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Racismo entre psicologia social e criminologia crítica: encontros e perspectivas decoloniais

Resumo:

O presente artigo objetiva pensar os campos da Psicologia Social e da Criminologia Crítica, a partir de seu compromisso com transformações sociais radicais na sociedade brasileira. Em abordagem dialética e por meio de revisão bibliográfica, secciona-se o ensaio em três partes. Inicialmente, faz-se notas sobre a Psicologia Social, inserta na realidade brasileira. Em segundo segmento, debruça-se sobre o positivismo criminológico e a constituição de uma Criminologia Crítica, dita como marginal. Segue-se em estudo de caso sobre o Massacre do Jacarezinho, analisando-se sua repercussão em meios de comunicação e denunciando-se discursos de neutralidade e sua justificação. Por fim, advoga-se pela defesa de ações teórico-práticas democráticas e comprometidas com a defesa de direitos humanos e com engajamento na oposição às estruturas que mitigam e validam o epistemicídio e as violações de direitos da população vulnerabilizada, especialmente a negra.

Palavras-chave:
Antirracismo; Criminologia Crítica; Direitos Humanos; Estudos decoloniais; Psicologia Social

Abstract:

This article aims to think about the fields of Social Psychology and Critical Criminology, based on their commitment to radical social transformations in Brazilian society. In a dialectical approach and through a literature review, the essay is divided into three parts. Initially, notes are made on Social Psychology, inserted in the Brazilian reality. In the second segment, it focuses on criminological positivism and the constitution of a Critical Criminology, said to be marginal. It is followed by a case study on the Jacarezinho Massacre, analyzing its repercussion in the media and denouncing neutrality discourses and their justification. Finally, it advocates the defense of democratic theoretical-practical actions committed to the defense of human rights and engaging in opposition to structures that mitigate and validate epistemicide and violations of the rights of the vulnerable population, especially the black population.

Keywords:
Anti-racism; Critical Criminology; Human rights; Decolonial Studies; Social Psychology

Introdução

“Ao tratar como vítimas traficantes que roubam, matam e destroem famílias, a mídia e a esquerda os igualam ao cidadão comum, honesto, que respeita as leis e o próximo [...] É uma grave ofensa ao povo que há muito é refém da criminalidade. Parabéns à Polícia Civil do Rio de Janeiro!” (BOLSONARO, 2021 apud EXAME, 2021).

As palavras do Presidente da República epigrafadas, a respeito do massacre ocorrido na favela do Jacarezinho, na cidade do Rio de Janeiro, são emblemáticas de um raciocínio de legitimação da violência letal contra a população negra, pobre e periférica do país. A partir dessa lógica exposta, problematiza-se neste artigo que a colonização enquanto processo histórico forjou critérios existenciais, econômicos e políticos para a subcidadania. Sob novas roupagens, presentificam-se os ideais coloniais nos imaginários sociais, nos processos de subjetivação, nas legislações e em modos de viver.

No período pós-colonial, pontua-se que a psicologia e a criminologia tiveram um papel sodalício ao corroborarem a elitização social e amalgamarem-se ao regime autoritário, aliadas aos discursos positivistas. Todo esse arcabouço de mecanismos veio abarcado por uma dogmática, sobretudo de direito penal, que legitimou não somente o crescimento econômico e o acúmulo de riquezas desenfreados, como também forjou no imaginário social essa legitimação. Quando se trata de realidade brasileira, pensar raça, gênero e classe é inevitavelmente pensar em genocídios. Durante todo o processo de desenvolvimento econômico brasileiro, o racismo foi fio condutor de relações de poder e de violações de direitos da população negra e de periferia.

A Psicologia Social em sua virada teórico-prática nos anos 1980 assumiu um posicionamento de intervir a fim de impactar na transformação social, com e pelos sujeitos e frente aos atravessamentos culturais que os constituem. Na mesma toada, a Criminologia Crítica tratou de se apegar à materialidade prática, não somente como forma de denunciar as mazelas sociais, mas também, aliada à luta de classes, constituir-se como um braço vivo de processos revolucionários – e, assim, se consolidou na América Latina amparo de resistência viva a favor da derrubada dos muros acadêmicos para uma luta popular juntamente com os movimentos sociais.

Por conseguinte, o presente ensaio se propõe a construir um relato através de escrevivências embasadas em revisão bibliográfica específica sobre as áreas da Psicologia Social e da Criminologia Crítica brasileiras. Alega-se, nesse sentido, apontar os encontros e perspectivas para efetividade da decolonização epistêmica e prática, partindo da análise do caso concreto do massacre do Jacarezinho.

Notas sobre a Psicologia Social e a realidade brasileira

Conceituar Psicologia Social demandaria um saber primário do trabalho que ela exerce. Opta-se por iniciar, portanto, com as provocações: “a quem serve a psicologia? Qual o seu papel na transformação da realidade? As práticas e teorias psicológicas estão alinhadas com as demandas da população?” (SILVA, 2013SILVA, C. V. P. da. Psicologia Latino-Americana: desafios e possibilidades. Psicologia: Ciência e Profissão, Brasília, v. 33, 2013., p. 34), a fim de pensar quais psicologias construímos.

