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AÇÃO POLÍTICA, TRABALHO E RESISTÊNCIA AFRICANA NOS DIÁRIOS DE VIAGEM DE H. RIDER HAGGARD (ÁFRICA DO SUL, 1914)1 1 Esse artigo é uma versão estendida do último capítulo da tese de doutoramento intitulada H. Rider Haggard e a questão sul-africana, defendida no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná em 2020, sob orientação do Prof. Dr. Clóvis Gruner, a quem agradeço. Agradeço também ao apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pela bolsa de financiamento (Processo nº 88882.381999/2019-01) que possibilitou a realização de parte da pesquisa (estágio de pesquisa no exterior) na Inglaterra. Sou grato também ao Prof. Paul Young, da University of Exeter, pela orientação durante o doutorado-sanduíche, e ao Norfolk Records Office, instituição que salvaguarda parte das fontes citadas no artigo. Artigo não publicado em plataforma de preprint. Todas as fontes e bibliografia utilizadas são referenciadas no artigo.

POLITICAL ACTION, LABOR AND AFRICAN RESISTANCE IN H. RIDER HAGGARD’S TRAVEL DIARIES (SOUTH AFRICA, 1914)

Resumo

O período em torno da formalização da União Sul-Africana (1910) foi caracterizado por debates políticos acerca da identidade nacional sul-africana, bem como pela promulgação de legislações de caráter segregacionista e da negação de direitos políticos à população negra. Nesse contexto, o romancista britânico H. Rider Haggard (1856-1925) retornou à África do Sul, onde viveu em sua juventude, e registrou suas impressões de viagem em diários. O artigo visa analisar as marcas da articulação política e da resistência africana nos diários de viagem de Haggard, com atenção especial ao contexto laboral e aos mundos do trabalho de sul-africanos negros e dos chamados “brancos pobres”. A despeito do alinhamento político de Haggard, os relatos do romancista possibilitam vislumbrar rastros fragmentários das reivindicações desses sujeitos históricos num contexto de institucionalização de leis excludentes.

Palavras-chave
História da África; África do Sul; H. Rider Haggard; colonialismo; relatos de viajantes

Abstract

The period around the formation of the Union of South Africa (1910) was characterized by political debates about South African national identity, as well as the amendment of segregationist laws which excluded black South Africans from political rights. In this context, the British novelist H. Rider Haggard (1856-1925) returned to South Africa, where he had lived in his youth, and recorded his travel impressions. The article seeks to analyze the marks of political articulation and African resistance in Haggard’s travel diaries, with special attention to the worlds of labor of black South Africans and the so-called “poor whites”. Despite Haggard’s political alignment, the novelist’s diaries make it possible to glimpse fragmentary traces of claims of those historical subjects in a context of institutionalization of segregationist policies.

Keywords
African’s History; South Africa; H. Rider Haggard; colonialism; travelers’ narratives

Introdução

O período que antecedeu a formalização da União Sul-Africana (1910), a qual demarcou a constituição do novo Estado nacional pela unificação de vários corpos geopolíticos, foi marcado por discussões acerca dos demarcadores étnico-raciais e culturais estruturantes da própria identidade nacional. A partir desse momento, diversos projetos visavam sedimentar a unidade política e territorial, bem como a “exclusão daqueles que não carregavam no fenótipo a imagem da nação que se queria construir” (GOMES, 2015, p. 4GOMES, Raquel Gryszczenko Alves. De Espinhos e Aguilhões: segregação e lei de terras na obra de Sol Plaatje. Tese de doutorado, História, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, UNICAMP, 2015.). A legislação segregacionista, sobretudo no que dizia respeito à aquisição de terras, ganhou seus contornos iniciais nos primeiros anos da União Sul-Africana, especialmente após a implementação do Natives’ Land Act (1913), que proibia a aquisição de terras pelos sul-africanos negros e confinava uma população de cerca de cinco milhões de pessoas a uma parte ínfima do território nacional, além de criminalizar o arrendamento de terras por parte dos nativos.

