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Da escravidão à prisão pelo fio condutor da tortura no Brasil

Resumo:

A tortura é uma técnica utilizada no Brasil desde a colonização para controlar as massas. Embora existam normativas que proíbam a prática, ela segue sendo impetrada com a mesma finalidade. O texto aborda as semelhanças entre os tempos históricos a partir de uma obra que retrata o cotidiano da escravidão nos quatro primeiros séculos, e de documentos públicos que retratam as condições do aprisionamento no Rio de Janeiro, nos últimos dez anos. As proximidades das ações revelam que a tortura é direcionada aos corpos socialmente referenciados e não brancos, o que garante uma contenção eficaz através das mais variadas formas de violência.

Palavras-chave:
Tortura; Escravidão; Prisão; Violência

Abstract:

Torture is a technique used in Brazil since colonization to control the masses. Although there are norms that prohibit this practice, it continues to be used for the same purpose. The text addresses the similarities between these historical times based on a work that portrays the daily life of slavery during its first four centuries, and public documents that presents the conditions of imprisonment in Rio de Janeiro for the last ten years. The proximity of the actions reveals that torture is directed to bodies socially referenced and non-white, what assures an effective containment through the most varied forms of violence.

Keywords:
Torture; Slavery; Prison; Violence

Introdução

“[As pessoas] achavam-se fechad[a]s em compartimentos gradeados, entre as cobertas. O espaço era tão baixo que [as pessoas] tinham que ficar sentad[a]s entre as pernas dos outros e não podiam deitar-se nem sequer mudar de posição”. Essa descrição te remete a quê? Às prisões atuais? À senzala? Ao navio negreiro? Ela pode ser enquadrada em qualquer um desses cenários. A citação acima foi transcrita pelo antropólogo Arthur Ramos (1942)RAMOS, A. A aculturação negra no Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca Pedagógica Brasileira, 1942., na obra A aculturação negra no Brasil, utilizando uma descrição do Reverendo R. Walsh, em 1829, de um navio negreiro, substituindo o termo as pessoas, por mim utilizado, pela expressão os escravos.

Em condições semelhantes a população negra no Brasil segue sendo torturada por mais de 500 anos. A tortura atravessa e constitui o cotidiano de negros e negras desde a colonização. Enquanto um dispositivo de poder, é utilizada para o disciplinamento, o controle e a punição da classe trabalhadora, garantindo a reprodução dos sistemas de dominação de um grupo pelo outro.

O objetivo deste texto é apresentar os processos de continuidade da tortura contra negros e pobres, que constituem os grupos de pessoas escravizadas no Brasil de ontem, e majoritariamente de pessoas presas, no Brasil de hoje. Refletindo sobre as reconfigurações, recombinações e reposicionamentos das técnicas de tortura, no passado e no presente, contra esses corpos, reafirmando que o perfil da vítima de tortura liga a história de uma ponta a outra, ao revelar que esses corpos sempre foram os alvos da prática compreendida como a mais desumana dos séculos.

Neste trabalho, fazemos as correlações entre um tempo e outro, a partir do caminho percorrido pelos diferentes tipos de aprisionamento. Utilizamos como referência a obra de Arthur Ramos, que descreve os cenários dos primeiros séculos de colonização vivenciados pelos negros africanos escravizados no Brasil, e os relatórios do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro, produzidos entre 2011 e 2021, que registra as condições e o tratamento dado a pessoas privadas de liberdade no estado do Rio de Janeiro. Neste artigo são utilizados os documentos frutos de fiscalizações do órgão em unidades prisionais e socioeducativas.

Assim, haverá inicialmente um debate sobre os entendimentos das práticas de tortura, a partir das reflexões construídas em minha tese de doutorado e na sequência uma construção comparativa da tortura ao longo do tempo, iniciada com a perseguição e apreensão dos sujeitos, seguido do transporte, como instrumento e forma de condução desses corpos, o acautelamento inicial, o processo de compra dos escravizados, equiparado aqui ao julgamento dos presos, e por fim, o aprisionamento em si, e seu viés econômico e político.