Por todas as suas ramificações, definir a Psicologia Social como um campo único não se faz possível, visto que ela não nasce de um projeto unificado. Indagar os objetivos e conceitos que permeiam a área é constantemente revisar metodologias, técnicas e teorias (SILVA, 2013SILVA, C. V. P. da. Psicologia Latino-Americana: desafios e possibilidades. Psicologia: Ciência e Profissão, Brasília, v. 33, 2013.). Nascendo em berço comportamentalista, esse campo era posto como responsável por observar estímulos dos indivíduos dentre os grupos. Ainda que recente, a Psicologia Social em perspectiva crítica compromete-se a ser um campo político e engajado com demandas atuais e trabalhando em caráter multidisciplinar: classe psi, assistência social, na interface com o direito e com os movimentos sociais.

A partir disso, deve-se pensar a Psicologia Social e suas possibilidades de “construir e implementar concepções normativas de conduta humana e de subjetividade” (SPINK; SPINK, 2005SPINK, M. J. P.; SPINK, P. K. A psicologia social na atualidade. In: JACÓ-VILELA, A. M.; FERREIRA, A. A. L.; PORTUGAL, F. T. (org.). História da Psicologia: rumos e percursos. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2005.). Ela, via de regra, não se reduz aos serviços públicos ou se encerra em alguns espaços. Não está apenas no serviço institucional ou em dinâmicas de grupo, tampouco posicionada a mensurar o comportamento do indivíduo nestes espaços. Diante de sujeitos, ao percebermos a sociogênese nas relações e os efeitos psíquicos de violências estruturais no sofrimento, lançamos mão de uma perspectiva social, atenta às afetações que os corpos produzem.

Na Psicologia Social da qual falamos, a pesquisa e a intervenção se fazem com e pelo sujeito e todos os atravessamentos que o constituem. Os sujeitos não se constituem sozinhos, uma vez que falam, pensam, criam, aprendem, eles fazem parte de uma cultura.

Uma análise pela perspectiva da psicologia socio-histórica permite justificar que as experiências compartilhadas se dão como uma problemática psicossocial, ao defender-se que as violências cotidianas deixam marcas em instâncias subjetivas e sociais. Na ambiguidade do racismo à brasileira, ser invisível, a saída proposta é a efetivação de ações afirmativas no ensino, pesquisa e extensão, reformas na curricularização e paridade na docência. A desobediência epistêmica convoca a romper com os saberes normativos das psicologias e tensionar os espaços, produções e discursos. O compromisso social e o cuidado como ferramenta ético-política são imprescindíveis às psicólogas e psicólogos sociais, aptos à função de denunciar as mazelas causadas pelo racismo e potenciar seres marginalizados para a defesa de seus direitos. A decolonização enquanto mecanismo de transformação social torna-se aliada neste processo, pois se atenta à afetação que os corpos produzem e reforça a necessidade de engajamento e práxis críticos, fazendo-se assim pertinente ao eixo que discute as imbricações sociais que produzem desigualdades.

A revisão da historicidade da Psicologia Social pode partir do início do século XX quando, na América do Norte, William McDougall e Edward Ross fizeram as primeiras publicações do campo teórico. No entanto, por essas obras seguirem uma tendência sociológica e behaviorista, defendia-se que as pesquisas “deveriam concentrar-se no estudo experimental do indivíduo, na medida em que o grupo se constituía tão somente a mais um estímulo do ambiente social a que esse indivíduo era submetido” (FERREIRA, 2010FERREIRA, M. C. A Psicologia Social contemporânea: principais tendências e perspectivas nacionais e internacionais. Psic.: Teor. e Pesq., Brasília, v. 26, 2010., p. 52). Os autores sustentaram que a Psicologia Social se dividia em duas modalidades: uma sociológica e uma psicológica; com a primeira propondo-se um caráter mais experimentalista para estudar a sociedade, e a segunda focada na linguagem, pensamentos e comportamentos (FERREIRA, 2010FERREIRA, M. C. A Psicologia Social contemporânea: principais tendências e perspectivas nacionais e internacionais. Psic.: Teor. e Pesq., Brasília, v. 26, 2010.). As duas perspectivas eram dicotomizadas de modo que a primeira se baseava em métodos laboratoriais para analisar comportamentos individuais e a segunda fundamentava-se na análise de mitos, religiões e produtos culturais (ALMEIDA, 2012ALMEIDA, L. P. de. Para uma Caracterização da Psicologia Social Brasileira. Psicologia: Ciência e Profissão, v. 24, n. 32, 2012.).

Com efeito, a Psicologia Social nascida na América Latina foi mobilizada inicialmente a partir de questionamentos e críticas às vertentes nortistas, e “em prol de uma Psicologia Social mais contextualizada, isto é, mais voltada para os problemas políticos e sociais que a região vinha enfrentando” (FERREIRA, 2010FERREIRA, M. C. A Psicologia Social contemporânea: principais tendências e perspectivas nacionais e internacionais. Psic.: Teor. e Pesq., Brasília, v. 26, 2010., p. 58). Articulada num contexto de tensões sociais e políticas, ao constituir de maneira mais elaborada o conceito de “compromisso social”, eclode desse movimento a Psicologia Social crítica, em defesa da ação e transformação sociais na construção de culturas e realidades que gestem melhorias nas condições de vida da população (SILVA, 2013SILVA, C. V. P. da. Psicologia Latino-Americana: desafios e possibilidades. Psicologia: Ciência e Profissão, Brasília, v. 33, 2013.). Nessa perspectiva, cabe dizer que:

Na América Latina, a preocupação coletiva com os graus de desigualdade e de exclusão social no continente e com a violência e arbitrariedade dos regimes militares dominantes entre meados da década de 1960 e meados da década de 1980, criou sua própria atualidade que resultaria numa reforma radical em termos de temas de estudo como também, em alguns casos, em termos de enfoque teórico (SPINK; SPINK, 2005SPINK, M. J. P.; SPINK, P. K. A psicologia social na atualidade. In: JACÓ-VILELA, A. M.; FERREIRA, A. A. L.; PORTUGAL, F. T. (org.). História da Psicologia: rumos e percursos. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2005., p. 573).

