas semanas, uma sumaúma centenária havia caído após uma chuva forte. A árvore, que ficava nesse mesmo largo, teria assistido ao primeiro Bembé, batido em comemoração à Lei Áurea em 1889.

Conversamos todo o mês e logo desenvolvemos uma grande proximidade apesar da distância física. Esse afeto peculiar, que surgiu com atores sociais muito diversos - afro-religiosos, advogados e agentes públicos - nas duas localidades enfocadas, devia-se também à conjuntura envolvente. Por conta do Coronavírus, da insegurança e da perda de pessoas próximas, mas também da própria lógica do povo de santo que abarca um jogo de mediações complexas e alianças (cosmo)políticas, conforme veremos, meus interlocutores encontravam-se particularmente receptivos. Tal abertura ecoava, por exemplo, na emotividade daquele áudio de Darlei. Suas fotografias, portanto, não eram ícones meramente referenciais. Na verdade, aquela exibição de força da natureza naturante,7 7 Na metafísica de Spinoza, há uma distinção entre a natureza naturada (as coisas tomadas como elementos dados, já constituídos, e.g. uma árvore idealmente estática) e a natureza naturante (a dimensão processual e potencial das coisas, e.g. a mesma árvore como materialização parcial da sua capacidade de autoproduzir-se). Emprego essa terminologia sem a pretensão de iniciar uma discussão propriamente filosófica. Isso também vale para o linguajar fenomenológico que será utilizado ao longo deste artigo. ou seja, das possibilidades e do vir-a-ser de uma entidade - a árvore ancestral, no caso - apontava para muitas direções.

Primeiramente, aquelas fotografias explicitavam nossa incipiente interação de pesquisa. Elas eram o arremate de uma sequência de imagens produzidas por Darlei. Ele fotografou e filmou toda a sequência do Bembé desse ano para me mostrar. Pude acessar, assim, diversos aspectos da cerimônia selecionados por seus olhos, o que me oferecia um conjunto inestimável de informações desdobradas em formas e conteúdos igualmente significativos. Essa etnografia compartilhada também mobilizou suas emoções, segundo ele mesmo, servindo para reconceber o Bembé desse ano e ainda “transferir os pavores” (Latour 2002LATOUR, Bruno. (2002) [1996], Reflexão sobre o culto moderno dos deuses fe(i)tiches. Florianópolis: EDUSC.) da pandemia.

Nosso experimento de pesquisa, também envolvia, de minha parte, um esforço para produzir uma antropologia simétrica. Para concretizá-lo, procurei seguir a sugestão de Tim Ingold de que o fazer antropológico deveria caracterizar-se pelo estudo com pessoas e não sobre elas (Ingold 2011:220-229). Desde o primeiro contato, chamei todos os seres humanos envolvidos na minha rede etnográfica preferencialmente de “parceiros de pesquisa” e compartilhei meus planos com eles. De certo modo, meu tema de estudo, uma divindade, favorecia esse tipo de interação. O próprio método escolhido para acessá-la envolvia uma observação participante atenta às refrações e difusões de sua atuação nos gestos ou na fala de meus parceiros e, principalmente, uma tentativa de “pensar outro pensamento” com eles, visando, em síntese, “uma atualização das virtualidades insuspeitas do pensar” (Viveiros de Castro 2002:129-132).

Em segundo lugar, tais imagens - da regeneração de um ancestral que vivia sob a forma de uma árvore e que havia caído de tristeza, segundo Darlei, dada a possibilidade de não celebrarem o Bembé nesse ano - mostravam o aspecto inesperado que o nascimento das coisas costuma envolver, seus “estados potenciais indeterminados e [seus] atos abruptos e imprevisíveis que, respectivamente, excedem e interrompem” (Cardoso & Head 2015CARDOSO, Vânia; HEAD, Scott. (2005), “Matérias Nebulosas: coisas que acontecem em uma festa de Exu.” Religião e Sociedade, vol. 35, nº 1: 164-192.:184) processos prévios, provocando “novas relações, novas configurações e apropriações no desenrolar do agora” (Id.:178). Exu comanda, precisamente, esses estados de transformação.

Neste artigo, tais nuances serão desdobradas por meio da descrição de momentos etnográficos de escalas e durações muito diversas. Essas situações guardam, entretanto, algumas constantes que vão do afeto e dos temores que encontrei em campo, da renovação dos territórios e da materialidade das coisas, sejam elas mensagens de WhatsApp ou objetos enterrados, às mediações on-line de uma pesquisa que, nesse ano, conforme indicado, ocorreu de forma quase exclusivamente remota.8 8 Apesar disso, não farei nenhuma discussão teórica a respeito das vicissitudes de uma pesquisa virtual. Cf., nesse sentido, Capponi e Araújo 2020; Queiroz 2021, artigos recém-publicados que tratam, precisamente, da relação entre afro-religiosos, a Covid-19 e os meios digitais.

Partindo desse primeiro exemplo, de proporções mínimas, tomarei outra direção. Após descrever eventos muito maiores, situando as moradas de Exu em Porto Alegre e Santo Amaro, amplio ainda mais a escala, ainda que feche progressivamente o foco analítico no caso gaúcho, para refletir sobre a dinâmica subjacente a esses territórios sagrados e racializados que renascem continuamente e, por fim, sobre algumas questões conceituais que a presença desse orixá nos espaços públicos levanta.

Tais questões, entretanto, não devem ser categorizadas apressadamente como exclusivamente teóricas e, muito menos, opostas à prática etnográfica. Na verdade, admitindo-se tanto a premissa quanto o horizonte experimental desta pesquisa - vale reiterar, a possibilidade de etnografar um deus - defrontamo-nos com um caso que se aproxima da démarche analítica aberta pela “sociologia das associações” da teoria ator-rede (Latour 2012LATOUR, Bruno. (2012) [2005], Reagregando o social. Salvador: EDUFBA.). Afinal, não pode haver um campo empírico predeterminado em um estudo sobre a agência de uma deidade. Não é possível recorrer a uma definição unívoca, privilegiada e apriorística de “social” ou mesmo de “realidade” se quisermos descrevê-la de fato.

Pressupor que meu etnografado não sabe trafegar por redes virtuais, atualizando-as, ou que sua atuação se restringe a determinadas comunidades religiosas, com ritos, mitos e contextos bem delimitados, equivale a não acreditar nele de saída. Desse jeito, manteríamos o velho e confortável ateísmo metodológico das Ciências Sociais em relação aos chamados fatos mágicos ou religiosos. Prefiro buscar outra saída, que passe bem longe de qualquer paternalismo ontoepistemológico, para tentar apreender o dinamismo e a criatividade de Exu.

Por que não a procurar na transitoriedade, no encontro de dimensões diversas, em processos concomitantes de objetivação e subjetivação, na encruzilhada? Não há como etnografar um deus sem uma investigação reflexiva a respeito de nossas próprias categorias analíticas e pensar efetivamente o outro ou com o outro costuma envolver um engajamento conceitual, uma espécie de experimento metafísico, no qual método e teoria, filosofia e prática empírica devem caminhar juntas, indistintamente. Não deveríamos nos contentar, acima ou por baixo de tudo, com fronteiras tão arbitrárias, desencantadas e estreitas.

No meio do redemoinho

Ó wà lẹ́sẹ̀ l’abọwọlé s’orí àgbékọ́ ìlẹ̀kùn Ele está de pé no limiar, na cabeça da porta.9 9 Oriki (saudação) em Yorubá dedicada a Exu. Tradução própria.

Pesquisar Exu equivale muitas vezes a perder o chão, inclusive. Esse orixá possui todas as características de um trickster. Seus mitos exploraram, até às últimas consequências, sua atividade incessante de mensageiro e mediador estrutural entre categorias sensíveis e inteligíveis (Cf. Lévi-Strauss 1955LÉVI-STRAUSS, Claude. (1955), “A estrutura dos mitos”. In: C. Lévi-Strauss. (2008) [1958], Antropologia Estrutural. São Paulo: Cosac Naify.:241-245). Exu é velho e menino, singular e plural, além de saber de tudo, falar todas as línguas e ignorar quaisquer restrições espaço-temporais. Como era de se esperar, sua moralidade é ambígua. Ele é capaz de contemplar os múltiplos lados de cada situação e de estar simultaneamente em todos eles. Exu, que deve ser procurado, sobretudo, nos espaços públicos, é chamado de “o dono da rua” e vive, especialmente, nas encruzilhadas. Esse orixá rege também o destino de tudo. Ele é o responsável pelas dinâmicas de encontro, confronto e dispersão de coisas e pessoas, pela abertura e fechamento das possibilidades, dos caminhos.

Entretanto, Exu não é um intermediário humilde ou neutro. Um de seus orikis paradoxais diz que ele, o grande elebó - sacrificador e condutor das oferendas (ebós) - teria a cabeça pontuda como uma faca (ṣónṣó ọbẹ) para não carregar fardos ou despachos (kò l´orí ẹru/ kò l´orí ẹbọ) (Santos; Santos 1971SANTOS, Deoscóredes dos; SANTOS, Juana dos. (1971), Esu Bara Laroye. Ibadan: IAS. ). Ou seja, Exu sempre exige algo em troca de seu trabalho e só transporta o que quer.