Em todos esses momentos, percebe-se a combinação de cinco elementos que se apresentam no passado e no futuro: a superlotação, a higiene precária, a alimentação insuficiente, o acesso limitado à saúde e as intensas violências físicas, verbais e sexuais.

Tortura: problematizações

A tortura é uma prática mundial e milenar, impetrada contra indivíduos e grupos segregados. Atualmente sua prática é proibida e criminalizada, no entanto ainda exercida. No Brasil, há registro da prática desde o processo de colonização. Indígenas, africanos escravizados, opositores políticos, pessoas presas, são os grupos, em sua maioria, que sofreram e sofrem práticas de tortura no país.

A formação sócio-histórica do Brasil é forjada na utilização da tortura como um expediente regular de controle das massas. A tortura em períodos coloniais demonstra o rebaixamento do torturado pelo torturador, criando uma espécie de áurea animalesca nos dominados e consequentemente um processo de desumanização. A população nativa indígena não era aceita e compreendida na intensidade de sua humanidade, bem como, os negros africanos que foram aqui escravizados, e eram compreendidos como mercadoria.

A colonização das Américas foi terreno fértil para o processo de demonstração violenta do poder e da dominação por intermédio da tortura. O aprisionamento e a crueldade administrada aos nativos dos territórios colonizados e posteriormente aos imigrantes e pessoas sequestradas para o processo de escravidão era brutal. Suas peles carregavam as marcas que identificavam seu caráter de propriedade no processo de comercialização, mas também exprimiam as marcas dos castigos aplicados (RAMOS, 1942RAMOS, A. A aculturação negra no Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca Pedagógica Brasileira, 1942.). A população indígena carregava o estereótipo de insubordinação aos colonizadores e, por isso, eram punidos com muita severidade, inclusive tendo membros do corpo amputados. Essa realidade demonstra explicitamente a relação profunda da tortura com o poder, na relação entre dominação e assujeitamento.

A distinção entre os grupos é estruturante para a construção política e econômica do Estado brasileiro, e o aprofundamento da desigualdade social e racial em consonância com as práticas autoritárias e violentas que conformam a realidade do país (ALMEIDA, 2019ALMEIDA, S. L. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen, 2019.).

Pessoas negras e indígenas escravizadas, opositores políticos, presos, moradores de territórios periféricos, enfim, grupos específicos da classe trabalhadora são as pessoas mais propensas a sofrer práticas de tortura, revelando que seu exercício está articulado diretamente as relações de poder.

No entanto, é no momento em que a tortura imprime sua prática contra outros tipos de pessoas, que sua dimensão desumanizadora ganha uma proporção mais trágica em relação à opinião pública. É na ditadura civil-militar, que intelectuais, artistas e comunistas também tiveram seus corpos expostos a esse tipo de violência, e as vivências dessa época são lembradas com um tom maior de repulsa e tem uma comoção mais intensa as experiências e relatos desse momento histórico. É evidente, que eu não estou fazendo uma crítica às narrativas e vivências desse contexto, mas marcando que a tortura é anterior e posterior a esse momento, porém, sua repercussão nem tanto assim, justamente porque há uma aceitabilidade maior dessas violências aos corpos pretos e periféricos (PIRES, 2018PIRES, T. R. de O. Estruturas intocadas: Racismo e ditadura no Rio de Janeiro. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 9, n. 2, p. 1054-1079, 2018.).

No entanto, o que quero chamar atenção aqui com essa breve contextualização é que a tortura opera a partir de ressignificações, reconfigurações, recombinações e por isso, são reposicionadas ao longo do tempo como estratégia de perpetuação das relações de dominação. Novas técnicas não são inventadas nos dias de hoje, elas são reconfiguradas para caber nos contextos atuais, em que há normativas que criminalizam determinadas ações. (FERNANDES, 2021FERNANDES, I, S. Torturas no Sistema Socioeducativo do Rio de Janeiro. Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, 2021.).

