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Perspectivas de pediatras e pacientes adolescentes sobre o processo de transição em um serviço terciário

Resumo

Objetivo:

Mapear o processo de transição na perspectiva de pediatras e de seus pacientes adolescentes bem como sugerir um protocolo de transição.

Métodos:

Estudo descritivo, transversal, realizado em um Ambulatório de Pediatria de um hospital público terciário. Pediatras responderam a um questionário sobre o processo de transição, que foi avaliado de forma qualitativa. O Questionário de Avaliação do Preparo para a Transição (TRACS) foi respondido pelos adolescentes, e a análise foi feita com testes do qui-quadrado e de Mann-Whitney. Valores p<0,05 foram considerados significantes.

Resultados:

Participaram do estudo 31 pediatras (16 residentes, 15 supervisores), com média de idade de 40,1 (±16,9) anos, 87% do sexo feminino, tempo de atuação na Pediatria variando de dois a 45 anos, com mediana de cinco anos. A maioria dos médicos concordava que não havia um plano de transição, mas eles estimulavam a autonomia do paciente e conversavam com pacientes e familiares sobre qualquer doença crônica presente. Participaram da pesquisa 102 pacientes adolescentes, com mediana de idade de 15 anos, 56% do sexo feminino. A mediana do TRACS foi de 58, com escores semelhantes entre os sexos feminino e masculino, e escores superiores nos maiores de 16 anos (teste U de Mann-Whitney, p=0,01). Os pacientes relataram facilidade na comunicação presencial com seus médicos, mas grande dificuldade para falar sobre questões de saúde por telefone.

Conclusões:

Mesmo sem protocolo de transição, os adolescentes desenvolveram várias habilidades de autocuidado com o avanço da idade. A falta de protocolo levou a opiniões conflitantes, reforçando a necessidade de melhor estruturação. Os autores sugerem a criação de um fluxograma e um protocolo de transição.

Palavras-chave:
Saúde do adolescente; Medicina do adolescente; Transferência de pacientes; Serviços de saúde do adolescente; Doenças crônicas

ABSTRACT

Objective:

To map the transition process from the perspective of pediatricians and their adolescent patients, and to suggest a transition protocol.

Methods:

This is a descriptive, cross-sectional study conducted in a pediatric outpatient clinic of a public tertiary hospital. Pediatricians answered a questionnaire about the transition process, and that was evaluated in a descriptive manner. The Transition Readiness Assessment Questionnaire (TRAQ) on health autonomy was answered by the adolescents and the analysis was performed using the χ2 and Mann-Whitney tests. p<0.05 were considered significant.

Results:

31 pediatricians (16 residents, 15 supervisors) were enrolled, with a mean age of 40.1 (±16.9), 87% women, with years working in Pediatrics ranging from 2 to 45 years (median of 5 years). Most doctors agreed that there was no transition plan, but they stimulated the patient’s autonomy and talked to the patient and family members about any existing chronic diseases. A total of 102 adolescent patients participated, with a median age of 15; 56% were female. The TRAQ median was 58, with similar scores between females and males, and higher scores in those older than 16 years of age (Mann-Whitney U test, p=0.01). The patients reported ease in face-to-face communication with their doctors, but great difficulty in talking about health issues over the phone.

Conclusions:

Even without a transition protocol, adolescents developed several self-care skills as they aged. The lack of a transitional protocol led to conflicting opinions, which reinforces the need for improvement. We suggest a flowchart and transition protocol.

Keywords:
Adolescent health; Adolescent medicine; Health care transition; Adolescent health services; Chronic disease