Tudo o que é tocado por ele - ou seja, tudo o que existe - está sujeito à instabilidade, à surpresa e sua atuação de mediador, de transformador supremo, é eminentemente política (Cf. Latour 2012LATOUR, Bruno. (2012) [2005], Reagregando o social. Salvador: EDUFBA.:62-69). Nas palavras de Georges Balandier, Legba - deidade equivalente a Exu entre os vizinhos dos Yorubás, os povos de língua Fongbe (Pelton 1980PELTON, Robert (1980), The Trickster in West Africa. Berkeley: University of California.) - fixa e renova o poder através de suas contradições. Exu obriga governantes e governados a confrontarem-se, negociarem estratégias e buscarem consensos parciais, pois “sem o movimento, sem reconhecer e gerir a desordem que ele não pode deixar de engendrar, a ordem reduziria a sociedade ao estado de um astro frio” (Balandier 1982BALANDIER, Georges. (1982) [1980], O Poder em Cena. Brasília: UNB.:27). Talvez não seja à toa, portanto, que em minha pesquisa o inesperado corresponda à regra.

No dia 4 de junho, por exemplo, fui surpreendido quando soube, pela internet, que a prefeitura de Porto Alegre lançaria na manhã seguinte um edital de concessão da administração do Mercado central da cidade à iniciativa privada (Porto Alegre 2020aPORTO ALEGRE. (2020a), Edital de Licitação - Concorrência Pública, nº 10/2020: Concessão de Uso do Mercado Público Central de Porto Alegre. Porto Alegre: Prefeitura Municipal.). Desde então minha pesquisa no Sul assumiu outro ímpeto, apesar da distância. Os contatos estabelecidos em março foram intensificados e uma rede “em defesa do Mercado Público” (Sell 2020SELL, Adeli. (2020), Salve o Mercado Público. Disponível em: Disponível em: https://www.salveomercadopublico.com/ . Acesso em: 09/12/20.
https://www.salveomercadopublico.com/...
) que já estava articulada e que era formada por atores muito heterogêneos, alterou-se onticamente - ou seja, adquiriu novos formatos e qualidades. Nessa rede que ganhou corpo, efetivando-se em uma multiplicidade de ações, destacavam-se a associação dos mercadeiros, encabeçados por Adriana Kauer, os gabinetes da deputada Sofia Cavedon (PT) e do vereador Adeli Sell (PT), com seus advogados e assessores, e a Associação Independente em Defesa das Religiões Afro-Brasileiras (ASIDRAB), presidida por Pai Tiago.

Evidentemente as demandas e expectativas deles em relação a meu trabalho aumentaram. Toda essa mobilização para enfrentar uma peleia - um embate de grandes proporções segundo uma expressão local - agora incluía-me, enquanto pesquisador e aliado recém-chegado. Pela tela do meu celular e por minha caixa de e-mails, que virou um arquivo improvisado, passaram muitos links, notícias, avaliações e documentos. De certo modo, o estranho enquadramento imposto pela pandemia colocava-me formalmente nas mesmas condições dos meus parceiros de pesquisa. Todos nós participávamos dessa rede virtualmente e ainda que eu estivesse no Rio Grande do Sul, nosso contato dar-se-ia dessa maneira. Havia ali, portanto, uma conexão, mediada por dispositivos eletrônicos, entre espaços de acesso restrito, uns domésticos - as casas e os terreiros, também chamados de ilês (casas em Yorubá) - e outros públicos, como a Câmara de Vereadores e alguns tribunais.

Fiquei ainda mais espantado quando, meses depois, no dia 24 de agosto, esse mesmo edital - já embargado pelo Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul (Tce-RS 2020TCE-RS. (2020), Decisão (Ação Cautelar) - Processo nº 30344-0200/19-2, 24/07/2020. Disponível em: Disponível em: http://lproweb.procempa.com.br/pmpa/prefpoa/cs/usu_doc/decisao_liminar_mercadopdf . Acesso em: 21/03/22.
http://lproweb.procempa.com.br/pmpa/pref...
) e revogado pela própria prefeitura (Porto Alegre 2020bPORTO ALEGRE. (2020b), “Suspensão de Concorrência”. Diário Oficial de Porto Alegre, ano XXV, ed. 6309, 03/08/2020: 18. ) - voltou a valer por conta da decisão de outra instância jurídica. Em seguida, ele seria derrubado novamente.10 10 As idas e vindas dessa disputa judicial podem ser acessadas neste site criado pelo gabinete do vereador Adeli Sell (Sell 2020) e por uma grande quantidade de matérias veiculadas pela imprensa local. Indico, respectivamente, uma das primeiras e uma das últimas notícias on-line desse amplo acervo: Barcellos 2017 e Comunello 2020. A sensação era de que as regras do jogo mudavam a cada turno, que muitas escalas e interesses sobrepunham-se e que tudo poderia acontecer.

Não era só eu quem ficava abismado em meio às variáveis dessa disputa na qual ambas as partes jogavam com elementos surpresa e ações repentinas. Pai Tiago, por exemplo, ficou aflito quando soube, também no dia anterior, do lançamento do edital de concessão. Ele gravou, então, uma live improvisada em sua casa, na Zona Sul de Porto Alegre. Visivelmente nervoso, o pai de santo advertia:

Nós podemos perder o nosso espaço sagrado (...). A gente não tá falando só do Bará do Mercado. Todas as paredes, todos os portais, todos os caminhos internos e externos do Mercado Público são espaços sagrados desde quando ele não existia. Desde quando as ganhadeiras vendiam seus quitutes, seus produtos, pra comprar a alforria dos seus maridos, dos seus parentes, dos seus amigos. (Martins 2020MARTINS, Tiago (Pai Tiago) (2020), Estamos Correndo o Risco de Perder o Mercado Público. Disponível em: Disponível em: https://www.facebook.com/100004052967419/videos/2061301957348216/ . Acesso em: 18/12/20.
https://www.facebook.com/100004052967419...
)

Na avaliação da maioria dos batuqueiros, o prefeito teria aproveitado a crise sanitária para tocar o projeto de modo rápido e sorrateiro. O fato indignava-os, uma vez que eles - assim como os afro-religiosos brasileiros de modo geral - têm enfrentado a Covid-19 com paciência, respeitando todas as recomendações sanitárias locais. Nesses cultos, afinal, tudo é feito de modo cíclico e lento, com longos períodos de resguardo entre um ritual e outro e, sobretudo, deve-se zelar pela memória dos mortos.

A prefeitura, de outro lado, havia confirmado sua intenção de lançar esse edital em setembro de 2019. Algumas consultas públicas foram convocadas para discuti-lo. Em março desse ano, ocorreu a última audiência pública na ALRS, poucos dias antes do isolamento social compulsório, e na qual estive presente. Depois disso, por conta da pandemia e por meio de decretos especiais, a prefeitura alterou o funcionamento do Mercado algumas vezes, à revelia dos mercadeiros.

A proposta de remodelar o estabelecimento era antiga. As intenções da atual prefeitura acompanhavam uma tendência recorrente em uma série histórica maior. Em nome da modernidade ou, mais recentemente, do empreendedorismo e da revitalização urbana, desde o início do século XX tentou-se diversas vezes gentrificar os arredores do Mercado, limitar suas atividades ou simplesmente demolir seu prédio (Cf. Marques 2017MARQUES, Olavo. (2017), Sobre raízes e redes; territorialidades negras no Sul do Brasil. Porto Alegre: EDUFRGS . ). A fala de Pai Tiago, portanto, explicitava e atualizava essas tensões contínuas.

Para Andrew Moutu, antropólogo melanésio de inspiração heideggeriana, em situações e escalas variadas, o ato de reunir e reorganizar objetos, recordações ou disposições dispersas deflagra modos de existir que constroem e reconstroem reiteradamente determinadas pessoas, instituições ou comunidades (Moutu 2007). Tais ações, instadas pelas contingências, opacidades e resistências das coisas, confundem-se com o ser e pressupõem, em sua visão, uma dialética permanente, necessária, entre o risco pressentido, a experiência da perda e a projeção de novos possíveis.

No meu caso, essa dinâmica de perder-se a todo instante e reencontrar-se provisoriamente envolvia muitos níveis, indo dos efeitos etnográficos (Strathern 1999STRATHERN, Marilyn. (1999), “O Efeito Etnográfico”. In: M. Strathern. (2014), O Efeito Etnográfico. São Paulo: Cosac Naify . ) da escrita, com suas adaptações projetivas e retroflexas do vivido, à revisão semanal dos meus planos de pesquisa. Essas reações espelhavam, evidentemente, a variação das decisões judiciais e as movimentações dos meus parceiros de pesquisa gaúchos. Afinal, o medo desempenhou um papel crucial para a ativação de uma rede que envolvia, em suas malhas, diversos setores da sociedade civil (dos afro-religiosos e comerciantes à seção regional da Ordem dos Advogados do Brasil, OAB-RS) e da política institucional (do poder legislativo local aos serviços de patrimônio regional e nacional, o TCE-RS e o Ministério Público). Essa união insólita foi impulsionada pela intenção de prevenir as possíveis descaracterizações ou mesmo danos ao Mercado Público e seu entorno.

