Sono, estado nutricional e hábitos alimentares em crianças: um estudo de revisão

RESUMO

Objetivo:

Fazer uma revisão da literatura sobre a relação entre sono, estado nutricional e padrão alimentar, bem como mecanismos associados, na população infantil.

Fontes de dados:

Foram realizadas buscas bibliográficas nas bases PubMed, LILACS e Scopus, usando os seguintes descritores: “Child”; “Nutritional status”; “Sleep”; “Physical activity OR Physical activities OR Exercise”. Os artigos que atenderam ao objetivo da pesquisa foram incluídos. Excluíram-se estudos de revisão, cartas para autores ou diretrizes.

Síntese dos dados:

Inicialmente, 402 artigos foram encontrados na pesquisa. Após análise dos títulos e abstracts e a aplicação dos critérios de exclusão, 24 estudos foram selecionados para a revisão. A maioria dos estudos (n=13) sugere que sono de curta duração (<9-10 horas/noite) está associado com sobrepeso/obesidade na população infantil. Apenas três artigos não reportaram associações entre variáveis do sono e estado nutricional. Curta duração do sono também foi associada a hábitos alimentares ruins, maior consumo de refrigerantes e bebidas estimulantes antes de deitar, bem como deficiência de micronutrientes.

Conclusões:

A duração do sono tem relação com sobrepeso e obesidade na população infantil. Alterações no padrão alimentar também têm relação com débito de sono, sendo um dos mecanismos que contribuem para o ganho de peso excessivo. É necessário que os profissionais de saúde tomem conhecimento da importância da qualidade do sono para a manutenção do estado nutricional em crianças.

Palavras-chave:
Sono; Estado nutricional; Atividade física; Criança

ABSTRACT

Objective:

To review the current literature on the relationship between sleep, nutritional status and eating behavior, as well as mechanisms associated with these elements in children.

Data source:

The literature research was conducted in the PubMed, LILACS and Scopus databases, using the following terms: “Child”; “Nutritional status”; “Sleep”; “Physical activity OR Physical activities OR Exercise”. The articles included were those that met the research objective. Review articles, letters to authors, or guidelines were excluded.

Data synthesis:

402 articles were initially found in the literature search. After careful analyses of the title and abstract, and application of inclusion criteria, only 24 studies were included in the present review. Most studies (n=13) suggest that short sleep duration (<9-10 hours/night) is associated with overweight/obesity in children. Only three studies did not show associations between overweight/obesity and sleep variables. Short sleep duration is also associated with poor food quality, higher intake of soft drinks and stimulant beverages before bedtime, as well as micronutrient deficiency.

Conclusions:

Sleep duration is related to overweight and obesity development in infants. Changes in dietary pattern are also related to sleep debt, being one of the mechanisms that contribute to excessive weight gain. It is necessary that health professionals understand the importance of sleep quality in the nutritional status maintenance in children.

Keywords:
Sleep; Nutritional status; Physical activity; Child

INTRODUÇÃO

A obesidade é uma epidemia global que vem afetando todos os estratos da população, incluindo crianças e adolescentes. O número de casos de sobrepeso/obesidade entre a população mais jovem cresceu cerca de dez vezes nas últimas quatro décadas, correspondendo a cerca de 50 milhões de meninas e 74 milhões de meninos em todo o mundo.¹ Um levantamento realizado no Brasil pela Organização Mundial da Saúde (OMS), em 2016, mostrou que cerca de 41 milhões de crianças menores de cinco anos estavam com sobrepeso.²

O estado nutricional das crianças na atualidade é resultado das mudanças no estilo de vida que ocorreram nas últimas décadas, principalmente dos jovens, com o aumento do consumo de alimentos ultraprocessados, fast-food e alimentos ricos em açúcar, associado ao predomínio de atividades sedentárias e uso excessivo de equipamentos eletrônicos.² Além desses fatores, a qualidade do sono tem sido associada ao estado nutricional.³

Vários estudos têm mostrado a associação entre a duração do sono e o desenvolvimento de obesidade em adultos e crianças³. Embora os mecanismos envolvidos sejam incertos, alguns caminhos possíveis podem explicar essa relação causal, incluindo mudanças na produção hormonal, nível de atividade física e comportamento alimentar.^3,4,5