INTRODUÇÃO

Transição é o processo gradativo de preparação do adolescente e de sua família para o encaminhamento de um serviço de Pediatria para o serviço de saúde de adultos, adotando novos papéis e promovendo sua independência e autonomia.11. Martins C. Transição dos cuidados médicos pediátricos para a medicina de adultos [master’s thesis]. Porto: Universidade do Porto; 2012. O objetivo do processo de transição é maximizar o desenvolvimento e o potencial do indivíduo ao longo da vida por meio de serviços de saúde de alta qualidade e que sejam adequados ao seu desenvolvimento, uma vez que os cuidados de saúde continuam ininterruptamente à medida que passam da adolescência para a idade adulta.22. Pastura P, Paiva C. Transition to adult health care for adolescents with chronic conditions: practices of a tertiary care hospital in Brazil. Rev Ped SOPERJ. 2018;18:3-10. https://doi.org/10.31365/issn.2595-1769.v18i2p3-10
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,33. Anelli CG, Len CA, Terreri MT, Russo GC, Reiff AO. Translation and validation of the Transition Readiness Assessment Questionnaire (TRAQ). J Pediatr. 2019;95:180-7. https://doi.org/10.1016/j.jped.2017.12.013
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Trata-se de um processo dinâmico e complexo que requer planejamento, estímulo à aquisição de habilidades e competências bem como avaliação do estado de prontidão de cada paciente. Esse processo difere da transferência, que implica apenas encaminhamento do paciente de uma instituição ou equipe assistencial para outra.22. Pastura P, Paiva C. Transition to adult health care for adolescents with chronic conditions: practices of a tertiary care hospital in Brazil. Rev Ped SOPERJ. 2018;18:3-10. https://doi.org/10.31365/issn.2595-1769.v18i2p3-10
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A adolescência é uma fase de mudanças, na qual o indivíduo assume novas responsabilidades e desafios, imbuído de emoções conflitantes, luto, contradições e desconstruções.44. Machado DM, Succi RC, Turato ER. Transitioning adolescents living with HIV/AIDS to adult-oriented health care: an emerging challenge. J Pediatr. 2010;86:465-72. https://doi.org/10.2223/jped.2048
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Quando a adolescência é vivenciada acompanhada de uma doença crônica, os desafios são ainda maiores, pois esses pacientes necessitam de cuidados de saúde específicos. Todo adolescente deseja pertencer a um grupo e buscar uniformidade dentro dele. Portanto, ser diferente do grupo pode gerar ainda mais estresse, resultando em maior vulnerabilidade e risco às descobertas e às provações comuns da adolescência. Os adolescentes com doenças crônicas têm maior probabilidade de desenvolver comportamentos de risco, como, por exemplo, atividade sexual desprotegida e uso de substâncias como álcool e tabaco,55. American Academy of Pediatrics, American Academy of Family Physicians, and American College of Physicians. Supporting the health care transition from adolescence to adulthood in the medical home. Pediatrics. 2018;142:e20182587. https://doi.org/10.1542/peds.2018-2587
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aumentando a complexidade do processo de transição.22. Pastura P, Paiva C. Transition to adult health care for adolescents with chronic conditions: practices of a tertiary care hospital in Brazil. Rev Ped SOPERJ. 2018;18:3-10. https://doi.org/10.31365/issn.2595-1769.v18i2p3-10
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Autores de uma pesquisa qualitativa realizada com jovens adultos demonstraram que, na ausência de um protocolo de transição, esses pacientes vivenciaram uma mudança na apresentação do cuidado de forma desarticulada, manifestando dificuldades de adaptação às crescentes responsabilidades e ao autocuidado.66. Canadian Association of Paediatric Health Centres. A guideline for transition from paediatric to adult health care for youth with special health care needs: a national approach. Ottawa: National Transitions Community Practitioners; 2016. p. 1-30.

Compreender o contexto social no qual o adolescente está inserido é imprescindível para a transição dos cuidados de saúde, por isso, torna-se necessário oferecer um suporte que atenda às necessidades do paciente nesse momento.77. Araújo AC, Lunardi VL, Silveira RS, Thofehrn MB, Porto AR. Adolescents view of the transition from adolescence to adulthood. Rev Enferm UERJ. 2011;19:280-5. Vale destacar o comprometimento social que a doença pode causar desde a infância, como, por exemplo, dias de ausência da escola, limitações das atividades diárias e atraso nos marcos de desenvolvimento.88. Moreira MC, Albernaz LV, Sá MR, Correia RF, Tanabe RF. Guidelines for a line of care for children and adolescents with complex chronic health conditions. Cad Saude Publica. 2017;33:e00189516. https://doi.org/10.1590/0102-311X00189516
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Aproximadamente 20% dos adolescentes brasileiros são acometidos por, pelo menos, uma condição crônica;99. Braz M, Barros Filho AA, Barros MB. Adolescent health: a population-based study in Campinas, São Paulo State, Brazil. Cad Saude Publica. 2013;29:1877-88. https://doi.org/10.1590/s0102-311x2013001300026
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apesar da grande demanda, há poucos estudos sobre a transição do cuidado. No cenário nacional, não há padronização no modo como esses processos são realizados ou avaliados.

