Acessibilidade / Reportar erro

INTELECTUAIS, DIREITAS E A CENSURA DE DIVERSÕES PÚBLICAS NA DITADURA: TENSÕES, ACOMODAÇÕES E AMBIVALÊNCIAS (1967-1985)1 1 Artigo não publicado em plataforma de preprint. Todas as fontes e referências bibliográficas estão ao final do artigo.

INTELLECTUALS, RIGHTS AND THE CENSORSHIP OF PUBLIC DIVERSIONS IN THE DICTATORSHIP: TENSIONS, ACCOMMODATIONS AND AMBIVALENCES (1967-1985)

Resumo

O objetivo deste artigo é investigar o debate sobre a censura de diversões públicas produzido pelos intelectuais atuantes no interior do Ministério da Educação e Cultura entre 1967 e 1985. Ao longo da ditadura, é possível observar três movimentos do CFC em torno do tema: a crítica às ações da censura até 1968; o projeto de censura cultural, encaminhado por Gilberto Freyre, em 1975; e, por fim, o debate sobre a censura durante a transição democrática. Nesses três momentos, houve intensa discussão sobre a legitimidade da censura e qual seria o posicionamento de um colegiado dedicado à cultura sobre o tema. A atuação de um grupo ideologicamente heterogêneo de intelectuais de direita gerou tensões constantes no interior do Conselho sobre o tema se tornando um fator de desagregação interna.

Palavras-chave
intelectuais; censura; ditadura civil-militar; Conselho Federal de Cultura; políticas culturais

Abstract

The aims of this article is to investigate the debate on public entertainment censorship produced by intellectuals acting inside the Ministry of Education and Culture between 1967 and 1985. Throughout the dictatorship, it is possible to observe three movements of the CFC around the theme: criticism to censorship until 1968; the project of cultural censorship, forwarded by Gilberto Freyre, in 1975; and the debate on censorship during the democratic transition. In these three moments, there was intense discussion about the legitimacy of censorship and what would be the positioning of a collegiate dedicate to culture in relation to the action of censorship. The performance of an ideologically heterogeneous group of right-wing intellectuals created constant tension inside the “Conselho” around the action of censorship becoming a factor of internal breakdown.

Keywords
intellectuals; censorship; civil-military dictatorship; Conselho Federal de Cultura; cultural policies

O golpe civil-militar de 31 de março de 1964 que derrubou o presidente João Goulart (1961-1964) e pôs fim a nossa curta experiência democrática é um acontecimento fundamental para compreendermos a cultura política autoritária que marca da História do Brasil Republicano. Iniciaríamos um longo período de ditadura, com uso sistemático de violência de Estado e de graves violações de Direitos Humanos. Seriam 21 anos marcados por práticas de repressão como censura, aposentadorias compulsórias, perseguição aos opositores políticos, prisões clandestinas, torturas, desaparecimentos forçados, assassinatos. A ditadura civil-militar, no entanto, para além de instrumentos de repressão e censura, com a adoção de práticas de Terrorismo de Estado, também promoveu uma modernização autoritário conservadora com a participação ativa de diferentes grupos civis no interior do Estado3 3 Em 2000, Daniel Aarão Reis propôs a urgência em investigarmos a participação dos civis na consolidação do regime, chamando atenção para as relações de ambivalência e os consensos entre a sociedade civil e os militares. Nesta perspectiva, busca romper com a simples dicotomia resistência versus repressão construída por certa memorialística acerca da ditadura. Em trabalhos mais recentes, vem insistindo na necessidade de consideramos a dinâmica dos tempos na compreensão do autoritarismo brasileiro, atentando para aspectos como a longa duração, com ênfase no conceito de cultura política. Ver: AARÃO REIS, Daniel. Ditadura, esquerda e sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000. 1ª edição. Rodrigo Patto Sá Motta vem desenvolvendo o conceito de modernização autoritário conservadora para compreender o período da ditadura, que utilizamos aqui na compreensão da promoção de políticas culturais pelo regime pelos membros do Conselho Federal de Cultura. O conceito expõe uma tensão contínua inerente ao regime: o processo de desenvolvimento tecnológico e a urbanização solapavam os valores tradicionais de uma sociedade em profunda transformação. Esses valores tradicionais, associados ao nacionalismo, seriam a base das políticas culturais empreendidas pelo Conselho, marcadas pela valorização do patrimônio luso-brasileiro, pelos clássicos da literatura, pelo folclore e pela defesa do regionalismo como síntese da nacionalidade. Sobre o conceito de modernização autoritário conservadora e as tensões intrínsecas criadas por esse modelo de desenvolvimento ver: MOTTA, Rodrigo Patto Sá. A modernização autoritário-conservadora nas universidades e a influência na cultura política. In: AARÃO REIS, Daniel; RIDENTI, Marcelo. MOTTA, Rodrigo Patto Sá. A ditadura que mudou o Brasil: 50 anos do golpe de 1964. 2ª EDIÇÃO, Rio de Janeiro, Zahar, 2014. P. 48-65, p.51) . Ainda que as resistências ao regime tenham sido múltiplas, os processos de acomodação, ambivalência e consenso também nos ajudam a compreender a permanência de uma cultura política autoritária, inscrita na longa duração, e circulante na sociedade brasileira até os dias atuais. Recentemente, a historiografia tem se empenhado em investigar a participação dos grupos civis na construção social do consenso durante ditadura civil-militar (1964-1985) (AARÃO REIS, 2000AARÃO REIS, Daniel. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000. 1ª edição; ROLLEMBERG, 2010ROLLEMBERG, Denise. As trincheiras da memória: A Associação Brasileira de Imprensa e a ditadura (1964-1974). In: ROLLEMBERG, Denise e QUADRAT, Samantha Viz. (orgs.). A construção social dos regimes autoritários: legitimidade, consenso e consentimento no século XX. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2010. p. 97-144; CORDEIRO, 2015CORDEIRO, Janaína Martins. A ditadura em tempos de milagre: comemorações, orgulho e consentimento. Rio de Janeiro: FGV, 2015). Tais investigações contrastam com as memórias construídas a partir do processo de redemocratização de que o regime instalado após o golpe de 1964 era exclusivamente militar. Este artigo dialoga com outras pesquisas que, igualmente dedicadas a instituições civis, analisam a prevalência de relações ambivalentes entre importantes setores civis e a ditadura brasileira. A historiadora Denise Rollemberg, em pesquisas sobre a Associação Brasileira de Imprensa, AIB, e a Ordem dos Advogados do Brasil, OAB demonstrou claramente as acomodações, os consensos, as ambivalências e o penser-double que foram essenciais na construção da legitimidade da ditadura e sua manutenção por 21 anos (ROLLEMBERG, 2008ROLLEMBERG, Denise. Memória, Opinião e Cultura Política. A Ordem dos Advogados do Brasil sob a Ditadura (1964-1974). In: Daniel Aarão Reis; Denis Rolland. (Org.). Modernidades Alternativas. 1ed. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 2008, v. 1, p. 57-96.; ROLLEMBERG, 2010ROLLEMBERG, Denise. As trincheiras da memória: A Associação Brasileira de Imprensa e a ditadura (1964-1974). In: ROLLEMBERG, Denise e QUADRAT, Samantha Viz. (orgs.). A construção social dos regimes autoritários: legitimidade, consenso e consentimento no século XX. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2010. p. 97-144)

Nas últimas décadas, a historiografia dedicada à ditadura ampliou seus objetos de pesquisas, as suas fontes e incorporou novos aportes teóricos e metodológicos. Afastando-se do binômio repressão versus resistência, pesquisadores brasileiros têm se debruçado sobre os processos de acomodação, ambivalência e pensar-duplo que também nos auxiliam na compreensão da dinâmica de institucionalização do regime e seu funcionamento (AARÃO REIS, 2000AARÃO REIS, Daniel. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000. 1ª edição; ROLLEMBERG, 2010ROLLEMBERG, Denise. As trincheiras da memória: A Associação Brasileira de Imprensa e a ditadura (1964-1974). In: ROLLEMBERG, Denise e QUADRAT, Samantha Viz. (orgs.). A construção social dos regimes autoritários: legitimidade, consenso e consentimento no século XX. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2010. p. 97-144; MOTTA, 2014MOTTA, Rodrigo Patto Sá. A modernização autoritário-conservadora nas universidades e a influência da cultura política. In: AARÃO REIS, Daniel, RIDENTI Marcelo e SÁ MOTTA, Rodrigo Patto. A ditadura que mudou o Brasil: 50 anos do golpe de 1964. Rio de Janeiro: Zahar, 2014, p.48-65). Também merecem destaque as pesquisas sobre os processos de construção das memórias acerca da ditadura civil-militar, revelando as contradições e ressaltando a necessidade de entendê-los como parte integrante de um espaço em constante disputa pelos sentidos do vivido (NAPOLITANO, 2015NAPOLITANO, Marcos. Recordar é vencer. As dinâmicas e vicissitudes da construção da memória sobre o regime militar brasileiro. Antíteses, v. 8, n. 15esp., p. 09-44, nov. 2015, < http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/antiteses/article/view/23617>, acesso em: 15 jan. 2020. DOI: 10.5433/1984-3356.2015v8n15espp09
http://www.uel.br/revistas/uel/index.php...
; NAPOLITANO, 2018NAPOLITANO, Marcos. Aporias de uma dupla crise. História e memória diante dos novos enquadramentos teóricos. Saeculum - Revista de História, vol. 39, n.39, p. 205-218, jul/dez de 2018. <https://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/srh/article/view/40930> Acesso em: 10 out. 2019 https://doi.org/10.22478/ufpb.2317-6725.2018v39n39.40930
https://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.ph...
). Parte dessas memórias promoveu um silêncio sobre os grupos civis que participaram do golpe e da ditadura civil-militar.

Neste artigo, proponho uma análise sobre a atuação dos intelectuais de direita, integrantes do Conselho Federal de Cultura, entre 1967 e 1985, a partir de uma questão sensível ao campo cultural: a censura. Ao longo das décadas de 1960 e 1970 observa-se um processo de centralização da censura de diversões públicas promovido pela ditadura. Somente a partir da década de 1980, com o avanço do processo de abertura, a censura deixaria de fazer parte da rotina do setor cultural, não sem uma intensa discussão sobre a relação entre censura e democracia. Ao longo dessas três décadas, os intelectuais do CFC se posicionaram - ou foram chamados a se posicionar - em relação à censura de diversões públicas.

Este artigo pretende investigar três momentos da ação do Conselho Federal de Cultura em relação à censura: o primeiro, até 1968, quando a censura a peças de teatro e filmes nacionais instalam um intenso debate no interior do órgão; o segundo, em 1975, quando novamente a questão reaparece diante da proposta encaminhada por Gilberto Freyre para a criação de uma censura cultural; e, por fim, no início dos anos de 1980, quando o Conselho é acionado pelo Ministro da Educação e Cultura para emitir pareceres sobre os projetos de lei propostos na Câmara dos Deputados sobre como encaminhar a revisão dos mecanismos censórios durante a redemocratização.