Embora os planos da prefeitura tenham sido embargados por enquanto, a batalha judicial e cosmopolítica em torno desse território está longe de terminar. De minha parte, antes que pudesse acostumar-me com o vaivém dos procedimentos judiciais e com sua terminologia hermética, passei a perder meu chão de outras formas. Fui obrigado a agir em prol dos meus parceiros, envolvendo-me diretamente nessa peleia e sendo instado, por eles, a levantar ou sistematizar dados histórico-etnográficos no tempo acelerado da política. Ou seja, tive de atuar publicamente, sem saber direito onde estava pisando e muito mais cedo do que gostaria, dada a urgência da situação. Ainda em junho, fui citado numa live da Asidrab, logo depois fui entrevistado por Adeli, participei de outras lives e, em poucas semanas, as informações da minha pesquisa incipiente passaram a ser anexadas a documentos judiciais, ajudando a embasar, por exemplo, o embargo à concessão determinado pelo TCE-RS (2020).

Como fica evidente na fala de Pai Tiago, todo o Mercado - com suas paredes e caminhos, seu interior e exterior, seu presente e o passado anterior à construção - é um espaço sagrado. Para dimensionarmos essa sacralidade, passo a descrever melhor os paralelos e as diferenças entre o Bembé santo-amarense e o Bará gaúcho situando-os em seus respectivos contextos regionais.

Territórios sagrados

No meio do Mercado central de Porto Alegre, no cruzeiro formado pelo encontro das duas vias que dividem suas lojas e armazéns em quatro partes, há um assentamento de Bará. Em outras palavras, certos objetos poderosos, que consubstanciam a presença desse orixá, estariam enterrados ali,11 11 Cf. Sansi 2005, Anjos 2008; Queiroz 2019 e 2021. No candomblé e no batuque as pessoas dos fiéis ou das divindades devem ser produzidas, assentadas e plantadas, isto é, enterradas cuidadosamente. Assentamentos são pedras (otás, okutás) e outros objetos que servem de suporte para os fundamentos (áwo) que mantêm vivo/em circulação a força (axé) de alguém. Os assentamentos, que devem ser ritualmente construídos ao longo do tempo, são dotados de vida e de agência. junto aos alicerces da construção. Na verdade, o Bará, além de mediar uma série de relações de compra, venda e troca de comida e produtos religiosos no interior deste espaço, é tido como o patrono desse edifício e, conforme veremos, da própria cidade.

Os fundamentos do Bará e os alicerces do Mercado confundem-se, afinal ele teria sido assentado pelos escravizados que construíram o prédio em 1869 ou, em outras versões da história, por uma importante personalidade regional, o nobre oeste-africano Osuanlele Okizi Erupê, mais conhecido como Príncipe Custódio. Custódio, membro da família real de Ajudá, no atual Benin, veio para o Brasil exilado por motivos políticos, chegando a Porto Alegre no final do século XIX. Ele teria sido proprietário, inclusive, de uma banca no Mercado, no início do século seguinte (Oro et al. 2007ORO, Ari; ANJOS, José C. dos; CUNHA, Mateus. (2007), A tradição do Bará do Mercado. Porto Alegre: PMPA/SMC.; Rocha 2007ROCHA, Ana (dir.). (2007), A tradição do Bará do Mercado: os caminhos invisíveis do negro em Porto Alegre (DVD). Porto Alegre: PMPA/SMC ., Marques 2017MARQUES, Olavo. (2017), Sobre raízes e redes; territorialidades negras no Sul do Brasil. Porto Alegre: EDUFRGS . ; Silva 1999SILVA, Maria Helena. (1999), O “Príncipe” Custódio e a “Religião” Afro-Gaúcha. Recife: Dissertação de Mestrado em Antropologia, UFPE.; Scherer & Weimer 2021SCHERER, Jovani; WEIMER, Rodrigo. (2021), No refluxo dos retornados: Custódio Joaquim de Almeida, o príncipe africano de Porto Alegre. Porto Alegre: APERS.).

Desnecessário dizer que o Bará está vivo e que seu axé é diligentemente renovado. Bará come, ou seja, recebe, sob a forma de oferenda espontâneas, balas de mel e outras dádivas, em geral de moedas e chaves, que são deixadas em seu cruzeiro. Sua força circula, além disso, quando, em dias comuns e sem aviso prévio, certos grupos de fiéis posicionam-se ao lado do assentamento para oferecer serviços como defumações e limpezas espirituais (Figura1).

Figura 1
O axé do orixá Bará, renovado por meio de oferendas, circula no Mercado Público de Porto Alegre - Março de 2020.

Nas palavras da mãe de santo Yá Vera Soares de Oyá, ditas na ALRS, durante aquela audiência pública do dia 11 de março:

É Exu, que mora no meio do Mercado Público, que não é aquele serzinho com guampa, rabo, toco e asa, mas é a circularidade, é a comunicação, é a sobrevivência dos povos, da vida. Independente do deus que eu acredite ou que cada um acredite, a rua tem dono e essa rua chama-se Exu. É Bará, Elegbara que tá lá! (TV ALRS 2020TV ALRS. (2020), Audiência pública sobre o inventário dos bens culturais que compõem a condição de patrimônio cultural do Mercado Público de Porto Alegre. Disponível em: Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=lcCmyYVhFK0&t =6263s . Acesso em: 19/08/20.
https://www.youtube.com/watch?v=lcCmyYVh...
)

Já em Santo Amaro, anualmente, o Mercado Municipal é tomado pelo Bembé, uma oferenda coletiva que, sob o aspecto de uma enorme festa de candomblé, reúne todos os terreiros da cidade. O Bembé comemora o fim da escravidão e prolonga-se por mais de uma semana entre fogos de artifício, toques de tambor, grandes quantidades de comida votiva arriada no chão do Mercado, cortejos com os presentes dos comerciantes em caminhonetes e, finalmente, shows de artistas de fama regional contratados pela prefeitura - à revelia, aliás, dos atores religiosos que protagonizam a cerimônia. Toda a cidade se envolve no ritual ou, pelo menos, é obrigada a tolerá-lo, uma vez que desastres naturais terríveis como inundações e incêndios teriam ocorrido todas as vezes que o poder público ou a igreja católica quiseram acabar com o Bembé. Exu também desempenha um papel fundamental nessa festividade, mediando todas as suas fases que vão de uma invocação inicial aos ancestrais até a entrega do presente para Iemanjá e Oxum - divindades ligadas às águas - em Itapema, um dos vilarejos praieiros do município (Machado 2009MACHADO, Ana. (2009), Bembé do Largo do Mercado. Salvador: Dissertação de Mestrado do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Estudos Étnicos e Africanos, UFBA.; Iphan 2019IPHAN. (2019), Dossiê do Bembé do Mercado - Instrução de Registro, Processo: 01450.004789/2014-46. Brasília: IPHAN.).

Além disso, a presença dessa entidade no Bembé se estende no tempo - em cerimônias fechadas, dentro nos terreiros, nas semanas que antecedem o ritual - e no espaço. No começo da festa, Exu come nas estradas que dão acesso ao município (Machado 2009MACHADO, Ana. (2009), Bembé do Largo do Mercado. Salvador: Dissertação de Mestrado do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Estudos Étnicos e Africanos, UFBA.:49). Há também um assentamento coletivo dedicado a ele, à terra - reverenciada sob a forma de Intoto, temível divindade ctônica associada aos eguns (ancestrais) (Id.: 54-59) - e a outros orixás, no largo que fica defronte desse outro Mercado central (Figuras 2 e 3). Por fim, diz-se que Exu o habita permanentemente.

Figuras 2
No mês de maio, o Mercado Municipal de Santo Amaro converte-se em um barracão de candomblé (Figura 2) por meio da reabertura do mencionado assentamento coletivo (Figura 3) e da renovação dos sacrifícios oferecidos sobre ele - Maio de 2020.

Figura 3:
reabertura do mencionado assentamento coletivo (Figura 3) e da renovação dos sacrifícios oferecidos sobre ele - Maio de 2020.

Portanto, além de mercadorias e dinheiro, lembranças, narrativas e pessoas, humanas e não humanas, circulam por esses espaços. Nas duas localidades em que estão inseridas, as atividades sagradas que são performadas na vizinhança desses assentamentos - ou seja, desses “objetos que mediam [a] agência social” (Gell 1998GELL, Alfred. (1998), Art and agency. Oxford: Claredon.:7) das mais diversas maneiras - envolvem noções de tempo e espaço que apontam para uma historicidade compartilhada. Tal historicidade apoia-se em conceitos específicos e interligados de território e ancestralidade. Esses fundamentos atravessam, consequentemente, tanto a memória pública ou oficial dessas cidades por estarem enterrados em espaços públicos, históricos e centrais, como também perpassam inúmeras memórias privadas (Balandier 1969BALANDIER, Georges. (1969) [1967], Antropologia Política. São Paulo: Edusp.; Shaw 2002SHAW, Rosalind. (2002), Memories of the slave trade. Chicago: University of Chicago.) afetivas ou familiares.