Os autores deste estudo mapearam o processo de transição de pacientes adolescentes do Ambulatório de Pediatria para o Ambulatório de Adultos e diversas variáveis envolvidas no processo de acordo com a perspectiva de pediatras e de seus pacientes. Com base nos resultados, os autores sugerem um fluxograma e um protocolo de transição. Buscar formas de sistematizar e melhorar a transição do cuidado para adolescentes reduz riscos e estimula sua autonomia.

MÉTODO

Trata-se de um estudo descritivo, transversal, desenvolvido em um Ambulatório de Pediatria de um hospital público universitário de uma região metropolitana. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual de Campinas, sob Certificado de Apresentação de Apreciação Ética (CAAE) nº18727919.4.00005404.

Toda a equipe médica pediátrica que trabalha em ambulatórios de especialidades foi convidada a participar do estudo. Os participantes com questionários parcialmente preenchidos foram excluídos. Adolescentes com idade entre 12 e 18 anos foram convidados enquanto aguardavam consulta no Ambulatório de Pediatria, sem distinção de especialidades. Os pacientes que apresentavam algum comprometimento cognitivo e não conseguiam responder às questões foram excluídos.

A coleta de dados ocorreu no período de setembro de 2019 a janeiro de 2020, realizada pela primeira e segunda autoras, precedida da assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido e do termo de consentimento livre e esclarecido para pais/responsáveis.

Os dados sociodemográficos dos médicos foram coletados (sexo, idade, especialidade, tempo de atuação na área e função que desempenhavam no ambulatório), com posterior aplicação de um questionário desenvolvido na cidade do Porto, em 2012, contendo 15 perguntas (com três opções de resposta: “Sim”, “Não” ou “A ser implementado”) sobre como ocorreu o processo de transição e o estímulo à autonomia do adolescente nos ambulatórios.11. Martins C. Transição dos cuidados médicos pediátricos para a medicina de adultos [master’s thesis]. Porto: Universidade do Porto; 2012. Este foi o único instrumento encontrado em língua portuguesa com a finalidade de avaliar o processo de transição do ponto de vista da equipe assistencial. Os questionários médicos foram analisados de forma qualitativa.

Dois questionários foram aplicados: para avaliar o preparo dos pacientes adolescentes em relação ao autocuidado e à autonomia, utilizou-se o Questionário de Avaliação do Preparo para a Transição (TRACS), além de um questionário sociodemográfico referente a idade, sexo, tempo de atendimento ambulatorial (e em que clínica), se compareciam acompanhados à consulta, se tinham algum médico por eles considerado de referência e qual sua especialidade.

O TRACS é um questionário autoaplicável e que foi traduzido e validado para o português brasileiro; ele inclui 20 questões que avaliam as habilidades do paciente para o autocuidado e sua capacidade de transição para cuidados médicos na clínica de saúde do adulto.22. Pastura P, Paiva C. Transition to adult health care for adolescents with chronic conditions: practices of a tertiary care hospital in Brazil. Rev Ped SOPERJ. 2018;18:3-10. https://doi.org/10.31365/issn.2595-1769.v18i2p3-10
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O questionário apresenta cinco domínios: A) Tomando os Remédios; B) Indo às Consultas; C) Rastreando Problemas de Saúde; D) Falando com a Equipe Médica; e E) Nas Atividades Diárias. O questionário é do tipo likert, disponibilizando, para cada questão, cinco opções de resposta, as quais foram gradativamente pontuadas de 0 (Não, não sei como fazer isso), 1 (Não, mas quero aprender), 2 (Não, mas estou aprendendo), 3 (Sim, eu comecei a fazer isso) até 4 pontos (Sim, eu sempre faço isso quando preciso), com pontuação mínima de 0 e pontuação máxima de 80. Os autores deste artigo consideraram que quanto maior era a pontuação, mais apto o paciente estava para a transição.

Uma planilha de banco de dados foi criada para a análise. As respostas negativas e intermediárias do questionário TRACS (i.e., quando o paciente ou não sabia fazer ou ainda não realizava a atividade, mas gostaria de aprender) foram condensadas em uma única alternativa e as respostas positivas, em outra. Para a análise dos dados categóricos do questionário TRACS, o teste do qui-quadrado foi utilizado, comparando crianças menores de 16 anos com aquelas maiores ou com idade igual a 16 anos. Devido à distribuição por idade, o TRACS e o tempo de acompanhamento não apresentaram distribuição normal. Portanto, o teste de Mann-Whitney foi utilizado para verificar a associação com os grupos de idade e sexo. Valores p<0,05 foram considerados significantes.