Em 1967, instalava-se oficialmente o Conselho Federal de Cultura que funcionaria no prédio do Ministério da Educação e Cultura, no Rio de Janeiro, até 1990. Tornou-se o principal órgão dedicado à promoção de uma política nacional de cultura, defendendo-a dentro das bases do federalismo brasileiro, ou seja, apostando no regionalismo como integrador da unidade nacional. Até meados dos anos de 1980, o Conselho desempenha inúmeras tarefas: presta assessoria ao ministro; propõe políticas de cultura; defende a salvaguarda das instituições nacionais de cultura; elabora um sistema integrado para a cultura com o estímulo à criação de conselhos estaduais de cultura e Casas de Cultura (inspiradas no modelo francês de André Malraux); orienta e distribui grande parte das verbas públicas disponíveis para a cultura; financia a publicação de obras que consideravam representativas da intelligentsia e da cultura nacional (MAIA, 2012).

O Conselho era formado por 24 intelectuais, escolhidos pelo ministro de Estado e nomeados pelo presidente da República para o exercício da função, com possibilidade de recondução ao cargo a cada dois anos. No momento de sua criação, o Conselho possuía a seguinte formação: Josué de Souza Montello, que assumiu a presidência do Conselho, Adonias Aguiar Filho, Affonso Arinos de Mello Franco, Ariano Suassuna, Armando Scorates Schnoor, Arthur Cézar Ferreira Reis, Augusto Meyer, Cassiano Ricardo, Clarival do Prado Valladares, Djacir Lima Menezes, Gilberto Freyre, Gustavo Corção, Hélio Vianna, João Guimarães Rosa, José Candido de Andrade Muricy, D. Marcos Barbosa, Manuel Diégues Júnior, Moyses Vellinho, Octávio de Faria, Pedro Calmon, Rachel de Queiroz, Raymundo Castro Maya, Roberto Burle Marx, Rodrigo Mello Franco de Andrade. Ao longo dos anos, o Conselho sofreu algumas modificações, mas manteve o mesmo perfil profissional na escolha de seus membros. Muitos desses intelectuais eram vinculados à Academia Brasileira de Letras, ao Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, a instituições nacionais e estaduais de cultura, às universidades. Formavam uma constelação de “homens de pensamento e ação”; a maioria com experiência em cargos na administração pública e amplamente reconhecidos pela opinião pública como expoentes do campo intelectual e cultural brasileiro.

O clássico texto de Roberto Schwarz, “Cultura e política (1964-1969)”, escrito no início dos anos de 1970, traz uma importante leitura sobre o domínio do campo cultural no período: “Apesar da ditadura da direita há uma relativa hegemonia cultural da esquerda no país.” (SCHWARZ, 1978SCHWARZ, Roberto. O pai de família e outros estudos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978., p. 62). A frase, grifada pelo autor, não impede que o próprio reconheça os limites dessa “relativa hegemonia”. Para Schwarz, os intelectuais de esquerda produziam para um pequeno grupo de jovens universitários e profissionais liberais progressistas, ainda que com uma visibilidade surpreendente até 1968, cada vez mais imersa no desenvolvimento de uma sociedade de massas, urbanizada, com o fortalecimento da indústria cultural. Mesmo se concentrando nas esquerdas, Schwarz reconhece que havia espaços culturais dominados por outros atores e personagens com um público específico e distantes do clima de engajamento cultural circulante entre as esquerdas e seus simpatizantes. No campo das direitas, é possível observarmos a atuação de intelectuais empenhados na produção e circulação de produtos culturais que não concorrem diretamente no disputado campo da memória com a produção de vanguarda. É neste campo que está inserido o Conselho Federal de Cultura, órgão que se dedicará prioritariamente às instituições tradicionais de cultura e à construção de um sistema cultural no interior do Estado inédito até então. A maioria dos membros do Conselho se organizou nas franjas do modernismo, associando o movimento modernista à emergência do nacionalismo dos anos de 1930. Um nacionalismo que irá se valer de narrativas em defesa da diversidade cultural (regionalismo), do mito das três raças (mestiçagem) e da centralização do Estado (Estado forte) (GOMES, 1996GOMES, Angela Maria de Castro. História e Historiadores. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1996;, p. 125).

Marcelo Ridenti, recentemente, investigou a reunião de intelectuais de direita, a maioria conservadores, na revista “Cadernos Brasileiros”, identificando justamente outros espaços de produção e circulação intelectual não dominados pelas esquerdas e como tais produtos concorrem no campo cultural na conformação de leituras sobre o país e seus projetos de futuro. Ao se dedicar à revista, o autor demonstra a permanência de núcleos intelectuais de direita atuantes no pós-1964, atores que concorrem entre si pela hegemonia do campo cultural e também pela participação no campo político (RIDENTI, 2018RIDENTI, Marcelo. A relativa hegemonia cultura de esquerda e a revista Cadernos Brasileiros na época de 1968. MÜLLER, Angélica. 1968 em movimento. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2018. p. 49-74, p.51).

No caso específico dos intelectuais que atuaram no Conselho Federal de Cultura reforço a hipótese de uma relação ambígua com a ditadura, marcada por consentimentos, consenso e críticas ao regime. Além disso, proponho que tais personagens atuaram no interior do Estado com relativa autonomia, ainda que em suas narrativas, eventualmente, seja possível identificar expressões como desenvolvimento, integração nacional e, mesmo, segurança, mostrando um alinhamento com o projeto de modernização autoritário conservador em curso. Na prática, num clima político marcado pelo nacional-estatismo (AARÃO REIS, 2014) esses conceitos circulam entre os atores no interior do Estado com o objetivo de demonstrarem inserção ao projeto político proposto. Porém, as ações propostas pelo Conselho Federal de Cultura estão inseridas numa conjuntura que obedece também a lógica interna do campo cultural no Brasil e que se desenha a partir da emergência do movimento modernista nos anos de 1920. Há no interior do CFC personagens icônicas do modernismo verde-amarelo como Cassiano Ricardo, do movimento regionalista como Gilberto Freyre, ou ainda do integralismo, como Miguel Reale. Neste sentido, compreendo a atuação das direitas, reconhecendo sua heterogeneidade ideológica, porém com capacidade de ação organizada, poder político e econômico e, sobretudo, empenhadas na manutenção da ordem estabelecida. As tradições intelectuais gestadas nos anos de 1920 e 1930 serão incorporadas às políticas culturais dos anos de 1960, iniciando seu esgotamento somente a partir de meados dos anos de 1970, com o avanço da indústria cultural e o surgimento no interior do Estado de um grupo concorrente aos modernistas-conservadores liderado por Aloísio Magalhães (OLIVEIRA, 2008OLIVEIRA, Lúcia Maria Lippi. Cultura é patrimônio. Um guia. Rio de Janeiro, editora FGV, 2008;, p. 126).

A relativa harmonia no interior do grupo demonstra os fortes laços de sociabilidade que os aproximavam. Eram companheiros de longa data, atuavam nos mesmos círculos intelectuais, publicavam nos mesmos periódicos, mantinham relações de amizade. Como demonstra Sirinelli, neste universo, as redes de sociabilidade indicam práticas compartilhadas, alinhamentos ideológicos e também trocas afetivas (SIRINELLI, 1996, p. 249). No entanto, o tema da censura e seus desdobramentos será um ponto sensível no interior do Conselho, gerando divergências internas e provocando fissuras na relação dos intelectuais do CFC com as diretrizes da cúpula do executivo. A liberdade de criação artística será um tema caro a muitos membros do Conselho ainda que também seja observado o apoio à censura moral em condições específicas por alguns de seus membros.

Desde o início dos anos de 1990, diferentes pesquisadores têm se debruçado sobre as censuras ao longo da História do Brasil Republicano. A ditadura civil-militar construiu todo um aparato repressivo que incluía a censura prévia aos espetáculos, às produções teatrais e cinematográficas, ao mercado editorial, aos meios de comunicação, ou seja, às diversões públicas como mecanismo de controle do Estado sobre os produtos veiculados nos meios de comunicação e nas produções artísticas e intelectuais (SOARES, 1989SOARES, Glaucio Ary Dillon. A censura durante o regime autoritário. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 4, n. 10, p. 21-43, junho de 1989. < http://www.anpocs.com/images/stories/RBCS/10/rbcs10_02.pdf> acesso em: 02 jan 2020
http://www.anpocs.com/images/stories/RBC...
; AQUINO, 1999AQUINO, Maria Aparecida de. Censura, imprensa, estado autoritário (1968-1978) Bauru: Edusc, 1999., STEPHANOU, 2001STEPHANOU, Alexandre Ayub. Censura no Regime Militar e Militarização das Artes. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001.; FICO, 2002FICO, Carlos. Prezada censura: cartas ao regime militar. Topoi - Revista de História. Rio de Janeiro: UFRJ. n°. 5, set. 2002, p. 251-286. Disponível em: < http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2237-101X2002000200251> acesso em: 05 jan. 2020. https://doi.org/10.1590/2237-101X003005011
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
, GARCIA, 2014GARCIA, Miliandre. Quando a moral e a política se encontram: a centralização da censura de diversões públicas e a prática da censura política na transição dos anos de 1960 para os 1970. Dimensões, UFES, vol. 32, 2014, p. 79-110 < http://periodicos.ufes.br/dimensoes/issue/view/503> acesso em: 12 dez. 2019
http://periodicos.ufes.br/dimensoes/issu...
). A construção de um aparato censório e repressor teve início logo após o golpe de 1964 com os Inquéritos Policiais-Militares (IPMs) e a posterior centralização da censura através do Serviço de Censura e Diversões Públicas, órgão vinculado ao Departamento de Polícia Federal (STEPHANOU, 2001STEPHANOU, Alexandre Ayub. Censura no Regime Militar e Militarização das Artes. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001.). A periodização proposta por Alexandre Stephanou define dois momentos distintos da ação repressiva do Estado no setor cultural: primeiro, o período de 1964 até o AI-5, decretado em 1968; e, a segunda fase, mais abrangente e organizada, entre os anos de 1968 a 1978. Apoiado nesta periodização, Carlos Fico enfatiza que a censura deve ser investigada como parte integrante da sistematização do aparato repressivo que só foi possível com a vitória do grupo mais radicalizado no poder:

(...) a existência de um projeto repressivo que foi globalmente implantado pela “linha dura” quando ela tornou-se vitoriosa, deixando de ser “grupo de pressão” e assumindo a posição de “comunidade de informações e de segurança”. (...) No poder, ela implantou meticulosamente os “sistemas” que completariam a tarefa da “Operação Limpeza”, interrompida contra a sua vontade. Criou a polícia política, instituiu um sistema nacional de “segurança interna”, reformulou e ampliou a espionagem, estabeleceu um procedimento de julgamento sumário para confiscar os bens de funcionários supostamente corruptos, implantou a censura sistemática da imprensa, instrumentou a censura de diversões públicas para coibir aspectos políticos do teatro, cinema e TV, dentre outras iniciativas (...) (FICO, 2004, p. 255).

