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Características clínicas de transtorno do déficit de atenção em crianças e adolescentes: associação com qualidade de vida e aspectos comportamentais

Resumo

Objetivo:

Verificar a associação entre características clínicas de crianças com transtorno do déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) e aspectos sociodemográficos, qualidade de vida e questionário de capacidades e dificuldades.

Métodos:

Estudo observacional, analítico e transversal, com amostra não probabilística composta de 72 crianças diagnosticadas com TDAH, com idade entre 6 e 13 anos, atendidas em dois ambulatórios de neuropediatria. Os instrumentos utilizados foram o Multimodal Treatment Study Swanson, Nolan e Pelham (MTA-SNAP-IV), de triagem para sinais e sintomas de pessoas com TDAH, o Questionário de Capacidades e Dificuldades (SDQ), o Critério de Classificação Econômica Brasil (CCEB) e a Escala de Avaliação de Qualidade de Vida em Crianças e Adolescentes (AUQUEI). Foram realizadas análises descritiva, bivariada e multivariada, considerando-se o nível de significância de 5%.

Resultados:

Os resultados do SDQ tiveram associação com o resultado alterado do MTA-SNAP-IV (desatento/hiperativo/misto). O aumento de 1 ponto no escore do SDQ elevou em 36,5% a chance de a criança ser classificada como alterada no MTA-SNAP-IV. Em relação ao AUQUEI, 30,6% dos participantes avaliaram a qualidade de vida como ruim e 69,4% como boa.

Conclusões:

O aumento no escore do SDQ elevou a chance de a criança ter o MTA-SNAP-IV alterado.

Palavras-chave:
Transtorno do déficit de atenção com hiperatividade; Qualidade de vida; Comorbidade

Abstract

Objective:

To identify associations between clinical characteristics of children with attention-deficit/hyperactivity disorder (ADHD) and their sociodemographic aspects, quality of life, and results from the strengths and difficulties questionnaire.

Methods:

This is an observational analytical cross-sectional study with a non-probabilistic sample consisting of 72 children diagnosed with ADHD, aged 6 to 13 years, treated at 2 neuropediatric outpatient clinics. The instruments used were the Multimodal Treatment Study of Children with Attention-Deficit/Hyperactivity Disorder – Swanson, Nolan, and Pelham, version IV (MTA-SNAP-IV), the Strengths and Difficulties Questionnaire (SDQ), the Brazilian Economic Classification Criteria (CCEB), and the Quality of Life Assessment Scale for Children and Adolescents (AUQEI). We performed descriptive, bivariate, and multivariate analyses, considering a 5% significance level.

Results:

SDQ results were associated with abnormal MTA-SNAP-IV results (inattentive/hyperactive/combined). A 1-point increment in the SDQ score increased by 36.5% the likelihood of the child having an abnormal MTA-SNAP-IV classification. Regarding AUQEI, 30.6% of participants perceived their quality of life as poor and 69.4% as good.

Conclusions:

A higher SDQ score increased the child's chance of having an abnormal MTA-SNAP-IV result.

Keywords:
Attention deficit disorder with hyperactivity; Quality of life; Comorbidity

INTRODUÇÃO

O transtorno do déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) é um transtorno neurobiológico que pode afetar as pessoas desde a infância até a vida adulta.11. Wang M, Zhao Q, Kang H, Zhu S Attention deficit hyperactivity disorder (ADHD) in children with epilepsy. Ir J Med Sci. 2020;189:305-13. https://doi.org/10.1007/s11845-019-02042-3
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Trata-se do resultado da interação heterogênea e complexa de fatores genéticos e ambientais.22. Zayats T, Neale BM. Recent advances in understanding of attention deficit hyperactivity disorder (ADHD): how genetics are shaping our conceptualization of this disorder [version 2; peer review: 3 approved]. F1000Research. 2020;8:1-9. https://doi.org/10.12688/f1000research.18959.2
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Os sintomas centrais do TDAH são desatenção, hiperatividade e impulsividade, que devem ocorrer em diferentes situações conjunturais. De acordo com o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5),33. American Psychiatric Association. Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders. 5. ed. Washington (DC): APA; 2013. o TDAH apresenta três subtipos: o predominantemente hiperativo-impulsivo (TDAH-HI), o desatento (TDAH-D) e o misto, uma combinação dos tipos hiperativo e desatento (TDAH-C).