Torna-se válido ressaltar as diferenças entre os países que formam geograficamente essa região, onde se inclui o Brasil, marcado também por contextos culturais e geopolíticos diversos. Mas, o esforço para cruzar as similaridades que fortalecesse o continente política e economicamente era feito também para que se construísse uma identidade própria ao campo. Logo, integrar nesta a historicidade da Psicologia Social produzida em outros países Latino-Americanos e no Brasil transfigura-se como um posicionamento político. Visto que esses países trazem em sua constituição, traços e traumas da colonização, “vivenciar tal choque de realidade torna-se fundamental para o seu amadurecimento e retratação como ciência e profissão” (SILVA, 2013SILVA, C. V. P. da. Psicologia Latino-Americana: desafios e possibilidades. Psicologia: Ciência e Profissão, Brasília, v. 33, 2013.). Como defende Martín Baró (apud FERREIRA, 2010FERREIRA, M. C. A Psicologia Social contemporânea: principais tendências e perspectivas nacionais e internacionais. Psic.: Teor. e Pesq., Brasília, v. 26, 2010., p. 59), “a construção teórica em Psicologia Social deve emergir dos problemas e conflitos vivenciados pelo povo latino-americano, de forma contextualizada com sua história”.

No período colonial e pós-colonial brasileiro, a psicologia teve um papel congregado com a higienização moral e a elitização social. Conforme aponta Bock (2004BOCK, A. M. B. A perspectiva histórica da subjetividade: uma exigência para la psicologia atual. Psicol. Am. Lat., México, n. 1, 2004., p. 2), a psicologia da época dava “ênfase à preocupação cientificista, transformando as escolas em verdadeiros laboratórios” e era “associada à administração e à gestão do trabalho, baseadas no pensamento taylorista”. Junto à educação, à industrialização e à medicina, as ideias psicológicas amalgamaram-se ao regime autoritário do Brasil-Império, à medida que se coadunavam com o controle de corpos de mulheres, crianças e dos que se encontravam reclusos em hospícios.

A institucionalização da Psicologia Social no Brasil ocorreu apenas em 1962 – concomitante com a regularização da Psicologia enquanto profissão no contexto nacional – quando o Conselho Federal de Psicologia (CFP) tornou obrigatória a curricularização da disciplina (FERREIRA, 2010FERREIRA, M. C. A Psicologia Social contemporânea: principais tendências e perspectivas nacionais e internacionais. Psic.: Teor. e Pesq., Brasília, v. 26, 2010.). Durante os anos de 1970, ela continuava crescendo no campo teórico e profissional no país, mas ainda com fortes influências estadunidenses (BOCK; FURTADO, 2005BOCK, A. M. B.; FURTADO, O. A psicologia no Brasil e suas relações com o marxismo. In: JACÓ-VILELA, A. M.; FERREIRA, A. A. L.; PORTUGAL, F. T. (org.). História da Psicologia: rumos e percursos. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2005.). Porém, em decorrência do crescente movimento da Psicologia Social crítica na América Latina, um movimento de cisão com a Psicologia Social tradicional, com diversos autores conceitualizando diferentes vertentes e enfatizando o papel psicossocial de ruptura e superação das situações de violências, desigualdades sociais, pobreza (FERREIRA, 2010FERREIRA, M. C. A Psicologia Social contemporânea: principais tendências e perspectivas nacionais e internacionais. Psic.: Teor. e Pesq., Brasília, v. 26, 2010.) estruturava-se também no Brasil.

A visão crítica e militante de Silvia Lane a guiava para uma práxis que se preocupasse com a realidade social. Para ela, a realidade deve se transformar para criar condições de vida digna a todos, e “o conhecimento e a profissão deveriam estar a serviço da transformação” (BOCK et al., 2007BOCK, A. M. B. et al. Sílvia Lane e o projeto Compromisso Social da Psicologia. Psicol Soc. Porto Alegre, v. 19, n. 2, 2007., p. 47). O materialismo histórico abriu novos caminhos para a Psicologia Social brasileira, pois trouxe possibilidades de metodologia importantes para a superação do pensamento cognitivista e com a ressalva de que “sujeito e objeto estão em relação dialética, portanto não há neutralidade no conhecimento, há sempre uma intenção do sujeito sobre o objeto” (BOCK et al., 2007BOCK, A. M. B. et al. Sílvia Lane e o projeto Compromisso Social da Psicologia. Psicol Soc. Porto Alegre, v. 19, n. 2, 2007., p. 50).