Poucos meses depois da promulgação dessa lei de terras, o romancista britânico H. Rider Haggard (1856-1925) viajou à África do Sul e registrou suas impressões em um diário de viagem. O letrado, que viveu na região em sua juventude e ocupou cargos civis na administração colonial, construiu uma carreira centrada na produção de romances aventurescos ambientados no sul da África, produções culturais responsáveis por informar o arcabouço imaginativo de muitos de seus leitores e leitoras a respeito da expansão colonial em África. Nos relatos de viagem, Haggard narrou suas perspectivas sobre as condições sociais e políticas do novo estado nacional, simultaneamente verbalizando temores e incertezas acerca das balizas de inserção de sul-africanos negros e de afrikaners3 3 Ao longo dos séculos XVIII e XIX, diversos termos eram utilizados alternadamente para denominar os descendentes de holandeses, alemães e franceses que se estabeleceram no sul da África desde o século XVII: burgher, Dutch, Dutchman, boer (“fazendeiro”, em afrikaans), afrikaner. A partir do final do século XIX, o termo “afrikaner” passou a ganhar uma força política, para marcar a oposição aos britânicos, e também em associação a movimentos identitários. Portanto, reservo o uso do termo “afrikaner” para o contexto posterior ao final da guerra, em 1902, quando o termo “bôer”, amplamente utilizado pelas repúblicas, começou a perder sua recorrência, especialmente em contextos urbanos (GILIOMEE, 2011, p. 256-259). , especialmente os “brancos pobres”, no projeto nacional em gestão e execução no período.

Os escritos de viagem do romancista são tomados como fonte privilegiada para pensar as perspectivas de Haggard acerca das ações políticas de sul-africanos, do contexto laboral e das resistências cotidianas em um momento marcado pelo enrijecimento das leis segregacionistas e de instâncias de proletarização e disciplinarização fabril. A despeito de suas visões de mundo, edulcoradas pelo paternalismo e por preceitos raciais fortemente hierárquicos, e por seu alinhamento aos projetos elitistas e conservadores na África do Sul, os diários de Haggard, redigidos em uma “zona de contato” colonial (PRATT, 1999PRATT, Mary Louise. Os olhos do Império: relatos de viagem e transculturação. Tradução de Jézio Hernani Bonfim Gutierre. 1ª. Edição. Bauru: EDUSC, 1999.), evidenciam o imbricamento de testemunhos involuntários concernentes às articulações políticas em resistência à consolidação de discursos e práticas segregacionistas.