Na verdade, as coisas, os produtos, entes ou valores que se encontram nesses lugares não devem ser encarados como itens discretos que coexistem casualmente, mas, sim, enquanto feixes de relações ou relações de relações. Os circuitos pelos quais tais seres e objetos passam constituem-se mutuamente. Seus elementos mudam onticamente de lado, de qualidade, o tempo todo, adquirindo novas conformações e significados. É isso o que ocorre, por exemplo, quando uma singela oferenda depositada no chão de um desses mercados articula domínios diversos - do parentesco religioso à experiência pessoal e à sobrenatureza - por meio das mercadorias adquiridas ali mesmo. Não é à toa que Exu preside essas trocas simbólico-materiais. A agência desse orixá incide, afinal, especialmente sobre os “estados potenciais indeterminados” (Cardoso & Head 2015:184) das coisas e as associações imprevisíveis que podem surgir entre elas.

Tais dimensões também estão presentes nos processos de patrimonialização que foram instaurados, em ambos os casos, por uma associação entre o povo de santo, políticos, movimentos sociais e intelectuais - considerando-se que a salvaguarda de templos, espaços de culto em áreas abertas e celebrações de rua, corresponde a uma modalidade recorrente de ocupação do espaço público pelos afro-religiosos e por outros segmentos ditos “populares” desde o tombamento pioneiro de um terreiro de candomblé pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) na década de 1980 (Arantes 2008ARANTES, Antônio. (2008), “African-Brazilian Cultural References in National Heritage”. Vibrant, vol. 5, nº 1: 20-33.; Giumbelli 2008GIUMBELLI, Emerson. (2008), “A Presença do Religioso no Espaço Público: modalidades no Brasil.” Religião e Sociedade, vol. 28, nº 2: 80-101.).

Todavia, nas duas localidades enfocadas, essas mobilizações paralelas tiveram encaminhamentos diferentes. O Bembé foi registrado como “patrimônio cultural do Brasil” pelo Iphan em 2019 (Iphan 2019). O prédio do Mercado Público da capital gaúcha foi tombado na década de 1970, como patrimônio histórico municipal, seu entorno foi declarado sítio arqueológico, e mesmo o Bará detém o título de “patrimônio imaterial de Porto Alegre” desde 2013 (Marques 2017MARQUES, Olavo. (2017), Sobre raízes e redes; territorialidades negras no Sul do Brasil. Porto Alegre: EDUFRGS . ). O ofício dos mercadeiros e o próprio assentamento não estão totalmente protegidos, porém. Essa fragilidade jurídica veio à tona em 2020 exatamente com a possibilidade de concessão de sua administração do Mercado à iniciativa privada, o que provavelmente cercearia suas práticas comerciais e religiosas habituais. Com efeito, a mobilização que acompanhei e participei ao longo desse ano visava a patrimonialização definitiva, na esfera federal, daquela construção e da chamada tradição do Bará do Mercado (Oro et al. 2007ORO, Ari; ANJOS, José C. dos; CUNHA, Mateus. (2007), A tradição do Bará do Mercado. Porto Alegre: PMPA/SMC.; Rocha 2007ROCHA, Ana (dir.). (2007), A tradição do Bará do Mercado: os caminhos invisíveis do negro em Porto Alegre (DVD). Porto Alegre: PMPA/SMC .).

O instrumento legal acionado nos dois contextos foi o registro enquanto patrimônio imaterial, à luz das normativas do Iphan e da Unesco do início dos anos 2000 (Arantes 2009ARANTES, Antônio. (2009), “Sobre inventários e outros instrumentos de salvaguarda do patrimônio cultural intangível.” Anuário Antropológico/2007-2008: 173-222.). No entanto, afora o caráter intermitente dos rituais que ocorrem nesses mercados, as táticas conjunturais que caracterizam suas oposições segmentares, como diria Evans-Pritchard, ou as dinâmicas de negociação das distinções e identidades étnicas - dimensões que evidentemente desempenham um papel importante nestes casos -, a materialidade dos territórios, enquanto espaços sagrados habitados por divindades e ancestrais, é determinante em ambas as localidades. Tais espaços não são apenas subsistentes nem são palcos vazios destinados à livre simbolização ou à demarcação de fronteiras sociais.

Para Milton Santos (Santos 2005SANTOS, Milton. (2005) [1994], “O retorno do território”. OSAL: Observatorio Social de América Latina, ano 6, nº 16: 251-261.), geógrafo cuja produção inspira a abordagem espacial adotada aqui, é no território, entendido como uma associação entre “objetos e ações” que compõem um “espaço habitado” (Idem 255), que ocorre a interconexão de contextos locais e globais, entre o mundo - “conjunto de possibilidades” e amplas redes de comunicação marcado por relações de poder remotas e verticais - e o lugar, área específica e socialmente significativa.

No entanto, esse espaço dinâmico, relacional e socialmente construído fundamenta-se, sobretudo, nas relações cotidianas, horizontais, de proximidade e contiguidade. Os lugares habitados e constantemente negociados com o mundo potencialmente desterritorializante dos trânsitos migratórios, de capital ou de informação, acabam retornando sempre, em uma espécie de “revanche” (Id. ibid.), por força de seus vínculos de vizinhança, das microinterações que, sendo aparentemente frágeis, adaptam-se e resistem surpreendentemente em sua concretude localizada. Afinal, todos os seres e objetos ocupam sucessiva e necessariamente determinados lugares e instantes, ainda que sejam resultantes de múltiplos vetores, intensidades ou movimentos de troca, circulação e distribuição (Anjos 2008ANJOS, José C. dos. (2008), “A filosofia política da religiosidade afro-brasileira como patrimônio cultural africano”. Debates do NER, vol. 9, nº 13: 77-96. ; Ingold 2011INGOLD, Tim. (2011), Being Alive. Londres: Routledge .; Strathern 2014).

Proponho aqui o alargamento dessa ideia de mundo pela inclusão de outros “conjuntos[s] de possibilidades”, outras relações remotas de poder, protagonizadas pelos deuses e ancestrais. Seus domínios, marcados pela alteridade radical, também atravessam o espaço percebido e vivido, efetivando-se em uma rede de produção de quase-humanos e quase-objetos (Latour 2002LATOUR, Bruno. (2002) [1996], Reflexão sobre o culto moderno dos deuses fe(i)tiches. Florianópolis: EDUSC.) que, por meio de mediações, precauções e apetrechos rituais, também passam da distância para a imanência (Holbraad 2007HOLBRAAD, Michael. (2007), “The Power of Powder: multiplicity and motion in the divinatory cosmology of Cuban Ifá” In: A. Henare et al. (org.). Thinking Through Things: theorising artefacts ethnographically. Londres: Routledge.). O território é, portanto, uma potência virtual naturante que mesmo em condições adversas tende a atualizar-se continuamente, como a árvore ancestral de Darlei.

No último Bembé, essa territorialidade atualizou-se dentro de seus limites mínimos, de modo superconcentrado. A cerimônia foi realizada sumariamente, em respeito aos “rituais da tradição com a nossa ancestralidade e os orixás” (Chaves 2020CHAVES, José (Pai Pote). (2020), Comunicado à população de Santo Amaro: Bembé do Mercado e Pandemia. Santo Amaro: Associação Beneficente Bembé do Mercado de Santo Amaro.), conforme anunciava o comunicado oficial dos terreiros que circulou pela cidade no início de maio. As oferendas foram arriadas em uma praça vazia, sem “aglomerações, foguetes e atabaques” (Id.). Além disso, a simbologia sacrificial da celebração sofreu uma inflexão significativa. Em vez de festejar a vida, a comida ritual destinou-se, nas palavras de uma jovem líder religiosa local, Mãe Manuela de Ogunjá, a “dar satisfação aos ancestrais” (Pereira e Portela 2020PEREIRA, Manuela (Mãe Manuela); PORTELA, Adriano. (2020), Religiões de Matriz Africana: combate à intolerância religiosa. Disponível em: Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=q8Tvr BHGMf4 . Acesso em: 23/12/20.
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). Em última instância, os suportes básicos do território - o chão do Mercado Municipal, a terra, os poderes ctônicos de Intoto e os mortos - foram reverenciados e alimentados.

No alvoroço desse ano ao redor do Bará, os mesmos elementos - pandemia, morte, ancestrais, orixás, memória e território - potenciaram uns aos outros, maximizando seus efeitos e estendendo seus limites através da mobilização on-line, de performances públicas político-religiosas e de uma rede de alianças variadas. Nos dois casos, a perda em potencial de mortos pela Covid-19 ou do acesso ao Bará, estimulou o reforço ritual e a reemergência do território frente a poderes remotos muito diversos que iam do desagrado dos mortos às redes multinacionais de especulação imobiliária interessadas no Centro Histórico de Porto Alegre. Porém, entre esses mundos distantes e o lugar ocupado pelos dois mercados, seus respectivos contextos regionais interpõem-se, devendo ser levados em conta, ainda que brevemente.

Para os santo-amarenses, a cultura negra e o Bembé são vistos como elementos importantes que definem a história local, fato que se expressa, dentre outras coisas, no sucesso da patrimonialização desse ritual. Todavia, as assimetrias racializadas de poder persistem, junto a velhas disputas pela memória regional e a atuação, muitas vezes intolerante e violenta, dos setores mais conservadores do Recôncavo Baiano como um todo (Cf. Machado 2009MACHADO, Ana. (2009), Bembé do Largo do Mercado. Salvador: Dissertação de Mestrado do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Estudos Étnicos e Africanos, UFBA.). Nesse sentido, Darlei e Mãe Manuela destacaram em nossas conversas e nas lives que fizeram em maio, a importância do reconhecimento estatal do Bembé e de sua recente visibilidade midiática que, para eles, converter-se-iam em novas possibilidades de geração de renda, respeito social e representatividade política. A legitimação dos cultos afro-gaúchos é muito mais tensa, conforme veremos a seguir, e envolve muitas outras peleias, como foi o caso da alongada polêmica do abate religioso de animais que começou no Rio Grande do Sul e chegou até o Supremo Tribunal Federal (Cf. Oro et al. 2017ORO, Ari; CARVALHO, Erico; SCURO, Juan. (2017), “O sacrifício de animais nas religiões afro-brasileiras: uma polêmica recorrente no Rio Grande do Sul”. Religião e Sociedade, vol. 37, nº 2: 229-253.).