A prevalência mundial de crianças com TDAH é de cerca de 5%.44. Schiavone N, Virta M, Leppämäki S, Launes J, Vanninen R, Tuulio-Henriksson A, et al. ADHD and subthreshold symptoms in childhood and life outcomes at 40 years in a prospective birth-risk cohort. Psychiatry Res. 2019;281:112574. https://doi.org/10.1016/j.psychres.2019.112574
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Dois terços dessa população apresentam comorbidades, especialmente problemas de comportamento externalizantes, como o transtorno desafiador opositor (TDO) e o transtorno de conduta (TC), com até 40%, além de problemas internalizantes, como ansiedade, depressão e transtornos obsessivo-compulsivos, que atingem até 50% desses casos.55. Gnanavel S, Sharma P, Kaushal P, Hussain S Attention deficit hyperactivity disorder and comorbidity: a review of literature. World J Clin Cases. 2019;7:2420-6. https://doi.org/10.12998/wjcc.v7.i17.2420
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Um estudo realizado em Riade, na Arábia Saudita, mostrou que o TDAH na infância está associado ao prejuízo no desempenho acadêmico, na interação familiar, no relacionamento entre pares e na autoestima e à piora na qualidade de vida (QV).66. Al-Habib DM, Alhaidar FA, Alzayed IA, Youssef RM. Consistency of child self-reports with parent proxy reports on the quality of life of children with attention-deficit/ hyperactivity disorder in Riyadh, 2016. J Family Community Med. 2019;26:9-16. https://doi.org/10.4103/jfcm.JFCM_19_18
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Dessa forma, este estudo teve como objetivo verificar a associação entre características clínicas de crianças com TDAH e aspectos sociodemográficos, qualidade de vida e questionário de capacidades e dificuldades.

MÉTODO

Trata-se de estudo observacional, analítico e transversal, com amostra não probabilística composta de crianças atendidas em dois ambulatórios de neuropediatria, na região do Vale do Aço, Minas Gerais, sendo um ambulatório de atendimento exclusivamente público pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e um ambulatório privado que atende à saúde suplementar.

O tamanho amostral foi estimado tendo em vista estudos de prevalência e associação entre desfecho e variáveis independentes. Para o cálculo, foram adotados 9% de erro amostral, intervalo de 95% de confiança e 50% de prevalência, considerando a gama de desfecho de interesse.

Os critérios de inclusão foram: ter entre 6 e 13 anos de idade; ter diagnóstico clínico feito por médico neuropediatra e estar em acompanhamento por causa do TDAH; termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE) assinado pelo responsável; e termo de assentimento (TA) assinado pela criança. Os critérios de exclusão foram: crianças que não realizaram avaliação clínica; crianças cujo responsável não tenha respondido aos instrumentos de forma completa; crianças institucionalizadas em abrigos e aquelas que apresentaram história ou evidência de alterações graves nos dados clínicos, como disfunção neuromotora, deficiência intelectual, alterações cognitivas, da neuromotricidade, ou outras psiquiátricas, como esquizofrenia e dependência química. Para o quesito exclusão dos transtornos supracitados, foram seguidos os critérios do DSM-5.

Os dados foram coletados nos ambulatórios de neuropediatria, onde os responsáveis pelas crianças com TDAH (segundo os critérios diagnósticos do DSM-5) foram abordados para apresentação do estudo por meio de leitura do TCLE e do TA.

As crianças cujos responsáveis aceitaram participar da investigação foram submetidas a uma avaliação padrão com preenchimento de protocolo médico específico e, em seguida, encaminhadas a um consultório na mesma clínica, onde um único estagiário de Psicologia, que no início da pesquisa cursava o sétimo período da graduação, instrumentalizado, aplicou o questionário e colheu as assinaturas dos termos. O estagiário foi devidamente treinado para esse trabalho. Após término da aplicação, o médico assistente supervisionou o caso.