H. Rider Haggard e a União Sul-Africana

Com o desfecho da guerra sul-africana4 4 A guerra sul-africana (também designada pela historiografia tradicional como “segunda guerra Anglo-Bôer”, entre outras denominações), foi o resultado cumulativo de tensões políticas e rivalidades entre bôeres e britânicos ao sul da África, bem como projetos divergentes a respeito da construção da nação sul-africana. Um dos seus antecedentes diz respeito ao que ficou conhecido como Jameson Raid, isto é, a tentativa malfadada de golpe militar para anexar o Transvaal às posses britânicas por Cecil Rhodes e Leander Starr Jameson em 1895. Opta-se por utilizar o termo “guerra sul-africana”, a partir das indicações de Peter Warwick (1983), para reforçar o protagonismo de outros grupos, ao exemplo de Zulus, Bapedis, Swazis e Basotos, que, durante muito tempo, foram invisibilizados por uma historiografia que perpetuou o “mito de uma guerra de homens brancos”: “a impressão que foi perpetuada em numerosos livros de história que a guerra foi simplesmente um conflito Anglo-Bôer. De fato, foi muito mais do que isso. Em certo sentido, foi uma guerra sul-africana, um conflito que diretamente tocou as vidas de centenas de milhares de pessoas negras” (WARWICK, 1983, p. 4). Remeto-me também aos estudos de Paula Krebs (1999) acerca do papel de mulheres nas experiências cotidianas em torno da guerra. , e a dissolução das repúblicas bôeres do Transvaal (República Sul-Africana) e do Estado Livre de Orange, incorporadas na condição de províncias britânicas, os debates acerca da unificação nacional da África do Sul se intensificaram. Esses projetos começaram a ganhar forma em maio de 1908, quando representantes políticos das Colônias do Cabo, de Natal, do Transvaal e de Orange River reuniram-se para elaborar os planos da construção de novas rotas ferroviárias no cenário pós-guerra e tarifação de produtos que seriam transportados nestas linhas férreas. Na ocasião, o estadista afrikaner Jan Smuts5 5 Jan Smuts (1870-1950) foi um estadista e liderança militar sul-africana. Atuou na guerra sul-africana, e foi um dos fundadores do South African Party. Foi eleito primeiro-ministro da União Sul-Africana em dois momentos, entre 1919 e 1924, e novamente de 1939 a 19448. propôs que uma convenção nacional fosse realizada para planejar, de forma coletiva, a unificação política da África do Sul. Naquele mesmo ano, a Convenção reuniu-se em Durban, e contou com a participação de políticos de cada um dos territórios envolvidos, totalizando catorze afrikaners e dezesseis britânicos – “nenhum representante das populações nativas, contudo, estava presente” (GOMES, 2015, p. 174GOMES, Raquel Gryszczenko Alves. De Espinhos e Aguilhões: segregação e lei de terras na obra de Sol Plaatje. Tese de doutorado, História, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, UNICAMP, 2015.).

Projetos políticos que intencionavam a unificação dos territórios sul-africanos não eram necessariamente uma novidade naquele momento. Afinal, nos anos de 1870, o então Secretário de Estado das Colônias, Lord Carnarvon6 6 Henry Herbert (1831-1890), também conhecido como Lord Carnarvon, foi um político britânico e membro do Partido Conservador. Atuou enquanto Secretário de Estados para as Colônias, e supervisionou a formação da Confederação Canadense entre 1866 e 1867. , defendeu junto ao Parlamento britânico a autorização para a criação de uma confederação de colônias e Estados na África do Sul. A execução dessas políticas ficou nas mãos do governador geral da Colônia do Cabo e Alto Comissário para a África do Sul, Bartle Frere, e teve importante desdobramento entre 1876 e 1877, quando Theophilus Shepstone7 7 Theophilus Shepstone (1817-1893) foi um administrador colonial em Natal, atuando, durante boa parte de sua carreira, enquanto Secretário de Assuntos Nativos. Foi um dos primeiros proponentes de um sistema de segregação territorial para as populações negras em Natal. , comissário especial encarregado das relações com os Zulus e funcionário de destaque na Colônia de Natal, mobilizou tropas de cavalaria e avançou sobre Pretoria, capital do Transvaal, com a intenção de anexar a república em meio a um estado de calamidade financeira após a derrota dos transvaalenses em conflitos contra o Reino Bapedi. Interesses econômicos também nutriam os projetos confederacionistas, na medida em que intencionavam suprir mão de obra para a Griqualândia Ocidental, região que concentrava a extração de diamantes, e mesmo após sua anexação às posses britânicas em 1871, continuava sendo contestada pelo Estado Livre de Orange e pelas chefias Griqua que habitavam a região (BHEBE, 2010, p. 197-198BHEBE, Ngwabi. Os britânicos, os bôeres e os africanos na África do Sul (1850-1880). In: AJAYI, Jacob Festus Adeniyi. História Geral da África, v. VI: África do século XIX à década de 1880. 1ª Edição. Brasília: UNESCO, 2010.). Os planos de unificação da África do Sul sob a flâmula britânica foram esfacelados nos anos seguintes com a guerra Anglo-Zulu em 18798 8 A Guerra Anglo-Zulu (1879), foi travada entre as forças coloniais britânicas e os guerreiros de Cetshwayo kaMpande, o último inkosi (chefe) independente do Reino Zulu. A despeito de algumas vitórias iniciais dos Zulus, foram derrotados em julho daquele ano e, como resultado, Cetshwayo foi deposto e o Reino Zulu foi dividido em treze províncias governadas por líderes nativos apontados pela administração colonial. A fragmentação do Reino Zulu ainda levou a disputas internas e guerras civis que perduraram até a metade da década de 1880 (BHEBE, 2010). e a insurreição dos bôeres em 1880-1881, que resultou na devolução do território transvaalense e no reconhecimento da independência da República Sul-Africana.