A censura de diversões públicas, diferentemente da censura de imprensa, atuou através de um aparato legislativo próprio e prioritariamente no campo dos valores morais, o que lhe garantia uma suposta legitimidade, ainda que temas da política cotidiana também tenham sido alvo da ação desses censores. Como propõe Carlos Fico, o apoio que a censura tinha entre setores civis das camadas médias e das elites vinha justamente da defesa de supostos valores morais da tradicional sociedade brasileira (FICO, 2002FICO, Carlos. Prezada censura: cartas ao regime militar. Topoi - Revista de História. Rio de Janeiro: UFRJ. n°. 5, set. 2002, p. 251-286. Disponível em: < http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2237-101X2002000200251> acesso em: 05 jan. 2020. https://doi.org/10.1590/2237-101X003005011
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
, p. 258) - sem negar que essa censura também estava atenta a questões políticas. Recentemente, Miliandre Garcia propôs que é preciso complexificar o entendimento da relação entre moral e política no caso da censura de diversões públicas, chamando atenção para o processo de estruturação do aparato repressivo, evitando que as artes atuassem como foco de contestação à ordem estabelecida, seja de caráter moral ou político:

É de extrema importância ressaltar que, durante o regime militar especificamente, a centralização da censura correspondeu à necessidade dos governos de assumir o controle nacional sobre a produção artística supostamente transgressora dos princípios ético-morais e também político-ideológicos; (...) (GARCIA, 2014GARCIA, Miliandre. Quando a moral e a política se encontram: a centralização da censura de diversões públicas e a prática da censura política na transição dos anos de 1960 para os 1970. Dimensões, UFES, vol. 32, 2014, p. 79-110 < http://periodicos.ufes.br/dimensoes/issue/view/503> acesso em: 12 dez. 2019
http://periodicos.ufes.br/dimensoes/issu...
, p. 85).

A questão da censura de diversões públicas, como já dito anteriormente, esteve presente como polêmica no CFC em três momentos: ao longo dos anos de 1967 e 1968, com críticas à atuação dos censores; em 1975, com a proposta de criação de uma censura cultural encaminhada pelo Conselho Estadual de Pernambuco, através do conselheiro Gilberto Freyre; e no início dos anos de 1980, quando uma intensa discussão ocorre no interior do Conselho para se posicionarem sobre os projetos de lei encaminhados pelos deputados para revogação ou reestruturação da censura. Cabe lembrar que predominou no Conselho, enquanto órgão colegiado, a defesa da liberdade criadora de artistas e intelectuais desde que tal liberdade não ultrapassasse certos limites impostos por supostas normas e costumes.

1.1 “O artista é livre, a obra de arte é sagrada” - Os primeiros movimentos do Conselho em relação à censura de diversões públicas

O ano de 1967 marca o avanço do processo de centralização da censura de diversões públicas, com a criação do Conselho Superior de Censura e a ampliação pela Constituição de 1967 das áreas da cultura subordinadas à censura prévia (GARCIA, 2014GARCIA, Miliandre. Quando a moral e a política se encontram: a centralização da censura de diversões públicas e a prática da censura política na transição dos anos de 1960 para os 1970. Dimensões, UFES, vol. 32, 2014, p. 79-110 < http://periodicos.ufes.br/dimensoes/issue/view/503> acesso em: 12 dez. 2019
http://periodicos.ufes.br/dimensoes/issu...
, p. 85). A censura de diversões públicas ficaria a cargo da Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP), integrante do Departamento de Polícia Federal. Será neste mesmo ano, não por coincidência, que observamos o primeiro movimento do Conselho em relação à censura.

Nos primeiros meses de 1967, diante da censura do filme “Terra em Transe” de Glauber Rocha, o conselheiro Octávio de Faria, presidente da Câmara de Artes do CFC, propôs ao colegiado uma moção de apoio ao filme, contra a censura, recebendo o apoio de vários de seus companheiros de CFC. Diz a moção:

Ora, a nossa condição de defensores da cultura e de suas diversas manifestações (de liberdade de criação e de liberdade de expressão), parece-me que nos obriga a tomar posição em tão delicada conjuntura. Para nós o artista é livre, a obra de arte sagrada.(...) Tudo mais é excessivo, desnecessário e opressivo - além de contraproducente (FARIA, 1967FARIA, Octávio. Moção sobre o filme Terra em Transe. Cultura. Rio de Janeiro: MEC, ano I, n°2, maio de 1967. p.44, p. 44).

Além de Octávio de Faria, assinaram o documento de protesto, os conselheiros Afonso Arinos, Arthur Cezar Ferreira Reis, Ariano Suassuna, Clarival Valladares, Djacir Menezes, Guimarães Rosa e Rodrigo Mello Franco de Andrade. O texto de apoio ao filme foi publicado integralmente na revista “Cultura”, periódico oficial do Conselho, no seu volume n.2, em maio de 1967. Aproveitando o movimento dos conselheiros em torno do tema, na mesma sessão plenária, o presidente do CFC, Josué Montello propôs que fosse encaminhado ao Ministro da Educação e Cultura Tarso Dutra, um ofício indicando a necessidade de transferência da censura de diversões públicas do Departamento de Polícia Federal para o Ministério da Educação e Cultura. Após aprovação do plenário, o ofício foi encaminhado. No mês seguinte, reunidos novamente para as sessões plenárias mensais, o tema da censura retornou ao colegiado. Primeiro, com a reclamação de Ariano Suassuna pelos cortes em sua peça “O Santo e a Porca”. Logo em seguida Manuel Diégues Júnior traz ao colegiado a proposta de cineastas, que reunidos em Brasília para um festival de cinema, insistiam na necessidade de transferência da censura do âmbito policial para a esfera da cultura (CFC, 1967, p. 68). Apesar dos artistas e intelectuais preferirem que a censura fosse realizada pelos órgãos da cultura, provavelmente por acreditarem que seria mais fácil negociar com o MEC, o pedido jamais foi atendido. Essa derrota do Conselho reforça a hipótese apresentada por Miliandre Garcia de que o caráter político e, portanto, “revolucionário” da censura de diversões públicas era tão importante quanto as questões morais, o que torna compreensível a manutenção da censura no âmbito policial (GARCIA, 2014GARCIA, Miliandre. Quando a moral e a política se encontram: a centralização da censura de diversões públicas e a prática da censura política na transição dos anos de 1960 para os 1970. Dimensões, UFES, vol. 32, 2014, p. 79-110 < http://periodicos.ufes.br/dimensoes/issue/view/503> acesso em: 12 dez. 2019
http://periodicos.ufes.br/dimensoes/issu...
, p. 86).

Em dezembro de 1967, Octávio de Faria, durante as reuniões plenárias, queixa-se dos cortes da censura ao filme “Cara a Cara” de Júlio Bressame. O conselheiro Clarival do Prado Valladares, em apoio a Octávio de Faria, condenou a ação da censura, registrando o quanto a produção artística nacional vinha sofrendo com os constantes cortes e proibições. Os conselheiros decidiram encaminhar um ofício ao ministro da Justiça Luís Antonio Gama e Silva solicitando a revisão dos cortes produzidos no filme de Bressame, (CFC, 1967, p. 91). Meses depois, em março de 1968, seria a vez de Ariano Suassuna acirrar os debates em torno da censura no interior do Conselho. Desta vez, as divergências se explicitariam no interior do Conselho. O conselheiro Dom Marcos Barbosa, integrante do Grupo de Trabalho do Ministério da Justiça dedicado à censura, como representante do Conselho no referido GT, fez uma defesa da importância da censura de diversões públicas para coibir qualquer desvio moral. Em resposta, Ariano Suassuna se mostrou contrário a qualquer tipo de ação coercitiva nas artes, condenando a existência da censura. Na tentativa de acomodar as divergências e alinhar uma postura oficial do colegiado, Josué Montello aproveitou a posição de Rachel de Queiroz para novamente reiterar a necessidade de transferência da censura do Ministério da Justiça para o Ministério da Educação e Cultura, propondo que fosse este o posicionamento oficial do Conselho (CFC, 1968, p. 105). A partir de longo debate e da impossibilidade de construção do consenso no interior do órgão, optou-se pelo encaminhamento administrativo do caso: caberia à Câmara de Artes, formada pelos conselheiros Clarival do Prado Valladares (presidente), Ariano Suassuna, José Candido de Andrade Muricy e Octávio de Farias elaborar um posicionamento para posterior avaliação pelas demais Câmaras. Após estas duas etapas, o Conselho iria redigir seu posicionamento consolidado, encaminhando-o ao ministro da Educação e Cultura. A Câmara de Artes, após reunião ordinária, decidiu que não seria possível opor-se à existência da censura por ser uma instituição integrante da administração pública. Traziam como proposta, no entanto, duas alterações na atuação censória do Estado: primeiro, insistiam na sua transferência para o MEC, deixando de estar subordinada ao Departamento de Polícia Federal; e, segundo, propunham que a censura fosse apenas de caráter declaratório. O colegiado decidiu acatar a primeira proposta, desconsiderando a segunda. A partir de então, o debate sobre a censura foi sendo lateralizado no interior do Conselho. O presidente do Conselho Josué Montello, ao longo de sua gestão, foi esvaziando qualquer tentativa de retorno do tema às reuniões plenárias, optando pelo silêncio. Com a criação do Conselho Superior de Censura, os conselheiros foram informados da necessidade, por força de lei, de indicarem um de seus membros para integrá-lo. Como nenhum conselheiro se dispôs a participar do órgão, a solução acordada entre todos foi indicar um funcionário do quadro técnico-administrativo (CFC, 1970, p. 78). Na prática, o Conselho Superior de Censura só entraria em funcionamento em 1979, após a extinção do terrível Ato Institucional n.5.

Após o ato-institucional n.5, de 13 de dezembro de 1968, as manifestações contra a censura se tornaram esporádicas. A ação mais contundente seria provocada por Octávio de Faria, em 1969, que novamente exporia os danos causados ao cinema nacional, com os cortes promovidos contra o filme “Macunaíma”. O Conselho decidiu solicitar ao ministro da Justiça, através de ofício, esclarecimentos sobre os cortes. Nesta mesma reunião e aproveitando a oportunidade, Ariano Suassuna informou que sua peça “O Auto da Compadecida” também havia sido censurada (CFC, 1969, p. 82). Se nesses primeiros anos os conselheiros questionavam a ação da censura e, muitas vezes, a condenavam, também homenageavam constantemente o primeiro presidente-general, Castello Branco (1964-1967). Somam-se homenagens, atos de reverência, lembranças afetuosas sobre aquele que consideravam a principal liderança da “Revolução”, o “grande estadista”, o “soldado exemplar” (MAIA, 2012, p. 76). É justamente essa postura ambivalente, de ser apoiador e crítico simultaneamente, que marca a atuação dos intelectuais vinculados ao Conselho ao longo da ditadura. Esse pensar-duplo, como propôs Pierre Labourie, onde se mantêm relações de aproximação e distanciamento, sem oposições radicais ou possibilidades de ruptura. Afinal, ao analisar a experiência do regime de Vichy na França, Labourie identifica a existência de uma “cultura do duplo”, onde:

Muito longe dos comportamentos heroicos e das rejeições declaradas, o duplo-pensar aparece como uma forma de resposta social a alternativas consideradas insuperáveis, uma resposta datada que deve ser vista como tal, como tentativa patética de ajustamento entre o desejo e o possível (LABOURIE, 2010LABOURIE, Pierre. 1940-1944. Os franceses do pensar-duplo. ROLLEMBERG, Denise e QUADRAT, Samantha. A construção social dos regimes autoritários: Europa. volume I. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2010, 3v. p.31-45, p. 41).