O débito de sono pode influenciar ambos os lados do balanço energético, resultando em aumento da ingestão energética e menor gasto de energia. Como consequência da fadiga causada pela perda de sono, observa-se menor gasto energético durante o dia, o que leva a um comportamento sedentário.⁶ Assim, maior ingestão energética e de alimentos palatáveis, como açúcar e alimentos ricos em gordura, são uma resposta ao débito de sono.⁷ Em adultos, a restrição de sono foi associada a mudanças nos reguladores hormonais do balanço energético, como aumento de grelina e diminuição da secreção de leptina.⁸ Em crianças, sono de curta duração foi associado à maior ingestão energética no início vida⁹ e alimentação hedônica.¹⁰ Resistência à insulina e aumento dos níveis de cortisol também se associam com o débito de sono.¹¹ A resistência à insulina pode alterar o perfil lipídico e aumentar o risco metabólico em crianças e adolescentes, especialmente quando associada ao sobrepeso e sedentarismo.¹²

Assim, este estudo teve como objetivo fazer uma revisão da literatura sobre a relação entre sono e estado nutricional em crianças, bem como discutir os mecanismos associados a essa relação nessa população.

MÉTODO

Este estudo representa uma revisão integrativa. A questão norteadora foi: qual a relação entre privação de sono, estado nutricional e nível de atividade física em crianças? Tal questionamento se baseou na formulação PI(E)COS, na qual: População = crianças; Intervenção ou exposição = duração do sono; Comparação = qualquer; Outcome = estado nutricional. As etapas para a construção da pesquisa são descritas a seguir.

A pesquisa bibliográfica foi realizada nas bases de dados PubMed, LILACS e Scopus, utilizando os descritores indicados pelo Medical Subject Headings (MeSH): “Child”; “Nutritional status”; “Sleep”; “Physical activity OR Physical activities OR Exercise”. Foram incluídos artigos em português, inglês e espanhol publicados até 2019.

Os estudos revisados foram selecionados de acordo com os seguintes critérios de inclusão:

1. População infantil;

2. Não inclusão de indivíduos com qualquer distúrbio do sono (por exemplo, apneia obstrutiva do sono, insônia, síndrome das pernas inquietas, etc.) ou que estavam usando medicamentos para suprimir o apetite;

3. Avaliação da relação entre sono e estado nutricional, padrão alimentar ou nível de atividade física. Foram excluídos artigos de revisão (sistemáticos, integrativos, narrativos) e cartas a autores.

A seleção dos estudos passou pelas seguintes etapas: primeiramente, foram analisados o título e os resumos e excluídos os artigos que não atendiam aos nossos critérios de inclusão; depois, os artigos selecionados foram lidos na íntegra para identificar possíveis critérios de exclusão e duplicatas; em terceiro, os dados foram adicionados a planilhas do Microsoft Excel, com informações como nome dos autores, título do artigo, periódico em que foi publicado e ano de publicação, objetivo, palavras-chave e principais resultados.

A análise de qualidade foi feita na ferramenta de avaliação de qualidade para estudos observacionais de coorte e transversais do National Institutes of Health (NIH).¹³ Além disso, a conformidade de cada estudo foi verificada pela associação Strengthening the Reporting of Observational Studies in Epidemiology (STROBE).¹⁴

RESULTADOS

Conforme Figura 1, 402 artigos foram encontrados inicialmente na busca bibliográfica: 196 na base de dados PubMed, 22 na LILACS e 184 na Scopus. Após triagem por título e resumo, 193 artigos foram excluídos por não ser compatível com a nossa questão de pesquisa. Após a leitura dos artigos na íntegra, 98 foram excluídos por não atenderem aos critérios de inclusão, 87 por duplicidade e dois não foram encontrados na íntegra. Portanto, apenas 23 artigos foram incluídos nesta revisão.

Figura 1
Fluxograma de seleção de estudos.

Os estudos analisados foram publicados entre 2002 e 2019; 22 deles eram transversais e um, longitudinal. A maioria dos estudos analisados (n=13) sugere que sono de curta duração ­(<9-10 ­horas/­noite) está associado com sobrepeso/obesidade e estado nutricional na população infantil; 8 deles (34,7%) apontam que a duração do sono está relacionada ao comportamento alimentar.