Os responsáveis responderam aos seguintes instrumentos:

  • Questionário de Capacidades e Dificuldades (SDQ),77. Goodman R. The Strengths and Difficulties Questionnaire: a research note. J Child Psychol Psychiatry. 1997;38:581-6. https://doi.org/10.1111/j.1469-7610.1997.tb01545.x
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    que rastreia problemas de saúde mental infantil, validado no Brasil em 2000.88. Fleitlich B, Cortázar PG, Goodman R. Strengths and difficulties questionnaire (SDQ). Infanto Rev Neuropsiquiatr Infanc Adolesc. 2000;8:44-50. Esse questionário investiga o comportamento social e problemas relacionados à saúde mental infantojuvenil. O SDQ é composto de 25 perguntas semiestruturadas, divididas pelas seguintes classes: comportamento pró-social, hiperatividade e problemas emocionais, de conduta e de relacionamento. As categorias de reposta são: “não é verdade”, com pontuação 0 ou 2; “é um pouco verdade”, com pontuação 1; e “é muito verdade”, com pontuação 0 ou 2. Depois da coleta de dados, foi realizada a somatória de todos os itens. A pontuação total maior ou igual a 20 foi considerada como alterada (distúrbio psiquiátrico provável), entre 16 e 19, como limítrofe e menor ou igual a 15 como normal;

  • Multimodal Treatment Study Swanson, Nolan e Pelham (MTA-SNAP-IV),99. Swanson J [homepage on the Internet]. SNAP-IV 26-Item teacher and parent rating scale. Irvine, CA: University of California; 2020 [cited 2018 Sep 27]. Available from: https://www.shared-care.ca/files/Scoring_for_SNAP_IV_Guide_26-item.pdf
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    que inclui 26 itens relacionados aos sinais e sintomas de desatenção, hiperatividade e misto descritos no DSM-5 para o TDAH e o TDO. As perguntas de 1 a 9 referem-se à desatenção; de 10 a 18, à hiperatividade/impulsividade; e de 19 a 26, à identificação de características opositor/desafiadoras. Para cada resposta, adotou-se a seguinte pontuação: 0 para “nada”, 1 para “pouco”, 2 para “bastante” e 3 para “demais”. O escore foi calculado pela soma dos pontos e divisão do resultado por 26;

  • Critério de Classificação Econômica Brasil (CCEB),1010. Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa [homepage on the Internet]. Critério de Classificação Econômica Brasil. São Paulo (SP): ABEP; 2018 [cited 2018 Sep 27]. Available from: https://www.abep.org/criterio-brasil
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    para avaliação do perfil socioeconômico das famílias dos participantes. O CCEB contém nove perguntas referentes à posse de itens no domicílio (televisão em cores, rádio, banheiro, automóvel, empregada mensalista, máquina de lavar, videocassete/DVD, geladeira, freezer) e uma pergunta acerca do grau de instrução do chefe de família. Para cada item respondido, há uma pontuação, resultando em uma classificação que varia de A1, maior poder de compra, até E, menor poder de compra;

  • Questionário de dados clínicos e sociodemográficos das crianças, que foi preenchido pelo médico assistente. No questionário, foram abordados: tempo de uso de medicamentos, dados da gestação e obstétricos, exame neurológico e neurológico evolutivo, outros tratamentos, padrão de sono e comportamentos. Os critérios de diagnóstico do DSM-5 para TDAH foram considerados na avaliação clínica;

  • Auto Questionnaire Qualité de Vie Enfant Imagé (AUQEI),1111. Assumpção FB Jr, Kuczynski E, Sprovieri MH, Aranha EM. Quality of life evaluation scale (AUQEI): validity and reliability of a quality of life scale for children from 4 to 12 years-old. Arq Neuro-Psiquiatr. 2000;58:119-27. https://doi.org/10.1590/S0004-282X2000000100018
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    ou escala de avaliação de qualidade de vida em crianças e adolescentes, que busca avaliar a sensação subjetiva de bem-estar do indivíduo. A escala aborda relações familiares, sociais, atividades escolares e saúde por meio de 26 questões classificadas em quatro domínios: função, família, lazer e autonomia. As de número 6, 7, 9, 12, 14, 17, 20, 22 e 26 não estavam incluídas nos quatro fatores e têm importância isolada, pois representam domínios separados dos demais. O ponto de corte abaixo de 48 classificou como prejudicada a qualidade de vida.

