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Capitalismo e racismo: uma relação essencial para se entender o predomínio do racismo na sociedade brasileira

Resumo:

Este artigo, utilizando a matriz marxista, através de pesquisa bibliográfica, demonstra que o racismo se torna uma das estruturas da sociedade brasileira por ser um dos elementos superestruturais do capitalismo brasileiro, favorecendo o processo de domínio e acumulação de capital da burguesia brasileira, na conjuntura marcada pelo Segundo e Terceiro Projeto de Identidade Nacional, compreendido entre meados do século XIX e meados do século XX.

Palavras-chave:
Racismo; Capitalismo; Estrutura Social

Abstract:

This article, by using the Marxist matrix and by means of bibliographical research, demonstrates that racism becomes one of the structures of the Brazilian society because it is one of the superstructural elements of the Brazilian capitalism. This favours the process of domination and capital accumulation by the Brazilian bourgeoisie, in the context of the second and third national identity projects, between the mid-19th and the mid-20th centuries.

Keywords:
Racism; Capitalism; Social Structure

Introdução

Dentro de uma concepção histórico-crítica, não há como deixar de trabalhar com a opressão de raça para a construção do conhecimento sobre os processos de exploração, exclusão e apropriação, sofridos pela maioria da população negra. Da mesma forma, não se pode excluir os impactos do racismo sobre a psique da pessoa negra, podendo levá-la ao sentimento de inferioridade frente à pessoa branca e ser consumida pelo desejo de embranquecer (FANON, 2008FANON, F. Pele negra, máscara branca. Salvador: EDUFBA, 2008.). Mesmo assim, como Fanon (2008FANON, F. Pele negra, máscara branca. Salvador: EDUFBA, 2008., 2019FANON, F. Racismo e cultura. In: MANUEL, J.; FAZZIO, G. L. (org.). Revolução Africana: uma antologia do pensamento marxista. São Paulo: Autonomia Literária, 2019. p. 65-79.) adverte, a compreensão do racismo na sua totalidade não pode ser apartada de sua relação com a base econômica da sociedade.

Nesse sentido, o objetivo deste artigo reside em demonstrar que o racismo se transformou numa força social e numa das estruturas da sociedade brasileira, devido à sua operacionalidade para o capitalismo brasileiro, por favorecer o processo de dominação e acumulação de capital da burguesia, entre meados do final do século XIX e final do século XX, a partir dos dois projetos de identidade nacional constituídos nesse período. Com isso, espera-se contribuir para a construção do conhecimento do racismo, dentro de uma visão histórico-crítica, possibilitando mais instrumentos teóricos para embasar a luta contra o racismo e a luta pela emancipação da população negra na sociedade capitalista.

Em termos teóricos este artigo terá como alicerce a matriz marxista, na relação orgânica entre estrutura e superestrutura, presente no pensamento de Karl Marx e Friedrich Engels, com o racismo sendo trabalhado neste texto como elemento superestrutural. O uso de bibliografia com relação à questão racial no período do percurso do capitalismo abordado constituiu o instrumento metodológico usado no presente estudo. Por fim, além desta introdução, esse artigo é dividido em duas seções, a primeira intitulada a Relação orgânica entre estrutura e superestrutura, para o entendimento do predomínio do racismo numa sociedade e a segunda O racismo e sua relação com o capitalismo no Brasil.

Relação orgânica entre estrutura e superestrutura, para o entendimento do predomínio do racismo numa sociedade

Marx e Engels não restringem o conhecimento sobre o capitalismo aos avanços das forças produtivas e à organização do setor produtivo. Para os fundadores do marxismo, para a compreensão do domínio e da reprodução e acumulação de capital da burguesia no sistema capitalista, torna-se imperativo o uso da categoria totalidade, estudando o capitalismo como um modo de produção. Dessa forma, estabelecendo de forma orgânica o nexo entre as relações sociais e as relações de produção, forja-se as condições analíticas para entendimento do poder da burguesia e de sua apropriação sobre a maioria da riqueza socialmente produzida, em termos de sua materialidade. No Manifesto Comunista, Marx e Engels destacam o quanto, sob o capitalismo, o desenvolvimento das forças produtivas torna-se essencial para a burguesia, acarretando modificações constantes em outras esferas da sociedade: “A burguesia não pode existir sem revolucionar constantemente os instrumentos de produção, portanto as relações de produção, e por conseguinte todas as relações sociais” (MARX; ENGELS, 1998MARX, K.; ENGELS, F. Manifesto Comunista. São Paulo: Boitempo, 1998., p. 11). Na Contribuição à Crítica da Economia Política (MARX, 2008MARX, K. Contribuição à Crítica da Economia Política. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2008.), essa relação orgânica toma uma forma mais pedagógica, numa das principais passagens do materialismo histórico:

O resultado geral a que cheguei e que, uma vez obtido, serviu-me de guia para os meus estudos, pode ser formulado, resumidamente, assim: na produção social da própria existência, os homens entram em relações determinadas, necessárias, independentes de sua vontade; essas relações de produção correspondem a um grau determinado de desenvolvimento das forças produtivas materiais. A totalidade dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida condiciona o processo de vida social, política e intelectual. (MARX, 2008MARX, K. Contribuição à Crítica da Economia Política. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2008., p. 47, grifo nosso)