O sono foi avaliado objetivamente por polissonografia em apenas um estudo;¹⁵ todos os outros usaram questionários para avaliar a duração e a qualidade do sono. Os questionários utilizados foram desenvolvidos pelos autores (n=16) ou eram questionários de sono validados, como o Pediatric Sleep Questionnaire (PSQI; n=3), o Children Sleep Habit Questionnaire (CSHQ; n=1), a Escala de Distúrbio do Sono para crianças (SDSC; n=1) e o Brief Infant Sleep Questionnaire (BISQ; n=1). A média de idade da população estudada variou de 6 meses a 18 anos. As tabelas 1, 2 e 3 apresentam uma breve descrição dos estudos incluídos.

Tabela 1
Descrição e principais resultados de estudos com crianças de seis meses a oito anos.

Autor (ano)	Objetivos e amostra	Principais resultados
King (2017)7	Analisar a associação entre consumo de refrigerantes e comportamento infantil, segundo o estado de segurança alimentar e padrões de sono; 2.829 crianças; ±5 anos.	Problemas de sono foram associados à ingestão de refrigerantes por crianças em situação de insegurança alimentar.
Carrillo-Larco et al. (2014)16	Descrever o estado nutricional e a duração do sono em crianças de quatro países; >8.000 crianças; ±8 anos.	Sono com duração de <10h foi associado a um aumento de 15% na incidência de obesidade. Escolaridade materna e renda familiar atenuaram essa relação.
Na et al. (2019)32	Examinar a associação entre insegurança alimentar e os resultados do sono infantil; 362 pré-escolares; 7-8 anos.	Insegurança alimentar infantil foi associada a um aumento de 2,25 vezes na má qualidade do sono infantil no modelo ajustado.
Ruotolo et al. (2016)33	Verificar se os hábitos alimentares noturnos podem influenciar o sono e a parassonia em crianças; 226 crianças; 7-8 anos.	45% das crianças que apresentaram parassonia durante a noite consumiram alimentos estimulantes ricos em cafeína antes de se deitar. O jantar tardio foi associado à hora tardia de sono.
Kordas et al. (2007)34	Investigar a relação entre exposição ao chumbo, estado de micronutrientes, sono, comportamento em sala de aula e atividade física em crianças mexicanas; 602 crianças; 6-8 anos.	Chumbo sanguíneo ≥10μg/dL foi associado ao tempo de despertar tardio e duração menor do sono. Anemia foi associada à hora de dormir mais cedo e início do sono mais curto.
Kordas et al. (2008)35	Investigar a relação entre anemia ferropriva, natação e relatos maternos sobre o sono; 1.270 crianças; 6-18 meses de idade.	Deficiência de ferro, baixa estatura e retardo de crescimento foram associados à curta duração do sono e maior frequência de despertares noturnos; a baixa estatura foi relacionada à menor duração de cochilo.
Durán et.al. (2012)37	Determinar a associação entre duração do sono e obesidade; 155 crianças em idade escolar; 5-7 anos.	Dormir >10 horas/noite, fazer exercícios e não comer chocolate à noite são fatores associados à obesidade.

Tabela 2
Descrição e principais resultados de estudos com crianças de seis a dez anos.

Autor (ano)	Objetivos e amostra	Principais resultados
Marques et al. (2018)6	Analisar a associação entre duração do sono e estado nutricional de crianças em idade escolar de Portugal; 829 alunos; ±9 anos.	Houve uma correlação fraca, mas significativa entre duração do sono e índice z de massa corporal (r=0,15; p<0,01).
Agüero et al. (2017)19	Estabelecer a relação entre duração do sono, estado nutricional e padrões de consumo de bebidas cafeinadas; 805 crianças em idade escolar; 6-10 anos.	Indivíduos com peso normal dormiram significativamente mais horas do que os participantes obesos (9,8±0,9 vs. 9,6±0,9). A duração do sono durante a semana foi inversamente associada à obesidade (OR 3,5, IC 95% 1,3±9,2).
Chamorro et al. (2014)15	Comparar as características da microestrutura do sono, padrão alternado cíclico (PAC), em crianças com sobrepeso e crianças com peso normal; 58 crianças; 10 anos.	O tempo de PAC e a taxa de PAC mostraram associações significativas com o escore z do índice de massa corporal. Indivíduos obesos podem ter episódios de sono de ondas lentas menos estáveis.
Corso et al. (2012)24	Analisar a associação entre sobrepeso/obesidade e horas em frente à TV/computador, horas de sono e atividade física; 4.964 escolares; 6-10 anos.	Sobrepeso e obesidade foram associados à prática esportiva semanal e horas de sono por noite.