Hoje, embora haja uma descontinuidade com o ritual torturador revelado na ditadura, suas práticas se perpetuam com outros ritos, em outras dimensões, mas garantindo que os corpos atingidos sejam os marcados por relações de poder relacionadas à raça e classe, como em pessoas privadas de liberdade, pessoas não brancas, e moradores de territórios periféricos, em sua maioria.

É a partir desse entendimento, de que a tortura no Brasil é uma prática estrutural, que sua concepção jurídica tem sido disputada, no cenário internacional e nacional. Os limites de uma compreensão que enquadra a natureza da tortura como um crime de oportunidade, favorece a desresponsabilização das instituições e políticas públicas mais responsáveis pela execução de tais práticas, como a política de segurança pública, a política penitenciária, de atendimento socioeducativo e também as políticas de assistência social e saúde.

O caminho da tortura ontem e hoje

Com a proposta de compreender a trajetória das práticas de tortura nos corpos do passado e do presente, apenas por conta do caráter didático, opta-se por seguir uma ordem cronológica das ações, iniciando pela captura, seguido do transporte e o aprisionamento em si.

A busca pelos corpos submissos começa por uma caçada que perpassa a serventia da ação, estruturado pelos discursos econômicos e políticos. Na escravidão, o sequestro dos africanos move a economia do colonizador, enquanto na apreensão há um processo de economia prisional, mas que é justificado pela necessidade de punição e repressão de sujeitos com envolvimento em práticas criminais (WACQUANT, 2015WACQUANT, L. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Revan, 2015.). O que o tempo não separa nesses processos de captura são os rituais que envolvem as formas de contenção. Os instrumentos são outros, mas as condições são bem próximas.

Uma vez capturados, eram os negros conduzidos em grupos, em fileiras enormes de homens, mulheres e crianças presos uns aos outros. Então começava o calvário negro, em longas, intermináveis marchas, em todas as direções do Continente, em busca do litoral para o embarque nos navios negreiros. Não eram seres humanos, aquela fila extensa como animais encangados. [...] Os escravos vinham, ainda, atados uns aos outros pelo pescoço, por meio de cordas feitas de couro de boi retorcido. Para impedir a fuga, costumavam os negreiros também a unir a perna direita de uma perna esquerda do outro com cêpo de madeira. Para maior segurança, as mãos eram fechadas em grilhetas e correntes, atadas ao pescoço e aos pés. (RAMOS, 1942RAMOS, A. A aculturação negra no Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca Pedagógica Brasileira, 1942., p. 86).

Se observarmos as apreensões atuais com determinados grupos de pessoas, é possível identificar alguns fatores como: algemados uns aos outros, enfileirados, descalços e sem camisa1 1 Uma imagem atual que ilustra a afirmação: Disponível em: https://www.osaogoncalo.com.br/seguranca-publica/13167/troca-de-tiros-termina-com-um-morto-e-7-presos-em-sao-goncalo. Acesso em: 11 set. 2021. . Formas de dificultar a fuga e humilhar o sujeito, com uma imagem pública de contenção. Vale considerar aqui que, pessoas com outras características, como brancos, por exemplo, raramente são apreendidas fazendo uso de algemas visível no trajeto, e em geral são conduzidas sem estarem aprisionadas a outras pessoas e na maioria das vezes estão vestidas2 2 Uma imagem atual que ilustra tal afirmação: Disponível em: https://veja.abril.com.br/politica/descubra-quais-sao-os-9-politicos-ainda-presos-na-lava-jato/. Acesso em: 11 set. 2021. .