Para subverter a Psicologia Social tradicional, autoras e autores do Brasil e de outros países da América Latina enfrentaram conceitos e métodos de maneira crítica. Em concordância com Bock e Furtado (2005)BOCK, A. M. B.; FURTADO, O. A psicologia no Brasil e suas relações com o marxismo. In: JACÓ-VILELA, A. M.; FERREIRA, A. A. L.; PORTUGAL, F. T. (org.). História da Psicologia: rumos e percursos. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2005. e Ferreira (2010)FERREIRA, M. C. A Psicologia Social contemporânea: principais tendências e perspectivas nacionais e internacionais. Psic.: Teor. e Pesq., Brasília, v. 26, 2010. apresentam, entendia-se que o conhecimento da psicologia deveria contribuir para ampliar a consciência dos indivíduos e os métodos para a superação das desigualdades. À luz da história, dentre todas as lições ofertadas, resiste a necessidade de revisar e revisitar a psicologia quanto a sua formação e acerca da práxis à medida que se postam como demandas constantes. Desse modo, a fim de não se repetirem padrões, advoga-se pela inspiração na criticidade e na ação política de pensadoras e pensadores latino-americanos. Afinal, entender os sujeitos dentro de sua cultura e historicidade, assim como transformar teorias e práticas dentro das conjunturas próprias, são possibilidades que a Psicologia Social oferece (na linha de JACÓ-VILELA; DEGANI-CARNEIRO; OLIVEIRA, 2016JACO-VILELA, A. M.; DEGANI-CARNEIRO, F.; OLIVEIRA, D. de M. A formação da Psicologia Social como campo científico no Brasil. Psicol. Soc., v. 28, n. 3, 2016. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-71822016000300526&lng=pt&nrm=isol. Acesso em: 6 jul. 2020.
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).

Positivismo criminológico e a construção da Criminologia Crítica marginal

Cabe enfatizar que a criminologia é uma ciência que estuda materialmente os processos de criação das leis e normas sociais que se correlacionam com os comportamentos denominados de desviantes, bem como a relação desses comportamentos com a reação social que geram (ANIYAR DE CASTRO, 1983ANIYAR DE CASTRO, L. Criminologia da Reação social. Rio de Janeiro: Forense, 1983.). Mudar este enfoque positivista no sentido de não tratar mais os sujeitos como criminosos e sim atribuir-lhes a roupagem de sujeitos criminalizados, afastando a individualização deste amplo fenômeno. Sendo assim, o objeto desloca-se da criminalidade para a criminalização, esta última como uma realidade construída, demonstrando acima de tudo que o crime é uma atribuição dada a comportamentos ou pessoas, algo construído não só através da normatização, mas também da própria construção como sociedade (SANTOS, 2005SANTOS, J. C. dos. A Criminologia Crítica E A Reforma Da Legislação Penal. Florianópolis: Conferência Nacional Dos Advogados, 2005.).

A Criminologia Crítica constitui-se como uma nova criminologia, que além de contrapor os dizeres da burguesia e do liberalismo, desconstrói referencialmente e, sobretudo na práxis, uma criminologia pautada no conservadorismo — esta que, em um contexto de hegemonia do pensamento eurocêntrico, foi uma das ferramentas responsáveis pela segregação social dos “indesejáveis”. O que caracteriza os dizeres dessa nova maneira de questionar o fenômeno criminal é justamente a confrontação aos princípios conservadores (DORNELLES, 2017DORNELLES, J. R. Atualidade da Criminologia Crítica. Metaxy, Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, 2017.).

Na década de 1970, portanto, a criminologia encontrou o marxismo, onde com base no materialismo e pautada na crítica à expansão do capital e nas crises sociais e econômicas, deu uma nova forma de abordar e problematizar o delito (ZILIO, 2015ZILIO, J. O que resta da criminologia crítica. REDES – Revista Eletrônica Direito e Sociedade, vol. 3, n. 1, 2015.). Portanto, a criminologia foi, dentro do contexto europeu de seu tempo, responsável, ou no mínimo, contributiva para grandes apartheids ao redor do mundo; dentro do campo crítico e geográfico latino, se tornou uma combatente de tudo que esse velho pensamento representava, ainda que os resquícios desta máquina ainda maior (o capitalismo) estejam operando dentro dos territórios periféricos (ZAFFARONI, 2018ZAFFARONI, E. R. A Questão Criminal. Rio de Janeiro: Revan, 2018.).

O diálogo entre a Psicologia Social e a Criminologia Crítica se faz, justamente, para se pensar em maneiras de enfrentamento ao que ressoa no encarceramento que se apresenta hoje: um produto das relações coloniais, liberais, econômicas, racistas e sexistas. Esta relação não se deu há pouco tempo, pois, a punição esteve no bojo de diversas culturas e agrupamentos anteriores ao desenvolvimento da história moderna.

Na realidade brasileira, o sistema de justiça penal, para além de manter um contingente de pessoas marginalizadas, foi importante ferramenta para acumulação primitiva de capital, pois mantém acirrada a luta no mercado de trabalho, causando diversos efeitos nefastos, como a baixa nos salários, apresentada por pensadores da economia política da pena que pensaram tal questão em solos brasileiros (SERRA, 2007SERRA, M. A. de Sa. Economia política da pena. 2007. 255 p. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2007.). Fania Davis (2019)DAVIS, F. E. The little book of race and restorative justice: black lives, healing, and US social transformation. Nova Iorque: Good Books, 2019., ao refletir sobre a experiência estadunidense, bem explicita realidade análoga a existente no Brasil, que, igualmente, reluta em confrontar e ser honesto sobre o legado contemporâneo da escravidão, do genocídio, do linchamento, da segregação, do encarceramento em massa e da torrente incessante de abusos racistas contra a comunidade negra.