Como era de se esperar, sob o ponto de vista da patrimonialização de seus respectivos assentamentos e performances sagradas, as estratégias adotadas nessas duas localidades, o ritmo e o sucesso relativo de seus registros têm sido bastante diferentes e certamente produzirão estilos de salvaguarda diversos (Cf. Arantes 2009ARANTES, Antônio. (2009), “Sobre inventários e outros instrumentos de salvaguarda do patrimônio cultural intangível.” Anuário Antropológico/2007-2008: 173-222.). Em ambas, porém, além do retorno do território, observa-se a recorrência do tempo mítico ou ancestral consubstancializado nos sacrifícios e em outros gestos que incorporam e atualizam memórias rituais (Shaw 2002SHAW, Rosalind. (2002), Memories of the slave trade. Chicago: University of Chicago.).

Essa revanche do tempo tende, outra vez, a situar-se nos limites opostos de uma mesma ordenação estrutural. A ocupação ritual do reduzido centro de Santo Amaro é superintensa, mas ocorre uma vez por ano, em datas preestabelecidas. Já o Centro Histórico da capital gaúcha não costuma passar por essa transfiguração simultaneamente delimitada e total. Sua temporalidade sagrada é diluída em ritos mais simples, que acontecem a todo momento. Não obstante, tais práticas cotidianas exercem uma pressão contínua sobre esse território por reiterarem, ao longo de suas superfícies e fronteiras, uma série de memórias contra-hegemônicas. De todo modo, ambas as dimensões estão presentes, com sinais trocados, nos dois lugares. Os fiéis também reverenciam discretamente o Exu do Mercado Municipal de Santo Amaro no dia a dia e, por vezes, os batuqueiros reúnem-se em grandes atos políticos-religiosos em defesa do Bará.

A seguir, concentro ainda mais meu foco analítico no Mercado Público de Porto Alegre e em seu ritual mais importante, o passeio, uma vez que a territorialidade afro-religiosa desse lugar especialmente conflituoso pode servir-nos de atalho para uma reflexão final sobre assentamentos, dinâmicas e escalas de ação político-ritual.

Memória das águas

Situado na zona portuária da cidade, o Mercado Público destacava-se, desde sua abertura, como “o coração de Porto Alegre”, conforme uma expressão cara aos meus parceiros de pesquisa gaúchos. A disputa pela história desse lugar e de seu entorno é antiga, não corresponde exatamente à manutenção de memórias nostálgicas ou abstratas, nem se dá, predominantemente, num plano discursivo. Ela ocorre de forma concreta e na maior parte do tempo silenciosa, por meio daquilo que chamo de ação político-ritual, um contínuo que abrange tanto os discretos rituais cotidianamente performados sobre o assentamento de Bará quanto a mobilização política de rua ou às peleias jurídicas.

Retomo, nesse sentido, a fala de Yá Vera na ALRS:

Nós tivemos lutas incessantes por essa questão de território. E no olhar da matriz africana, a questão do nosso sagrado, que centraliza todo um comércio, que movimenta um capital a partir dos povos tradicionais que compram e gastam. E perdura a renda per capita daquilo ali. (...) Mais uma vez querem tirar nossa identidade. A identidade do preto, da tradição africana que perdura neste estado. Porque o Mercado Público está localizado em Porto Alegre, mas ele hegemoniza 60 mil casas tradicionais que tem no estado do Rio Grande do Sul e que, de uma forma ou de outra, vêm, sim, na capital, pra saudar aquele sagrado.

Yá Vera juntava ambos os extremos desse contínuo ao referir-se, durante uma discussão acalorada sobre a concessão do Mercado, ao ritual do passeio. Essa obrigação marca o final da iniciação dos adeptos do batuque. No momento em que o novo batuqueiro está prestes a voltar à sua vida comum, depois de ter ficado recolhido em sua casa de religião, ele deve peregrinar por alguns lugares da cidade de Porto Alegre. Cada adepto, cercado por membros mais antigos de seu terreiro, vai até o Mercado Público, uma igreja - normalmente a do Rosário, também no Centro Histórico - e, finalmente, a uma praia - em geral, o Cais Mauá, bem em frente ao Mercado - para saudar os orixás das águas, especialmente a deusa Oxum. Essa divindade protege, ao lado de Bará, Porto Alegre como um todo.

Para a comunidade negra porto-alegrense e mesmo rio-grandense, em síntese, esse lugar figura como o elemento principal de um contínuo espaço-temporal maior. O Mercado vincula-se a esses outros territórios de referência mística, mas também histórica, da área central da cidade, juntamente com a Alfândega, a Redenção, a Cidade Baixa, a antiga Ilhota e o Areal da Baronesa de Gravataí (Marques 2017MARQUES, Olavo. (2017), Sobre raízes e redes; territorialidades negras no Sul do Brasil. Porto Alegre: EDUFRGS . ). A expressiva população afrodescendente que ocupava historicamente essas áreas passou por dolorosos processos de deslocamento forçado e invisibilização. Tais processos foram (ou melhor, ainda são) contínuos, mas se intensificaram especialmente nas décadas de 1930 e 1970, acompanhando, grosso modo, discursos e políticas urbanísticas conservadoras que se colocavam do lado da modernidade, da civilização e da higiene.

O ritual do passeio atualiza, portanto, a presença negra maciça que existia nesses lugares antes que a desterritorialização e a gentrificação atingissem-nos, unindo-os em um itinerário sagrado. Essa peregrinação - que consagra o novo filho de santo, mas também renova o axé da cidade - reforça a percepção do espaço e do tempo própria do batuque, projetando-a, por alguns momentos, por toda a sua região central.

Se em Santo Amaro os lugares especialmente associados à história negra são os terreiros e os antigos engenhos da colônia ou do império, com suas lembranças do trabalho forçado nas plantations canavieiras ou fumageiras, em Porto Alegre tais espaços da memória correspondem, também, às casas de religião por um lado, mas, por outro, vinculam-se às reminiscências do tráfico negreiro.

No antigo Largo do Paraíso, o terreno onde se localiza o Mercado Público de Porto Alegre, antes mesmo de construírem esse prédio, as chamadas pretas Minas - mulheres oeste-africanas embarcadas, rumo ao Brasil, na Costa da Mina - e uma multidão de ambulantes negros vendiam de tudo, de quitutes e ervas a amuletos. Por ali, entre as docas do carvão e das frutas, passavam também os cativos africanos ou brasileiros recém-chegados, vindos em geral do Rio de Janeiro ou do porto de Paranaguá. A despeito do branqueamento da identidade gaúcha, afinal, Porto Alegre não só foi construída pelas mãos de milhares de escravizados, como também foi uma das grandes cidades escravistas oitocentistas (Berute 2006BERUTE, Gabriel. (2006), Dos escravos que partem para os Portos do Sul. Porto Alegre: Dissertação de mestrado em História, UFRGS.; Moreira 2003MOREIRA, Paulo (2003), Os cativos e os homens de bem: experiências negras no espaço urbano de Porto Alegre. Porto Alegre: EST.).

Essa ligação com a escravidão e com a diáspora africana não se limita, porém, à existência, noutros tempos, de determinados eventos em uma mesma localização ou em suas áreas imediatamente contíguas. Ela se materializa continuamente na paisagem, na disposição dos lugares e no uso do espaço do antigo largo, ainda que isso não seja evidente para os olhos da maioria das pessoas que passam por ali.

Ao discorrer sobre “a importância dos mercados para as religiões afro-brasileiras”, Adalberto Pernambuco - importante intelectual não acadêmico e líder afro-religioso que foi, por décadas, extremamente atuante em Porto Alegre - descreve dessa forma a relação entre tais estabelecimentos e seus entornos na África Ocidental:

As cidades africanas tinham como característica o nascimento do mercado local concomitante com a construção das primeiras casas, localizando-o, invariavelmente, no centro da aldeia. Era um lugar de reuniões onde pessoas, a par do exercício do comércio, tinham a oportunidade de se encontrar, trocar ideias, abordar os mais variados temas e dirigir suas dúvidas sobre isto ou aquilo. Ali faziam ponto os sacerdotes de Ifá, os Babalawos, aguardando os consulentes para, se necessário, encaminhá-los aos Templos, a fim de ouvirem Ifá, o Orixá do Destino e, portanto, da adivinhação. Efetuavam-se transações visando a aquisição de animais destinados ao sacrifício ou de materiais religiosos não fabricados na região. (Pernambuco 2019PERNAMBUCO, Adalberto. (2019), “Da importância dos mercados para as religiões afro-brasileiras”. Debates do NER , vol. 19, nº 35: 49-54.:49)

Pai Pernambuco não relaciona diretamente a África e a diáspora, mas na leitura desse e de outros textos seus as semelhanças desses pontos centrais de referência nas cidades oeste-africanas, caracterizados pela convivência entre sagrado e profano, com o Mercado central da capital gaúcha saltam aos olhos e o autor termina por estabelecer uma comparação implícita entre ambos os contextos.