Transportando essa colocação de Marx para os objetivos deste artigo, a relação orgânica entre estrutura e superestrutura torna-se um guia de estudo para a construção do conhecimento do racismo, na sua totalidade, para o entendimento de sua transformação em força social e uma das estruturas da sociedade brasileira, a partir de sua abordagem como elemento superestrutural, no capitalismo brasileiro. Sob esse prisma, acompanhamos Fanon (2008FANON, F. Pele negra, máscara branca. Salvador: EDUFBA, 2008., 2019FANON, F. Racismo e cultura. In: MANUEL, J.; FAZZIO, G. L. (org.). Revolução Africana: uma antologia do pensamento marxista. São Paulo: Autonomia Literária, 2019. p. 65-79.) e Almeida (2018)ALMEIDA, S. O que é racismo estrutural. Belo Horizonte: Letramento, 2018. na crítica à concepção do predomínio do racismo numa estrutura social como sendo uma disfunção social decorrente do caráter ou de aspectos psicológicos de alguns indivíduos. Tal assertiva exclui a relação entre o racismo e a base econômica da sociedade, não contribuindo para uma análise histórico-crítica do racismo, como sua inserção nos projetos societários das classes dominantes. Mesmo a questão do privilégio branco pode também reproduzir esse problema epistemológico. Logicamente, racismo e privilégio branco são determinações correlatas. Por exemplo, mesmo uma pessoa branca que more numa favela, tendo as mesmas condições socioeconômicas das pessoas negras, terá mais privilégios do que essas, como no caso da ação da polícia nesses territórios marcados pela vulnerabilidade social. Porém, trabalhar com o privilégio branco como o vetor para o predomínio do racismo, sem uma visão histórico-crítica, pode cair em dois erros teóricos: reduzir o grupo racial branco a um grupo homogêneo, sem conflitos de classe e com todos se aproveitando do racismo na mesma forma e intensidade; e excluir do campo de análise a funcionalidade do racismo para o capitalismo, excluindo os interesses de classe desse processo. Nesse sentido, teóricos e teóricas marxistas têm trabalhado a relação orgânica entre o racismo e a base econômica capitalista.

Segundo Heller (2011)HELLER, A. O cotidiano e a História. São Paulo: Paz e Terra, 2011., historicamente as classes dominantes têm se notabilizado na perpetuação dos preconceitos sociais nas relações sociais. Fazem uso desse instrumento para manutenção da estrutura social e da mobilização político-ideológica dos indivíduos e dos grupos sociais de acordo com seus interesses, sendo que: “[...] a classe burguesa produz preconceitos em muito maior medida que todas as classes sociais conhecidas até hoje” (HELLER, 2011HELLER, A. O cotidiano e a História. São Paulo: Paz e Terra, 2011., p. 78). Nessa mesma linha, Wood (2006)WOOD, E. M. Democracia contra o capitalismo: a renovação do materialismo histórico. Tradução de Paulo Cezar Castanheira. São Paulo: Boitempo, 2006. destaca que, mesmo o racismo e o sexismo não sendo imprescindíveis para o estabelecimento das relações de produção capitalista e a acumulação de capital, constituem-se em poderosas formas sociais de organização da vida dentro dos interesses da burguesia, tanto que: “[...] a história do capitalismo foi marcada pelos mais virulentos racismos já conhecidos” (WOOD, 2006WOOD, E. M. Democracia contra o capitalismo: a renovação do materialismo histórico. Tradução de Paulo Cezar Castanheira. São Paulo: Boitempo, 2006., p. 229). Essa historiadora ilustra a sua posição destacando que a opressão de raça favorece a ordem capitalista quando ameniza a tensão entre capital e trabalho ao reservar aos operários brancos os melhores postos de trabalho e ao favorecer a compreensão da exploração e da desigualdade social reinante na maioria da população negra como frutos de sua raça e não como fatores inerentes do capitalismo (WOOD, 2006WOOD, E. M. Democracia contra o capitalismo: a renovação do materialismo histórico. Tradução de Paulo Cezar Castanheira. São Paulo: Boitempo, 2006.).Tendo essa mesma posição, Wallerstein (2021)WALLERSTEIN, I. As tensões ideológicas do capitalismo: universalismo versus racismo e sexismo. In: BALIBAR, É; WALLERSTEIN, I. Raça, nação, classe: as identidades ambíguas. São Paulo: Boitempo, 2021. p. 63-74. enfatiza o papel proeminente do processo do racismo para acumulação de capital pelos setores capitalistas, no sistema-mundo, ao facilitar a apropriação das riquezas locais e: “[...] minimizar os custos de produção [...] (os custos da força de trabalho) e, ao mesmo tempo, os custos da agitação política (minimizar, não eliminar, pois não é possível eliminar os protestos da força de trabalho). O racismo é a fórmula mágica que concilia esses objetivos”. (WALLERSTEIN, 2021WALLERSTEIN, I. As tensões ideológicas do capitalismo: universalismo versus racismo e sexismo. In: BALIBAR, É; WALLERSTEIN, I. Raça, nação, classe: as identidades ambíguas. São Paulo: Boitempo, 2021. p. 63-74., p. 69).

Não obstante, constitui um engano supor que toda luta antirracista leva a uma luta anticapitalista e que o capitalismo não pode fazer uso de práticas antirracistas para atingir um objetivo maior. O conceito de neoliberalismo progressista, construído por Nanci Fraser (2020)FRASER, N. O velho está morrendo e o novo não pode nascer. São Paulo: Autonomia Literária, 2020. exemplifica isso. Essa filósofa cunhou esse conceito para definir a junção do aprofundamento das políticas neoliberais e a adoção de medidas de cunho antirracista e de promoção da melhoria de condições de vida de negros, mulheres e homossexuais, durante os governos Bill Clinton (1993-2001) e Barack Obama (2009-2017). No caso da comunidade negra, Fraser (2020)FRASER, N. O velho está morrendo e o novo não pode nascer. São Paulo: Autonomia Literária, 2020. sustenta que esses governos, ao adotarem medidas favoráveis à população negra e de crítica ao racismo, conseguiram formar uma base social para apoiar as suas políticas neoliberais junto a políticos negros e setores do movimento negro americano. Além disso, conseguiram disseminar entre as organizações negras voltadas para a formação de jovens negros princípios calcados no individualismo, na competitividade e na meritocracia, como forma de romper as barreiras raciais e alcançar o sonho americano. Todavia, os resultados concretos das medidas para melhoria das condições socioeconômicas do povo negro acabaram favorecendo mais a classe média negra, não alterando significativamente as dificuldades vividas pela maioria dos negros americanos (FRASER, 2020FRASER, N. O velho está morrendo e o novo não pode nascer. São Paulo: Autonomia Literária, 2020.).