Os dados foram digitalizados em formato eletrônico, por meio de planilha do Microsoft Excel®, e conferidos por duas pessoas para processamento e análise. Para todas as análises, foi utilizado o software IBM Statistical Package for the Social Sciences (SPSS) versão 21.0.

Foram realizadas análise descritiva das variáveis categóricas, por meio de distribuição de frequência absoluta, e análise relativa, além de síntese numérica para as variáveis contínuas.

Para verificar a associação dos critérios de TDAH, classificação econômica e capacidades e dificuldades em relação ao comportamento social, foi necessária uma nova categorização. A classificação do CCEB foi considerada como A1/B1/B2 e C1/C2/D, e o MTA-SNAP-IV, como normal ou alterado, sem distinção entre hiperativos, desatentos ou mistos, especialmente por causa do pequeno número de observações em algumas categorias. Na análise de associação, inicialmente foram avaliadas as distribuições de proporções das variáveis categóricas, segundo a classificação final do SNAP (normal e alterado), por meio do teste do qui-quadrado ou exato de Fisher. Para o escore total do SDQ, foi usado o teste t de Student para comparação de médias, pois essa variável apresentou distribuição normal. Para a idade, utilizou-se o teste não paramétrico de Mann-Whitney, em função da distribuição assimétrica dessa variável.

Para a escolha das variáveis e entrada no modelo multivariado, consideraram-se como associações significativas aquelas com nível de significância maior ou igual a 20% (p≤0,20). Para a análise multivariada, foi considerado o nível de significância de 5%, e como medida de magnitude das associações foram utilizados o odds ratio (OR) e seu respectivo intervalo de confiança. A adequação dos modelos inicial e final foi avaliada por meio do teste de Hosmer-Lemeshow.

Este estudo recebeu anuência das instituições onde os dados foram coletados e foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (COEP) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), sob o Parecer Ético nº 2.533.807. Todos os participantes e seus responsáveis assinaram o TA e o TCLE, respectivamente.

RESULTADOS

A Tabela 1 mostra as características sociodemográficas distribuídas segundo o MTA-SNAP-IV. Das 72 crianças avaliadas pelo instrumento de rastreio MTA-SNAP-IV, 31 (43%) tinham o perfil de TDAH misto; 15 (20,8%), o perfil desatento; 12 (16,7%), o perfil hiperativo; e 14 (19,5%) não preencheram critérios para o TDAH, provavelmente por estarem em tratamento medicamentoso. O perfil desatento apresentou maior frequência nas crianças de 9 e 10 anos. Já o perfil hiperativo apresentou maior frequência nas crianças de 9 anos, enquanto o perfil misto foi mais heterogêneo, em maior parte nas crianças de 8 a 11 anos. Os anos escolares com maior número de crianças foram o quarto (23,6%), o quinto (22,2%) e o sexto ano (20,8%).

Tabela 1
Análise descritiva das variáveis sociodemográficas segundo o resultado do Multimodal Treatment Study Swanson, Nolan e Pelham (n=72).

Quanto ao CCEB, apenas duas crianças foram classificadas como A2, enquanto a maioria foi classificada como C1 e C2 (n=42). Além disso, a maioria dos responsáveis tinha ensino médio ou superior completo (n=41). Houve, porém, uma parcela expressiva de responsáveis com ensino fundamental incompleto (n=16), como também pode ser verificado na Tabela 1.

A média de idade foi de 8,8 anos entre as crianças com perfil hiperativo e 9,9 entre as crianças desatentas. As maiores idades foram encontradas nas crianças com perfil misto e naquelas que não preencheram critérios para TDAH (Gráfico 1).

Gráfico 1
Distribuição da idade segundo o resultado do Multimodal Treatment Study; Swanson, Nolan e Pelham.