O paralelo parece ampliar-se ao considerarmos que, na África Ocidental os mercados situam-se junto à sede do poder público. Esse também é o caso da capital gaúcha, lá o Mercado Público é vizinho da prefeitura. Além disso, junto à memória ritual corporificada no passeio, existem certas narrativas que vinculam o Príncipe Custódio às elites políticas da República Velha. Surpreendentemente, ele teria estabelecido boas relações com a alta-roda positivista da época, sendo conselheiro espiritual de alguns de seus líderes e assentando mais seis Barás em pontos estratégicos da cidade - um deles debaixo do palácio do governo estadual (Silva 1999SILVA, Maria Helena. (1999), O “Príncipe” Custódio e a “Religião” Afro-Gaúcha. Recife: Dissertação de Mestrado em Antropologia, UFPE.; Marques 2017MARQUES, Olavo. (2017), Sobre raízes e redes; territorialidades negras no Sul do Brasil. Porto Alegre: EDUFRGS . ). Devemos levar em conta, entretanto, que tais correspondências “não constituem (...) um mero indício do que foi mantido e sobreviveu estático, mas são produtos de um desenvolvimento e inovações independentes, dentro de conjuntos historicamente correlatos e superpostos” (Mintz & Price 2003MINTZ, Sidney; PRICE, Richard. (2003) [1976], O nascimento da cultura afro-americana. Rio de Janeiro: Pallas.:78).

A busca pelos “princípios gramaticais implícitos que geram essas formas” (Id. ibid., ênfase dos autores) - em outras palavras, pelos pressupostos ontológicos que fundamentam os elementos superficialmente perceptíveis, sua realidade ôntica ou sensível - poderia nos conduzir a dimensões imprevistas que permeiam esses territórios sagrados, mas essa tarefa exigiria uma atenção excepcional a inúmeros pormenores. Sabendo que os detalhes constituem, afinal, a base das religiões afro-brasileiras (Neto 2014NETO, Edgar. (2014), “Da feitiçaria como estética ritual nas religiões de matriz africana”. Cadernos de Campo , nº 23: 303-318.; Johnson 2002JOHNSON, Paul. (2002), Secrets, Gossip and Gods: the tansformation of Brazilian candomblé. Oxford: Oxford University.), neste artigo, que já se aproxima de sua conclusão, cabe apenas indicar, em caráter preliminar, alguns elementos que podem expandir o escopo espaço-temporal dos cultos afro-religiosos nos mercados públicos em questão, sugerindo que os entes não humanos que os habitam agem simultaneamente numa área exígua - os buracos onde estão assentados seus fundamentos - e em amplos horizontes “historicamente correlatos e superpostos” ou mesmo macrocosmológicos.

Tanto no candomblé quanto no batuque, emprega-se o termo Yorubá ojúbọ para designar ora assentamentos coletivos, ora assentamentos públicos. Nos primeiros casos, em vez de corporificarem uma única entidade, os objetos enterrados consubstanciam um conjunto de pessoas não humanas ligadas miticamente, como ocorre em Santo Amaro. Já os segundos, caracterizam-se por estarem na rua, fora dos muros dos terreiros. Como todo assentamento, os ojúbọ são coisas muito concretas, dotadas de agência e de força excepcionais, que referenciam a memória das comunidades negras e afro-religiosas, em ambos os contextos analisados. Para dimensionar um aspecto fundamental das historicidades e territorialidades que esses entes-objetos habilitam, uma particularidade mítico-ritual deve ser levada em consideração.

Nos dois casos em análise, há uma associação entre a terra, o subsolo, e as águas. As homenagens aos ancestrais escravizados suscita, em Santo Amaro, um processo ritual que vai dos ebós de Exu, arriados nos acessos terrestres da cidade, à veneração de uma divindade ctônica (Machado 2009MACHADO, Ana. (2009), Bembé do Largo do Mercado. Salvador: Dissertação de Mestrado do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Estudos Étnicos e Africanos, UFBA.:49) e à descida de um balaio de oferendas ao fundo do mar. Já em Porto Alegre, uma qualidade específica de Bará promove este vínculo tríplice - entre as mesmas dimensões horizontais, os caminhos terrestres, as vias navegáveis e a verticalidade subterrânea. Trata-se de Bará Agelú Ọlọ̀jà, um Bará jovem, ligado aos cursos d’água e que atua como o “dono do mercado.”

Todavia, nossos ojúbọ e candomblés-de-rua não são casos isolados. Não estamos entrevendo aqui uma coincidência ou um nexo funcional simplista entre certos mercados, suas áreas contíguas e o trajeto de suas mercadorias. Na verdade, essa ordenação simbólica do espaço aponta para uma estrutura mítico-ritual maior que se atualiza e se transforma em outras margens do chamado Atlântico Negro (Gilroy 1993GILROY, Paul. (1993), The Black Atlantic. Nova York: Verso.). Essa relação entre o comércio de modo geral, os mercados públicos em particular e o orixá Exu ou Legba assentados, normalmente junto a entidades tutelares das águas, em suas dependências ou cultuados por seus mercadores, é encontrada também na Nigéria, no Benin, em Togo e em diversos pontos da diáspora oeste-africana.

Alguns exemplos conhecidos são os cultos de Ayizan, mãe ou esposa de Legba ligada também ao solo, às terras contíguas aos grandes cursos d’água, como os portos, aos ancestrais e ao comércio - pelos comerciantes do Haiti e de Nova Orleans, os mercados de Houndjrò no complexo palaciano de Abomé e o assentamento de Èṣù Bará no mercado de Akesan, ao lado da sede da maior formação política da história Yorubá, o antigo império de Oyó. Outros têm vindo à tona recentemente, como o assentamento submerso de Exu defronte à feira de Água de Meninos, principal fonte de abastecimento de Salvador, Bahia (Cf. e.g. Ahoyo 1975AHOYO, Jean-Roger. (1975), “Les Marchés d’Abomey et de Bohicon”. Les Cahiers d’Outre-Mer, vol. 28, nº 110: 162-184.; Adeyemi 2020ADEYEMI, Totoola. (2020), Preservation of Bara Cultural Site. Oyó: Palácio do Alaafin de Oyó.; Nunes 2018NUNES, Luciana. (2018), O exu submerso. Curitiba: Prismas.).

Os entes-objetos, as coisas que se encontram em todo assentamento, estão carregadas de historicidade, pois marcam, em sua “materialidade irredutível” (Pietz 1985PIETZ, William. (1985), “The Problem of the Fetish, I.” RES, nº 9: 5-17.; Goldman 2009GOLDMAN, Márcio. (2009), “Histórias, devires e fetiches das Religiões Afro-brasileiras”. Análise Social, vol. XLIV, nº 190: 105-137.; Sansi 2005SANSI, Roger. (2005), “The Hidden Life of Stones.” Journal of Material Culture, vol.10, nº 2: 139-156., 2009SANSI, Roger. (2009), “Fazer o Santo: dom, iniciação e historicidade nas religiões afro-brasileiras”. Análise Social , vol. XLIV, nº 190: 139-160.; Rabelo 2012RABELO, Miriam. (2012), “Construindo mediações nos circuitos afro-brasileiros”. In: I. Carvalho e C. Steil (org.). Cultura, percepção e ambiente: diálogos com Tim Ingold. São Paulo: Terceiro Nome. ), momentos precisos da construção das pessoas humanas e divinas e dos seus laços de parentesco comunitário e religioso. Em se tratando de um ojúbọ essas dimensões são ampliadas e coletivizadas. Se os assentamentos são o resultado do manuseio de determinados apetrechos que mobilizam presenças, corporificando-as e colocando-as em relação no tempo e no espaço, eles atuam, portanto, como macrodispositivos de produção de territórios. Por fim, os ojúbọ lembram certas estatuetas de Exu que possuem duas cabeças viradas para direções opostas ou a própria encruzilhada que o simboliza. Eles são, afinal, pontos de interseção entre direções contrárias e simetricamente complementares, movimentos centrípetos e centrífugos, grandes rituais periódicos, pequenos gestos de reverência cotidiana e momentos excepcionais de adensamento político.

Foi a partir desses contextos locais atravessados por domínios ontologicamente descontínuos - caso consideremos as possibilidades abertas pelos diversos mundos e (sobre)naturezas que se intercruzam nesses espaços centrais para as cartografias oficiais, étnicas e religiosas de suas respectivas cidades -, que a diáspora oeste-africana fez emergir, enfim, a macrolocalidade intrinsecamente inter-relacionada, dinâmica e processual (Gilroy 1993GILROY, Paul. (1993), The Black Atlantic. Nova York: Verso.; Apter & Derby 2010APTER, Andrew, DERBY, Lauren (org.). (2010), Activating the past: history and memory in the Black Atlantic world. Cambridge: Cambridge Scholars. ; Shaw 2002SHAW, Rosalind. (2002), Memories of the slave trade. Chicago: University of Chicago.) do Atlântico Negro.