As relações da trajetória de H. Rider Haggard com o sul da África estabeleceram-se nesse quadro político. Oitavo filho de uma prole de dez crianças, Haggard nasceu em 1856, no interior rural da Inglaterra, em uma família com vínculos na gentry, porém afetada pela crise na produção agrícola da metade do século XIX. Em 1875, aos dezenove anos, foi enviado à África Austral para atuar na equipe administrativa de Henry Bulwer, vice-governador da Colônia de Natal. Posteriormente, Haggard passou a integrar a comitiva de Theophilus Shepstone encarregada pela anexação da república bôer do Transvaal em 1876, projeto que integrava as ambições políticas de parte do governo metropolitano em unificar os territórios sul-africanos sob a bandeira do Império Britânico. Testemunha privilegiada desses eventos políticos, Haggard redigiu artigos e ensaios que publicou em revistas britânicas, ao exemplo da The Gentleman’s Magazine, onde relatava as instabilidades sociais, culturais políticas na África do Sul em um momento de significativas transformações históricas. Nesses relatos, apresentava-se como um imperialista fervoroso, ao observar a presença colonial britânica ao sul do rio Zambezi como justa e benevolente, necessária para a proteção das populações nativas contra a perseguição de bôeres.

A inserção no aparato administrativo das colônias sul-africanas, e o fervoroso engajamento com a anexação do Transvaal, possibilitaram sua ascensão imediata à elite colonial na África do Sul, e deixaram marcas inegáveis em sua produção literária. Em 1877, após acompanhar Shepstone em visita ao kraal do chefe Zulu Phakade, Haggard publicou um artigo intitulado A Zulu War-Dance, no qual observava o projeto colonial britânico na África do Sul como parte do “espírito da justiça” que sempre prevalece quando “a mão forte e agressiva da Inglaterra agarra alguma parte fresca da superfície terrestre” (HAGGARD, 1877, p. 94HAGGARD, Henry Rider. A Zulu War-Dance. The Gentleman’s Magazine, Londres: Grant & Co., n. 243, julho de 1877.). Nos seus ensaios e artigos produzidos nesse período, Haggard tece elogios à bravura e disciplina militar dos Zulus, ao mesmo tempo em que observa os efeitos corrosivos do colonialismo por desmantelarem as bases socioculturais das sociedades nativas. Ainda assim, compreende a presença colonial como necessária, pois, na sua perspectiva, seria capaz de proteger a população negra, sobretudo contra as violências perpetradas pelos bôeres. A crença na autoridade paternalista estruturava a retórica colonial de Haggard, somado a ácida crítica que, cá e acolá, em sua correspondência particular quanto em seus romances posteriores, direcionou ao Partido Liberal britânico, que acusa pela eventual devolução do Transvaal aos bôeres no fim da guerra de 1881, ação que ressente como “uma grande traição”, “cujo amargor o tempo não pode obliterar ou diminuir” (HAGGARD, 1926, p. 194HAGGARD, Henry Rider. The days of my life. v.1. 1ª Edição. Londres: Longman, 1926.).