Sob roupagens ainda mais cruéis, o Brasil operou um verdadeiro campo de guerra contra corpos que não eram necessários no projeto populacional. Após a abolição dos escravizados e com base no mito da democracia racial, uma verdadeira importação de mão-de-obra branca desembarcou em territórios brasileiros, jogando ainda mais às margens a população de ex-escravizados. Pela ótica da Criminologia Crítica e de estudos afrocentrados, caracteriza-se um genocídio cultural, subjetivo e de corpos. Configura-se a partir daí um sistema de direitos, limites das territorialidades e cerceamento sistemático de corpos que desejam viver. Ultrapassa-se, dessa forma, o limite legal do genocídio, que se expande da morte demasiadamente projetada, mas assola as corporeidades, manifestações e performances de ser e estar no mundo (MOURA, 2019MOURA, C. Sociologia do Negro Brasileiro. São Paulo: Perspectiva, 2019.).

Em um pós-abolição sem nenhuma política pública adequada para receber negros libertos, aponta-se que a psicologia e a criminologia se cooptaram à falácia da democracia racial e auxiliaram no processo de higienização social. Na história do tempo presente, a sequência de silenciamento destas discussões de maneira progressiva e crítica compactua, mesmo que indiretamente, por fazer com que os assassinatos de dezenas de pessoas em uma favela possam ser vinculados simplesmente nos veículos de comunicação como uma operação. Isto porque, a estratégia de justificação vem sendo criminalizar as vítimas, aproximando tais pessoas do crime organizado – como se ser membro de alguma organização ou já ter respondido algum processo penal fosse uma aptidão à morte (FRANCISCO, 2021FRANCISCO, M. Jacarezinho não foi acidente. Esse genocídio precisa acabar! Carta Capital, São Paulo, 6 maio 2021.). Na burocratização da vida, através da normatização desumana, coloca-se a periferia e seus residentes como descartáveis (HULSMAN; CELIS, 1993HULSMAN, L.; CELIS, J. B. O sistema penal em questão penas perdidas. Rio de Janeiro: Luam, 1993.).

Quando se trata do genocídio da população negra, o Estado (de fato, antinegro) possui um braço a seu favor: a produção de conhecimento. O constante apagamento de pesquisas e pesquisadores negros é projeto estruturado para a procriação de tais modo de operacionalidade. Desta forma, o humanismo radical, em termos objetivo e subjetivo, é esvaziado por tal discurso que diminui a dor de quem se encontrada em integral condição de vulnerabilidade. Urge, assim, a união contra o colonialismo, mesmo que em forma de rebelião, que não pode ser relativizada pelo Estado que muitas vezes assume o lugar dos colonizadores (FANON, 1968FANON, F. Os Condenados da Terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.). Opor-se a esta lógica, reivindicando o pensamento decolonial, é uma das alternativas possíveis para derrubar muros de passibilidade. Muros que marcam a distância com a periferia, os movimentos populares e com uma suposta cientificidade branca, e afastam tais pautas de discussão.

O agigantamento dos muros, ao seu turno, tenta engolir o pensamento crítico. A lógica de produção passa a subjetivamente transformar o ser humano em uma espécie de máquina e a legislação positivada coopera para justificar a barbárie e isolar os iguais. Portanto, as mulheres, os negros, os operários, os prisioneiros e os pobres constituíram os excluídos da história, que em territórios brasileiros, constituíram a sociabilidade da barbárie (NEGRI, 2015NEGRI, A. O poder constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade. Rio de Janeiro: Lamparina, 2015.; PERROT, 2017PERROT, M. Os excluídos da história: Operários, Mulheres e Prisioneiros. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2017.; MASCARO, 2018MASCARO, A. L. Crise e Golpe. São Paulo: Boitempo, 2018.).

Discurso de neutralidade e justificação da barbárie: uma análise comunicacional sobre o Massacre do Jacarezinho

A neutralidade cientificista chegou ao Brasil juntamente com a academia brasileira, que produzem não somente corpos dóceis para a crítica social e para a manutenção da estrutura burguesa e colonial, como também pouco questionam as possibilidades de a legislação ter sido pensada a manter tais estruturas de dominação. Fato é que a estrutura neutra da legislação de drogas é responsável por aprisionar em massa milhares de jovens negros e de periferia, junto com um discurso legitimador midiático que torna as pessoas vulneráveis a serem cooptadas por tal raciocínio (ALEXANDER, 2017ALEXANDER, M. A nova segregação: Racismo e encarceramento em massa. São Paulo: Boitempo, 2017.).

Na realidade brasileira, Vera Regina Pereira de Andrade (2016)ANDRADE, V. R. P. de. A Criminologia crítica na América Latina e no Brasil: em busca da utopia adormecida. In: LEAL, J. S.; FAGUNDES, L. M. Direitos Humanos na América Latina. Curitiba: Multideia, 2016. nos convida a questionar a própria produção acadêmica e militante das ciências penais com um olhar abrangente, transdisciplinar e conectado com a realidade material da vida em sociedade. Isso faz com que se questione as próprias produções acadêmicas no campo crítico, seja dentro das teorias criminológicas propriamente ditas ou das teorias críticas das demais matérias que formam o arcabouço da criticidade social. Tal realidade complexa faz com que se entenda que nos solos de capitalismo periférico, a estrutura racista se moldou com base nos genocídios e deve-se pensar uma produção que englobe tais questões ao ponto de enfrentá-las na práxis (ANDRADE, 2016ANDRADE, V. R. P. de. A Criminologia crítica na América Latina e no Brasil: em busca da utopia adormecida. In: LEAL, J. S.; FAGUNDES, L. M. Direitos Humanos na América Latina. Curitiba: Multideia, 2016.).