No próximo subitem, farei uso do Segundo e Terceiro Projeto de Identidade Nacional, para tentar demonstrar o quanto o racismo se tornou predominante na sociedade brasileira, devido à sua funcionalidade para o capitalismo brasileiro. Como serão abordados de forma sucinta, peço desculpas ao leitor por deixar de fora aspectos relevantes das conjunturas históricas que serão descritas.

O racismo e sua relação com o capitalismo no Brasil

O Segundo Projeto de Identidade Nacional, forjado no final do século XIX e início do século XX, se deu sob um forte debate sobre os rumos para o progresso do país e de transformações na realidade brasileira, como a passagem da mão de obra escravizada para mão de obra livre. Nessa conjuntura, uma parcela substancial da intelectualidade brasileira, seguindo a teoria do determinismo racial, importada da Europa, considerava haver evidências científicas suficientes que comprovavam a raça de um povo como fator imperativo para o progresso de uma nação, como também que a raça branca seria a única dotada dos atributos intelectuais e morais essenciais para a consecução desse processo. Sempre sustentando o caráter científico de suas teses, os teóricos do determinismo racial alegavam não haver dúvidas dos não brancos não apenas serem destituídos dos atributos necessários ao progresso nacional, como também constituírem um sério entrave para a implementação de qualquer projeto desse tipo, em decorrência de suas limitações intelectuais e morais. Os intelectuais brasileiros seguidores do determinismo racial passaram a pregar que o fato de a maioria esmagadora da população negra viver em cortiços, realizar trabalho braçal e se entregar a práticas antissociais como violência, prostituição, roubos e tara sexual, seria a comprovação científica do quanto a raça negra seria o principal entrave para o progresso do País.

Entretanto, esses intelectuais, ao seguirem o determinismo racial, se encontraram diante de um dilema. Pelo determinismo racial, o Brasil estava fadado ao fracasso por ter uma população majoritariamente preta e mestiça. Nem mesmo a miscigenação equalizaria esse problema, porque sob o ponto de vista dos deterministas raciais a geração de filhos entre brancos e não brancos resultaria em seres degenerados em termos intelectuais, morais e físicos. Diante disso, como apontam Munanga (1999)MUNANGA, K. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra. Petrópolis: Vozes, 1999. e Schwarcz (2005)SCHWARCZ, L. M. O espetáculo das raças: Cientistas, Instituições e Questão Racial no Brasil (1870-1930). 6. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2005., esses intelectuais resolveram esse problema adaptando o determinismo racial à realidade brasileira, deixando a crítica dos deterministas raciais de lado e passando a criar a teoria do branqueamento. De acordo com essa teoria, com a vinda em massa de imigrantes europeus e a geração de filhos entre pessoas brancas e pessoas negras, como também entre pessoas de pele mais escura com aquelas de pele mais clara, associadas à crescente morte de pessoas negras devido a doenças inatas à sua raça, com o tempo o elemento negro seria extirpado da população e o povo brasileiro seria formado apenas por pessoas com as características fenotípicas, intelectuais e morais próprias do povo europeu. Em outras palavras, a miscigenação não seria um fim em si mesma, mas uma transição visando à eliminação da população negra do povo brasileiro.

Com a teoria do determinismo racial e a teoria do branqueamento, os preconceitos e discriminações que haviam na sociedade brasileira desde o período colonial foram refinados e aprofundados como sendo cientificamente comprovados, se materializando em práticas estruturais racistas que dificultavam a inserção do negro como cidadão e a superação das precárias condições materiais de existência da maioria da população negra, reafirmando na dinâmica social a representação social negativa da população negra, principalmente em cinco vieses: (i) intelectual, dotada de atributos voltados apenas para o trabalho braçal e subordinado; (ii) moral, tendência para ações antissociais e imorais; (iii) estético, traços fenótipos símbolos de pessoas destituídas de beleza; (iv) mau trabalhador, precisando ser forçado a realizar as atividades de trabalho; e (v) naturalização das precárias condições de vida da maioria da população negra, com a pobreza e a miséria sendo uma condição inata à raça negra. A relação orgânica desses vieses resultou no arquétipo do preconceito contra as pessoas negras, embasando práticas estruturais racistas até os nossos dias.