RESULTADOS

Dos 60 pediatras convidados, dois se recusaram a participar do estudo e 31 (16 residentes, sete médicos contratados e oito professores) devolveram o questionário totalmente preenchido. Médicos das seguintes especialidades pediátricas participaram do estudo: Alergia e Imunologia, Nefrologia, Pneumologia, Gastroenterologia e Hepatologia, Obesidade, Endocrinologia e Cardiologia. A média de idade foi de 40,1 (±16,9) anos, sendo 87,1% do sexo feminino. O tempo de atuação dos entrevistados na Pediatria variou de dois a 45 anos, com mediana de cinco anos.

A maioria dos médicos concordou que não havia plano de transição (Tabela 1, questão 2) e que não havia materiais didáticos disponíveis para oferecer aos pacientes sobre os seus problemas de saúde (questão 7). A maioria incentivou a autonomia dos pacientes (questão 5), pôde trocar informações com outros médicos que os acompanhavam (questão 10) e conversar com os adolescentes e familiares sobre suas doenças (questão 11a). O aspecto da privacidade no atendimento do adolescente era discordante entre os residentes e os médicos supervisores (professores e médicos contratados): os residentes relataram que o atendimento era feito com a presença de acompanhantes, enquanto a maioria dos supervisores respondia que era sem acompanhantes.

Tabela 1.
Questionário aplicado aos médicos mostrando o percentual de respostas para cada item que ocorreu ou não no ambulatório. As respostas em que pelo menos 80% dos participantes concordaram estão destacadas em negrito.

Alguns profissionais relataram que apenas poucos ambulatórios com grupos específicos de pacientes apresentaram uma estruturação do processo de transição, como, por exemplo, o Ambulatório de Imunologia Pediátrica. De acordo com esses profissionais, a transição poderia ser dificultada ou mesmo evitada pela ausência de um médico receptor no serviço de saúde de adultos com habilidade para lidar com as particularidades de algumas doenças (e.g., síndromes genéticas, como fibrose cística ou anemia falciforme). O vínculo criado com o serviço pediátrico era tão forte, que alguns pacientes adultos — com acompanhamento desde a infância ou adolescência — não conseguiam se desligar do serviço e se recusavam a ser transferidos para os cuidados da clínica médica. A equipe médica percebeu que alguns pais tinham dificuldade em estimular a autonomia de seus filhos adolescentes e resistiam a abdicar de todos os aspectos do cuidado.

O questionário TRACS foi aplicado em 102 pacientes na sala de espera da Pediatria. Todos os pacientes convidados participaram do estudo e nenhum questionário foi excluído. A idade mediana foi de 15 anos, 56% eram pacientes do sexo feminino; independentemente do tempo de acompanhamento ambulatorial, apenas 50% tinham um médico de referência, a quem recorriam quando apresentavam algum problema de saúde (Tabela 2). Uma pequena parcela dos pacientes (6%) comparecia às consultas sem acompanhantes, e todos tinham mais de 16 anos e eram do sexo feminino. O escore mediano do TRACS foi de 58, com escores semelhantes entre mulheres e homens (teste U de Mann-Whitney, p=0,348). O sexo não interferiu no autocuidado, exceto com relação às atividades diárias, em que as adolescentes do sexo feminino apresentaram escores mais elevados. Para verificar se os adolescentes mais velhos tinham mais autonomia, os participantes foram divididos em dois grupos de acordo com a idade: aqueles menores de 16 anos e os com idade maior ou igual a 16 anos. A mediana dos escores do TRACS foi maior em adolescentes mais velhos (teste U de Mann-Whitney, p=0,01). As principais diferenças entre os grupos foram nos domínios “Tomando os Remédios” e “Indo às Consultas” (Tabela 2), com maior proporção de adolescentes mais velhos realizando essas atividades.