Tabela 3
Descrição e principais resultados de estudos com crianças e adolescentes.

Autor (ano)	Objetivos e amostra	Principais resultados
Agüero and Rivera (2016)17	Investigar hábitos de sono e alimentação, atividade física e estado nutricional; 1.810 crianças; 6-11 anos.	Associações positivas entre sono e risco de obesidade, mesmo quando ajustado para fatores de confusão.
Bazán et al. (2018)18	Descrever fatores associados ao sobrepeso/obesidade; 3.752 crianças; 2-15 anos.	Obesidade foi mais comum em crianças que têm menos horas de sono que as recomendadas.
Cicek et al. (2009)20	Examinar os fatores de risco associados à área de gordura do braço (AGB) em crianças e adolescentes turcos; 5.358 alunos; 6-17 anos.	Dormir 8-9h e ≤8h foi um preditor significarivo de sobrepeso para meninos; Sono de 9-10h, 8-9h e ≤8h foi predito significativo de sobrepeso para meninas.
Katsa et al. (2018)22	Investigar o efeito dos hábitos de vida na Síndrome Metabólica Infantil; 480 crianças; 5-12 anos.	A hora tardia de dormir foi associada ao aumento de peso, da circunferência da cintura, menor estatura e glicemia.
Guo et al. (2012)23	Comparar fatores relacionados à saúde entre crianças e adolescentes chineses com peso normal, sobrepeso e obesidade; 4.262 crianças e adolescentes; 5-18 anos.	Crianças de peso normal mostraram uma mudança maior para duração do sono mais longa do que crianças obesas. As crianças obesas eram menos propensas a dormir mais (≥7,5h) comparadas às de peso normal.
Jong et al. (2012)26	Estabelecer uma associação entre duração do sono e sobrepeso na infância; 4.072 crianças; 4-13 anos.	Duração curta do sono foi associada ao ato de assistir TV durante as refeições e ingerir alimentos ricos em açúcar.
Aravena et al. (2017)28	Estudar o estado nutricional e a duração do sono em crianças chilenas; 481 escolares; 6-15 anos.	Os números para crianças obesas não foram diferentes das crianças de peso normal que dormem as horas recomendadas.
Giovaninni et al. (2014)29	Analisar o polimorfismo do gene clock e a presença de obesidade em relação à duração do sono; 370 crianças; 6-13 anos.	Tendência de prevalência maior de sobrepeso em crianças que dormem <9h/noite vs >10h/noite.
Golley et al. (2013)30	Investigar se a duração do sono está associada à dieta; 2.200 crianças e adolescentes; 9-16 anos.	O grupo cuja hora de dormir era tardia apresentou índice de massa corporal (IMC) mais alto; houve associações significativas entre IMC, duração do sono e ingestão energética.
Jiang et al. (2014)21	Investigar a associação entre a duração do sono e o crescimento somático; 143 crianças; 10 a 11 anos.	Crianças que dormiram >10h/noite apresentaram maior peso, altura e IMC.
Christoph et al. (2017)27	Investigar fatores relacionados ao peso em escolares rurais e urbanos; 148 crianças em idade escolar; 11 a 16 anos.	O IMC foi positivamente relacionado ao sexo feminino, ser de área rural, set mais ativo e ter melhor qualidade subjetiva de sono.
Hitze et al. (2009)31	Investigar os determinantes da duração do sono em crianças; 414 adolescentes; 13 anos.	O sono curto versus longo foi associado a riscos 5,5-2,3 vezes maiores de obesidade em meninas.