Essa proposta de progresso da nação assentada no determinismo racial e no branqueamento vinha ao encontro dos interesses da classe dominante brasileira, sobretudo da principal fração dessa classe: os grandes proprietários de terra. Centralizar na raça o fator imperativo para o progresso da nação criava barreiras para propostas baseadas na modificação da estrutura econômica, como havia no pensamento de Manuel Bomfim (1868-1932). Contrário às teses do determinismo racial e da teoria do branqueamento, esse intelectual discordava da explicação sobre as precárias condições socioeconômicas da maioria da população negra serem decorrentes de sua raça. Para Manuel Bomfim, as respostas para esse fenômeno deviam ser buscadas na escravização e, sobretudo, na forma como ocorreu a abolição, com a população negra não sendo contemplada com nenhuma política pública visando sua inserção em melhores condições na sociedade brasileira, como o acesso à terra, à educação escolar e à indenização (CRUZ; BITTENCOURT, 2010CRUZ, J. V.; BITTENCOURT, J. A. Manuel Bomfim e a América Latina: a dialética entre o passado e presente. Aracaju: Editora Diário Oficial, 2010.). Sobre a tese da raça como imperativo para o progresso do Brasil, Manuel Bonfim também era totalmente contrário. Para ele, somente com a diversificação da economia brasileira, promovida por um amplo processo de industrialização e da educação escolar de todo o povo, o País teria condições de trilhar um verdadeiro caminho de progresso dentro da ordem capitalista mundial (CRUZ; BITTENCOURT, 2010CRUZ, J. V.; BITTENCOURT, J. A. Manuel Bomfim e a América Latina: a dialética entre o passado e presente. Aracaju: Editora Diário Oficial, 2010.). A leitura desse último aspecto demonstra o quanto o pensamento de Manuel Bonfim vinha de encontro aos interesses dos grandes proprietários de terra. O progresso do país por meio de um amplo processo de industrialização acabaria deslocando os grandes proprietários de terra como principal fração do bloco no poder, retirando seu lugar como fração da classe dominante mais privilegiada pelas ações do Estado, criando alguns obstáculos para seus projetos econômicos e projetos de poder. Haveria, com certeza, um menor acesso a parcelas do fundo público, porque parte desses recursos seriam aplicados para implantação do projeto industrial e no projeto educacional, defendido por Manuel Bomfim. Em suma, centrar o progresso do país na questão da raça representava não precisar alterar o modelo econômico e nem alterar a posição dos grandes proprietários no bloco no poder.

Por outro lado, a centralidade da raça no debate para o progresso do país também favorecia os grandes proprietários de terra, principalmente a sua principal fração, os cafeicultores do Oeste Paulista, na questão da força de trabalho. No final do século XIX, com a certeza de que mais cedo ou mais tarde haveria o fim da escravização, um dos principais assuntos debatidos por fazendeiros, políticos e governantes, se referia à questão da mão de obra. Muitos membros da classe dominante, arraigados em uma visão preconceituosa sobre as pessoas negras, achavam que sem a força do chicote a força de trabalho negra não seria produtiva. Havia também a concepção, criada a partir das rebeliões e fugas em massa efetivadas pelos escravizados, principalmente a partir da metade da década de 1880, de que com o fim da escravidão as pessoas negras abandonariam as fazendas e não iriam trabalhar para os brancos, devido ao ódio por terem sido exploradas durante a escravização. Os preconceitos contra a força de trabalho negra tornaram-se tangíveis a partir da desaprovação da proposta de vinda de imigrantes negros para o Brasil, conforme constatado na pesquisa realizada pela Sociedade Nacional de Agricultura, junto aos seus membros, 32 anos após a abolição, em que: 44 afirmaram ser contra porque havia um ódio no coração do negro contra o branco; 25 alegaram que o negro era um mau trabalhador; 19 apontaram ser contrários à proposta pelo fato de as pessoas negras serem inferiores intelectualmente e possuírem uma índole voltada para o crime, para a bebida e para a indolência (MOURA, 2020MOURA, C. Sociologia do Negro Brasileiro. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2020., p. 111).

A solução encontrada pelos fazendeiros e políticos seria a imigração massiva de europeus, vistos como a força de trabalho dotada dos atributos necessários para o progresso do país e para a realização das atividades de trabalho, nas unidades produtivas, dentro das exigências de um trabalho livre, por serem inteligentes, ordeiros e disciplinados, ao contrário do que era dito sobre as pessoas negras. No entanto, para os cafeicultores, esse processo deveria se dar com as passagens sendo subvencionadas pelos recursos financeiros do governo de São Paulo. Não bastava, portanto, a vinda de uma força de trabalho dita como produtiva e ordeira, esse processo também teria que se dar dentro do menor custo possível para esses fazendeiros, para gerar o maior lucro possível. Por sinal, os benefícios da vinda dos imigrantes não se reduziam ao pagamento das passagens feitas pelo estado de São Paulo. Como se dava preferência para contratação de imigrantes que possuíam famílias, os fazendeiros acabavam tendo ao seu dispor a força de trabalho da esposa e dos filhos dos imigrantes. Moura (2020)MOURA, C. Sociologia do Negro Brasileiro. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2020. também destaca que a entrada massiva de imigrantes, saltando de 525.086, entre 1881 e 1890, para 1.129.315, entre 1891 e 1900, com 50% indo trabalhar no Oeste Paulista, permitiu aos cafeicultores rebaixarem o salário dessa força de trabalho ou estabelecerem com eles acordos mais favoráveis, uma vez que a quantidade de mão de obra imigrante foi bem acima de suas demandas (MOURA, 2020MOURA, C. Sociologia do Negro Brasileiro. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2020.). Em síntese, assentando seu discurso no racismo contra a força de trabalho negra, os cafeicultores do Oeste Paulista, além de fazendeiros de outras regiões, viam no imigrante europeu a forma de obter uma mão de obra produtiva, ordeira e disciplinada, mas também barata e que poderia ser amplamente explorada.

Não obstante, os interesses capitalistas com a vinda de imigrantes, centrados na questão da força de trabalho, não se restringiram ao processo de acumulação de capital da burguesia cafeeira. Toda uma cadeia de negócios, envolvendo agências de imigração no Brasil e no exterior, companhias de transporte fluvial e ferroviário, empresas de alimentação e venda de instrumentos de trabalho, entre outras, viu seus lucros crescerem através da vinda massiva de imigrantes (MOURA, 2020MOURA, C. Sociologia do Negro Brasileiro. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2020.). A burguesia industrial também se beneficiou com a entrada massiva de imigrantes com destino às áreas rurais. Como muitos imigrantes se desencantavam com o trabalho nas fazendas, migravam para as cidades em busca de uma melhoria em suas vidas. Porém, como muitos eram desprovidos de condições para sobreviverem por conta própria, acabavam servindo como força de trabalho no setor industrial, sendo submetidos às péssimas condições de salário e de trabalho.