Segundo a bibliografia recente, a reconstrução permanente desse território expandido que é um dos resultados imprevistos do tráfico transatlântico passa, exatamente, pelo trânsito de “objetos e ações” (Santos 2005SANTOS, Milton. (2005) [1994], “O retorno do território”. OSAL: Observatorio Social de América Latina, ano 6, nº 16: 251-261.), de mercadorias, migrantes e memórias religiosas (rituais ou incorporadas) que reiteram e modificam continuamente suas antigas histórias. Se atentarmos, especificamente, para as amplas dimensões dessa macrolocalidade, levando-se em conta que em muitos casos as comunidades que o compõem não mantêm um contato direto e ininterrupto, podemos entrever a agência agregadora de Exu Ọlọ̀jà. Sua atividade incessante e multidirecional de transportador e conversor universal de produtos, palavras, valores e ebós, junto à existência continuada dos mortos - que exigem satisfações dos viventes - fundamenta os territórios sagrados ou ancestrais rodeados de espaços laicos, disputas políticas e diferentes formas de habitar, transitar e consumir.

No final de julho, o Ọlọ̀jà me envolveria em outra história extraordinária. Naquele momento fui instado abruptamente a participar da criação de outro documento imediatamente relacionado à peleia em torno do Mercado Público porto-alegrense, mas que teria uma importância histórica muito maior para todo o batuque gaúcho. Pai Tiago telefonou para mim afobado em uma segunda-feira. Ele havia conseguido o contato da embaixatriz de Oyó, atualmente um pequeno domínio monárquico subordinado ao estado nigeriano que mantém um corpo político e diplomático próprio.

Entrei imediatamente em contato com ela para verificar a possibilidade do atual soberano - o alaafin, descendente do rei divinizado Xangô, bastante cultuado no Brasil, e dos demais imperadores de Oyó - ratificar, de alguma forma, a importância do Bará para a diáspora Yorubá. Depois de dois meses de negociação, trocas de e-mails formais e esclarecimentos histórico-etnográficos, consegui que o príncipe Totoola Adeyemi em nome de “His Majesty Oba (Dr.) Lamidi Olayiwola Adeyemi III, The Alaafin of Òyó, the Head of Yorùbá Race” (Adeyemi 2020) escrevesse uma carta “certifica[ndo] a importância do Bará do Mercado, patrimônio histórico e cultural que atesta e promove a continuidade das formas de expressão e da religiosidade Yorubá através do Oceano Atlântico” (Idem, tradução própra). O documento, que deverá ser utilizado para agilizar a patrimonialização definitiva do ojúbọ, foi lido solenemente diante das portas do Mercado Público e de um público de afro-religiosos emocionados no dia 29 de outubro.

Com esse último exemplo, é possível validar a hipótese de fundo deste artigo. O território está menos na ordem do dado que do feito (Goldman 2012GOLDMAN, Márcio. (2012), “O dom e a iniciação revisitados”. Mana, vol.18, nº 2: 269-288. ), podendo ser comparado às divindades afro-religiosas que “são, ao mesmo tempo, construídas, fabricadas, “assentadas” e são, por consequência, reais” (Latour 2002LATOUR, Bruno. (2002) [1996], Reflexão sobre o culto moderno dos deuses fe(i)tiches. Florianópolis: EDUSC.:20, grifo do autor). Os lugares ou espaços sagrados são marcados por lados, qualidades e intensidades (Anjos 2008ANJOS, José C. dos. (2008), “A filosofia política da religiosidade afro-brasileira como patrimônio cultural africano”. Debates do NER, vol. 9, nº 13: 77-96. ) em transformação e retroalimentação constante. Esses processos, portanto, não são reproduções em série de algum passado essencializado. Eles ocorrem, sempre, no presente por meio do cruzamento fenomênico de ações muito concretas, como a escrita transoceânica de uma carta, sacrifícios e sequências rituais.

Por conta dos eventos deflagrados pela possibilidade de concessão do Mercado Público de Porto Alegre, esse encontro de atividades práticas misturadas a intervenções diversas de mundos remotos tornou-se, por lá, particularmente explícito e intenso entre 2019 e 2020, aparecendo regularmente, inclusive, nas páginas da imprensa local ou mesmo nacional. Nesse contexto, fui solicitado a agir como um intermediário, um pesquisador a serviço das demandas da rede na qual fui inserido e um ator político secundário. Quando, numa das lives que participei, fui apresentado espontaneamente como “antropólogo, pesquisador e historiador do batuque gaúcho” pelo sacerdote Cléber de Ogum, senti que, de certa forma, havia passado pela primeira etapa do meu próprio passeio, da minha iniciação no meu novo campo.

Por outro lado, apesar do tom soturno do Bembé desse ano, a patrimonialização recente dessa cerimônia, a ausência de uma disputa territorial imediata e uma situação muito menos tensa, excetuando-se os pavores da pandemia, fizeram com que meus parceiros de pesquisa santo-amarenses pudessem cultuar seus ancestrais sem a necessidade de recorrer tão intensamente à ação de um pesquisador recém-chegado.

Avamunha

No limiar

Se considerássemos os ojúbọ como agrupamentos de objetos concretos, porém inativos, que servem de suportes intercambiáveis para significados abstratos e, não obstante, reais - embasados em noções abrangentes como “processo histórico” ou “sistema cultural” -, os eventos descritos neste artigo transformar-se-iam em disputas exclusivamente humanas revestidas de representações ilusórias.

Contudo, ao “tratar as ideias nativas como conceitos” (Viveiros de Castro 2002VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. (2002), “O Nativo Relativo”. Mana , vol. 8, nº 1:113-148.:125) capazes de dialogar simetricamente com nosso aparato conceitual, não pressupondo um mundo fechado, mas acolhendo-o enquanto um “conjunto de possibilidades” (Santos 2005SANTOS, Milton. (2005) [1994], “O retorno do território”. OSAL: Observatorio Social de América Latina, ano 6, nº 16: 251-261.) abertas pelas e nas coisas, a centralidade da agência não humana torna-se perceptível, pelo menos nos contextos enfocados, e atualiza-se em meio à virtualidade das indagações etnográficas. Tentei demonstrar tais afirmações ao descrever as redes que se estruturam na vizinhança de certos entes-objetos sobredeterminados pela agência múltipla e liminar de um trickster divino. Ressalto, por último, que nem esse jogo de alianças e mediações, nem o manejo habilidoso de dispositivos variados - de aparelhos celulares à parafernália sagrada - são incomuns entre os afro-religiosos.

Todo despacho deixado numa esquina é capaz de unir certos estados dispersos das coisas para a consecução de um propósito. Na verdade, mesmo esse rito elementar, que consiste na doação de alimentos provenientes de um sacrifício, indica a importância e a necessidade da mediação entre domínios incomensuráveis (dos animais, deuses e seres humanos) que é a base de tais religiões.

Os ojúbọ afrodiaspóricos estão na outra ponta do contínuo formado pelas várias instanciações da presença destes cultos no espaço público. Eles são extremamente potentes, atuando como os maiores centros propagadores de axé em suas localidades. Por estarem normalmente enterrados, os ojúbọ não são imediatamente visíveis. Todavia, por uma trama de circunstâncias - que vão de discretas ações de adoração a grandes eventos político-religiosos - esses entes, que são simultaneamente objetos, lugares e territórios, tornam-se muito mais perceptíveis e ostensivos do que os ebós.

Entretanto, os assentamentos estão rodeados de segredos e interditos. O axé distribuído por eles não é uma força existente a priori. Essa potência dinâmica dá vitalidade a tudo, mas está sujeita à entropia. Como tal força corresponde à sua própria motilidade (Cf. Holbraad 2007HOLBRAAD, Michael. (2007), “The Power of Powder: multiplicity and motion in the divinatory cosmology of Cuban Ifá” In: A. Henare et al. (org.). Thinking Through Things: theorising artefacts ethnographically. Londres: Routledge.), o poder que perpassa estes entes-objetos, também envolve riscos e conflitos. Essas tensões são inerentes à materialização da história pessoal ou coletiva pelas coisas assentadas (Cf. Rabelo 2012RABELO, Miriam. (2012), “Construindo mediações nos circuitos afro-brasileiros”. In: I. Carvalho e C. Steil (org.). Cultura, percepção e ambiente: diálogos com Tim Ingold. São Paulo: Terceiro Nome. ). Tais fundamentos podem suscitar o desagrado dos ancestrais e orixás ou perder paulatinamente sua força por conta da manipulação imprópria ou simplesmente do esquecimento. No caso dos ojúbọ esses perigos são exponenciados pelas diversas dimensões que os atravessam. Eles acarretam, consequentemente, um cuidado e uma insegurança ontológica permanentes.

Tais dispositivos de mediação subordinam-se às incertezas de Exu. Neste artigo indiquei que estes entes-objetos frequentemente revelam-se pelo risco, ganhando destaque pela possibilidade de sua perda (Moutu 2007MOUTU, Andrew. (2007), “Collection as a way of being.” In: A. Henare et al. (org.). Thinking Through Things: theorising artefacts ethnographically . Londres: Routledge .; Heidegger 2002HEIDEGGER, Martin. (2002) [1927], Ser e tempo. Campinas/Petrópolis: UNICAMP/Vozes. :399-405). Além disso, como os múltiplos lados, as possibilidades abertas pelas conexões variáveis das coisas (Cardoso & Head 2015), combinam sempre poderes e perigos, controlar intensivamente a produção dos lugares e dos corpos “nem inteiramente autônomo[s], nem inteiramente construído[s]” (Latour 2002LATOUR, Bruno. (2002) [1996], Reflexão sobre o culto moderno dos deuses fe(i)tiches. Florianópolis: EDUSC.:23) dos seres humanos e não humanos converte-se numa preocupação constante para os afro-religiosos.