Ao avaliar o instrumento SDQ entre as crianças com perfil desatento, a média foi de 28,5 (resultado considerado alterado), variando entre 17 e 42. Daquelas com perfil hiperativo, o menor escore foi de 24 (alterado) e, entre as com perfil misto, a média foi de 32,8 (alterado). A distribuição do escore do SDQ foi mais heterogênea em relação ao MTA-SNAP-IV, com média menor entre as que não preencheram os critérios de classificação, de 22,9 (desvio padrão [DP]=3,3), seguidas pelos desatentos, hiperativos e pelo tipo misto, com médias de 28,5; 30,3; e 32,8 (Gráfico 2).

Gráfico 2
Distribuição do escore total do Questionário de Capacidades e Dificuldades segundo o resultado do Multimodal Treatment Study Swanson, Nolan e Pelham.

Com o objetivo de realizar a análise inferencial entre os subtipos de TDAH por meio do MTA-SNAP-IV e as variáveis explicativas, foi necessária nova categorização das variáveis em virtude do pequeno número de observações. Constatou-se que a maioria das crianças cursava do primeiro ao quarto ano (51,4%), a classe social predominante foi a C/D (70,8%) e a maioria dos pais ou cuidadores tinha ensino médio ou superior completo (59,2%). Também foi observado que a maioria apresentou MTA-SNAP-IV alterado (80,6%) (Tabela 2).

Tabela 2
Distribuição das variáveis sociodemográficas e do resultado do Multimodal Treatment Study Swanson, Nolan e Pelham categorizadas (n=72).

A Tabela 3 mostra a análise de associação entre as variáveis sociodemográficas, a qualidade de vida e o resultado do MTA-SNAP-IV. Os dados revelaram que não houve associação com significância estatística da classe econômica com os resultados do MTA-SNAP-IV. Em relação à qualidade de vida das crianças, avaliada pelo instrumento AUQEI, 69,4% dos participantes a apontaram como boa.

Tabela 3
Análise de associação entre as variáveis sociodemográficas e o resultado do Multimodal Treatment Study Swanson, Nolan e Pelham (n=72).

Na análise multivariada, a única variável que permaneceu associada ao resultado do MTA-SNAP-IV foi o SDQ (Tabela 4). O aumento de 1 ponto no escore do SDQ elevou em 36,5% a chance de a criança ser classificada com alteração (OR 1,36; intervalo de confiança de 95% — IC95% 1,14–1,62; p<0,001).

Tabela 4
Análise multivariada do resultado do Multimodal Treatment Study Swanson, Nolan e Pelham e variáveis selecionadas (n=72)# # categorias de referência: Critério de Classificação Econômica Brasil (CCEB) — classes A2/B1/B2. Ajuste dos modelos inicial/final (Hosmer-Lemeshow): modelo inicial, p=0772; modelo final, p=0,735; MTA-SNAP-IV: Multimodal Treatment Study Swanson, Nolan e Pelham; OR: odds ratio; IC95%: intervalo de confiança de 95%; SDQ: Questionário de Capacidades e Dificuldades. .