Tabela 2.
Perfil geral de adolescentes acompanhados em ambulatórios pediátricos, divididos por idade — menor ou maior de 16 anos — e frequência de respostas positivas no Questionário de Avaliação do Preparo para a Transição (“Sim, eu comecei a fazer isso” ou “Sim, eu sempre faço isso quando preciso”). As perguntas da categoria “A” fazem parte do domínio “Tomando os Remédios”; aquelas da categoria “B”, “Indo às consultas”; as perguntas de categoria “C”, “Rastreando Problemas de Saúde”; as de categoria “D”, “Falando com a Equipe Médica”; e as perguntas de categoria “E”, “Nas Atividades Diárias”.

As questões mais marcadas pelos adolescentes como “Não, não sei como fazer isso” foram sobre comparecimento às consultas, itens B4 e B7, que corresponderam a “Liga para o médico para falar sobre problemas de saúde” e “Administra o seu dinheiro e/ou orçamento de despesas domésticas”, respectivamente. Durante a aplicação dos questionários, os adolescentes e seus pais mostraram-se interessados em aprender mais sobre esses itens. As questões que os adolescentes, independentemente da idade, responderam com maior frequência “Sim, eu sempre faço isso quando preciso” foram as relacionadas com a comunicação face a face com os profissionais de saúde.

DISCUSSÃO

Nenhum protocolo de transição nos ambulatórios de especialidades pediátricas da instituição estudada foi identificado. Apesar disso, houve comunicação entre os diversos médicos assistentes e incentivo à autonomia dos pacientes.

A transição constitui um marco importante para a relação médico-paciente e para a continuidade do acompanhamento, sendo apontada por diversos estudos como um momento crítico para a perda do vínculo, abandono do acompanhamento e complicações relacionadas à doença de base.44. Machado DM, Succi RC, Turato ER. Transitioning adolescents living with HIV/AIDS to adult-oriented health care: an emerging challenge. J Pediatr. 2010;86:465-72. https://doi.org/10.2223/jped.2048
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Além dos médicos supervisores, médicos residentes de diversas especialidades pediátricas participaram do estudo, o que ampliou a perspectiva do cuidado. Dados que diferenciassem o grau de formação acadêmica dos participantes ou o tempo de atuação na área de Pediatria não foram encontrados em outros estudos sobre transição.

Em geral, médicos residentes e supervisores compartilhavam das mesmas opiniões, exceto no que diz respeito à realização da consulta do adolescente em duas etapas (uma delas sem a presença dos responsáveis). Essa diferença pode sugerir uma visão diferenciada dos residentes quanto ao atendimento dos adolescentes, além de uma não uniformidade do cuidado. A falta de padronização do modelo assistencial é frequente em estudos realizados em locais que não têm protocolo de transição.22. Pastura P, Paiva C. Transition to adult health care for adolescents with chronic conditions: practices of a tertiary care hospital in Brazil. Rev Ped SOPERJ. 2018;18:3-10. https://doi.org/10.31365/issn.2595-1769.v18i2p3-10
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,44. Machado DM, Succi RC, Turato ER. Transitioning adolescents living with HIV/AIDS to adult-oriented health care: an emerging challenge. J Pediatr. 2010;86:465-72. https://doi.org/10.2223/jped.2048
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,55. American Academy of Pediatrics, American Academy of Family Physicians, and American College of Physicians. Supporting the health care transition from adolescence to adulthood in the medical home. Pediatrics. 2018;142:e20182587. https://doi.org/10.1542/peds.2018-2587
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Os médicos participantes notaram em alguns pais certa dificuldade em estimular o autocuidado dos filhos portadores de doenças crônicas, problema frequente em diversos estudos. Stinson et al. observaram que pais superprotetores representam um obstáculo para a transição e que seus filhos adolescentes mostraram menos interesse em conhecer e controlar sua doença de base. Para estimular a autonomia, os autores reforçam a importância do atendimento médico sem a presença dos pais e da inclusão do paciente nas decisões que dizem respeito à sua saúde.1010. Stinson J, Kohut SA, Spiegel L, White M, Gill N, Colbourne G, et al. A systematic review of transition readiness and transfer satisfaction measures for adolescents with chronic illness. Int J Adolesc Med Health. 2014;26:159-74. https://doi.org/10.1515/ijamh-2013-0512
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A transição do cuidado não é um tema muito discutido nas consultas médicas: Van Staa et al.1111. Staa AL, Jedeloo S, Meeteren J, Latour JM. Crossing the transition chasm: experiences and recommendations for improving transitional care of young adults, parents and providers. Child Care Health Dev. 2011;37:821-32. https://doi.org/10.1111/j.1365-2214.2011.01261.x
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afirmam que 65,3% dos adolescentes com doenças crônicas relataram nunca ter discutido o assunto, e apenas 7,4% frequentemente o discutiam; o grupo que incluiu mais discussão sobre o assunto apresentou melhor estado de prontidão.