Como parte da captura/apreensão, a sequência imediata do rito está relacionada ao transporte. Na escravidão foi mediada pelo navio negreiro, na prisão, com o uso de viaturas. Ambas apresentam como similaridades a superlotação e as condições físicas precárias desses veículos.

Embora as legislações inglesa, portuguesa e espanhola estabelecessem que os navios destinados ao tráfico, só poderiam embarcar escravos na proporção de cinco por duas toneladas, a superlotação era quase regra. Muitas vezes, os navios negreiros viajavam com o duplo de carga permitida. [...] Muitas das vezes ficam tão aglomerados que quase não podiam se mexer. (RAMOS, 1942RAMOS, A. A aculturação negra no Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca Pedagógica Brasileira, 1942., p. 90-91, grifo nosso).

A superlotação é, definitivamente, parte do expediente de tortura contra os corpos contidos. A ideia de amontoamento sugere um processo de descartabilidade da dignidade dessas pessoas, que são vedadas da locomoção, da possibilidade de destinar seus excrementos em locais corretos, são vedados movimentos comuns, como coçar determinada parte do corpo. É a animalidade convertida para pessoas em condição de descarte.

Esse serviço [SOE – Serviço de Operações Especiais] é destaque na queixa dos custodiados e os relatos são de viagens superlotadas – sequer há indicação do número de pessoas que podem ser transportadas -, violência, abuso da força, xingamentos e humilhações. Os presos estão sempre algemados uns nos outros, mão direita no da frente e mão esquerda no de trás, alguns sentados e outros em pé. Além da grave situação relatada, há atrasos para audiência e longa permanência dentro do veículo que conduz presos para fóruns de vários municípios. (MEPCT/RJ; JUSTIÇA GLOBAL, 2016MEPCT/RJ; JUSTIÇA GLOBAL (JG). Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro. Quando a liberdade é exceção: a situação das pessoas presas sem condenação no Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016., p. 65, grifo nosso).

As características encontradas nos transportes que conduzem pessoas escravizadas e presos atuais apresentam elementos de subjugação, uma tortura produzida em escala populacional, ou seja, uma ação que impacta um coletivo de corpos. (FERNANDES, 2021FERNANDES, I, S. Torturas no Sistema Socioeducativo do Rio de Janeiro. Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, 2021.). No Brasil é uma estratégia bastante conhecida pelo grupo dominante do país.

Aglomeração, amontoado, montante, lotação, abarrotamento e superlotação, todos esses são termos que podem ser utilizados para expor uma realidade destinada à população empobrecida, encontrada do processo de escravização de pessoas negras e indígenas, na construção das favelas e espaços periféricos das cidades com suas moradias e atualmente, na produção do encarceramento em massa no País. Motivos políticos, sociais, culturais e econômicos são capazes de explicar e justificar essa situação.

Nesse sentido, algumas relações precisam ser consideradas aqui, por exemplo o lucro das vendas dos escravos pode se assemelhar aos lucros produzidos pela economia no encarceramento. Aprisionar, deter o poder sobre a vida de outrem mediante repressão não aparece no Brasil com o surgimento das prisões. A escravização de pessoas negras e indígenas institui a economia pelo aprisionamento no país. Criaram-se escravos, na medida em que se produzem criminosos. Navios lotados e porões amontados estão para cadeias superlotadas e celas abarrotadas. O passado reproduzido no presente.

A relação entre escravidão e prisão é bem trabalhada por Michelle Alexander (2017) que constrói seus argumentos a partir da realidade estadunidense, com base nos movimentos sociais locais que disputaram as relações de hierarquias raciais abertamente resultando no segregacionismo e no uso político da guerra as drogas em favor ao encarceramento da população negra na atualidade. Nesse sentido, Alexander (2017) afirma que [...] “o racismo é altamente adaptável. As regras e razões que o sistema político emprega para impor relações de distinção social de qualquer tipo, inclusive de hierarquia racial, evoluem e se modificam na mesma medida em que são contestada” (ALEXANDER, 2017, p. 60).