DISCUSSÃO

O presente estudo evidenciou associação entre o SDQ e o MTA-SNAP-IV, utilizado no estudo Multimodal Treatment Study of Children with Attention-Deficit Hyperactivity Disorder e validado no Brasil em 2006.1212. Mattos P, Serra-Pinheiro MA, Rohde LA, Pinto D. A Brazilian version of the MTA-SNAP-IV for evaluation of symptoms of attention-deficit/hyperactivity disorder and oppositional-defiant disorder. Rev Psiquiatr Rio Gd Sul. 2006;28:290-7. https://doi.org/10.1590/S0101-81082006000300008
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Nesta pesquisa, houve predomínio de crianças do sexo masculino, compondo três quartos da amostra. Dados semelhantes foram observados em outras pesquisas, que também revelaram predomínio de crianças desse sexo.1313. Slobodin O, Davidovitch M. Gender differences in objective and subjective measures of ADHD among clinic-referred children. Front Hum Neurosci. 2019;13:441. https://doi.org/10.3389/fnhum.2019.00441
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Mais da metade das famílias avaliadas se enquadrou nas classes econômicas C e D, e cerca de um quarto dos responsáveis não havia concluído o ensino fundamental. Esses dados são relevantes ao se considerar o cenário da coleta de dados. Trata-se de uma região metropolitana do interior de Minas Gerais, com pacientes advindos de 24 cidades do colar metropolitano, com população de cerca de um milhão de habitantes e índice de desenvolvimento humano (IDH) de 0,745, considerado alto,1414. Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil [homepage on the Internet]. Ranking decrescente do IDH-M dos municípios do Brasil. [cited 2018 Sep 27]. Available from: https://www.pnud.org.br/arquivos/ranking-idhm-2010.pdf
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contudo esse índice é decorrente das quatro principais cidades industriais da região, situação que não se reflete individualmente nas outras 20 cidades do colar. Além disso, a literatura indica relação entre vulnerabilidade, TDAH e dificuldade de acesso ao tratamento.1515. Russell AE, Ford TM, Russell G. The relationship between financial difficulty and childhood symptoms of attention deficit/hyperactivity disorder: a UK longitudinal cohort study. Soc Psychiatry Psychiatr Epidemiol. 2018;53:33-44. https://doi.org/10.1007/s00127-017-1453-2
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Na análise dos perfis predominantes de TDAH, foi identificada maior proporção de participantes do sexo feminino com perfil desatento, e do sexo masculino, com perfis hiperativo e misto. Tais dados corroboram achados da literatura que apontaram maior número de crianças do sexo masculino hiperativas e do sexo feminino desatentas.1616. Andrade PF, Vasconcelos MM. Attention Deficit/Hyperactivity Disorder. Resid Pediátr. 2018;8 (Supl. 1):S64-71. https://doi.org/10.25060/residpediatr-2018.v8s1-11
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Outro achado em relação ao perfil predominantemente hiperativo foi a média de idade, cerca de um ano a menos do que entre as crianças com perfil desatento. Um fator que pode justificar esse dado se refere ao fato de que crianças hiperativas e impulsivas chamam a atenção de cuidadores e da equipe da escola para a necessidade de avaliação, o que não se observaria, necessariamente, em crianças com perfil desatento. Esse dado também foi identificado na literatura, que revelou atraso no diagnóstico e no início do tratamento de crianças do sexo feminino desatentas.1717. Rotta NT, Ohlweiler L, Riesgo RS, editors. Transtornos da Aprendizagem: abordagem neurobiológica e multidisciplinar. 2 ed. Porto Alegre: Artmed; 2016.,1818. Ottosen C, Larsen JT, Faraone SV, Chen Q, Hartman C, Larsson H, et al. Sex differences in comorbidity patterns of attention-deficit/hyperactivity disorder. J Am Acad Child Adolesc Psychiatry. 2019;58:412-22. https://doi.org/10.1016/j.jaac.2018.07.910
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Neste estudo, foi constatado que mais de três quartos das crianças avaliadas apresentaram MTA-SNAP-IV alterado, embora todas estivessem em acompanhamento médico.

Quanto aos dados da análise multivariada, o escore do SDQ relacionou-se à chance de a criança apresentar o MTA-SNAP-IV alterado. Ou seja, o aumento em 1 ponto no escore do SDQ elevou em 36,5 vezes a chance de a criança apresentar o MTA-SNAP-IV alterado. Dessa forma, as crianças com alteração tiveram maior probabilidade de apresentar outros transtornos neuropsiquiátricos, como mais alto grau de ansiedade, depressão e transtornos de conduta. Não foram encontradas pesquisas comparativas entre esses dois instrumentos, porém estudos revelaram a importância da avaliação de instrumentos de triagem, como o SNAP-IV e o SDQ, em crianças com diagnóstico de TDAH para identificação de comorbidades neuropsiquiátricas associadas ao transtorno.1919. Costa DS, Paula JJ, Malloy-Diniz LF, Romano-Silva MA, Miranda DM. Parent SNAP-IV rating of attention-deficit/hyperactivity disorder: accuracy in a clinical sample of ADHD, validity, and reliability in a Brazilian sample. J Pediatr (Rio J). 2019;95:736-43. https://doi.org/10.1016/j.jpedp.2018.11.003
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,2020. Overgaard KR, Madsen KB, Oerbeck B, Friis S, Obel C. The predictive validity of the Strengths and Difficulties Questionnaire for child attention-deficit/hyperactivity disorder. Eur Child Adolesc Psychiatry. 2019;28:625-33. https://doi.org/10.1007/s00787-018-1226-9
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Outros estudos revelaram que crianças com TDAH apresentaram elevado número de comorbidades neuropsiquiátricas internalizantes e externalizantes na proporção de até dois terços daquelas diagnosticadas com TDAH.2121. Tistarelli N, Fagnani C, Troianiello M, Stazi MA, Adriani W. The nature and nurture of ADHD and its comorbidities: a narrative review on twin studies. Neurosci Biobehav Rev. 2020;109:63-77. https://doi.org/10.1016/j.neubiorev.2019.12.017
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No presente estudo, o número de crianças com indicação de qualidade de vida boa pode refletir a intervenção e os acompanhamentos realizados.