Nessa zona cinzenta, há espaço para negociações, acomodações, silenciamentos, consentimentos, críticas pontuais. Assim, no interior do Conselho cria-se uma rotina que normaliza a vida cotidiana em períodos autoritários e também se elabora a crença de que existe algum espaço de diálogo. Um exemplo interessante é o discurso de Adonias Filho, em comemoração ao sétimo golpe de 31 de março de 1964:

Dizendo-se, claro e bom som, participante da Revolução, manifesta o desejo de que os Conselheiros, por intermédio do Conselho Federal de Cultura, apelassem às autoridades no sentido de que, considerando o equilíbrio social, a normalidade das atividades e a configuração da política, sustarem a aplicação da lei da censura prévia aos trabalhos intelectuais (CFC, 1971, n.2, p. 134).

Seu discurso revela a sua vontade em acreditar que é possível construir algum tipo de negociação com as instâncias repressivas do regime. E para fazer esta solicitação, alinha-se ao golpe, afirmando categoricamente ter sido um “participante da Revolução”. Mas, seu desejo não passava de uma ilusão de que ainda havia possibilidade de diálogo e de que seria ouvido por ter sido “participante” do golpe. Josué Montello, provavelmente reconhecendo a impossibilidade de manifestação contrária às diretrizes do executivo, propôs aos demais companheiros que o órgão não se manifestasse novamente sobre o assunto. Afinal, o Conselho já havia informado ser contrário à censura, nos termos existentes, em anos anteriores (CFC, 1971, n. 2, p. 135). Os diversos ofícios enviados aos ministros da Educação e da Justiça são exemplos dessa cultura do duplo, da tentativa vã de desejar alterar o quadro da censura através de atos administrativos que na prática não tinham a menor possibilidade de mudar o cenário vigente. As poucas indignações nas reuniões não geravam nenhum protesto além daquele permitido pelo próprio regime: o envio de um ofício que estaria indefinidamente “em análise”.

1.2 - Gilberto Freyre e o projeto da censura cultural

Em 1975, o conselheiro Gilberto Freyre, que também atuava no Conselho Estadual de Cultura de Pernambuco, intermediou o envio de uma proposta do CEC/PE ao ministro da Educação e Cultura Ney Braga para criação de uma censura cultural. A proposta tinha como objetivo “coibir abusos registrados em teatro regional e de costumes (...).” (CFC, 1975, p. 158). Para justificar a proposta, o CEC/PE trouxe o exemplo de dois espetáculos considerados desviantes: “Viva, o cordão encantado”, texto de Luís Marinho e encenação de Luís Mendonça; e “A capital Federal”, encenada por Flávio Rangel. No primeiro caso, afirma o CEC/PE, haveria a deturpação do pastoril; no segundo, seria impossível reconhecer o Rio de Janeiro encenado.

A submissão da proposta para emissão de parecer do CFC causou inúmeras discussões acerca da legitimidade da ação censória na cultura, ainda que promovida por seus pares. Iniciava-se uma série de reflexões sobre a liberdade de criação e o papel do Estado na cultura. As discussões se avolumaram, indo para além das reuniões plenárias, com a publicação de artigos sobre o tema no boletim trimestral do Conselho. As diferenças ideológicas no interior do órgão emergiram, demonstrando a pluralidade das direitas que apoiavam o regime e atuavam no interior do Estado. O Conselho agregava diversas tendências ideológicas de direita: liberais, conservadores, modernistas verde-amarelo, regionalistas, ex-integralistas.

Diante da proposta trazida por Freyre, Djacir Menezes (re)publicou um artigo intitulado “Censura e Cultura”. Neste artigo, originalmente publicado pelo Jornal do Brasil em 26/06/1975, Djacir Menezes indaga sobre a validade da censura, reconhecendo nela um mecanismo para evitar que “imoralidades” sejam veiculadas desrespeitando o que considerava certos valores da sociedade. Neste sentido, a censura não seria apenas legítima como necessária para preservar a convivência pacífica entre os diversos grupos sociais. Para Menezes:

Os setores ditos avançados ou progressistas reclamam liberdade para exibição de seus produtos; procura-se ver, ouvir ou ler o que lhe apetece. Assim pregam os radicais da arte livre, do amor livre, da porneia livre, da livre burrice, fingindo desconhecer que o processo de convivência exige limitações, que compatibilizem os seres conviventes (MENEZES, 1975MENEZES, Djacir. Cultura e censura. Boletim do Conselho Federal de Cultura. Rio de Janeiro: MEC, n. 19, julho-setembro de 1975, p. 29-36, p. 30).

Mas, simultaneamente, ambiguamente, Menezes também crítica a censura política, novamente trazendo a questão da censura para o âmbito aparentemente circunscrito da moral. Discretamente, ele busca legitimidade no pensamento de Alceu Amoroso Lima, afirma:

Hoje, o veterano Tristão de Athaíde, em serôdios amores com a Liberdade, que anos a fio convictamente desenhara, vê o problema como conflito entre estruturas reacionárias, que repugna (agora) e o subjetivismo creador, que o rejubila (agora). E pondo-se pelo avesso de si mesmo, denuncia “uma crise provocada pelo autoritarismo político e censorial, que se choca, de um modo ostensivo e simulado, com a riqueza dos talentos e a impaciência creadora, especialmente das novas gerações (MENEZES, 1975MENEZES, Djacir. Cultura e censura. Boletim do Conselho Federal de Cultura. Rio de Janeiro: MEC, n. 19, julho-setembro de 1975, p. 29-36, p. 30).

O conselheiro Sábato Magaldi, crítico literário já consagrado à época, foi o relator do parecer à proposta da criação de uma censura cultural. Magaldi não está entre os fundadores do Conselho, atuando no órgão a partir de 1975. Na 489ª sessão plenária, realizada em 04 de dezembro de 1975, Magaldi emitiu um parecer desfavorável à criação de uma censura cultural em nome da liberdade da produção cultural, informando que o próprio Gilberto Freyre seria igualmente contrário à proposta que encaminhou atendendo ao pedido do Conselho Estadual de Pernambuco. Gilberto Freyre esclareceu ao relator do parecer que a intenção do CEC/PE era “resguardar as obras clássicas e o folclore do que chamou de acanalhamento que às vezes tem ocorrido” (CFC, 1975, p. 158). O parecer de Sábato Magaldi não foi imediatamente aprovado pelos conselheiros que pediram desde o adiamento do debate (Deolindo Couto) até mesmo vistas no processo (Djacir Menezes). O presidente do Conselho acatou o pedido dos demais conselheiros e adiou a discussão.

O parecer de Magaldi insere-se dentro das tradições liberais que consideram a liberdade de expressão um direito natural e inalienável. Em seu parecer, Magaldi fez questão de lembrar os casos onde considerava que a censura foi terrivelmente prejudicial à criatividade e ao desenvolvimento das artes, comparando os casos da Alemanha nazista e da União Soviética:

Onde houve censura cultural, os seus resultados foram daninhos e prejudicaram de forma desastrosa o desenvolvimento das artes. Veja-se em primeiro lugar a Alemanha nazista (...). Na União Soviética aconteceu o mesmo fenômeno. (MAGALDI, 1976, p. 122)

O registro da comparação entre os regimes nazistas e soviéticos para condenar a censura em seu parecer não é gratuito. Ao opor-se à censura, Magaldi também se afasta de posicionamentos identificados pelas direitas como práticas da extrema-direita e das esquerdas, sobretudo, do comunismo, numa atitude de auto-proteção. Opor-se a um novo instrumento censório não deveria ser confundido com uma possível simpatia pelas esquerdas. Ainda estávamos em 1976 e a repressão a qualquer opositor ou crítico ao regime era implacável.

O parecer do conselheiro Sábato Magaldi desagradou Djacir Menezes que escreveu e publicou mais um artigo no Boletim do Conselho Federal de Cultura intitulado “Até onde é livre a manifestação do pensamento?”. Logo no início do artigo, Djacir Menezes afirma ser preciso “exame mais demorado” sobre o papel da censura. Recorrendo a uma digressão jurídica sobre as liberdades naturais e constitucionais previstas, concluiu que a Constituição de 1969 reconhecia a necessidade de censura às publicações que atentassem contra a moral e os costumes. Para Djacir Menezes era legítimo o pedido do CEC/PE para que houvesse “(...) severa vigilância sobre desconfigurações que, por força de sua inautenticidade, constituem uma traição à memória nacional.” (CEC/PE apud. MENEZES, 1976MENEZES, Djacir. Até onde é a livre manifestação do pensamento? Boletim do Conselho Federal de Cultura. Rio de Janeiro: MEC, n. 21, janeiro a março de 1976, p. 70-74, p. 73). Por outro lado, Menezes afirma que Magaldi vê com apreensão uma futura censura cultural a ser exercida pela Comissão de Defesa do Folclore, órgão a quem caberia a tarefa. Para Menezes: “Como se exerceria a censura? No sentido de garantir a autenticidade do folclore.” (MENEZES, 1976MENEZES, Djacir. Até onde é a livre manifestação do pensamento? Boletim do Conselho Federal de Cultura. Rio de Janeiro: MEC, n. 21, janeiro a março de 1976, p. 70-74, p. 73). O conselheiro ainda reforça que a censura faz parte da trajetória do Brasil republicano, lembrando de sua existência no período democrático. Assim, em nome da tradição da censura; da existência de um aparato legislativo que a organiza; e da moral e dos costumes, Djacir Menezes mostra-se favorável ao projeto da censura cultural, opondo-se ao parecer de Sábato Magaldi. Neste caso, Djacir Menezes se apoiou no aparato jurídico e em supostas tradições para validar e legitimar o cerceamento das liberdades. A liberdade seria um valor, portanto, limitado. Dentro dessa perspectiva, as normas jurídicas e os costumes se sobreporiam à liberdade.

Em clássico artigo sobre a censura, Carlos Fico demonstra como a cultura política autoritária ultrapassou a caserna e está enraizada em diversos setores da sociedade. Ao analisar a posição de cidadãos comuns que enviavam cartas à censura cobrando mais controle sobre a produção cultural nacional constata que entre certos segmentos sociais havia uma pressão constante pela ampliação dos mecanismos discricionários (FICO, 2002FICO, Carlos. Prezada censura: cartas ao regime militar. Topoi - Revista de História. Rio de Janeiro: UFRJ. n°. 5, set. 2002, p. 251-286. Disponível em: < http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2237-101X2002000200251> acesso em: 05 jan. 2020. https://doi.org/10.1590/2237-101X003005011
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
, p. 274). No universo intelectual, também é possível identificarmos personagens profundamente vinculados a essa cultura política e que exigem do Estado a criação de mais instrumentos censórios, ainda que enquanto coletivo haja diferentes posicionamentos.