Essa predominância da força de trabalho imigrante, nos mais diferentes campos de trabalho, não pode ser interpretada como um alijamento total das pessoas negras do mercado de trabalho capitalista. O processo de imigração não se deu de forma homogênea em todo o território nacional e nem nos seus principais centros econômicos, se concentrando na região Sul e Sudeste, sobretudo nos estados de São Paulo, Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina, fazendo com que a mão de obra negra fosse utilizada em diversos lugares. Por exemplo, Monsma (2016)MONSMA, K. A Reprodução do racismo: fazendeiros, negros e imigrantes o oeste paulista, 1880-1914. São Carlos: EdUFSCar, 2016. aponta que em estados como Rio de Janeiro, Espírito Santo e Minas Gerais, havia uma larga utilização da força de trabalho negra nas fazendas. O fato de a cidade do Rio de Janeiro, como aponta Fausto (2009)FAUSTO, B. História do Brasil. 13 ed. São Paulo: Edusp, 2009., ter 39% da força de trabalho nas indústrias sendo formada por imigrantes demonstra o quanto os trabalhadores nacionais formavam a maioria do operariado fluminense, o que nos leva a supor que havia a presença negra no operariado na então capital do país. Mesmo num estado como São Paulo, com a força de trabalho imigrante sendo a maioria empregada nos cafezais e nas indústrias, estudos realizados por Monsma (2016)MONSMA, K. A Reprodução do racismo: fazendeiros, negros e imigrantes o oeste paulista, 1880-1914. São Carlos: EdUFSCar, 2016., Domingues (2016)DOMINGUES, P. Protagonismo Negro em São Paulo. São Paulo: Edições Sesc, 2016. e Costa (2015)COSTA, E. V. Brasil: história, textos e contextos. São Paulo: Editora UNESP, 2015., entre outros pesquisadores e pesquisadoras, sustentam a presença da força de trabalho negra nas fazendas de café e no setor industrial. “Importa realçar que a formação da classe trabalhadora em São Paulo foi complexa, interseccional, dialógica e plural, não sendo desprezível a presença negra nesse processo” (DOMINGUES, 2016DOMINGUES, P. Protagonismo Negro em São Paulo. São Paulo: Edições Sesc, 2016., p. 53). Por mais que esses exemplos possam parecer contraditórios, frente à alegação racista sobre a força de trabalho negra, sob a lógica do capital podemos elucidar esse fato.

Nos locais desprovidos da oferta de força de trabalho imigrante ou providos num número reduzido frente aos principais locais onde essa mão de obra foi alocada, a força de trabalho negra não podia ser prescindida, junto com outros trabalhadores nacionais, como produtora de mercadoria e de mais-valia. Todavia, essa necessidade do capital não se reproduzia em melhores condições de trabalho e salário para as pessoas negras, nem mesmo na não existência de barreiras raciais nos locais de trabalho. Nas indústrias, negros e negras formavam parte do operariado, mas dificilmente conseguiam alçar os cargos maiores ou ser alocados no setor administrativo (COSTA, 2015COSTA, E. V. Brasil: história, textos e contextos. São Paulo: Editora UNESP, 2015.). Nos locais providos por uma grande quantidade de imigrantes, a presença negra surgia como um exército de reserva ampliando as condições, junto à grande oferta de imigrantes, para a burguesia rebaixar o valor do salário dos trabalhadores no campo e nas cidades. Além disso, a burguesia paulista, detentora de indústrias e outras atividades urbanas, fazia uso da contratação de força de trabalho negra como instrumento para furar as greves desencadeadas por imigrantes. Nesses momentos, manter a produção e as taxas de lucros, combatendo os grevistas, suplantava qualquer representatividade negativa sobre o uso da força de trabalho negra.

Agora, independentemente do local ser servido ou não com uma grande presença de mão de obra imigrante, a força de trabalho negra sempre esteve presente em atividades que requisitassem muita força física, trabalhos subalternizados e no trabalho doméstico. Sobre esse último destaca-se o papel da mulher negra. Desde o fim da abolição, o trabalho doméstico tornou-se a principal forma de inserção da mulher negra no mercado de trabalho, tendo mais facilidade de achar emprego do que muitos homens negros. Inclusive, entre os estereótipos construídos e difundidos sobre as pessoas negras, havia a concepção de que os homens negros eram refratários a trabalhar porque viviam dos recursos financeiros do trabalho de suas esposas negras. Mas esse maior acesso das mulheres negras a cargos de trabalho doméstico não significava ter acesso a um bom emprego. Vigorava nessa relação de trabalho a imposição da exploração no local de trabalho e os baixos salários. Somado a isso, em muitas casas essas mulheres sofriam com o assédio sexual dos patrões e de seus filhos.

O racismo presente nessa conjuntura também favorecia o capitalismo brasileiro, ao deslocar para a questão racial a explicação para a precária situação socioeconômica da maioria da população negra, excluindo as contradições do capitalismo nesse processo. Mesmo com os brancos pobres (imigrantes ou nacionais) beneficiando-se das teses racialistas, acabavam sendo atingidos pelo predomínio dessa visão de mundo. A centralidade da raça, alinhada ao liberalismo excludente da época, acabava ensejando que a superação da pobreza seria alcançada com o esforço individual, não sendo necessário o Estado estabelecer políticas públicas voltadas para a solução do problema social, nem para as pessoas brancas pobres. Com isso, a questão racial engendrava as condições político-ideológicas ideais para a burguesia brasileira ampliar e manter a sua privatização do Estado, com a maioria das políticas públicas e do fundo público sendo direcionado para os seus interesses.