No Brasil isso não é diferente, não é por acaso que há semelhanças entre os espaços de controle atuais e os navios e senzalas de cinco séculos atrás. O racismo estrutura as relações sociais, econômicas, políticas e culturais no Brasil. Silvio Almeida afirma que “[...] o racismo é uma decorrência da própria estrutura social, ou seja, do modo ‘normal’ com que se constituem as relações políticas, econômicas, jurídicas e até familiares, não sendo uma patologia social e nem um desarranjo institucional. O racismo é estrutural”. (ALMEIDA, 2019ALMEIDA, S. L. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen, 2019., p. 50).

O autor ainda salienta que o racismo é definido por sua sistematicidade, justamente por se constituir em “um processo em que condições de subalternidade e de privilégio que se distribuem entre grupos raciais se reproduzem nos âmbitos da política da economia e das relações cotidianas”. (ALMEIDA, 2019ALMEIDA, S. L. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen, 2019., p. 34).

Um fator relevante também são as semelhanças entre o navio negreiro e a arquitetura de algumas prisões, como foi comparado pela própria mídia em 2010. No Rio de Janeiro, por exemplo, já existiu uma Polinter – Serviço de Polícia Interestadual – onde a ausência de circulação do ar, em virtude da superlotação e da arquitetura fazia com que a temperatura interna superasse os 50 graus (WERNECK, 2010WERNECK, A. Masmorra medieval: carceragem da Polinter registra 56,7 graus. O Globo, São Paulo, fev. 2010. Disponível em: https://oglobo.globo.com/rio/masmorra-medieval-carceragem-da-polinter-registra-567-graus-3054340. Acesso: 10 jan. 2021.
https://oglobo.globo.com/rio/masmorra-me...
). Há também o Presídio Ary Franco, conhecido como a pior prisão da América Latina, no qual parte das celas está localizada no subsolo.

O Ary Franco é notadamente a pior unidade em termos de arquitetura no sistema prisional do Estado. A unidade é vertical, mas de modo que parte dela encontra-se no subsolo, em nível inferior a própria entrada, o que por sua vez faz com que os andares mais baixos tenham problemas de inundações nos dias de chuva. (MEPCT/RJ, 2021, p. 8).

Nos navios negreiros, as condições se assemelham:

Chegados a bordo, os Negros são separados e atados, dois a dois, por algemas e grilhetas que lhes prendem as mãos e os pés. Muitas vezes ficam tão aglomerados que quase não se podem mexer. No porão ficam os homens empilhados, isolados por grade da tripulação, por medo a que se sublevem. Às crianças e às mulheres reservam as cobertas, onde permanecem literalmente atulhadas, em promiscuidade incrível. Barris de água destinada aos escravos formam o lastro do navio no fundo do porão. (RAMOS, 1942RAMOS, A. A aculturação negra no Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca Pedagógica Brasileira, 1942., p. 91).

As doenças são comuns nos ambientes descritos, e mais que isso, dado ao contexto, pode ser facilmente compreendido como uma figuração da tortura. Afinal, gestar as doenças e condicionar os doentes a tratamentos precários ou inexistentes é uma forma de intensificar a dor e o sofrimento nesses corpos.

Muitas vezes, a fome, as doenças, dizimavam a população dos barracões. As feridas abertas pelos grilhões, ulceradas e gangrenadas muitas vezes exalavam um odor insuportável [...] verdadeiras salas de putrefação onde os escravos confundem todos os seus excrementos, onde permanecem trancados à noite e dia, com medo de que fujam. Ali se sentem esses odores infectos que intoxicam os europeus que penetram nos barracões alguns minutos, e aí sofrem os escravos até a sua partida, um verdadeiro suplício que esgota em poucos dias sua saúde e seu vigor. Os fracos, os velhos, os enfermos, ficavam separados e contam algumas testemunhas que eram lançados ao mar, para que morressem. (RAMOS, 1942RAMOS, A. A aculturação negra no Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca Pedagógica Brasileira, 1942., p. 88).