Na 492ª sessão plenária do Conselho Federal de Cultura, realizada em 07 de janeiro de 1976, votou-se em definitivo o parecer de Sábato Magaldi contrário à proposta de criação de uma censura cultural. Após intensas discussões em plenário, a maioria dos conselheiros votou a favor do parecer de Magaldi, rejeitando a proposta de criação de mais um instrumento censório. No debate, seriam contrários à criação de uma censura cultural aqueles intelectuais de tradição liberal ou ainda aqueles que ponderavam já haver uma censura prévia capaz de regular o assunto, não havendo necessidade de sobreposição: Afonso Arinos, Raymundo Faoro, Francisco de Assis Barbosa, Rachel de Queiroz, Manuel Diégues Júnior. Pedro Calmon manteve-se neutro. Manuel Diégues Júnior e Afonso Arinos discursaram claramente contra a censura, inclusive denunciando a existência de um “ (...) sistema repressivo e por entender que a alteração do sistema de censura cabe sempre ao poder executivo que tem das necessidades, não competindo ao Legislativo e muito menos a qualquer órgão de assessoria cultural nenhuma iniciativa de ampliação.” (CFC, 1976, p. 162). O tema, portanto, não era consensual; ainda que prevalecesse a tentativa de acomodação, evitando posicionamentos que afrontassem o regime.

1.3 - A censura e o Conselho Federal de Cultura na transição democrática (1980-1985)

A partir de 1979, o desmonte do aparato repressivo se tornaria uma questão sensível para o regime. A Lei da Anistia, aprovada neste mesmo ano, ainda que não tenha correspondido plenamente aos anseios dos grupos envolvidos na “Campanha da Anistia”, por não ter contemplado todos os presos políticos e pela garantia de impunidade aos agentes da repressão, favoreceu a ampliação das pressões para o avanço do processo de redemocratização.

No interior do Conselho Federal de Cultura, observaríamos um redirecionamento nas relações coma ditadura, sobretudo, em relação à censura de diversões públicas e ao que a historiadora Denise Rollemberg conceituou como “ausência de posição”, ou seja, uma atitude aparentemente alheia às violações de Direitos Humanos ou mesmo tolerante às arbitrariedades cometidas pela ditadura (ROLLEMBERG, 2010ROLLEMBERG, Denise. As trincheiras da memória: A Associação Brasileira de Imprensa e a ditadura (1964-1974). In: ROLLEMBERG, Denise e QUADRAT, Samantha Viz. (orgs.). A construção social dos regimes autoritários: legitimidade, consenso e consentimento no século XX. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2010. p. 97-144, p. 102). Aos poucos, a “ausência de posição” seria substituída por uma posição mais crítica à censura, porém, ainda considerando válida medidas classificatórias ou de censura à pornografia. Essa movimentação compõe a plasticidade da zona cinzenta que irá conformar desde críticas pontuais até apoios mais explicitados simultaneamente.

Para o Ministério da Justiça foi indicado Petrônio Portella, conhecido por atitudes moderadas e figura central no processo de desmonte da censura. Sua breve administração, não impediu que promovesse importantes revisões e liberalizações. Como demonstram Miliandre Garcia e Silvia Cristina Martins de Souza, este período de distensão favoreceu a adoção de reformas que favoreceram o fim da censura à grande imprensa e iniciou o desmonte da censura de diversões públicas. (GARCIA e SOUZA, 2019GARCIA, Miliandre e SOUZA, Silvia Cristina Martins de. Um caso de polícia (livro eletrônico). A censura teatral do Brasil nos séculos XIX e XX. Londrina: EDUEL, 2019., p. 195). Dentre as principais medidas que contribuíram para o fim da censura, as autoras destacam:

(...) nomeou José Vieira Madeira para diretor da DCDP, desativou o decreto-lei n.1.077, extinguiu a censura de livros e revistas, regulamentou os 15 artigos da lei n. 5.536 e instituiu finalmente o CSC. (GARCIA e SOUZA, p. 196)

Adonias Filho, então presidente do CFC, solicitou ao conselheiro Miguel Reale que apresentasse parecer sobre o projeto de lei n.55/79 que previa a extinção da censura aos livros e obras teatrais. O parecer seria uma resposta à consulta do Ministro da Educação e Cultura Eduardo Portella sobre o projeto. O documento deveria ser encaminhado à subchefia da Casa Civil da Presidência da República que solicitara ao Ministério da Educação e Cultura uma posição sobre o tema. A partir de então, os membros do conselho falavam abertamente sobre a necessidade de reformular a legislação, romper com as normas vigentes durante o período de exceção e reconstruir o Estado de Direito, ainda que nada disso significasse o abandono por completo de instrumentos censórios. Os cuidados com as palavras e seus sentidos serão substituídos pela referência constante à existência de um Estado autoritário e a urgência de reconstrução da normalidade democrática. Deste momento em diante, os membros do Conselho se associaram à chamada “memória hegemônica” e se tornam defensores incontestes do Estado de direito.

O historiador Marcos Napolitano ao analisar as memórias sobre a ditadura em suas diversas fases propôs que a construção de uma memória hegemônica de caráter majoritariamente liberal vai ocorrer a partir do final dos anos de 1970, possível graças ao distanciamento cada vez maior dos setores liberais e dos militares. Como destaca o autor,

Considero a memória hegemônica sobre o regime aquela construída no processo de afastamento político entre liberais (cujos espaços de ação eram de associações profissionais liberais, sindicatos empresariais e a imprensa) e os miliares no poder. Este divórcio entre antigos sócios na ocasião do golpe de 1964 foi esboçado ainda nos anos de 1960, mas plenamente caracterizado apenas no final dos anos de 1970, quando o campo liberal passou a criticar sistematicamente a censura à livre expressão, o arbítrio discricionário do campo legal e o estatimo (na economia) (NAPOLITANO, 2015NAPOLITANO, Marcos. Recordar é vencer. As dinâmicas e vicissitudes da construção da memória sobre o regime militar brasileiro. Antíteses, v. 8, n. 15esp., p. 09-44, nov. 2015, < http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/antiteses/article/view/23617>, acesso em: 15 jan. 2020. DOI: 10.5433/1984-3356.2015v8n15espp09
http://www.uel.br/revistas/uel/index.php...
, p. 17).

Neste processo de construção de uma memória hegemônica, podemos incluir os intelectuais que participaram ativamente do regime, em especial, os membros do Conselho. O curioso é que nem todos vinham das tradições liberais, mas num piscar-de-olhos se transformaram em porta-vozes dos direitos civis e políticos. Se até meados dos anos de 1970, justificavam e legitimavam a censura com base nas tradições, no aparato jurídico vigente e na defesa de padrões morais, a partir do início dos anos de 1980, com o avançar do processo de redemocratização, passaram a ser críticos mordazes do aparato censório vigente e reivindicavam a necessidade de mudança na legislação, ainda que moderadamente.

Miguel Reale foi escolhido por Adonias Filho, presidente do Conselho, para emitir o primeiro parecer do órgão sobre a possibilidade de extinção da censura de livros e obras teatrais. O conselheiro destaca a necessidade de promover revisões legislativas condizentes com os novos tempos sem, contudo, defender a extinção por completo da censura. Além disso, adota posições distintas ao tratar da censura de livros e periódicos, por um lado, e dos espetáculos teatrais, por outro. O parecer ainda versava sobre a existência de mecanismos de controle sobre a produção cultural existentes durante a democracia. Comparava as Constituições de 1946 e 1969, demonstrando que a última não inovava em relação ao período democrático, a não ser por acréscimo quando incluiu no quadro de obras a serem censuradas “as publicações e exteriorizações contrárias à moral e aos bons costumes.” (REALE, 1980, p. 182). Para Reale, considerando que mesmo em regimes democráticos há mecanismos de vigilância e coerção, a recomendação mais equilibrada seria suspender a censura prévia, mas manter instrumentos de controle para evitar a circulação de “obras atentatórias aos bons costumes ou de pregação de processos violentos para subverter a ordem pública e social.” (REALE, 1980, p. 183). Novamente, questões de natureza moral e também política são manifestadas como inerentes ao exercício da censura cultural. Portanto, a proposta também incorpora aspectos políticos, considerando-os necessários à manutenção da ordem social, evitando possíveis atos subversivos.

Assim, para Reale, a cultura também é o lugar de promoção de projetos políticos; portanto, a natureza da censura não poderia estar circunscrita apenas ao aspecto moral. Reale ainda menciona a proposta de supressão total da censura prévia aos espetáculos teatrais imposta pela lei 5.536, de 21 de novembro de 1968, substituindo-a por um caráter classificatório, não executada devido à promulgação do Ato Institucional n.5, em dezembro de 1968. Por fim, o conselheiro considera o projeto descabido, considerando a censura compatível com um regime democrático. (REALE, 1980, p. 184). Afonso Arinos, presidente do Conselho, endossa o parecer de Reale, inclusive considerando o projeto proposto inconstitucional. Afinal, modificar uma lei complementar, sem alterar a Constituição, tornava-o inconstitucional. Sem desconsiderar a importância da liberdade, menciona as constituições democráticas europeias que limitam essa liberdade quando as produções promovem preconceitos, incentivam a subversão ou a propaganda de guerra. Ao mesmo tempo, insiste na necessidade urgente de uma nova Constituição para que o Estado de direito pudesse ser restaurado. (ARINOS, 1980, p. 187). O conselheiro Arthur Cezar Ferreira Reis, que também exerceu o cargo de governador do Amazonas como interventor durante a ditadura, comentou o parecer. Optou por lembrar que a censura aos livros não havia sido tão terrível, narrando o pedido do Conselho ao Ministério da Justiça de não executar a portaria que obrigava a submissão de livros à censura prévia. Sábato Magaldi, ao contrário de Miguel Reale e Afonso Arinos, afirma que já estava sendo providenciada uma revisão de toda estrutura da censura e que na prática o estabelecimento da censura classificatória estava funcionado bem. A posição mais liberalizante de Magaldi entraria novamente em conflito com os intelectuais conservadores do Conselho. Arthur Reis pediu a palavra e em resposta aquilo que considerou uma provocação do colega ao demais membros, lembrou que nenhum conselheiro havia aceito integrar o Conselho Superior de Censura, como um indicativo de que todos ali eram contrários à repressão. Magaldi, no entanto, respondeu criticando essa decisão, lembrando a oportunidade perdida de tentar reverter algumas das posições da censura. Insistiu que a censura classificatória estava funcionando muito bem. O conselheiro Marcio Tavares D’Amaral endossou o parecer de Reale e concordou com Afonso Arinos. Defendia o fim da censura prévia, mas apoiava a censura classificatória, no intuito de proteger certas audiências incapazes de avaliar os propósitos de determinados espetáculos - como as crianças, por exemplo. O conselheiro Clarival do Prado Valladares foi o único conselheiro que apoiou o parecer de Sabato Magaldi, propondo uma reflexão sobre as mudanças nos costumes e a impossibilidade de se evitar que diferentes faixas etárias tenham acesso aos mais variados produtos culturais, sobretudo, programas de TV. Ao final da discussão, chegou-se à conclusão, sem unanimidade, de que o projeto de supressão da censura prévia era inconstitucional tal como apresentado. Rejeitaram-no. Na prática, a negativa do CFC ao projeto não impediu que fosse decretado o fim da censura a livros e revistas. O interessante, neste caso, é observar que a despeito da abertura política em curso e da adoção pelo ministério da Justiça de medidas mais liberalizantes, os conselheiros pareciam ser menos flexíveis do que o próprio executivo.