Mesmo nas mentes de muitas das vítimas do racismo houve a penetração da ideia de que as precárias condições socioeconômicas de suas vidas não estariam ligadas à base econômica da sociedade e sim ao fato de serem negras. Esse processo de inferiorização se materializou, em termos subjetivos e objetivos, na adoção por parte de muitas pessoas negras do branqueamento biológico, do branqueamento estético e do branqueamento cultural, como forma de suplantarem as barreiras raciais e se inserirem, em melhores condições, na sociedade competitiva brasileira (MOURA, 2020MOURA, C. Sociologia do Negro Brasileiro. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2020.; DOMINGUES, 2003DOMINGUES, P. Uma história não contada: negro, racismo e branqueamento em São Paulo no pós-abolição. São Paulo: Senac, 2003.; FERNANDES, 2008FERNANDES, F. A integração do negro na sociedade de classes: ensaio e interpretação sociológica. 5. ed. São Paulo: Globo, 2008. v. 1.; IANNI, 2004IANNI, O. Raças e classes sociais no Brasil. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 2004.). Esse movimento foi reproduzido por muitas pessoas negras como forma de entender e atuar sobre a realidade concreta ao longo de todo o século XX, em certo sentido ainda estando presente em nossos dias. Nesse caso, o branqueamento deve ser entendido tanto em termos de seu impacto sobre a psique das pessoas negras quanto em termos de uma barreira subjetiva à formação de uma visão histórico-crítica contra o racismo e contra as opressões do capitalismo sobre as pessoas negras.

No Terceiro Projeto de Identidade Nacional, iniciado a partir da década de 1930, houve uma mudança substancial na questão racial, em contraposição às bases do Segundo Projeto de Identidade Nacional, com a valorização da mestiçagem como característica do povo brasileiro e a população negra sendo alçada a elemento fundamental da composição do povo brasileiro, junto com os indígenas e o branco europeu. Mas isso não significou o término do racismo nas relações sociais. Ao contrário, continuou como força social e sendo mais difícil de ser combatido, devido a um componente central desse novo Projeto de Identidade Nacional: o mito da democracia racial (FERNANDES, 2008FERNANDES, F. A integração do negro na sociedade de classes: ensaio e interpretação sociológica. 5. ed. São Paulo: Globo, 2008. v. 1.; MOURA, 2020MOURA, C. Sociologia do Negro Brasileiro. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2020.; GUIMARÃES, 2021GUIMARÃES, A. S. Modernidades negras: a formação racial brasileira (1930-1970). São Paulo: Editora 34, 2021.; MUNANGA, 2017MUNANGA, K. As Ambiguidades do Racismo à Brasileira. In: KON, N. M.; SILVA, M. L.; ABUD, C. C. (org.). O racismo e o negro no Brasil: questões para a psicanálise. São Paulo: Perspectiva, 2017. p. 71-90.).

O mito da democracia, presente no Terceiro Projeto de Identidade Nacional, deriva do pensamento de Gilberto Freyre sobre as relações raciais no Brasil, a partir de sua obra Casa-Grande & Senzala. Nessa obra, lançada em 1933, Gilberto Freyre, partindo de uma abordagem culturalista, estabeleceu uma análise sobre a escravização na região nordestina, sustentando que não houve no Brasil uma escravização marcada pelo grau de violência presente em outros países, como no caso dos Estados Unidos. Na opinião desse intelectual, isso favoreceu o estabelecimento de relações raciais, após o fim da escravização, sem a presença de uma forte discriminação racial ou de práticas raciais segregacionistas, prevalecendo uma relação harmoniosa entre as raças na sociedade brasileira. Sob esse ponto de vista, não haveria no Brasil barreiras raciais que inviabilizassem a realização da população negra na sociedade brasileira, com a precária situação socioeconômica dessa parcela da população sendo decorrente de sua situação de classe (no sentido weberiano), cabendo ao povo negro trabalhar com afinco para suplantar as adversidades presentes na sua realidade concreta.

O mito da democracia racial, a ideologia do branqueamento1 1 A partir da hegemonia da democracia racial, o projeto de branqueamento, nos moldes idealizados no Segundo Projeto de Identidade Nacional, foi perdendo substância e deixando de ser um projeto nacional no final da segunda metade do século XX. No entanto, enquanto ideologia, continuou pautando os aspectos estéticos, culturais e morais do grupo branco como o modelo social a ser seguido, inclusive junto a uma parcela substancial da população negra. e a manutenção de todo o conjunto de estereótipos sobre os aspectos intelectuais e morais sobre a população negra que vinha desde o período colonial, modernizados através do determinismo racial, tornaram-se a base da ideologia racial brasileira no transcorrer de boa parte do século XX. Essa conjunção, gerou um aspecto singular ao racismo no Brasil, denominado por muitos de racismo à brasileira. Diferente do existente em países cujo racismo se materializa por meio de práticas assumidamente como sendo de preconceito e de discriminação racial, seja através de leis de segregação racial seja sem uso desse tipo de legislação, no racismo à brasileira não se assume a existência do racismo na sociedade brasileira. O Estado, as instituições, as pessoas que praticam a discriminação (consciente ou inconscientemente) e até mesmo muitas das vítimas do racismo não reconhecem a existência do racismo, o privilégio que gera para as pessoas brancas e a exploração e a exclusão sobre as pessoas negras. Mais ainda, as atitudes racistas são entendidas, em muitos casos, como simples brincadeiras ou deslises sem intensão de ofender ou excluir. Como Munanga (2017)MUNANGA, K. As Ambiguidades do Racismo à Brasileira. In: KON, N. M.; SILVA, M. L.; ABUD, C. C. (org.). O racismo e o negro no Brasil: questões para a psicanálise. São Paulo: Perspectiva, 2017. p. 71-90. definiu “[Eu] Resumiria o racismo brasileiro como difuso, sutil, evasivo, camuflado, silenciado, em suas expressões e manifestações, porém eficiente em seus objetivos, e algumas pessoas talvez suponham que seja mais sofisticado e inteligente do que o de outros povos” (MUNANGA, 2017MUNANGA, K. As Ambiguidades do Racismo à Brasileira. In: KON, N. M.; SILVA, M. L.; ABUD, C. C. (org.). O racismo e o negro no Brasil: questões para a psicanálise. São Paulo: Perspectiva, 2017. p. 71-90., p. 41). Sofisticado e inteligente, porque ao mesmo tempo em que atua como força de poder, gerando privilégios para as pessoas brancas e respondendo aos interesses das classes dominantes, dificulta a luta contra ele pela forma como penetra na mente das pessoas brancas e negras, transformando-se num “[...] ‘crime perfeito’, pois além de matar fisicamente, ele alija, pelo silêncio, a consciência tanto das vítimas quanto da sociedade como um todo, brancos e negros” (MUNANGA, 2017MUNANGA, K. As Ambiguidades do Racismo à Brasileira. In: KON, N. M.; SILVA, M. L.; ABUD, C. C. (org.). O racismo e o negro no Brasil: questões para a psicanálise. São Paulo: Perspectiva, 2017. p. 71-90., p. 40).