Dezesseis estudos investigaram a relação entre estado nutricional e padrão de sono. A maioria dos estudos encontrou alguma associação entre o estado nutricional e a perda de sono. Em média, dormir menos de 10-9 horas foi associado com sobrepeso/obesidade, ou maior incidência de obesidade foi verificada em pessoas com sono de curta duração.^{6,15,16,17,18,19,20,21,22,23,24,25,26}

Em estudo transversal realizado com 1.810 crianças de 6 a 11 anos, a qualidade do sono foi avaliada pelo questionário Pittsburgh Sleep Quality Index (PSQI), e 49,9% das crianças avaliadas dormiam menos do que o recomendado (<10 horas por dia), sendo que essa restrição de sono foi maior durante a semana e entre as crianças mais velhas. Sono mais curto foi considerado um fator de risco para o desenvolvimento de sobrepeso/obesidade.¹⁷

No Brasil, um estudo transversal com 4.964 alunos do ensino fundamental apontou prevalência de 15,4% de sobrepeso e 6,0% de obesidade, o que foi associado à redução da prática esportiva, duração mais curta do sono por noite e maior tempo de uso do computador²⁴.

Apenas Chamorro et al.¹⁵ utilizaram o método padrão ouro da polissonografia para avaliar o sono. Tal estudo comparou a estrutura do sono em crianças de dez anos de peso normal e com sobrepeso. Os autores observaram uma relação inversa entre o índice de massa corporal (IMC) e a duração do sono, sendo que as crianças com sobrepeso apresentam redução na duração e eficiência do sono e um ciclo de sono atípico durante a noite, com a fase movimento ocular não rápido (NREM) de estágio 3 reduzida no início da noite e aumento do sono NREM de estágio 3 no final da noite.

Outros parâmetros antropométricos além do peso corporal e IMC foram associados à duração do sono. Cicek et al.,²⁰ em uma amostra de 5.358 crianças e adolescentes de 6 a 17 anos, encontraram associação positiva entre área de gordura do braço e sono de duração menor de oito horas.

Katsa et al.,²² em estudo que investigou hábitos de vida e predisposição à síndrome metabólica em crianças entre 5 e 12 anos, constataram que a hora de dormir tardia se relaciona positivamente ao peso, estatura baixa e circunferência da cintura. Eles também encontraram associações entre hora de dormir tardia, glicose no sangue e pressão arterial diastólica.

Em contrapartida, Christoph et al.²⁷, em estudo conduzido na África com 146 adolescentes entre 11 e 16 anos, mostraram que o IMC se associou positivamente à qualidade do sono. Também encontraram uma associação positiva entre IMC e ser mais ativo fisicamente. Aravena et al.²⁸ não encontraram associação entre sono e estado nutricional. No entanto, constataram que, durante a semana, o percentual de crianças obesas que dormem as horas recomendadas foi 69,2%, inferior ao de crianças com sobrepeso (73,5%) e de crianças com peso normal (75%) (p=0,215). Nos finais de semana, o percentual de crianças eutróficas que dormiam as horas recomendadas foi de 63%, 65,7% no grupo de obesos e 68,4% no grupo de sobrepeso (p=0,781). Giovaninni et al.²⁹, em um estudo transversal com 370 crianças e adolescentes entre 6 e 13 anos, reportaram que a duração do sono estava inversamente relacionada à idade (p<0,001), mas encontraram apenas uma tendência de maior prevalência de excesso de peso em crianças que dormiam menos de nove horas por noite (23%) quando comparadas àquelas que dormiam mais de dez horas por noite (16%, p=0,06).

Em relação aos padrões alimentares, encontramos oito estudos que investigaram associações entre sono e hábitos ou comportamentos alimentares. Menos horas de sono e hora de dormir tardia têm sido relacionados a uma dieta de má qualidade.

Golley et al.³⁰, em estudo com 2.200 crianças australianas, concluíram que a hora de dormir mais cedo está associada a melhor qualidade da dieta e maior ingestão de frutas e vegetais, e que crianças cuja hora de dormir era mais tardia apresentaram alto consumo de alimentos de má qualidade.

Maior ingestão de fast-food e refrigerantes foi observada em crianças com sono de curta duração (<9 horas/noite) no Kiel Obesity Prevention Study.³¹ King et al.⁷ também reportaram maior ingestão de refrigerantes em crianças em insegurança alimentar com dificuldades para dormir. No estudo de Na et al.³², a insegurança alimentar esteve associada à má qualidade do sono. Jong et al.²⁶ investigaram alguns determinantes do sono de curta duração. Os hábitos alimentares associados ao sono de curta duração variaram de acordo com a idade e o sexo, mas, em geral, ingerir alimentos açucarados, falta de uma rotina alimentar e assistir à TV durante as refeições foram associados à curta duração do sono.