O MEPCT/RJ costuma registrar imagens dos ferimentos encontrados nos corpos dos presos durante as fiscalizações, feridas, lesões, doenças infectocontagiosas que raramente têm acompanhamento médico, fornecimento de medicação e referência hospitalar. A insalubridade das estruturas e a presença de doença infectocontagiosa, alastra a proliferação de vírus e bactérias, sobretudo em virtude do alto número de pessoas que ocupam o mesmo espaço.

Situações como demora no socorro das emergências, falta de efetividade no encaminhamento para a realização de exames e transferências para unidades de tratamento intensivo, ou ainda, a total falta de controle em relação à saúde dos presos na porta de entrada, onde poderiam ser identificadas diversas doenças tratáveis, falta de acesso a medicações de uso contínuo e de oferta de dieta, como para cardiopatas, portadores de diabetes, hepatites e hipertensão arterial, além da falta de acesso a antibióticos para o tratamento de infecções como pneumonias e elevada prevalência de portadores de HIV que desenvolveram quadros graves de tuberculose pulmonar, com elevado índice de registros em laudos cadavéricos de caquexia e mau estado nutricional. Ao contrário do que se poderia supor, apesar de viver em ambiente violento e opressor, a violência física é causa relatada de um número baixo de óbitos se comparadas às morbidades relacionadas à (péssima) qualidade de vida. Ainda segundo o estudo, a maior parte dos óbitos tem relação com doenças como diabetes, hipertensão e HIV associada a doenças oportunistas, em especial as pulmonares como tuberculose e pneumonias, portanto, grupo de enfermidades que poderiam ser tratadas e curadas caso houvesse acesso a cuidados básicos para a saúde, inclusive sem a necessidade de internações hospitalar, portanto, desde que houvesse acesso ao sistema de saúde desde a atenção básica. (MEPCT/RJ, 2018MEPCT/RJ. Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro. Sistema em Colapso: Atenção à Saúde e Política Prisional no Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: MEPCT/RJ, 2018., p. 7-8).

A combinação da superlotação com a estrutura precária e o acesso limitado à saúde gerencia a prática da tortura no corpo populacional, uma tortura difusa e continuada (GODOI, 2017GODOI, R. Tortura difusa e continuada. In: MALLART, F.; GODOI, R. (org.). BR 111: a rota das prisões brasileira. São Paulo: Veneta, 2017.; FERNANDES, 2021FERNANDES, I, S. Torturas no Sistema Socioeducativo do Rio de Janeiro. Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, 2021.). Um grau de tortura sofisticado, que incide em um processo de violência sem tocar o corpo diretamente. Em uma produção em série, ritmada e coletiva de dor em que não há num único sujeito a figura do torturador. A administração de um cotidiano violento sem o toque é gerenciada pelo poder e se constitui em um projeto coletivo de tortura que marca a história brasileira.

Por fim, mas não menos importante, outras formas de violência se fazem presentes nas perspectivas de controle desses corpos, há 500 anos. É uma estética da tortura mais inteligível e também a mais bárbara. Tende a ser compreendida como práticas de violência física e psicológica impetradas a uma pessoa ou a um grupo de pessoas com a intenção de causar dor e sofrimento com diversas finalidades, como intimidar, obter confissões e informações, e principalmente, castigar. Ramos (1942)RAMOS, A. A aculturação negra no Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca Pedagógica Brasileira, 1942. traz alguns instrumentos e formas de tortura aos corpos escravizados:

Nos açoites, muitas vezes o senhor acendia um comprido cigarro enquanto assistia ao castigo, e enquanto o cigarro durava, o chicote não parava. [...] A série de instrumentos de suplício desafia a imaginação das convivências mais duras: o tronco, o vira-mundo, o cepo e as correntes, as algemas, o libambo, a gargalheira, a gomilha ou golilha, a peia, o colete de couro, os anjinhos, a máscara, as placas de ferro. (RAMOS, 1942RAMOS, A. A aculturação negra no Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca Pedagógica Brasileira, 1942., p. 101-106).