No ano de 1982, o debate da censura retornaria ao interior do Conselho. Dois artigos foram publicados no Boletim do Conselho Federal de Cultura, “Cultura e Censura” de Raymundo Moniz de Aragão; e “Censura: das ideias ou da porneia”, reunindo a opinião de vários conselheiros para a construção de uma posição oficial do CFC. O artigo de Raymundo Moniz de Aragão foi redigido para atender um pedido do Ministro da Educação e Cultura que solicitava contribuição do Conselho na formulação de uma política de proteção da moral e dos costumes nas artes. Como afirmam Miliandre Garcia e Silvia Souza, entre 1980 a 1985 são promovidos intensos debates sobre a questão da censura, com vários recuos no seu desmonte, sobretudo, se compararmos às iniciativas empreendidas pela curtíssima gestão de Petrônio Portella no ano de 1979 (GARCIA e SOUZA, 2019GARCIA, Miliandre e SOUZA, Silvia Cristina Martins de. Um caso de polícia (livro eletrônico). A censura teatral do Brasil nos séculos XIX e XX. Londrina: EDUEL, 2019.).

Raymundo Moniz de Aragão cita os diversos documentos produzidos pelo Conselho, assim como textos de colegas membros do conselho para embasar sua discussão acerca do tema. O debate, então, se situou na relação entre a liberdade individual e o bem comum. Ainda que defendesse que ao Estado cabe promover a cultura sem dirigismo, garantindo o seu desenvolvimento, era preciso igualmente observar que:

(...) a ação do Estado se exercerá face a ela, por forma que atenda ao objetivo da promoção do bem comum. Esta colocação é absolutamente justificada, pois a função essencial do Estado é conciliar o máximo possível de liberdade individual e coletiva, ao interesse maior do bem comum (ARAGÃO, 1982ARAGÃO, Raymundo Moniz. Cultura e censura. Boletim do Conselho Federal de Cultura. Rio de Janeiro: MEC, n. 47, abril-junho de 1982, p. 41-49, p. 43).

A partir de então, Raymundo Moniz de Aragão faria distinção entre criação cultural - está livre de qualquer dirigismo e constrangimento - e circulação cultural, ou seja, transmissão dos produtos culturais, cabíveis de intervenção do Estado caso atentassem contra o bem comum.

Estabelecido este ponto fundamental, da legitimidade da intervenção do Estado, para coibir, no plano das atividades culturais, a difusão da contracultura, cabe indagar se esta compreendida, nessa atribuição a censura - use-se claramente o termo adequado - à imoralidade, eventualmente inserida na criação literária ou artística (ARAGÃO, 1982ARAGÃO, Raymundo Moniz. Cultura e censura. Boletim do Conselho Federal de Cultura. Rio de Janeiro: MEC, n. 47, abril-junho de 1982, p. 41-49, p.46).

Novamente citando Afonso Arinos, questionava se era cabível ao Estado coibir as manifestações artísticas e com isso reprimir as liberdades individuais. A resposta positiva a esta indagação teria vindo do papa João Paulo II. O discurso cristão, então, será acionado para justificar a necessidade da censura na manutenção da civilização. O combate a imoralidade seria o único caso onde o uso da censura seria plenamente justificável. A imoralidade seria, por essência, anticultura4 4 O termo anticultura aqui utilizado aparece em contraposição à cultura enquanto construção basilar da trajetória do sujeito histórico em sociedade com sua capacidade inventiva e de criação. Não se trata, portanto, de conceito similar ao de contracultura. Anticultura seria um ataque à cultura e não a proposição de uma cultura alternativa à cultura massificada moderna como pretende os promotores da contracultura. , ou seja, ao invés de contribuir para a elevação dos espíritos, ela os denegriria. Diante da imoralidade, “a neutralidade não basta.” E, continua:

A conclusão há que ser mais rigorosa: admitida a imoralidade como contracultura, ela tem de ser coibida pelo Estado em sua transmissão, segundo normas cuidadas e precisas, que tenham em conta uma variada gama de fatores, desde a gravidade da aberração moral, ao poder de difusão do instrumento que a veicula, ponderando do mesmo passo a sua disseminação indiscriminada, cautelas que limitem o seu alcance a pessoas ou grupo intelectual e emocionalmente preparados e interessados no seu conhecimento, exclusão de acesso a este conhecimento de determinados setores da coletividade, principalmente em razão do discernimento relacionado à faixa etária etc (ARAGÃO, 1982ARAGÃO, Raymundo Moniz. Cultura e censura. Boletim do Conselho Federal de Cultura. Rio de Janeiro: MEC, n. 47, abril-junho de 1982, p. 41-49, p. 47).

Os alvos do Conselho seriam fundamentalmente a pornografia e o erotismo. O combate a esse tipo de produção, considerada o lado nefasto do avanço da cultura de massas e dos interesses comerciais, dominava o debate. No entanto, a definição de pornografia e erotismo nunca foi proposta pelos conselheiros, permitindo uma interpretação bastante elástica e subjetiva desses conceitos, identificados apenas como diametralmente opostos à tradição e aos costumes. A conclusão do trabalho realizado por Moniz de Aragão foi organizada em quatro tópicos, identificando o duplo papel do Estado - promotor da cultura e censor da anticultura. Assim ao Estado caberia: a) fomentar as criações artísticas e literárias, sem exercer sobre elas nenhum dirigismo dogmático ou ideológico; 2) incentivar a circulação da produção nacional com o objetivo de desestimular o consumo de um produção estrangeira de massas que não contribui com o desenvolvimento da cultura; 3) no âmbito da circulação e transmissão, censurar qualquer criação artística que usando de imoralidade promova a anticultura, entendida aqui como uma deformação do processo cultural.

E a quem caberia o exercício da censura? Ao Conselho Federal de Cultura e a Secretaria de Cultura, responderia Raymundo Moniz de Aragão. Ao CFC caberia a normatização da censura, enquanto à Secretaria de Cultura, a sua execução através da reunião de especialistas da área cultural com “ilibada reputação” (ARAGÃO, 1982ARAGÃO, Raymundo Moniz. Cultura e censura. Boletim do Conselho Federal de Cultura. Rio de Janeiro: MEC, n. 47, abril-junho de 1982, p. 41-49, p. 49).

O próximo artigo, “Censura: das ideias ou da porneia?” reuniria a opinião de vários conselheiros sobre a exposição de Raymundo Moniz de Aragão. Buscava-se construir um parecer oficial e consolidado sobre o tema da censura para posterior envio ao ministro da Educação e Cultura. Participaram do debate os conselheiros: Afonso Arinos, Cecília Maria Westphalen, Clarival do Prado Valladares, Djacir Menezes, Heloísa Lustosa, Herberto Sales, José Candido de Melo Carvalho, Rachel de Queiroz, Raymundo Moniz de Aragão, Sábato Magaldi. O primeiro a se posicionar foi Djacir Menezes, afirmando que a proposta de Raymundo Moniz de Aragão refletia a posição da maioria dos membros daquele colegiado. Em seu parecer, repudiava qualquer tipo de imoralidade, identificando-a como exemplo de anticultura. Mas, dizia-se um defensor da liberdade intelectual, considerando-a necessária à promoção da cultura (MENEZES, 1982MENEZES, Djacir. Censura: das ideias ou da porneia. Boletim do Conselho Federal de Cultura. Rio de Janeiro: MEC, n. 47, abril-junho de 1982, p. 50-74, p. 52). Afonso Arinos, em seguida, reforça o papel do Estado na regulação da vida coletiva e, portanto, como entidade responsável por coibir manifestações individuais “excessivas e não condizentes com o espírito da época” (SOUZA, 1982, p. 53). No entanto, lembra que o pensamento deveria ser livre e que a censura só poderia ser exercida no caso de subversão da ordem e preconceito de raça e cor. Em seguida, Rachel de Queiroz se posiciona a favor da existência da censura, considerando-a um “mal necessário” na garantia da ética. Após a fala de Afonso Arinos, Raymundo Moniz de Aragão, novamente invocou o papa João Paulo II, reforçando sua posição de que a cultura seria fruto das nossas tradições, circunscritas, segundo ele, a nossa formação cultural: ocidental e cristã. (ARAGÃO, 1982ARAGÃO, Raymundo Moniz. Cultura e censura. Boletim do Conselho Federal de Cultura. Rio de Janeiro: MEC, n. 47, abril-junho de 1982, p. 41-49, p. 56) Ao final das discussões, o presidente do Conselho, Adonias Filho decidiu por encaminhar o seguinte parecer ao ministro: “O Ministério da Educação, fique com absoluta liberdade, através dos órgãos específicos e das autoridades que os ocupem, de reprimir, dentro do conceito ético, o que seja permissivo ou não” (FILHO, 1982, p. 57). O conselheiro Sábato Magaldi também se pronunciou, se colocando terminantemente contra a censura, apontando seus inúmeros erros e ressaltando como o aparato repressivo era insidioso em relação à cultura. Para Magaldi,

Ademais, não será fácil estabelecer o que julga imoral no campo artístico. Poucos temas comportam tanta subjetividade. O que é imoral para um, não é para outro, e vice-versa. Não nos consideramos mais judiciosos do que os censores que interditaram Alencar. A censura já contou em seus quadros, no Brasil, intelectuais do maior gabarito, e não foram menores os erros que cometeu. Por que os especialistas atuais seriam menos imunes a equívocos? Toda prudência nesse particular me parece recomendável. (MAGALDI, 1982, p. 64)

Sábato Magaldi achava mais adequado cumprir a lei n. 5.536, de 1968, que optava pela censura classificatória. Cabe lembrar que os artigos da Lei n. 5536 que regulamentavam a criação do Conselho Superior de Censura só foram implementados a partir de 1979. O conselheiro defendia a permanência da censura sob jurisdição do recém instalado Conselho Superior de Censura que reunia representantes de diferentes instituições intelectuais e de imprensa, argumentando que a transferência para o MEC feria o previsto pela Constituição de 1969 em vigência no país. Quanto à imoralidade e à pornografia, o próprio desenvolvimento da cultura iria levar ao desinteresse por esse tipo de produção, não havendo motivos para se ampliar a ação da censura sob justificativa de combate a este tipo de produto. Portanto, o mais adequado seria combater a anticultura oferecendo cultura, ao invés de propor mecanismos censórios que inibiam a produção cultural e a criatividade. O conselheiro Clarival Valladares apoiou irrestritamente o discurso de Sábato Magaldi, informando que este era o posicionamento de todos os membros da Câmara de Artes. Fez longa digressão sobre a necessidade de manter a cultura livre, discordando de Raymundo Moniz de Aragão e de Djacir Menezes. Também citou André Malreaux, Ministro da Cultura da França, fonte de inspiração constante entre os conselheiros, em especial, daqueles que defendiam a existência de algum mecanismo de censura. Clarival Valladares, entretanto, advertiu:

Quando Malreaux foi pressionado para definir cultura, ou melhor para definir códigos de censura, não por uma saída heroica, mas por uma sinceridade profundo pensamento, ele sistematizou a censura possível de ser admitida. Essa censura, conceituada por Malreaux, baseia-se nestes três princípios: não ofender os sentimentos nacionais de outrem; não ofender os sentimentos religiosos de outrem; não ofender os sentimentos raciais de outrem. Esse é o único compromisso possível de admitir-se dentro um âmbito que seja censura. E isto não é anticultura. Não é estética imoral (VALLADARES, 1982, p. 71).