A partir de tais premissas chega-se à centralidade da discussão proposta, a partir da análise de reportagens a respeito do Massacre do Jacarezinho e compreender como os discursos de neutralidade burocratizam a vida em sociedade e justificam a barbárie desenfreada em solos periféricos. Dessa forma, são analisadas reportagens veiculadas em jornais de grande e média circulação, com cunho de defesa ou não do acontecido. Tais textos foram escolhidos de maneira a privilegiar agência de maior circulação e, na sequência, optando-se por veículos tangenciados por opiniões políticas, a exemplo de textos e blogs independentes, finalizando-se com coletivos de defesa populacional e de direitos humanos.

O jornal CNN, em reportagem que questiona a legalidade do acontecimento, estampa em sua chamada o dizer operação; apontando que a operação no Jacarezinho completa um mês neste domingo e ao abrir a reportagem, mesmo após questionar que no lapso temporal indicado pouco havia sido feito, prende-se a dogmática penal para se referir aos fatos: “A ação planejada pela Polícia Civil para cumprir mandados de prisão contra o tráfico de drogas e suspeitos de outras práticas criminosas terminou em um confronto marcado pela violência e as mortes de 28 pessoas, entre elas, um agente da Delegacia de Combate às Drogas” (ARAUJO, 2021ARAUJO, T. Operação no Jacarezinho completa um mês neste domingo. CNN, São Paulo, 6 jun. 2021., p. 1).

Observa-se, portanto, uma linguagem carregada de palavras que colocam em xeque a inocência das pessoas assassinadas pela chacina. Ainda se tratando de jornais de grande circulação, o Correio do Povo em sua manchete aponta que “Operação no Jacarezinho tem ao menos 25 mortos no Rio, diz polícia”, em sequência aduz que:

A incursão da Polícia Civil ocorreu para apurar o suposto aliciamento de menores e o sequestro de trens da SuperVia pela maior facção do tráfico no Estado, o Comando Vermelho. Os mortos são um policial e outras 24 pessoas. Segundo a corporação, elas seriam suspeitas de integrar o tráfico (OPERAÇÃO..., 2021, p. 1).

Na sequência da reportagem, observa-se ênfase nas teses defendidas pelo Estado policial atribuindo mais uma vez roupagens de suspeitos às pessoas assassinadas. A dogmática penal punitivista, mais uma vez contida na linguagem, traz consigo ares de tecnicismo e imparcialidade para tratar dos fatos, os afastando da realidade concreta.

Reportagem veiculada pelo jornal Gazeta do Povo (A AÇÃO..., 2021), em um editorial de opinião, trouxe estampada em sua chamada: a ação policial no Jacarezinho e a guerra entre polícia e tráfico. Avançando na análise da matéria, observa-se mais uma vez uma linguagem densamente justificadora, apontando que as entidades que estavam contra o massacre sequer esperaram os fatos serem esclarecidos, indica-se que:

A ação da Polícia Civil do Rio de Janeiro contra o Comando Vermelho no Jacarezinho, que terminou com 28 mortos, sendo um deles um policial alvejado na cabeça, gerou uma repercussão mais que esperada: muito antes que sejam esclarecidas todas as circunstâncias em que se desenrolou a operação, entidades de direitos humanos, políticos de esquerda, comunidade acadêmica e boa parte da imprensa já escolheram seu lado e estão promovendo a demonização unânime e precipitada dos policiais. O veredito está evidente na escolha do palavreado usado para descrever a ação, e termos como “chacina” ou “massacre” são usados livremente. O ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, ordenou ao procurador-geral da República que abra uma investigação sobre a conduta dos agentes da lei, aparentemente deixando de lado a conduta do outro lado, o dos criminosos (OPERAÇÃO..., 2021, p. 1).

O texto denominado de opinião traz consigo uma carregada linguagem técnica, apontando que as pessoas que foram contra os acontecimentos brutais não esperaram o desfecho dos acontecimentos, dando a entender que, as pessoas precipitadamente agem contra a força policial e que se deve esperar as conclusões para se chega a um denominador comum. Outra questão que chama atenção é o fato de deslegitimar as pessoas que defendem os direitos humanos e de maneira pejorativa apontar a esquerda como inimiga das forças policiais.

Ainda em tom de análise discursiva, o jornal G1 Rio de Janeiro trouxe em sua chamada que “operação no Jacarezinho deixa 25 mortos, provoca intenso tiroteio e tem fuga de bandidos”, e ainda que: “A polícia diz que 24 mortos são suspeitos, mas não deu detalhes sobre quem eles são e o que faziam ao serem baleados. A 25ª vítima é o policial civil” (HAIDAR, 2021, p. 1). No decorrer da matéria, apesar de apontar o que dizem moradores sobre o ocorrido e explicitar que muitas pessoas discordam da versão apresentada pela corporação, dá grande ênfase às versões oficiais, com destaque e de forma minuciosa aos relatos prestados pelos policiais.