O consumo de bebidas estimulantes, como leite com chocolate, refrigerantes, café e chá preto à noite contribui para um risco 2,6 maior de distúrbios do sono e influencia na qualidade do sono de crianças entre sete e oito anos.³⁴ A deficiência de micronutrientes também apresentou relação com padrões de sono. Nos estudos de Kordas et al.,^34,35 crianças com deficiência de ferro apresentaram distúrbios do sono, como despertar precoce, aumento da latência do sono, fragmentação do sono e redução da duração do sono.

A qualidade dos estudos incluídos em nossa revisão foi verificada pela ferramenta NIH.¹³ Os estudos de Guo et al.²³ e Durán et al.²⁵ tiveram a pontuação mais baixa na análise de qualidade e foram considerados ruins, com seis respostas positivas (em um total de 14) na ferramenta NIH. A maioria dos estudos foi considerada regular e teve entre sete e nove respostas positivas na ferramenta NIH (King et al.,⁷ Kordas et al.,³⁴ Christoph et al.,²⁷ Katsa et al.,²² Carrillo-Larco et al.,¹⁶ Kordas et al.,³⁵ Jiang et al.,²¹ Jong et al.,²⁶ Hitze et al.,³¹ Chamorro et al.,¹⁵ Ruotolo et al.,³³ Cicek et al.,²⁰ Agüero et al.,¹⁹ Durán et al.,²⁵ Corso et al.,²⁴ Bazán et al.,¹⁸ Marques et al.,⁶ Aravena et al.,²⁸ Giovaninni et al.²⁹), enquanto os estudos de maior qualidade foram os de Agüero e Riveira,¹⁷ Golley et al.³⁰ e Na et al.,³² com dez respostas positivas. A concordância com a lista de verificação STROBE mostrou apenas três estudos com mais de 75% (Agüero et al.,¹⁹ Chamorro et al.¹⁵ e King et al.⁷) dos itens da lista atendidos, sendo que os demais cumpriram entre 43,7 e 71,8%. Os principais problemas encontrados nos estudos foram: descrição inadequada do tamanho da amostra e tentativas de abordar fonte potencial de viés, tratamento de dados faltantes, discussão das limitações e generalização dos resultados.

DISCUSSÃO

O sono é definido como um momento de repouso completo em que ocorre diminuição da consciência, redução dos movimentos musculares e lentidão do corpo. Tem função restauradora e é o momento em que ocorre a consolidação da memória. Seu papel é crítico nas funções cerebrais, como regulação do humor e desempenho cognitivo, e está fortemente envolvido na regulação do metabolismo, atuando no controle do apetite, funções imunológicas, entre outros.³⁶

O sono é classificado em duas fases diferentes. O sono NREM (movimento não rápido dos olhos) é quando ocorre o repouso físico e está relacionado ao sistema imunológico e ao ritmo da função do sistema digestivo. Durante o sono NREM, acontecem três estágios do sono, progredindo mais superficial para o sono de ondas lentas, um estágio mais profundo do sono. No estágio 1 do sono NREM, há uma transição do estado de vigília para o sono; este é o estágio mais leve do sono. Na segunda fase, estágio 2 do sono NREM, os movimentos dos olhos param e o sono mais profundo tem início. Na terceira e última fase, estágio 3 do sono NREM, conhecido como sono de ondas lentas ou sono profundo, o despertar torna-se mais difícil, ocorre diminuição do tônus muscular e secreção hormonal, como o hormônio do crescimento (GH).^36,37

No sono REM (movimento rápido dos olhos), ocorre repouso psicológico, bem-estar emocional e consolidação da memória. O sono REM também é conhecido como fase de sonho, devido ao aumento da atividade cerebral. Nesse estágio, ocorre uma diminuição do tônus muscular, aumento da frequência cardíaca e respiração irregular.^37,38,39

