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Os enfermeiros têm a “habilidade para a escrita”?

Por que enfermeiros escrevem? As respostas aceitáveis são fáceis, incluindo: compartilhar conhecimentos e informações, debater questões profissionais, divulgar ideias e resultados de pesquisas, avançar o conhecimento e desenvolver currículos profissionais (curriculum vitae). Esses são objetivos perfeitamente válidos, mas por si só eles levam a uma literatura profissional cercada de tédio e repleta de artigos que ninguém, além dos autores, jamais examinará.

Os enfermeiros precisam escrever trabalhos que as pessoas gostem de ler. A observação de William Zinsser há mais de 40 anos, em seu clássico “Sobre escrever bem” é tão verdadeira hoje quanto será daqui a 100 anos: “(O escritor) ainda está atrelado ao velho trabalho de dizer algo que outras pessoas queiram ler”11. Zinsser W. On Writing Well (30th Anniversary edition). New York: Harper Collins; 2012.. Isso deveria ser óbvio e indiscutível, mas décadas de conselhos e restrições de supervisores acadêmicos, editores de periódicos e revisores de manuscritos, considerando que a escrita profissional deve ser imparcial, factual, formal, escrita em terceira pessoa e referenciada até o enésimo grau, sugaram muito da vida da literatura de enfermagem. Ao pesquisar cuidados paliativos pediátricos, lembro-me vividamente de um artigo que observou: “... notável ausência de discussão sobre a importância do amor parental na literatura de terapia intensiva pediátrica”22. Gillis J, Rennick J. Affirming parental love in the pediatric intensive care unit. Ped Crit Care Med. 2006;7(2):165-8.. Foi um momento em que o tempo quase parou. Como alguém poderia entender o mundo dos cuidados intensivos infantis sem entender a fusão, a força, o amor e o medo que dominam todos os pais? Este foi o lugar onde os pais puderam ver seu filho vivo pela última vez. Eu quase podia ver o exército de consultores de redação dizendo: “Tire a palavra ‘amor’. É mal conceituada, emocional demais e inadequada para aquele artigo acadêmico que você está escrevendo”.

Não é que os enfermeiros não possam escrever bem. Quando os enfermeiros escrevem sobre enfermagem fora dos limites da literatura profissional, os resultados podem ser tão impressionantes quanto informativos33. Case M. How to Treat People: A Nurse at Work. London: Penguin Books; 2019.. A tragédia da literatura profissional de enfermagem é que essa escrita é muitas vezes vista como “marginal” ou “populista” e estigmatizada como “literatura cinzenta”, quando na verdade mostra toda a paleta de cores que os escritores de enfermagem deveriam usar para revelar e explorar as inúmeras facetas da enfermagem, os cuidados e as profundas experiências humanas de doença, lesão, perda, recuperação, envelhecimento, relacionamento enfermeiro-paciente/cliente e muito mais.

Aqui, as revistas profissionais com resmas de diretrizes e “instruções aos autores” não são as únicas culpadas. A situação piorou exponencialmente com o crescimento de editoras predatórias e sua lista interminável de “revistas” e “conferências” de péssima qualidade44. Watson R. Predatory journals and the pollution of academic publishing. J Nurse Manag. 2019;27(2):223-4. https://doi.org/10.1111/jonm.12739
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. Não pode haver acadêmico de enfermagem em lugar algum que NÃO receba o dilúvio diário de e-mails de “convites” de spam desses fraudadores para publicar com eles, participar de seus “quadros editoriais” ou falar em suas “prestigiosas conferências”. É difícil superestimar o dano que essas falsificações causam, não apenas à credibilidade e ao respeito próprio da enfermagem, mas ao ofício da escrita profissional. Simplificando, os predadores aceitarão qualquer coisa para “publicação” ou “apresentação”. Não importa quão ruim seja a escrita, desde que o pagamento seja feito. Por que um enfermeiro gastaria os dias, semanas ou meses necessários para elaborar e aprimorar um artigo em um trabalho coerente, persuasivo e articulado, que estaria então sujeito a revisão, quando um periódico predatório publica qualquer rascunho enviado, sem sentido?

Não demando uma “linguagem rebuscada” desenfreada ou um triunfo do estilo sobre a substância, mas algum estilo certamente elevaria o número crescente de artigos publicados. Em outras áreas da escrita, as pessoas têm os seus “autores favoritos” cuja obra aguardam, leem e gostam de partilhar. Pode tratar-se de jornalistas, ensaístas ou romancistas, mas certamente terão algo a dizer e serão capazes de dizê-lo bem. Existem tantos escritores enfermeiros cujo trabalho é visto tão positivamente, ou cujo próximo artigo é tão ansiosamente esperado?

O que devemos esperar na literatura de enfermagem? Centenas de relatórios de pesquisa continuarão a ser publicados, cheios de “tênues descobertas”55. Thorne S, Darbyshire P. Land Mines in the Field: A Modest Proposal for Improving the Craft of Qualitative Health Research. Qual Health Res. 2005;15(8):1105. https://doi.org/10.1177/1049732305278502
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e concluindo que “mais pesquisas são necessárias nessa área”. Artigos de opinião mais sérios entoarão que “a liderança de enfermagem é vital”, que “a enfermagem está em uma encruzilhada”, que “são necessários mais recursos” para algo ou tudo, que o mau atendimento é inaceitável ou qualquer um dos milhares de outros chavões que não precisamos ouvir novamente.

Às vezes imagino uma literatura de enfermagem tão cheia de grandes escritores e escritos que a enfermagem poderia ter seus próprios eventos mundiais como “Semana dos Escritores” ou “Festival do Livro” atraindo não apenas enfermeiros e profissionais de saúde, mas também membros do público nos dizendo o quanto aprenderam sobre enfermagem, saúde e cuidados por ler seus autores de enfermagem favoritos e ouvir seus podcasts e audiolivros.

A enfermagem tem a “habilidade para a escrita” para tornar isso uma realidade?

Referências

  • 1
    Zinsser W. On Writing Well (30th Anniversary edition). New York: Harper Collins; 2012.
  • 2
    Gillis J, Rennick J. Affirming parental love in the pediatric intensive care unit. Ped Crit Care Med. 2006;7(2):165-8.
  • 3
    Case M. How to Treat People: A Nurse at Work. London: Penguin Books; 2019.
  • 4
    Watson R. Predatory journals and the pollution of academic publishing. J Nurse Manag. 2019;27(2):223-4. https://doi.org/10.1111/jonm.12739
    » https://doi.org/10.1111/jonm.12739
  • 5
    Thorne S, Darbyshire P. Land Mines in the Field: A Modest Proposal for Improving the Craft of Qualitative Health Research. Qual Health Res. 2005;15(8):1105. https://doi.org/10.1177/1049732305278502
    » https://doi.org/10.1177/1049732305278502

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    2022
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