Amargurado e ressentido com a “perda” do Transvaal para os bôeres, somado ao clima de insegurança que se estabeleceu na república, Haggard retornou à Inglaterra, onde publicou Cetywayo and his white neighbours, em 1882. Nesse texto ensaístico, discutiu, entre outras questões, a derrota do último inkosi (rei) Zulu independente, Cetshwayo kaMpande9 9 Cetshwayo kaMpande (1826-1884) foi o inkosi Zulu entre 1873 e 1879. Nesse período, tentou reabilitar o sistema amabutho de regimentos militares zulus, e envolveu-se em conflitos com os britânicos após a anexação do Transvaal. Sobre essas questões, ver: GLUCKMAN (1960); MORRIS (1998) e HAMILTON (1998). e a fragmentação do Reino Zulu. Poucos anos depois, por meio de seus romances aventurescos, o letrado retoma, em tons nostálgicos, a África do Sul perdida de sua juventude, compreendendo-a como um território repleto de oportunidades políticas e econômicas para homens jovens, aventureiros destemidos e corajosos. Esses romances contribuíam para a legitimação pública do colonialismo britânico na África, apresentando-o como resultado das crenças no “fardo do homem branco”, das premissas de que era o destino do homem britânico ou europeu conquistar outros territórios, e civilizar ou subjugar as chamadas “raças inferiores”. De acordo com Anne McClintock, os romances de Haggard conectavam-se com ansiedades de classe, raça e gênero no período, no sentido de que, por meio de suas narrativas aventurescas de heróis brancos na África, visavam regenerar o “patriarcado branco” e reprimir “o trabalho dos homens negros”, ao mesmo tempo em que negam “violentamente a força sexual e de trabalho das mulheres africanas”, em especial das sociedades Zulus (MCCLINTOCK, 2010, p. 363-376MCCLINTOCK, Anne. Couro Imperial: raça, gênero e sexualidade no embate colonial. 1ª. Edição. Campinas: Editora da UNICAMP, 2010.).

Mesmo apartado da África de sua juventude, Haggard continuou a interessar-se pelas políticas coloniais nos territórios sul-africanos, discutindo publicamente o Jameson Raid10 10 O Jameson Raid, que ocorreu entre dezembro de 1895 e 1896, consistiu em uma tentativa malfadada de anexação militar da República Sul-Africana (Transvaal), engendrado pelo então primeiro-ministro do Cabo, Cecil Rhodes, e coordenado pelo médico Leander Starr Jameson. Visava destituir o presidente do Transvaal, Paul Kruger, com o apoio dos uitlanders, estrangeiros que não desfrutavam de direitos políticos na república bôer. Contudo, o apoio dos uitlanders nunca veio, e os soldados de Rhodes e Jameson foram derrotados. O golpe também é considerado como um dos estopins para a guerra de 1899-1902 (GOMES, 2015, p. 28). de 1895 e redigindo diversas cartas abertas aos jornais londrinos na eclosão da guerra sul-africana. Por extensão, integrou a Imperial South African Association, organização fundada em Londres em 1896 com o objetivo de – nas palavras de seus panfletos propagandísticos – “elevar a supremacia britânica e promover os interesses dos súditos britânicos na África do Sul, com pleno reconhecimento do autogoverno Colonial” (ISAA, 1899, p.iIMPERIAL SOUTH AFRICAN ASSOCIATION (ISAA). The British Case against the Boer Republics. 1ª Edição. Londres: ISAA, 1899.).