Durante o primeiro ano de vida, ocorrem várias mudanças na arquitetura do sono até que os estágios do sono NREM e REM sejam consolidados. Durante a gravidez, o feto é influenciado pelo ritmo circadiano materno e, após o nascimento, é necessário um período de adaptação até que o ciclo sono-vigília seja estabelecido.⁴⁰

Nos primeiros três meses de vida, um recém-nascido dorme cerca de 16-18 horas por dia. Nesse estágio da vida, três fases do sono são observadas: sono tranquilo (semelhante ao sono NREM), sono ativo (semelhante ao sono REM) e sono indeterminado. O início do sono ocorre no sono REM, e cada episódio consiste em apenas 1 ou 2 ciclos, que é o resultado da falta de estabelecimento do ritmo circadiano.⁴¹

Após três meses de idade, o tempo de vigília durante o dia aumenta e períodos mais longos de sono à noite são observados, devido ao início da ciclagem hormonal do cortisol e da melatonina. Esses hormônios são responsáveis pelo controle do ritmo circadiano regulado por estímulos ambientais (rotinas de amamentação e hora de dormir). Nessa fase, os ciclos de sono NREM e REM tornam-se mais regulares^.41

Aos 12 meses, a criança dorme cerca de 12 a 16 horas por dia, com a maior parte do sono consolidada à noite e alguns cochilos durante o dia. Estudos sugerem que as crianças passam mais tempo no sono REM em comparação aos adolescentes.^41,42

Com o passar dos anos, a duração do sono parece diminuir na população infantil em vários países. Entre 1905 e 2008, houve uma redução média de 75 minutos na duração do sono nessa população.⁴³ Mudanças nos padrões de sono foram acompanhadas por mudanças no estilo de vida, como o uso de equipamentos eletrônicos (tablets, celulares, computadores, televisão, etc.). O uso excessivo destes equipamentos tem sido relacionado à duração e qualidade do sono.⁴⁴

Estudos sugerem que a presença de telas no quarto está associada à diminuição do tempo de sono, devido a uma maior propensão ao uso desses equipamentos.⁴⁵ Um estudo realizado nos Estados Unidos, com 48.687 crianças do National Survey of Children’s Health, mostrou que a presença de uma televisão no quarto estava associada a sono insuficiente em mais de quatro noites por semana.⁴⁶ O uso de televisão durante as refeições também teve um efeito negativo na duração do sono em um estudo transversal com 4.072 crianças, com idades entre 4 a 13 anos, na Holanda.²⁶ O comportamento sedentário decorrente do uso excessivo de equipamentos eletrônicos favorece o ganho de peso, além de ter esse efeito negativo na qualidade do sono.⁴⁷

Vários estudos relatam uma associação entre sobrepeso/obesidade e o uso excessivo de equipamentos eletrônicos como reflexo do sedentarismo.^24,18 Um estudo realizado na Espanha com 3.752 indivíduos de 2 a 15 anos mostrou que crianças que passavam mais de duas horas/dia usando dispositivos eletrônicos apresentaram maiores taxas de sobrepeso quando comparados às que ficavam menos de duas horas/dia nessas atividades.¹⁶

Um possível efeito causal entre o uso de dispositivos eletrônicos e a redução do sono é a supressão da melatonina.⁴⁴ Vários neurotransmissores e hormônios controlam o ciclo vigília-sono. A melatonina é um hormônio secretado primariamente pela glândula pineal na ausência de luz e que induz o sono.³⁶ A luz azul emitida por equipamentos eletrônicos, principalmente à noite, pode resultar na diminuição da liberação de melatonina e consequente atraso no início do sono. Isso pode levar à desregulação do ciclo circadiano, diminuindo a duração e a qualidade do sono.^44,48 Isso se torna um círculo vicioso na rotina da criança, uma vez que a exposição excessiva à luz emitida por esses equipamentos afeta a qualidade do sono, e sono insuficiente predispõe ao uso de tal equipamento.³²

O débito de sono pode ter várias consequências deletérias à saúde, como estresse, fadiga física, dificuldade de concentração, entre outras.^19,25 Alterações metabólicas e de comportamento também têm sido relacionadas à perda de sono, que contribui para sobrepeso e obesidade.^{16,17,27,19,25} Dos 16 estudos incluídos em nossa busca na literatura, 14 mostraram associações positivas entre curta duração do sono e desenvolvimento de sobrepeso na população infantil. Três estudos reportaram uma associação negativa entre sono e sobrepeso/obesidade.