Esses elementos, saturados de memórias espacializadas nos ilês e nas áreas centrais de suas cidades, habilitam modos de existência - ou seja, “a capacidade (...) de organizar e criar possibilidades de reconceber sentidos e reconfigurar relações sociais” (Moutu 2007MOUTU, Andrew. (2007), “Collection as a way of being.” In: A. Henare et al. (org.). Thinking Through Things: theorising artefacts ethnographically . Londres: Routledge .:94, tradução própria) -, de mediações que visam o ser-com-os-outros ou simplesmente estar junto. Para o povo de santo, são as associações e influências recíprocas que fazem os seres e suas disposições emergirem, e não o contrário, em uma série sucessiva de contextos e ações-escolhas cujo único limite equivale ao curso irrevogável do tempo (Heidegger 2002HEIDEGGER, Martin. (2002) [1927], Ser e tempo. Campinas/Petrópolis: UNICAMP/Vozes. ; 2008HEIDEGGER, Martin. (1951), “Construir, habitar, pensar”. In: M. Heidegger. (2008), Ensaios e conferências. Petrópolis: Vozes. ).

A necessidade constante de produzir aliados e intermediários, mas também de contê-los, pode chegar ao limite da possessão, da incorporação radical da diferença. É assim que meus parceiros de pesquisa, vivenciando a precedência do estar sobre o ser (Cf. Anjos 2008ANJOS, José C. dos. (2008), “A filosofia política da religiosidade afro-brasileira como patrimônio cultural africano”. Debates do NER, vol. 9, nº 13: 77-96. ), terminam por absorver o etnógrafo, a política institucional e o espaço público em modalidades e gradações diversas. Essas associações são, enfim, um ocupar-se dos outros - já diziam os batuqueiros gaúchos, referindo-se aos estados de transe (Idem), muito antes de Heidegger - e um preocupar-se com os outros.

Tudo é construído debaixo das mãos neste mundo de alianças variáveis. Pois os cultos afro-brasileiros correspondem, de fato, a “religiões da mão” (Johnson 2002JOHNSON, Paul. (2002), Secrets, Gossip and Gods: the tansformation of Brazilian candomblé. Oxford: Oxford University.:35) e do cuidado cotidiano. Nelas, a (cosmo)política é, necessariamente, afetiva, no sentido espinozano do termo - ou seja, é feita de entes, palavras e gestos que afetam uns aos outros positiva ou negativamente, ampliando ou limitando suas potencialidades. Por fim, se as fronteiras entre os diversos estados das coisas e das pessoas são pouco definidas (Cardoso & Head 2015), sendo turvadas, muitas vezes, pelo medo, pelo absurdo ou pelo desamparo, é Exu que comanda, com seus paradoxos e zombarias, o vir-a-ser, o caráter naturante de tudo o que existe.

Por isso ele é materializado e assentado nos mercados públicos, nos portos e na entrada das cidades de todo o Atlântico Negro. É por meio de sua atividade incessante que a vida brota de onde menos se espera, as árvores ancestrais voltam à vida, as etnografias tornam-se possíveis em meio a adversidades e surpresas, os pais e mães de santo fazem e refazem suas redes de cooperação e conflito e os territórios sagrados renovam-se por todos os lados, a cada instante.

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    » https://www.youtube.com/watch?v=lcCmyYVhFK0&t =6263s
  • 1
    Toque rápido utilizado para abrir e fechar as festas públicas de candomblé.
  • 2
    Este artigo foi escrito no final de 2020. Para não o sobrecarregar, adoto a seguinte convenção: todas as indicações temporais mencionadas no texto, sem outras especificações, referem-se àquele ano.
  • 3
    A bibliografia sobre as chamadas “religiões/cultos afro-brasileiras(os)”, “de matriz africana”, “de santo”, etc. é imensa. Indico a respeito, apenas a título de localização do tema, Johnson 2002 & Goldman 2012. Sobre o batuque e de outras religiões afro-rio-grandenses cf. Corrêa 2006CORRÊA, Norton. (1992), O batuque do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: EDUFRGS. e Oro 1994ORO, Ari. (1994), As religiões afro-brasileiras do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: EDUFRGS ..
  • 4
    “Dono da cabeça” em Yorubá - língua ritual de origem oeste-africana utilizada em determinadas religiões afro-brasileiras. Esse termo designa as divindades cultuadas nessas comunidades religiosas.
  • 5
    Como, no batuque, Exu e Bará são equivalentes, mas a recíproca não é exatamente verdadeira, uma vez que, no candomblé baiano, Bará é tido como uma das qualidades dessa divindade, neste artigo utilizo o termo Exu para falar dessa entidade de modo geral e Bará para referir-me especificamente ao contexto gaúcho. As qualidades de um orixá correspondem aos seus atributos distintivos ou às diferentes formas (velho, novo, irascível, apaziguador etc.) que eles podem assumir em seus mitos.
  • 6
    Exu detém uma importância primordial em diversos cultos da diáspora oeste-africana, sendo venerado, no Brasil, também em algumas religiões de matriz centro-africana (umbanda, quimbanda etc.). Além de ser mencionado em toda a bibliografia específica, por conta de sua centralidade cosmológica, esse orixá vem ganhando popularidade. Assim, aos raros livros clássicos dedicados exclusivamente a Exu na bibliografia oeste-africanista e brasileira (cf., e.g. Santos e Santos 1971) somaram-se, recentemente, inúmeras produções acadêmicas e extra-acadêmicas sobre ele. Tal popularidade, ademais, tem alterado a ritualística de algumas dessas religiões, é o caso da expansão da quimbanda no sul do país, e do aumento de iniciações de adeptos consagrados a Exu nos candomblés.
  • 7
    Na metafísica de Spinoza, há uma distinção entre a natureza naturada (as coisas tomadas como elementos dados, já constituídos, e.g. uma árvore idealmente estática) e a natureza naturante (a dimensão processual e potencial das coisas, e.g. a mesma árvore como materialização parcial da sua capacidade de autoproduzir-se). Emprego essa terminologia sem a pretensão de iniciar uma discussão propriamente filosófica. Isso também vale para o linguajar fenomenológico que será utilizado ao longo deste artigo.
  • 8
    Apesar disso, não farei nenhuma discussão teórica a respeito das vicissitudes de uma pesquisa virtual. Cf., nesse sentido, Capponi e Araújo 2020CAPPONI, Giovanna e ARAÚJO, Patrício. (2020), “Occupying New Spaces: the “Digital Turn” of Afro-Brazilian Religions During the Covid-19 Outbreak”. International Journal of latin American Religions, nº 4: 250-258.; Queiroz 2021QUEIROZ, Vítor. (2021), “Quando o ser-humano cria, Iku vem à Terra: as mediações de Exu, a onipresença da morte e a Covid-19 em dois contextos afrorreligiosos”. Estudos Históricos, vol. 34, nº 73: 299-319. , artigos recém-publicados que tratam, precisamente, da relação entre afro-religiosos, a Covid-19 e os meios digitais.
  • 9
    Oriki (saudação) em Yorubá dedicada a Exu. Tradução própria.
  • 10
    As idas e vindas dessa disputa judicial podem ser acessadas neste site criado pelo gabinete do vereador Adeli Sell (Sell 2020) e por uma grande quantidade de matérias veiculadas pela imprensa local. Indico, respectivamente, uma das primeiras e uma das últimas notícias on-line desse amplo acervo: Barcellos 2017BARCELLOS, Jorge. (2017), “Um espectro ameaça o Mercado Público”. Sul 21. Disponível em: Disponível em: https://www.sul21.com.br/opiniaopublica/2017/02/um-espectro-ameaca-o-mercado-publico-por-jorge-barcellos/ . Acesso em: 18/12/20.
    https://www.sul21.com.br/opiniaopublica/...
    e Comunello 2020COMUNELLO, Patrícia. (2020), “STF nega recurso para liberar concessão do Mercado Público”. Jornal do Comércio. Disponível em: Disponível em: https://www.jornaldocomercio.com/_conteudo/economia/2020/10/ 760654-stf-nega-recurso-para-liberar-concessao-do-mercado-publico.html . Acesso em: 19/12/20.
    https://www.jornaldocomercio.com/_conteu...
    .
  • 11
    Cf. Sansi 2005, Anjos 2008; Queiroz 2019 e 2021. No candomblé e no batuque as pessoas dos fiéis ou das divindades devem ser produzidas, assentadas e plantadas, isto é, enterradas cuidadosamente. Assentamentos são pedras (otás, okutás) e outros objetos que servem de suporte para os fundamentos (áwo) que mantêm vivo/em circulação a força (axé) de alguém. Os assentamentos, que devem ser ritualmente construídos ao longo do tempo, são dotados de vida e de agência.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    04 Jan 2021
  • Aceito
    09 Set 2021
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