Diferenças entre os sexos no TRACS foram identificadas apenas no domínio “Nas atividades diárias”, principalmente com relação às atividades domésticas. Resultados semelhantes foram observados em outros estudos, sugerindo que as meninas percebem suas habilidades nessas áreas como mais desenvolvidas, talvez por causa de construtos sociais.1212. Meira JG. Transição para a autonomia na gestão dos cuidados de saúde em adolescentes/adultos emergentes saudáveis e com condições crônicas de saúde [master’s thesis]. Lisboa: Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologia; 2017.

Em estudo brasileiro realizado pela Fundação de Hematologia e Hemoterapia de Pernambuco (HEMOPE), com questionário próprio, apenas 50,8% dos adolescentes eram responsáveis pelo uso regular de medicamentos e 77,8% não sabiam marcar consultas e precisavam de ajuda.1313. Peres JC. Análise do preparo para a transição de adolescentes que vivem com doença falciforme para a vida adulta: um estudo de método misto [master’s thesis]. Recife (PE): Universidade Federal de Pernambuco; 2016. Em contrapartida, neste estudo, 84% dos adolescentes anotaram suas consultas médicas ou outros compromissos, e 83% dos adolescentes com idades entre 16 e 18 anos ligaram para agendar suas consultas. Embora a comunicação face a face tenha sido considerada boa, a maioria dos participantes relatou grande dificuldade em falar sobre problemas de saúde por telefone. Esta pesquisa foi conduzida em um período anterior à pandemia de COVID-19. Considerando-se o novo cenário da saúde, o atendimento presencial nos ambulatórios foi descontinuado. Como os pacientes já tinham dificuldade em falar sobre seus problemas de saúde por telefone, os autores questionaram se suas necessidades de saúde estão sendo atendidas.

Os adolescentes e pais se mostraram interessados em aprender mais sobre os itens marcados como “Não, não sei como fazer isso” do TRACS, evidenciando uma oportunidade para discutir o tema e intervenções para melhorar a qualidade de vida. Os adolescentes desenvolveram diversas habilidades de autocuidado, que podem estar associadas a estímulos ambientais, familiares ou individuais à procura de conhecimento.

Por não haver um protocolo de transição, houve divergências de opiniões sobre o que foi ou não realizado, o que reforça a necessidade de melhor estruturação. O fato de os profissionais realizarem algumas medidas de transição sugere que há espaço para discussão e sistematização desse processo.

Como limitações do estudo, a amostra de médicos foi deliberadamente selecionada, mas apenas metade da equipe médica devolveu o questionário. Dessa forma, os resultados podem não refletir a conduta e as opiniões de todos os profissionais que atuam no ambulatório. Além disso, deve-se considerar que o estudo foi realizado em um ambulatório de um hospital terciário; portanto, os resultados podem não refletir todos os aspectos do cuidado prestado ao paciente. Os pacientes foram selecionados com base em uma amostra de conveniência, de modo que suas opiniões podem não refletir a percepção de pacientes em geral.

A transição vai muito além de um checklist ou de uma conversa: trata-se de um processo contínuo e adaptável, com necessidades que mudam de acordo com a maturidade do paciente. A Sociedade Brasileira de Pediatria publicou um documento sobre a transição, destacando a importância de um processo organizado e discutindo os papéis dos familiares, da equipe médica e dos adolescentes nesse período.1414. Sociedade Brasileira de Pediatria. Departamento Científico de adolescência. Manual de Orientação: doenças crônicas e ambulatórios de transição. Rio de Janeiro (RJ): SBP; 2020. A fim de sistematizar e melhorar a transição do cuidado aos adolescentes, os autores do presente estudo sugerem um protocolo de transição, como demonstrado na Figura 1.

Figura 1.
Fluxograma de transição.

Durante todo o processo de acompanhamento do paciente, seja ele saudável ou portador de alguma patologia, é importante estimular um diálogo aberto com ele e seus familiares, bem como utilizar termos e materiais acessíveis para esclarecer quaisquer alterações em saúde que os adolescentes apresentem no momento do atendimento ou que possam vir a apresentar futuramente. As etapas a seguir são sugestões de um fluxo organizado de transição, mas é importante considerar a individualidade do paciente na elaboração do planejamento.