Se é preciso vigilância, para Valladares, não seria sobre a cultura popular, mas sobre a obscenidade e a imoralidade importadas e de alto custo que são vendidas nas grandes capitais para uma elite consumidora destes produtos. Da mesma forma, o Estado precisaria regular a televisão e o videocassete, segundo ele, instrumentos capazes de divulgar pornografia importada.

Após longa sessão, Adonias Filho, então presidente do Conselho, encerra a reunião, informando que o parecer de Raymundo Moniz de Aragão, com as correções propostas por Afonso Arinos, seria a base do ofício que o colegiado enviaria ao Ministro da Educação e Cultura com o seu posicionamento oficial. Sábato Magaldi, no entanto, fez questão de registrar no parecer sua discordância, propondo que “o Executivo sancione o projeto de Lei 3.122/80, de autoria do deputado Álvaro Valle, que extingue a censura prévia para livro, teatro e cinema, incorporando as emendas das comissões de Constituição e Justiça e Educação e Cultura da Câmara dos Deputados” (CFC, 1982, p. 171). A inexistência de consenso neste caso, demonstra a heterogeneidade de posicionamentos e, sobretudo, as diferenças entre as trajetórias profissionais e geracionais dos conselheiros a partir de 1975. Sábato Magaldi já pertencia a uma nova geração, com larga experiência e reconhecimento como crítico literário, e desvinculado do modernismo-conservador que formou a primeira geração de membros do Conselho Federal de Cultura.

Outro projeto que seria avaliado pelo CFC, a pedido do ministro da Educação e Cultura, seria o proposto pelo senador biônico Murilo Badaró para criação do Certificado de Liberação Restrita pela Censura Federal. O Certificado seria emitido quando o filme tivesse natureza pornográfica ou exacerbada violência, tendo sua circulação restrita a algumas salas de cinema. Os membros do Conselho apoiaram a iniciativa e propuseram uma sobretaxação a esses filmes, cujo resultado seria a elevação do preço do ingresso e o desestímulo a este tipo de produção cinematográfica. O parecer foi elaborado por Maria Alice Barroso, vinculada à Câmara de Artes e aprovada sem discussões pelo plenário. (CFC, 1983, p. 154).

O projeto seguinte, encaminhado ao Conselho para que emitisse opinião, foi elaborado pelo senador Gastão Müller, e pretendia censurar “obras literárias, ou versão cinematográfica, ou representação que divulgue memórias de criminoso condenado pela justiça, relativos a delito por ele praticado”. Para Afonso Arinos, relator do parecer, tratava-se de uma questão de moral social da qual o Conselho não poderia negar apoio, sendo favorável ao projeto de lei proposto. O parecer foi aprovado na reunião plenária de 05 de janeiro de 1984. Ainda seria analisado o projeto de lei do deputado Sinval Guazzelli, que altera o decreto 2.0493/46, responsável por regulamentar o Serviço de Censura de Diversões Públicas no que diz respeito à radiodifusão. O projeto de Guazzelli substituía a censura prévia pelo envio posterior da programação executada, evitando atrasos na organização das rádios, cuja programação era sempre mais dinâmica do que a capacidade da censura de previamente aprovar os conteúdos dos programas. Sábato Magaldi, relator do parecer como representante da Câmara de Artes, aprovou a proposta da mudança da censura prévia para a censura a posteriori tal como proposto no projeto de lei. Contudo, o parecer seguiu para a Comissão de Legislação e Normas, sendo avaliado por Miguel Reale. O novo parecerista se mostrou contrário ao projeto, informando que feria a legislação em vigor e que se tratava de uma manobra do deputado para permitir que as emissoras de rádio e TV pudessem evitar as normas que estabeleciam pré-condições para emissão da autorização do Serviço de Censura (REALE, 1984, p. 125).

O parecer de Miguel Reale foi aprovado por unanimidade na 890ª sessão plenária, realizada em 04 de abril de 1984, sob o argumento do projeto ser juridicamente impróprio.

Outro projeto de lei de autoria do deputado Luis Sefair que regulava a exibição das telenovelas, considerando que até às 21h só seriam aceitas telenovelas classificadas pela censura como “livres”, ou seja, destinada a todas as idades e exigia-se um mínimo de 20% de produções dedicadas à história pátria recebeu parecer favorável, alterando-se a redação.

Na 952ª sessão plenária, realizada em 05 de agosto de 1985, Sábato Magaldi relatou com enorme entusiasmo ter participado de cerimônia com o ministro da Justiça, Fernando Lyra, onde foi anunciado o “fim do ciclo da censura a que estava submetida a arte brasileira”. E completou, informando que a Assembleia Constituinte haveria que tratar dessa nova e feliz realidade para as artes. Após 18 anos de centralização do aparato repressivo (1967-1985), finalmente os ares da liberdade pareciam ter retornado ao campo artístico e cultural. Nenhum outro conselheiro fez nenhuma menção à informação trazida. A questão da censura era importante para vários deles, ainda que circunscrita ao que consideravam imoralidade e pornografia. O problema da censura continuaria provocando debates no interior do Conselho, não havendo consenso sobre a temática. A questão da censura para preservação dos chamados bons costumes lhes era cara.

Em 1985, já em plena democracia, após a posse do presidente José Sarney, Josué Montello, então vice-presidente do Conselho transmitia a vice-presidência para Eduardo Portella, eleito pelos companheiros para o cargo. O discurso de Montello é esclarecedor da mudança do regime político. Montello havia sido um dos maiores responsáveis pela criação e funcionamento do Conselho, sendo o primeiro presidente do CFC. Em diversos momentos ao longo de sua trajetória no Conselho prestou homenagens a Castelo Branco. Mas, eram outros tempos! Em 1985, ao transferir o seu cargo para o novo vice-presidente fez questão de enfatizar que ao longo dos anos as tradições democráticas haviam marcado o trabalho daquele plenário:

Esta tradição, minhas senhoras e meus senhores, a despeito de todo o período autoritário que a história política do país superou, foi mantida, por este colegiado sempre se comportou de tal maneira, acima de todas as divergências de natureza política, que resguardou, em nome da cultura, os princípios básicos de uma democracia (...). Vou confiá-lo a Eduardo Portela, sabendo que ele continuará as tradições desta instituição, sob, hoje, a plenitude democrática da Nação, sem censura, cada um podendo manifestar, livremente, o seu pensamento (...) (MONTELLO, 1985, p. 94).

A memória hegemônica ia se consolidando ao mesmo tempo em que um trabalho de memória sobre o vivido ia reconstruindo as trajetórias desses intelectuais que por anos rabalharam para o regime, reverenciaram a figura de Castelo Branco e acomodaram-se aos anos em que vigoraram o Ato Institucional n.5. Era preciso requalificar a presença no interior do Estado e justificar a participação ativa num regime autoritário. A memória hegemônica foi lançando sombras sobre a presença desses civis, seus posicionamentos ambivalentes, suas posições envergonhadas, suas proximidades com o regime. A “superação” do passado autoritário no discurso de Montello vinha carregada de um processo de silenciamento que deveria apagar as memórias incômodas, substituindo-as pela resistência. Sim, o discurso de Montello aponta para uma inventada resistência ao anunciar que foram guardiões das tradições democráticas. Uma resistência pacífica, que guardaria o que teríamos de mais precioso, um suposto ethos democrático. Este trabalho de memória, tal como demonstrou Daniel Aarão Reis, transformou a ditadura numa experiência singular, considerada um hiato na história política do Brasil, com civis, de um lado, e militares, de outro (REIS, 2004, p. 30). Essa memória promoveu o esquecimento de que muitos civis foram aliados de muitas horas. Como propôs Denise Rollemberg:

As ditaduras, os regimes autoritáriosnão se sustentam exclusivamente por meio da repressão. São produtos da própria sociedade e, portanto, não lhe são estranhos. Legitimam-se em expressivos segmentos sociais. Ou ainda, se sustentam na zona cinzenta, o espaço entre o apoio e a rejeição, o lugar no qual é possível atuar nos dois sentidos (ROLLEMBERG, 2010ROLLEMBERG, Denise. As trincheiras da memória: A Associação Brasileira de Imprensa e a ditadura (1964-1974). In: ROLLEMBERG, Denise e QUADRAT, Samantha Viz. (orgs.). A construção social dos regimes autoritários: legitimidade, consenso e consentimento no século XX. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2010. p. 97-144, p. 130)

Neste sentido, este artigo pretendeu recuperar parte da trajetória de intelectuais da cultura que empenhados na promoção de políticas culturais durante a ditadura foram capazes de negociar com a estrutura repressiva, acomodar-se à lógica autoritária do regime. Eles teciam críticas e também apoios, sem jamais optar por decisões radicais que ferissem a lógica do regime ditatorial. Essa atuação na burocracia também contribuiu para o funcionamento do Estado ditatorial ao longo de 21 anos, dando-lhe uma aparente normalidade. A ditadura não durou 21 anos apenas sustentada na repressão. Uma miríade de civis, no interior do aparelho do Estado, fez o trabalho cotidiano; endossou o projeto de modernização autoritária e conservadora; propôs ampliar a repressão para além do desejo dos militares; criticou envergonhadamente; contentou-se com medidas administrativas ineficazes; e, por fim, manteve a rotina administrativa, favorecendo a manutenção do Estado autoritário.

  • Coordenação do Dossiê Direitas nos Estados Unidos e Brasil durante a Guerra Fria
    Mary Anne Junqueira e Marcos Napolitano
  • 1
    Artigo não publicado em plataforma de preprint. Todas as fontes e referências bibliográficas estão ao final do artigo.
  • 3
    Em 2000, Daniel Aarão Reis propôs a urgência em investigarmos a participação dos civis na consolidação do regime, chamando atenção para as relações de ambivalência e os consensos entre a sociedade civil e os militares. Nesta perspectiva, busca romper com a simples dicotomia resistência versus repressão construída por certa memorialística acerca da ditadura. Em trabalhos mais recentes, vem insistindo na necessidade de consideramos a dinâmica dos tempos na compreensão do autoritarismo brasileiro, atentando para aspectos como a longa duração, com ênfase no conceito de cultura política. Ver: AARÃO REIS, Daniel. Ditadura, esquerda e sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000AARÃO REIS, Daniel. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000. 1ª edição. 1ª edição. Rodrigo Patto Sá Motta vem desenvolvendo o conceito de modernização autoritário conservadora para compreender o período da ditadura, que utilizamos aqui na compreensão da promoção de políticas culturais pelo regime pelos membros do Conselho Federal de Cultura. O conceito expõe uma tensão contínua inerente ao regime: o processo de desenvolvimento tecnológico e a urbanização solapavam os valores tradicionais de uma sociedade em profunda transformação. Esses valores tradicionais, associados ao nacionalismo, seriam a base das políticas culturais empreendidas pelo Conselho, marcadas pela valorização do patrimônio luso-brasileiro, pelos clássicos da literatura, pelo folclore e pela defesa do regionalismo como síntese da nacionalidade. Sobre o conceito de modernização autoritário conservadora e as tensões intrínsecas criadas por esse modelo de desenvolvimento ver: MOTTA, Rodrigo Patto Sá. A modernização autoritário-conservadora nas universidades e a influência na cultura política. In: AARÃO REIS, Daniel; RIDENTI, Marcelo. MOTTA, Rodrigo Patto Sá. A ditadura que mudou o Brasil: 50 anos do golpe de 1964. 2ª EDIÇÃO, Rio de Janeiro, Zahar, 2014. P. 48-65, p.51)
  • 4
    O termo anticultura aqui utilizado aparece em contraposição à cultura enquanto construção basilar da trajetória do sujeito histórico em sociedade com sua capacidade inventiva e de criação. Não se trata, portanto, de conceito similar ao de contracultura. Anticultura seria um ataque à cultura e não a proposição de uma cultura alternativa à cultura massificada moderna como pretende os promotores da contracultura.