Além disso, a perda de sono pode predispor ao ganho de peso devido à desregulação do perfil metabólico durante a noite, como metabolismo da insulina, aumento da secreção de cortisol e diminuição da concentração do hormônio do crescimento (GH), o que pode favorecer a lipogênese.^31,49

Dentre os mecanismos por trás da relação entre perda de sono e excesso de peso, a ingestão alimentar é influenciada pelos padrões de sono e pode desencadear sobrepeso/obesidade.

A principal hipótese para explicar essa relação é o fato de os indivíduos com restrição de sono permanecerem mais tempo em vigília, o que consequentemente aumenta a demanda energética, resultando em aumento da ingestão calórica nos períodos de perda de sono.¹⁰ Além disso, uma maior propensão à alimentação hedônica entre os indivíduos com sono de curta duração pode levar a uma maior ingestão calórica nessa população. Em um estudo transversal da coorte com gêmeos da Nova Zelândia, observou-se que crianças que dormiam menos aos cinco anos de idade tinham maior probabilidade de ter responsividade alimentar, ou seja, tinham preferência por alimentos altamente palatáveis e, consequentemente, mais calóricos, caracterizando fome hedônica e não fisiológica.^50,51

Associado a isso, estudos relatam maior prevalência de consumo de alimentos com alta densidade energética e pobres em nutrientes por crianças que dormem mais tarde. Essas crianças mostraram preferência por fast-food, pastéis, bebidas açucaradas e refrigerantes, e menor consumo de frutas e vegetais.^7,30,31 Da mesma forma, o alto consumo de alimentos estimulantes, como chocolate e refrigerantes, pode ser associado ao desenvolvimento de distúrbios do sono, como parassonias.³³

Essas mudanças de padrões alimentares, com aumento do consumo de alimentos de baixa qualidade nutricional, levam à deficiência de micronutrientes, como a anemia, devido ao baixo consumo de alimentos ricos em ferro. É importante destacar a relação da anemia com as reduções de duração do sono e nível de atividade física.^34,35

Estudos realizados em adultos sugerem que, em condições de perda de sono, ocorre uma alteração nos hormônios reguladores do apetite, causando diminuição da leptina e aumento das concentrações de grelina, com consequente sensação de fome.⁸ No entanto, estudo realizado com 414 indivíduos com idades entre 6 e 19 anos, reportou aumento nas concentrações de leptina em meninas com restrição de sono, o que sugere que a perda crônica de sono pode levar a futuras alterações no metabolismo³¹.

No entanto, é importante ressaltar que ainda há um número limitado de estudos que tentam explicar os mecanismos relacionados à perda de sono, consequências metabólicas e ganho de peso. Um problema frequente é a falta de estudos com medidas objetivas do sono, já que a maioria deles não usa questionários validados para avaliar a duração e a qualidade do sono. Assim, são necessários estudos com avaliação e análise criteriosa da ingestão e comportamento alimentar, além de uma medida válida do sono nessa população. É importante enfatizar que a presente revisão da literatura foi realizada com uma população específica (crianças), e as conclusões podem ser diferentes em outros estratos populacionais. Os mecanismos propostos para explicar a relação entre sono e estado nutricional vêm de estudos conduzidos com adultos ou estudos experimentais. Isso reforça a importância de analisar desses mecanismos na população infantil.

É possível concluir, com base na literatura revisada, que a duração do sono está relacionada ao desenvolvimento de sobrepeso e obesidade na população infantil. A duração do sono também contribui para mudanças no comportamento alimentar, um dos mecanismos que contribuem para o ganho de peso. Portanto, os profissionais de saúde devem reconhecer a associação entre parâmetros de estilo de vida, como sono, comportamento alimentar e nível de atividade física, e incluir recomendações de sono no aconselhamento nutricional.

REFERENCES

• ¹
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Financiamento

• Este estudo não recebeu financiamento.

Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  09 Set 2022
• Data do Fascículo
  2022

Histórico

• Recebido
  01 Dez 2020
• Aceito
  13 Abr 2021