Hoje, alguns instrumentos foram substituídos por outros. Mas, o caráter sistemático e intenso da prática permanece. O ferro, as algemas e o chicote permanecem no cotidiano punitivo das pessoas aprisionadas.

Na inspeção realizada no Instituto Padre Severino é uníssona a queixa dos adolescentes a respeito das agressões físicas e verbais sofridas na unidade. Segundo relato, ocorrem em situações corriqueiras do cotidiano [...]. As agressões geralmente consistem em xingamentos, tapas e socos, tendo também relatos de utilização de barras de madeira e spray de pimenta. (MEPCT/RJ, 2011MEPCT/RJ. Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro. Relatório do MEPCT/RJ de visita ao Instituto Padre Severino em 06 de outubro e 11 de novembro de 2011, Rio de Janeiro: MEPCT/RJ, 2011., p. 20).

Outra questão problemática é uso corriqueiro de algemas como forma de contenção ou mesmo como método arbitrário de imposição de punição às adolescentes. Causou perplexidade na equipe visitante, a informação de uso excessivo da força, denominado pejorativamente de “bailarina” que consiste em algemar as adolescentes nos alojamentos junto a uma grade onde entra iluminação natural consistindo em esticar o corpo e o braço das mesmas, inclusive em uma das ocasiões com uma adolescente gestante. (MEPCT/RJ, 2013aMEPCT/RJ. Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro. Relatório do MEPCT/RJ de visita ao Centro de Socioeducação Professor Antônio Carlos Gomes da Costa (CENSE PACGC) em 06 e 09 de maio e 25 de junho de 2013, Rio de Janeiro: MEPCT/RJ, 2013a., 2013bMEPCT/RJ. Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro. Relatório do MEPCT/RJ de visita ao Centro de Socioeducação Professora Marlene Henrique Alves (CENSE CAMPOS) em 13 de março de 2013, Rio de Janeiro: MEPCT/RJ, 2013b., p. 10).

Segundo relato, o adolescente que sempre esteve algemado foi submetido primeiramente a espancamento perpetrado pelo referido agente como socos, chutes, golpes de barra de (madeira), golpes de fivela de cinto nas costas. Ato contínuo, o adolescente ainda sofreu jatos de spray de pimenta em seu rosto e ainda teve seu corpo molhado para em seguida ser submetido a choques com auxílio de teaser. Em seguida, o adolescente foi jogado em uma espécie de lata de lixo. (MEPCT/RJ, 2015, p. 8).

Não existem formas e instrumento infinitos de tortura, e dada a sua finitude os padrões se repetem e se reatualizam no presente. Ainda que na modernidade, as formas de punição tenham sido ressignificadas pela prisão, parece que a violência segue sendo uma extensão da pena, de maneira extraoficial. É importante compreender que esse território da extraoficialidade é estabelecido pela tolerância dada pelas autoridades e o senso comum. Nesse sentido, a tortura deixa de ser orquestrada, utilizada e defendida pelo Estado como política e passa a ser uma estratégia de cobrir as reais ações e ideologias desse mesmo Estado.

A tortura no corpo individual remete aos rituais de suplício que envolvem um corpo em uma conduta individualizante, ainda que possa ocorrer de maneira coletiva. A dinâmica está estabelecida no corpo individual porque inscreve a desigualdade do poder no sujeito. Mas, de alguma forma, pode afetar um coletivo de pessoas. Trata-se de uma escala de incidência e pertinência da tecnologia do poder direcionada ao corpo individual e que se repetem em pessoas escravizadas e pessoas presas.