Em contrapartida, no mesmo jornal, outra matéria aponta que o acontecido foi um desastre e que a polícia do Rio de Janeiro não esclareceu de maneira correta os fatos apontados, porém, na chamada da matéria ainda se destaca o termo operação em detrimento do massacre que de fato ocorreu (BARREIRA; BRASIL, 2021BARREIRA, G.; BRASIL, F. Operação no Jacarezinho é a mais letal da história do RJ. G1, Rio de Janeiro, 6 maio 2021.). Demonstra-se, nesse sentido, que o tecnicismo é um grande fio condutor nos veículos de comunicação, sobretudo nos jornais de maior circulação, quando se trata de justificar barbáries, diferentemente do manejo de terminologias pejorativas direcionadas a destacar a população pobre e negra — comumente chamadas de bandidos, suspeitos ou traficantes, mas jamais vítimas.

O jornal Diário do Rio 100% Carioca, de menor expressividade nacional, mas de grande circulação no Estado do Rio de Janeiro, trouxe um editorial no qual defende com veemência a barbárie ocorrida no Jacarezinho. Logo na chamada da manchete já se depara com os dizeres: “Jacarezinho teve Operação Policial, não chacina” (FREIRE, 2021FREIRE, Q. G. Editorial: Jacarezinho teve Operação Policial, não chacina. Diário do Rio, Rio de Janeiro, 2021., p. 1). Avançando na análise do editorial, observa-se uma total negação das pessoas que vivem em tal localidade. E mais uma vez ares de tecnicismo e cientificidade para justificar o acontecimento, como bem traz a matéria:

Assim, é bom diferenciar o que é chacina do que é uma operação policial. Afinal, a chacina é um assassinato coletivo, um massacre, normalmente de pessoas desarmadas, e não é o que houve no Jacarezinho. Ali ocorreu um combate entre a Polícia Civil e bandidos fortemente armados, armados até os dentes, e com orientação de resistir até o último homem à ação do Estado. Dos 25 mortos, 1 era policial civil, 18 tinham passagem pela polícia, e outros 6 ainda deverão ser identificados com mais detalhes, mas a Polícia tem evidências de serem criminosos (FREIRE, 2021FREIRE, Q. G. Editorial: Jacarezinho teve Operação Policial, não chacina. Diário do Rio, Rio de Janeiro, 2021., p. 1).

Batista (2011BATISTA, V. M. O Alemão é muito mais complexo. Rev. Justiça e Sistema Criminal, Curitiba, v. 3, n. 5, 2011., p. 109), em O Alemão é muito mais complexo, aborda perspectivas de Marx e Foucault, transitando também pelo pensamento político de autores como Milton Santos, destacando que a noção de território em termos políticos, quando se trata do contexto de colonialidade e dependência é uma noção política. O território das classes dominadas, pobres e negras normalmente é desconsiderado pelo aparato estatal que age como colonizadores em uma espécie de retomada territorial, negando totalmente aspectos humanitários às pessoas que vivem e reexistem nestes locais. Impossível também não resgatar as questões mercadológicas levantadas por Losurdo (2018LOSURDO, D. O marxismo ocidental: como nasceu; como morreu e como pode renascer. São Paulo: Boitempo, 2018., p. 56) quando aponta que o Estado burguês em verdade está à mercê da política do dinheiro vestido com uma espécie de capuz democrático. E, nos territórios colonizados, percebe-se o exercício de dominação e invasão nas retomadas territoriais em bairros maciçamente constituídos por pessoas negras, rememorando concepções coloniais de poder, que negam integralmente a humanidade dos residentes. O recorte raça foi (e é) um mecanismo de extrema relevância, no que tange à supressão de direitos e à colonialidade burguesa do poder, enxergando a população sob a ótica do racismo cientificista e como alvo necessário para a acumulação de riquezas da branquitude (QUIJANO, 2005QUIJANO, A. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, E. A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais, Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: Clacso, 2005., p. 118).

Nesse contexto de ampla contaminação do pensamento colonial, retomando-se os principais dizeres das reportagens analisadas, observa-se que as terminologias utilizadas ao se referir à chacina são extremamente diferentes dos termos utilizados para se referir às verdadeiras vítimas. No contexto do Massacre do Jacarezinho, tais pessoas não foram tratadas como seres humanos, e os veículos de comunicação analisados corroboram as teses da colonialidade — materialmente presentes na vida de tais pessoas, muito por conta de discursos que justificam o injustificável.

Tal normalização é forjada discursivamente e amparada pela legislação que, com ares de neutralidade, formam um arcabouço técnico-científico penal que meramente foi transportado de contextos externos para uma realidade totalmente distinta. Nessa linha, sobre o tecnicismo jurídico colonial, Thula Pires leciona que:

O sistema jurídico reproduzido no Brasil não só estava intimamente ligado ao empreendimento colonial e às categorias de pensamento que decorriam dele, como desempenhou um papel central na sua consolidação. A história dos institutos jurídicos que afirmavam a liberdade se desenvolveu simultaneamente ao regime de escravidão, ao genocídio e à exploração dos povos colonizados. Nesse contexto, o sujeito de direito é a afirmação de uma pretendida uniformidade, forjada pela exclusão material, subjetiva e epistêmica dos povos subalternizados. A régua de proteção que determina o padrão a partir da qual bens como a liberdade passam a ser pensados deriva da afirmação da supremacia branca, masculina, cisheteronormativa, classista, cristã e inacessível a todos os corpos, bem como do resultado dos processos de assimilação e aculturação violentos empreendidos pelo colonialismo (PIRES, 2019PIRES, T. Direitos humanos e Améfrica Ladina: Por uma crítica amefricana ao colonialismo jurídico. In: VIVEROS-VIGOYA, M. (org.). América Ladina: Vinculando Mundos y Saberes, Tejiendo esperanzas. Guadalajara: LASA, 2019., p. 71).