Ressalta-se que o fato de os ambulatórios nos quais se coletaram os dados serem da área de neurologia infantil pode ter influenciado na ocorrência de maior procura deles por parte de responsáveis por crianças com quadro de TDAH de maior gravidade.

Como limitações deste estudo, podem ser citados o uso de instrumentos de triagem em uma população já diagnosticada e em tratamento para TDAH, que sabidamente apresenta comorbidades, o que pode confundir o entendimento dos dados, e a avaliação em apenas dois centros de tratamento de crianças com o transtorno. Ainda, por não se tratar de uma amostra de base populacional, houve diminuição em sua representatividade, embora tenha sido realizado cálculo amostral para identificação do número de casos necessários para o estudo.

Como avanços, salienta-se a relação entre o SDQ e MTA-SNAP-IV e a importância da avaliação de instrumentos que possam sugerir comorbidades e outros transtornos neuropsiquiátricos, além do confronto com o diagnóstico feito em centros de referência no tratamento de crianças com TDAH.

Vale destacar que este estudo apontou a necessidade da interdisciplinaridade e do diálogo entre a neurologia e as diversas especialidades, como a psiquiatria, a psicologia e a psicopedagogia, no tratamento de crianças com TDAH.

Este estudo verificou, portanto, que houve associação entre as características clínicas de crianças com TDAH e aspectos sociodemográficos. Entre eles, estão: pertencer à classe C e ter apresentação desatenta em crianças com 8/9 anos. Quanto à qualidade de vida, não se identificou relação dos dados observados com o TDAH, uma vez que a maioria apresentou boa qualidade de vida. O uso dos instrumentos de screening para identificação de transtornos comórbidos neuropsiquiátricos e sua relação com o perfil de TDAH revelaram que crianças com MTA-SNAP-IV alterado tiveram mais chances de apresentar o SDQ também alterado.

São necessárias novas pesquisas sobre as abordagens práticas de identificação de transtornos neuropsiquiátricos em crianças com TDAH e o uso de instrumentos de triagem, a fim de aumentar a validade do diagnóstico, favorecendo um modelo de saúde mental colaborativo.

  • Financiamento
    Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), Brasil, Código de Financiamento 001.

REFERENCES

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    Wang M, Zhao Q, Kang H, Zhu S Attention deficit hyperactivity disorder (ADHD) in children with epilepsy. Ir J Med Sci. 2020;189:305-13. https://doi.org/10.1007/s11845-019-02042-3
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  • 2
    Zayats T, Neale BM. Recent advances in understanding of attention deficit hyperactivity disorder (ADHD): how genetics are shaping our conceptualization of this disorder [version 2; peer review: 3 approved]. F1000Research. 2020;8:1-9. https://doi.org/10.12688/f1000research.18959.2
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  • 3
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  • 4
    Schiavone N, Virta M, Leppämäki S, Launes J, Vanninen R, Tuulio-Henriksson A, et al. ADHD and subthreshold symptoms in childhood and life outcomes at 40 years in a prospective birth-risk cohort. Psychiatry Res. 2019;281:112574. https://doi.org/10.1016/j.psychres.2019.112574
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Out 2021
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    01 Set 2020
  • Aceito
    27 Dez 2020
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