Instrumentos para contenção legal ou objeto de uso comum para tarefas divergentes da intenção punitiva são instrumentalizados por atores institucionais que os levam para serem utilizados como materiais de tortura e violência. É um processo de ressignificação dos objetos, que em alguma medida foram utilizados para tortura em outros momentos da história, como na escravidão, ainda que de outras formas, mas que hoje, nas prisões, está aliada à fomentação de novas tecnologias para produção de dor.

Ainda que esses tipos de violência não atinjam a todos diretamente, seus efeitos são prolongados no tempo e no pensamento dos sujeitos que participaram da ação ao ver ou ouvir as imagens e sons produzidos. E também são produzidos por narrativas que assombram a memória dos sujeitos que sequer vivenciaram o feito em alguma dimensão. A reiteração dessas atuações torna a prática cotidiana e produto operacional das dinâmicas institucionais ontem e hoje.

Considerações finais

“Tinha razão Mirabeu em chamar estes barcos de ‘prisões flutuantes’. Eram, porém, mais do que prisões flutuantes. Eram túmulos flutuantes”. (RAMOS, 1942RAMOS, A. A aculturação negra no Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca Pedagógica Brasileira, 1942., p. 92). Os navios negreiros, as prisões e os túmulos funcionam como sinônimos e equiparam as variáveis da tortura quando são direcionadas aos corpos negros e periféricos.

No passado, o negro foi mercadoria, no presente, o negro é monstrualizado. A desumanização do negro é perene, e isso se dá por justificativas continuadas, pautadas na estética do medo e do inimigo (MALAGUTI BATISTA, 2003MALAGUTI BATISTA, V. O medo na cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma história. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003.). É através do movimento de expansão e redução do gradiente da dor na tortura moderna que vai sendo construído a partir da figura do inimigo (ASAD, 1997ASAD, T. On torture, or cruel, inhuman, and degrading treatment. In: KLEINMAN, A.; DAS, V.; LOCK, M. (org.). Social Suffering. Berkeley: University of California Press, 1997. pp. 285-308.). Portanto, o que se tem é a necessidade de uma administração dos corpos negros pela dor, dada a aceitabilidade histórica de um cálculo útil do sofrimento infligido aos corpos dessas pessoas.

Não nos faltam elementos históricos que consolidem a continuidade da violência estruturada pelo racismo. No entanto, há ainda quem defenda a ausência de relação direta, enquanto herança entre os períodos (SALLA; ALVAREZ, 2006SALLA, F.; ALVAREZ, M. C. Apontamentos para uma história das práticas de tortura no Brasil. Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 63, p. 277-308, 2006.). Mas, como é possível perceber, nossa realidade atual em espaços de privação de liberdade não passa de uma continuidade nas trajetórias de contenção e punição dos sujeitos dominados. Novos arranjos, dada as conjunturas, mas as reconfigurações permitem o avanço e a continuidade das práticas de tortura, como um elemento constituidor das relações de poder no Brasil.

Agradecimentos

Aos integrantes do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro, Natalia Damazio, Graziela Sereno, Alexandre Campbell, João Marcelo Dias e Joyce Gravano.

Referências

  • ALEXANDER, M. A nova segregação: racismo e encarceramento em massa. São Paulo: Boitempo, 2018.
  • ALMEIDA, S. L. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen, 2019.
  • ASAD, T. On torture, or cruel, inhuman, and degrading treatment. In: KLEINMAN, A.; DAS, V.; LOCK, M. (org.). Social Suffering. Berkeley: University of California Press, 1997. pp. 285-308.
  • FERNANDES, I, S. Torturas no Sistema Socioeducativo do Rio de Janeiro. Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, 2021.
  • GODOI, R. Tortura difusa e continuada. In: MALLART, F.; GODOI, R. (org.). BR 111: a rota das prisões brasileira. São Paulo: Veneta, 2017.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    13 Set 2021
  • Aceito
    16 Dez 2021
  • Revisado
    09 Fev 2022
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