Negri (2015NEGRI, A. O poder constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade. Rio de Janeiro: Lamparina, 2015., p. 208) revela a revolução do trabalho como constituição de uma revolução burguesa, que colocou nas mãos dos capitalistas uma tríade que domina, até os dias atuais, as classes populares. Pela via das relações de trabalho, constitui-se o pobre, negro e periférico como “chão de fábrica” e deu-se a constituição dogmática de normas jurídicas pensadas e operadas para a manutenção da estrutura colonial, capitalista e racista, que nessa altura já detinha a fábrica e agora também detém o sistema de justiça. Tripé que se conclui com a detenção do tempo, pois dentro da fábrica se opera um controle cronológico e, sendo eles donos do tempo, são não somente proprietários dos meios de produção. Tais ferramentas de dominação também passam a ser subjetivas, uma vez que sem tempo, sem norma e aprisionados nos espaços, não se pode pensar em suas condições subjetivas e, muito menos em revolução.

Leal (2021LEAL, J. da S. Uma razoável quantidade de violência: a aceitação das prisões como síntese da atual sensibilidade acerca da violência. Revista Brasileira de Segurança Pública, São Paulo, v. 15, n. 1, 2021., p. 67), por sua vez, pondera que para compreender a totalidade da realidade das violências que se vivencia no Brasil, é necessário retomar aos marcos teóricos que passam por diversas vertentes de pensamento sem negar a importância de nenhum. A realidade forjada entre uma concepção de trabalhadores laborais honestos em oposição à ideia de vagabundos faz parte dessa transportação de noções eurocêntricas que negam as especificidades das realidades locais. Em tempo, deve-se considerar tanto as vertentes materialistas quantos as culturalistas para que se compreenda que, dentro dessa separação forjada por dogmas religiosos, a colocação da família tradicional e do trabalho como alvos potenciais da violência apenas negam a realidade sociorracial histórica brasileira.

Portanto, cabe retornar então à citação prefacial, na qual o Presidente da República afirma com veemência a diferenciação entre o arquétipo de um cidadão comum, honesto, que respeita as leis e o próximo e daqueles que roubam, matam e destroem famílias, para justificar a ação policial, exemplo dramático do genocídio negro no Brasil.

Considerações finais

Davis (2019DAVIS, F. E. The little book of race and restorative justice: black lives, healing, and US social transformation. Nova Iorque: Good Books, 2019., p. 31) é precisa: “A raça não é real, mas o racismo é muito real”. Ele, enquanto fenômeno complexo, estabelece uma sistemática de domínio de uma raça – na realidade brasileira, de matriz europeia branca — em detrimento de outras em múltiplos campos, importando na suspeição de corpos (dimensão criminogênica), em exclusões sobre o acesso a bens e serviços e à renda (dimensão econômica), a gestão e a dinâmica nas relações e espaços de poder (dimensão política), a construção de narrativas e a reprodução de subjetividades na sociedade (dimensão psicológica) e a regulação de mecanismos normativos e a garantia de direitos (dimensão jurídica) (MUNIZ, 2020MUNIZ, V. C. Racismo: porque não se deve simplificar um conceito complexo. Justificando, São Paulo, 9 jul. 2020.).

Modos de subjetivação, no mesmo sentido, estão amalgamados a questões múltiplas, porém racializadas. Ao analisar-se o contexto brasileiro e latino-americano é necessário evidenciar que esse processo histórico é marcado por diferentes formas de colonização, pelo processo de higienização, pelo eurocentrismo e, sensivelmente, pelo racismo.

Uma das grandes viradas da Psicologia Social foi justamente, entender os movimentos sociais como sujeitos e não somente objetos de pesquisa. Os movimentos populares no bojo da luta contra Ditadura trouxeram a necessidade de pensar com as bases materiais marxistas a decolonialidade do pensamento social dentro da psicologia, fazendo com que ela estivesse nas trincheiras junto da Criminologia Crítica, no enfrentamento aos pensamentos hegemônicos coloniais, misóginos, patriarcais, patrimonialistas e racistas.

A repercussão do Massacre do Jacarezinho, comunidade periférica, preta e pobre, é, de um lado, sintomática do racismo à brasileira, e, de outro, é catalizadora do pensar crítico que aproxima quem luta por direitos humanos dos movimentos populares na desconstrução cooperativa de raciocínios dominantes — pelo que se defende no presente ensaio, justamente, o combate de uma suposta neutralidade acadêmica.

Pensar um caminho inverso às normativas coloniais é, por conseguinte, se posicionar em prol da realidade brasileira, que em sua esmagadora maioria é vulnerabilizada. Este posicionamento é a busca intransigente por ação e atuação comprometidas com as demandas marginais, extramuros e socialmente responsável. Que Psicologia Social e Criminologia Crítica estejam sempre ao lado da democracia e aptas a reivindicar a defesa de direitos humanos ao povo, manifestando-se em discursos de luta e com engajamento na oposição às estruturas que mitigam e validam o epistemicídio e o genocídio negros.

Agradecimentos

Não se aplica.

  • Agência financiadoraNão se aplica.
  • Aprovação por Comitê de Ética e consentimento para participaçãoNão se aplica.
    Consentimento para publicaçãoConsentimento dos autores.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    10 Jul 2021
  • Aceito
    16 Dez 2021
  • Revisado
    07 Fev 2022
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