Referências Bibliográficas

  • AARÃO REIS, Daniel. Ditadura e sociedade: as reconstruções da memória. In: AARÃO REIS, Daniel, RIDENTI, Marcelo, MOTTA, Rodrigo Patto Sá. O golpe militar e a ditadura: quarenta nãos depois (1964-2004) São Paulo: EDUSC, 2004, p. 29-52
  • AARÃO REIS, Daniel. Ditadura militar, esquerdas e sociedade Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000. 1ª edição
  • AQUINO, Maria Aparecida de. Censura, imprensa, estado autoritário (1968-1978) Bauru: Edusc, 1999.
  • CORDEIRO, Janaína Martins. A ditadura em tempos de milagre: comemorações, orgulho e consentimento Rio de Janeiro: FGV, 2015
  • FICO, Carlos. Prezada censura: cartas ao regime militar. Topoi - Revista de História Rio de Janeiro: UFRJ. n°. 5, set. 2002, p. 251-286. Disponível em: < http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2237-101X2002000200251> acesso em: 05 jan. 2020. https://doi.org/10.1590/2237-101X003005011
    » http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2237-101X2002000200251» https://doi.org/10.1590/2237-101X003005011
  • GARCIA, Miliandre e SOUZA, Silvia Cristina Martins de. Um caso de polícia (livro eletrônico). A censura teatral do Brasil nos séculos XIX e XX Londrina: EDUEL, 2019.
  • GARCIA, Miliandre. Quando a moral e a política se encontram: a centralização da censura de diversões públicas e a prática da censura política na transição dos anos de 1960 para os 1970. Dimensões, UFES, vol. 32, 2014, p. 79-110 < http://periodicos.ufes.br/dimensoes/issue/view/503> acesso em: 12 dez. 2019
    » http://periodicos.ufes.br/dimensoes/issue/view/503
  • GOMES, Angela Maria de Castro. História e Historiadores Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1996;
  • LABOURIE, Pierre. 1940-1944. Os franceses do pensar-duplo. ROLLEMBERG, Denise e QUADRAT, Samantha. A construção social dos regimes autoritários: Europa volume I. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2010, 3v. p.31-45
  • NAPOLITANO, Marcos. 1964: História do regime militar brasileiro São Paulo: Contexto, 2014
  • NAPOLITANO, Marcos. Recordar é vencer. As dinâmicas e vicissitudes da construção da memória sobre o regime militar brasileiro. Antíteses, v. 8, n. 15esp., p. 09-44, nov. 2015, < http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/antiteses/article/view/23617>, acesso em: 15 jan. 2020. DOI: 10.5433/1984-3356.2015v8n15espp09
    » https://doi.org/10.5433/1984-3356.2015v8n15espp09» http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/antiteses/article/view/23617
  • NAPOLITANO, Marcos. Aporias de uma dupla crise. História e memória diante dos novos enquadramentos teóricos. Saeculum - Revista de História, vol. 39, n.39, p. 205-218, jul/dez de 2018. <https://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/srh/article/view/40930> Acesso em: 10 out. 2019 https://doi.org/10.22478/ufpb.2317-6725.2018v39n39.40930
    » https://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/srh/article/view/40930» https://doi.org/10.22478/ufpb.2317-6725.2018v39n39.40930
  • RIDENTI, Marcelo. A relativa hegemonia cultura de esquerda e a revista Cadernos Brasileiros na época de 1968. MÜLLER, Angélica. 1968 em movimento Rio de Janeiro: FGV Editora, 2018. p. 49-74
  • ROLLEMBERG, Denise. As trincheiras da memória: A Associação Brasileira de Imprensa e a ditadura (1964-1974). In: ROLLEMBERG, Denise e QUADRAT, Samantha Viz. (orgs.). A construção social dos regimes autoritários: legitimidade, consenso e consentimento no século XX Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2010. p. 97-144
  • ROLLEMBERG, Denise. Memória, Opinião e Cultura Política. A Ordem dos Advogados do Brasil sob a Ditadura (1964-1974). In: Daniel Aarão Reis; Denis Rolland. (Org.). Modernidades Alternativas 1ed. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 2008, v. 1, p. 57-96.
  • MOTTA, Rodrigo Patto Sá. A modernização autoritário-conservadora nas universidades e a influência da cultura política. In: AARÃO REIS, Daniel, RIDENTI Marcelo e SÁ MOTTA, Rodrigo Patto. A ditadura que mudou o Brasil: 50 anos do golpe de 1964 Rio de Janeiro: Zahar, 2014, p.48-65
  • OLIVEIRA, Lúcia Maria Lippi. Cultura é patrimônio. Um guia. Rio de Janeiro, editora FGV, 2008;
  • SCHWARZ, Roberto. O pai de família e outros estudos Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
  • SIRINELLI, Jean-François. Os intelectuais. REMÓND, René. Por uma História Política Rio de Janeiro: FGV, 2006.
  • SOARES, Glaucio Ary Dillon. A censura durante o regime autoritário. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 4, n. 10, p. 21-43, junho de 1989. < http://www.anpocs.com/images/stories/RBCS/10/rbcs10_02.pdf> acesso em: 02 jan 2020
    » http://www.anpocs.com/images/stories/RBCS/10/rbcs10_02.pdf
  • STEPHANOU, Alexandre Ayub. Censura no Regime Militar e Militarização das Artes Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001.
  • ARAGÃO, Raymundo Moniz. Cultura e censura. Boletim do Conselho Federal de Cultura Rio de Janeiro: MEC, n. 47, abril-junho de 1982, p. 41-49
  • CONSELHO FEDERAL DE CULTURA. 492ª sessão plenária do Conselho Federal de Cultura, realizada em 07 de janeiro de 1976. Boletim do Conselho Federal de Cultura Rio de Janeiro: MEC, n. 21, janeiro a março de 1976.
  • CONSELHO FEDERAL DE CULTURA. Ata da 11ª sessão plenária realizada em 25 de abril de 1967. Cultura Rio de Janeiro: MEC, ano I, n°2, maio de 1967. p. 67-69
  • CONSELHO FEDERAL DE CULTURA. Ata da 154ª sessão plenária realizada em 26 de agosto de 1969. Cultura Rio de Janeiro: MEC, ano III, n.°26, agosto de 1969. pp.82-85.
  • CONSELHO FEDERAL DE CULTURA. Ata da 489ª sessão plenária realizada em 04 de dezembro de 1975. Boletim do Conselho Federal de Cultura Rio de Janeiro: MEC, ano IV, n. 18, 1975, p.151-60
  • CONSELHO FEDERAL DE CULTURA. Ata da 66ª sessão plenária realizada em 22 de dezembro de 1967. Cultura Rio de Janeiro: MEC, ano II, n°7, janeiro de 1968. pp.91-94
  • CONSELHO FEDERAL DE CULTURA. Ata da 74ª sessão plenária realizada em 20 de março de 1968. Cultura Rio de Janeiro: MEC, ano II, n.° 10, março de 1968, pp.105-109
  • CONSELHO FEDERAL DE CULTURA. Ata da 952ª sessão plenária, realizada em 05 de agosto de 1985. Boletim do Conselho Federal de Cultura Rio de Janeiro: MEC, n. 86, 1984. p.56-85
  • CONSELHO FEDERAL DE CULTURA. Ata da 959ª sessão plenária do Conselho Federal de Cultura, realizada em 24 de setembro de 1985. Boletim do Conselho Federal de Cultura Rio de Janeiro: MEC, n. 86, 1984. p. 160-164
  • CONSELHO FEDERAL DE CULTURA. Boletim do Conselho Federal de Cultura Ano IV, n. 06, 1970, p. 77-78
  • CONSELHO FEDERAL DE CULTURA. Boletim do Conselho Federal de Cultura Rio de Janeiro: MEC, n.2, abril-junho de 1971, p.134
  • CONSELHO FEDERAL DE CULTURA. Processo n. CFC-23004.000037/83-7 - projeto de Lei n.225/83, do senador Murilo Badaró. Boletim do Conselho Federal de Cultura Rio de Janeiro: MEC, n. 53, outubro-dezembro de 1983, p.152-154
  • CONSELHO FEDERAL DE CULTURA. Processo n. CFC-23004.000041/82.2 - Solicita pronunciamento, Projeto de lei n.2683/83 do Sr. Deputado Sinval Guazzelli, que altera o decreto n. 20493/46. Boletim do Conselho Federal de Cultura Rio de Janeiro: MEC, n. 55, 1984, p. 124-125
  • CONSELHO FEDERAL DE CULTURA. Processo n.255.210/75 - Conselho Estadual de Cultura de Pernambuco. - vigilância sobre desfigurações que ocorrem na memória nacional. Boletim do Conselho Federal de Cultura Rio de Janeiro: MEC, n.21, janeiro-março de 1976. p. 121-124
  • CONSELHO FEDERAL DE CULTURA. Sobre o projeto de Lei n.55/79. Boletim do Conselho Federal de Cultura Rio de Janeiro: MEC, n. 40, 1980, p. 181-195
  • FARIA, Octávio. Moção sobre o filme Terra em Transe. Cultura Rio de Janeiro: MEC, ano I, n°2, maio de 1967. p.44
  • MENEZES, Djacir. Cultura e censura. Boletim do Conselho Federal de Cultura Rio de Janeiro: MEC, n. 19, julho-setembro de 1975, p. 29-36
  • MENEZES, Djacir. Até onde é a livre manifestação do pensamento? Boletim do Conselho Federal de Cultura Rio de Janeiro: MEC, n. 21, janeiro a março de 1976, p. 70-74
  • MENEZES, Djacir. Censura: das ideias ou da porneia. Boletim do Conselho Federal de Cultura Rio de Janeiro: MEC, n. 47, abril-junho de 1982, p. 50-74

Editado por

Editores Responsáveis
Júlio Pimentel Pinto e Flávio de Campos

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    06 Mar 2020
  • Aceito
    11 Ago 2020
Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Departamento de História Av. Prof. Lineu Prestes, 338, 01305-000 São Paulo/SP Brasil, Tel.: (55 11) 3091-3701 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revistahistoria@usp.br