O plano de transição faz parte do prontuário do adolescente e deve conter sua data de início, as metas e como alcançá-las, as datas de cada etapa e o resultado de escalas padronizadas que incluem: rotina do adolescente, autocuidado, administração de medicamentos, comunicação com a equipe médica e cuidado com o ambiente em que residem. O plano deve ser continuamente revisado e atualizado conforme a necessidade do paciente. A estratificação do processo facilita o entendimento do que ocorre em cada período. É importante avaliar o nível de compreensão do adolescente sobre o que será discutido ou estimulado.

Um formulário de plano de transição é sugerido na Figura 2, contendo um checklist dos itens a serem executados em cada etapa e uma planilha de evolução. As idades indicadas podem variar de acordo com o estado de saúde do adolescente, e pacientes com quadros mais graves podem demandar uma antecipação das etapas do processo de transição.
  • Etapa 1 (11–12 anos): inclui a identificação e avaliação de possíveis particularidades ou necessidades de saúde, bem como o início das consultas sem acompanhantes. Nesse momento, começa o esclarecimento do que é o processo de transição.

  • Etapa 2 (12–14 anos): inclui nova discussão com o adolescente e sua família sobre o que é a transição e quais são os seus objetivos, elaboração do plano de transição de forma conjunta (com o paciente e os familiares), aplicação de um questionário padronizado e estabelecimento de metas e prazos para os itens do plano. Também é indicada, sempre que necessário, a elaboração de um plano de emergência. Esse plano deve conter, além do diagnóstico e do estágio evolutivo em que se encontra a doença, quais as providências a serem tomadas quando o adolescente precisar de atendimento no pronto-socorro, bem como fornecer possíveis contatos para solicitar esclarecimentos.

  • Na Etapa 3 (14–17 anos), o plano de transição já deve ter sido revisado e adaptado algumas vezes, devendo estar bem estabelecido. Inicie a elaboração dos laudos de transferência e comunicação com o médico que dará continuidade ao atendimento do paciente, da forma mais viável (via e-mail, presencialmente ou via telefone), fornecendo documentos e informações relevantes. O relatório de transferência deve conter informações sobre a doença do adolescente, suas particularidades, causas frequentes de descompensação, possíveis comorbidades, assim como as medidas terapêuticas realizadas durante o período de acompanhamento em serviços pediátricos anteriores. Entre 16 e 17 anos, sugere-se a visita do adolescente ao serviço de saúde do adulto, idealmente acompanhado por alguém da equipe pediátrica, mostrando o futuro local de atendimento e a equipe que o atenderá. Caso o adolescente permaneça com a equipe pediátrica, as diferenças presentes nos cuidados da saúde do adulto devem ser discutidas.

  • Na Etapa 4, aos 18 anos, o tipo de atendimento é alterado (se o paciente continuar com a mesma equipe) ou o paciente é transferido para a equipe de saúde do adulto. No caso de transferência, é necessária uma avaliação junto ao médico receptor para analisar a necessidade de manutenção de consultas intercaladas nos dois serviços até a alta do Ambulatório de Pediatria.

Figura 2.
Exemplo de formulário de plano de transição para orientar o médico durante o processo.

O pediatra deve atuar de forma preventiva e identificar as preocupações dos jovens e de seus familiares que possam exigir mudanças nos objetivos da transição. No caso de não cumprimento das metas estabelecidas, o plano deve ser revisto, podendo ser necessário aumentar a frequência das consultas e intervenções.

AGRADECIMENTOS

Os autores agradecem ao Espaço da Escrita – Pró-Reitoria de Pesquisa – Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) pelos serviços linguísticos prestados.

  • Financiamento O estudo não recebeu financiamento.

REFERENCES

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    Martins C. Transição dos cuidados médicos pediátricos para a medicina de adultos [master’s thesis]. Porto: Universidade do Porto; 2012.
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  • 3.
    Anelli CG, Len CA, Terreri MT, Russo GC, Reiff AO. Translation and validation of the Transition Readiness Assessment Questionnaire (TRAQ). J Pediatr. 2019;95:180-7. https://doi.org/10.1016/j.jped.2017.12.013
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jan 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    08 Dez 2020
  • Aceito
    08 Abr 2021
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