A conjuntura econômica que marca o período do surgimento e desenvolvimento da ideologia racial brasileira tem como marco mudanças no capitalismo brasileiro, caracterizado pela expansão de núcleos urbanos e industriais, através do modelo desenvolvimentista. Em linhas gerais, do transcorrer da década de 1930 a meados da década de 1980, por um lado, houve a expansão das atividades econômicas, da oferta de empregos e da riqueza socialmente produzida, com o setor industrial passando a ser a fração de classe dominante no bloco do poder, por outro lado, houve o aprofundamento do País de forma subordinada no sistema capitalista mundial e a crescente desigualdade social, cuja aviltante concentração de renda tornou-se o aspecto mais tangível desse processo capitalista. Nessa conjuntura, a ideologia racial brasileira, formulada a partir da década de 1930, serviu como importante componente superestrutural, confirmando o que Fanon (2019)FANON, F. Racismo e cultura. In: MANUEL, J.; FAZZIO, G. L. (org.). Revolução Africana: uma antologia do pensamento marxista. São Paulo: Autonomia Literária, 2019. p. 65-79. alertou: para não se ater ao racismo como algo petrificado, mas como um elemento político-ideológico que se transforma para se adequar ao avanço das forças produtivas, das novas relações sociais e das contingências históricas, dentro dos interesses das classes dominantes.

Com certeza, nessa nova conjuntura, ampliou-se a presença das pessoas negras no mercado de trabalho. O expressivo refluxo da vinda de imigrantes, em relação à conjuntura anterior, a institucionalização da Lei de 2/3, em 1932, estipulando que nos estabelecimentos com mais de três funcionários, 2/3 do quantitativo de trabalhadores fossem de origem nacional, e a expressiva oferta de empregos, no setor industrial e comercial, com o projeto desenvolvimentista, possibilitou a maior entrada de pessoas negras no mercado de trabalho. Contudo, as práticas estruturais racistas presentes na dinâmica social, constituíam barreiras raciais privilegiando o grupo racial branco no mercado de trabalho. A barreira racial já se fazia presente no processo de seleção e contratação do corpo de funcionários, como nos anúncios de ofertas de emprego que vinham acompanhado da exigência de “boa aparência”, ou seja, o padrão branco. Na maioria dos locais de trabalho, não era comum haver pessoas negras nos cargos de gerência, chefia e direção de empresas.

Mesmo que esses exemplos demonstrem o quanto o racismo criava privilégios para as pessoas brancas, também vinham ao encontro dos interesses capitalistas ao proporcionar a diminuição da tensão social entre o capital e o grupo racial branco e a penetração da visão de mundo mais afeita ao capital na subjetividade dessas pessoas, com o acesso dessas a um maior número de vagas no mercado de trabalho, as melhores vagas de emprego e uma maior ascensão funcional. O caso das empregadas domésticas, em sua maioria negras, também pode ser inserido nesse mesmo movimento. Para a família de classe média, em sua maioria branca, a contratação de empregada doméstica, além do serviço doméstico, representava ter as condições objetivas para a mulher trabalhar e aumentar o rendimento familiar. No entanto, nos marcos da exploração presente no capitalismo brasileiro, para facilitar a contratação de empregadas por parte dessas famílias, como um resquício da escravidão adaptado aos novos tempos, essas funcionárias eram contratadas sem terem direitos trabalhistas, recebendo baixos salários e, muitas, sofriam com as péssimas condições de trabalho. Só recentemente, em pleno século XXI, essa situação mudou com as empregadas domésticas passando a possuir direitos como qualquer trabalhador brasileiro.

Nessa nova conjuntura, a ideologia racial brasileira teve um papel fundamental em permear na tecitura social a cresça no esforço individual como caminho único para a superação dos problemas sociais e econômicas presentes na sociedade, a partir da questão racial. Como não há barreiras raciais para a realização do povo negro na sociedade brasileira, bastaria às pessoas negras se esforçarem e investirem no seu próprio capital humano para as dificuldades socioeconômicas dessa parcela da população serem suplantadas. Às assimetrias entre brancos e negros, dentro dos mais distintos índices econômicos e sociais, paradoxalmente eram interpretados de formas distintas, mas tendo em comum a exclusão das contradições do capitalismo brasileiro como responsáveis por esse processo. De um lado, eram vistas não como resultado de uma opressão de raça, mas como falta de empenho das pessoas negras no campo dos estudos e no campo do trabalho, para darem um salto qualitativo em suas vidas. De outro, reforçava os estigmas presentes na dinâmica social sobre a população negra como sendo resultado do fato de serem negras. O caso das favelas, como citou Ianni (2004)IANNI, O. Raças e classes sociais no Brasil. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 2004., é emblemático nessa forma de perceber a realidade concreta do povo negro inserido, sob a ótica da ideologia racial brasileira. Esses territórios são vistos por muitos como a comprovação da população negra possuir atributos intelectuais e morais inferiores, excluindo a formação das favelas como resultado da expansão urbana desordenada, do descaso do poder público e da exploração e exclusão sobre os mais pobres, decorrentes das contradições do capitalismo brasileiro. Muitos moradores das favelas, quando despossuídos de uma consciência histórico-crítica sobre sua realidade social, acabam incorporando o sentimento de inferioridade e culpabilidade pela realidade em que vivem, achando que somente podem exercer papéis sociais subalternizados na sociedade, suprimindo desejos de um futuro melhor.

Nessa mesma linha, temos o quanto o racismo obceca, na mentalidade de negros e brancos, a compreensão sobre as contradições do capitalismo, ao engendrar nas relações sociais como ser natural a maioria da população negra trabalhar em profissões caracterizadas pela pouca qualificação técnica e baixa escolaridade; não haver um grande número de médicos, dentistas, arquitetos, professores universitários, juízes, promotores e engenheiros negros; e o fato da maioria das empregadas domésticas, dos porteiros, dos serventes, dos pedreiros, dos moradores das favelas e da população carcerária ser composta por negros ou negras. Fazendo uso de uma expressão de Almeida (2018)ALMEIDA, S. O que é racismo estrutural. Belo Horizonte: Letramento, 2018., uma das principais funcionalidades do racismo para o sistema capitalista brasileiro seria “[...] que a desigualdade social seja naturalmente atribuída à identidade racial dos indivíduos ou, de outro modo, que a sociedade se torne indiferente ao modo com que determinados grupos sociais detêm privilégios” (ALMEIDA, 2018ALMEIDA, S. O que é racismo estrutural. Belo Horizonte: Letramento, 2018., p. 57).

O caso dos brancos pobres também acaba sendo inserido nesse tipo de explicação. Afinal, num país marcado pela harmonia racial e sem grandes conflitos sociais, também cabe aos brancos pobres o caminho do trabalho árduo e ordeiro para ascender em termos sociais e econômicos, como os brancos de classe média conseguiram. A penetração dessa visão de mundo na mentalidade das pessoas brancas torna-se importante para o capitalismo brasileiro, porque apesar do racismo estrutural presente no País privilegiar as pessoas brancas, o grau de exploração no capitalismo brasileiro também atinge a maioria das pessoas brancas. Por mais que as pessoas negras sofram mais no capitalismo brasileiro do que as pessoas brancas, entre esses a quantidade de brancos pobres é superior aos situados na classe média. Ou seja, em ambos os casos, a questão racial emerge para gerar entraves para o entendimento das questões sociais e econômicas, que se abatem sobre negros e brancos, dificultando a constituição de uma consciência crítica sobre o quanto a ordem capitalista brasileira é excludente.

A ideologia racial brasileira, através do mito da democracia racial, engendra mais dois aspectos importantes, a partir da questão racial, para a classe dominante e a ordem capitalista brasileira. Na esteira da conformação do Brasil caracterizado como o país onde reina uma harmonia racial, forja-se o mito fundador do povo brasileiro como sendo pacífico, ordeiro, trabalhador e refratário a qualquer ideologia ou movimento contrário a esses valores definidores da nação brasileira. Tal concepção foi amplamente utilizada por setores conservadores e reacionários para se contrapor a movimentos contrários à ordem capitalista reinante, mesmo no sentido reformista, ou das tensões sociais imanentes desse sistema. Questões como racismo, comunismo, reforma agrária, movimento de trabalhadores e movimentos sociais contestatórios à ordem vigente se notabilizaram por serem considerados contrários a índole do povo brasileiro, devendo ser reprimido pelo Estado, de acordo com as teses conservadoras e reacionárias.

Considerações finais

Ao longo desse artigo busquei demonstrar o quanto o racismo se transforma em força social e numa das estruturas da sociedade brasileira, devido à sua inserção no percurso do capitalismo brasileiro. Como elemento superestrutural, o racismo manteve uma relação orgânica com a base econômica da sociedade, beneficiando a burguesia em termos de força de trabalho, da privatização do Estado e da naturalização das situações de exclusão social e da abissal desigualdade social existente no País. Fortalecendo a visão de mundo calcado nos princípios capitalistas como a única forma de realização dos indivíduos na sociedade brasileira.

Nesse movimento, o preconceito e a discriminação contra a população negra, reinantes no período da escravização, foram adequados às novas demandas dos setores capitalistas, através da teoria do determinismo racial e da teoria do branqueamento, no pós-abolição e no transcorrer da Primeira República. A partir de 1930, o racismo sofre uma nova metamorfose, mais adequada ao avanço das forças produtivas e das correlações de forças presentes na dinâmica social, através do uso do mito da democracia racial, da ideologia do branqueamento e da manutenção de práticas estruturais racistas na realidade brasileira. Em suma, a luta contra o racismo e a luta pela emancipação da população negra, assim como a construção da luta pela emancipação de todo povo brasileiro, passa pelo entendimento de que o racismo se torna uma força social e um dos elementos estruturais da sociedade brasileira, por ser um dos fatores para o domínio e a exploração capitalista.

Agradecimentos

Não se aplica.

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    A partir da hegemonia da democracia racial, o projeto de branqueamento, nos moldes idealizados no Segundo Projeto de Identidade Nacional, foi perdendo substância e deixando de ser um projeto nacional no final da segunda metade do século XX. No entanto, enquanto ideologia, continuou pautando os aspectos estéticos, culturais e morais do grupo branco como o modelo social a ser seguido, inclusive junto a uma parcela substancial da população negra.
  • Agência financiadoraNão se aplica.
  • Aprovação por Comitê de Ética e consentimento para participaçãoNão se aplica.
    Consentimento para publicaçãoConsentimento do autor.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    01 Nov 2021
  • Aceito
    16 Nov 2021
  • Revisado
    21 Fev 2022
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