Durante a guerra sul-africana, e nos anos que seguiram a assinatura do Tratado de Vereeniging (1902), a qual formalizou a derrota bôer, o fim das hostilidades e revogou a independência política do Transvaal e do Estado Livre de Orange, Haggard continuou fortemente patriótico em sua crença no colonialismo britânico. Contudo, assim como outros intelectuais e políticos com experiência anglo-africana no período, Haggard aprimorava, em seus escritos ensaísticos e literários, a perspectiva da aliança anglo-bôer e da formação de uma elite colonial sul-africana composta a partir da união entre grupos brancos na África do Sul, ainda que tutelada pelo Império Britânico. Sob muitos aspectos, a retórica adotada por Haggard estava alinhavada aos temores nutridos pela elite política e econômica na África do Sul da primeira década do século XX diante da formação de grupos, publicações periódicas, instituições e partidos que articulavam politicamente a reivindicação dos direitos de sul-africanos negros num contexto marcado pelas primeiras legislações de caráter segregacionista. As resistências e a participação de sul-africanos negros na guerra (WARWICK, 1983WARWICK, Peter. Black People and the South African War (1899-1902). 1ª Edição. Cambridge: Cambridge University Press, 1983.) – naquela que foi, durante muito tempo, considerada pela historiografia tradicional como uma “white man’s war”; as reivindicações cotidianas por terras e trabalho nos anos seguintes; e as articulações de grupos políticos, ao exemplo da Native Convention11 11 Ocorrida em março de 1909, a South African National Native Convention (e que mais tarde daria origem ao South African Native National Congress) foi essencialmente um espaço de discussão de sul-africanos negros acerca de suas “possibilidades de participação política no estado nacional em constituição” (GOMES, 2015, p. 177). Um de seus principais organizadores foi o político e escritor Solomon Plaatje. em 1909, entre outros fatores, marcaram um caminho sem volta no cenário político sul-africano na primeira década do século.

Essa conjuntura potencializou as ansiedades no imaginário das elites dirigentes e do colonato branco, que temiam a invasão nativa nos grandes centros de mineração. O período após o desfecho da guerra sul-africana foi demarcado por uma preocupação constante com a “inserção populacional nos centros urbanos brancos”, o que “se torna altamente inflamável num contexto de consolidação da ideia de que o estado nacional em debate é, em verdade, uma nação branca, a white men’s country” (GOMES, 2015, p. 171GOMES, Raquel Gryszczenko Alves. De Espinhos e Aguilhões: segregação e lei de terras na obra de Sol Plaatje. Tese de doutorado, História, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, UNICAMP, 2015.). Como resultado, o cenário sul-africano, em especial nas áreas correspondentes às antigas repúblicas bôeres, levou a uma intensificação da violência e a retomada dos grupos de guerrilhas no contexto pós-1902, sob o formato de associações de fazendeiros e guardas civis. Casos de apropriação e delimitação de terras foram levados por agricultores negros aos tribunais transvaalenses, e “os fazendeiros brancos viam oorstrooming e Swart Gevaar, ou ‘inundação’12 12 O termo oorstrooming, traduzido como “swamping” ou “inundação”, era utilizado no início do século XX pelos afrikaners para designar os temores relativos ao êxodo de africanos negros para os centros urbanos, assinalando assim riscos de perda de mão de obra, maior competitividade no mercado de trabalho e desestabilização do sistema de trabalho migrante (ALEXANDER, 2000). e ‘Perigo Negro’ por trás de qualquer vitória legal de curto prazo dos pequenos proprietários africanos” (HIGGINSON, 2015, p. 104HIGGINSON, John. Collective Violence and the Agrarian Origins of South African Apartheid (1900-1948). 1ª Edição. Cambridge: Cambridge University Press, 2015.). Além da “questão nativa”, isto é, a inclusão ou exclusão de sul-africanos negros no projeto de nação que se delineava naquele momento, diferenças entre os corpos geopolíticos do território continuavam a acirrar as discussões. Assim, na perspectiva de alguns dos membros da Convenção de Durban, a proposta federacionista, tal qual sido idealizada na década de 1870, poderia dar margem à fragmentação política ou ainda resultar em conflitos semelhantes aos da guerra sul-africana de 1899.

Entre 1908 e 1909, os membros da Convenção reuniram-se em quatro momentos – em Durban, entre outubro e novembro de 1908; na cidade do Cabo, entre novembro e dezembro de 1908 e, posteriormente, entre janeiro e fevereiro de 1909; e em Bloemfontein, em maio de 1909. Uma das questões discutidas, e que causou acalorados debates, referia-se ao direito dos sul-africanos negros ao voto, já que os representantes do Cabo, embasados em sua tradição “liberal”, desejavam que esse direito fosse ampliado a todos os territórios da nação, enquanto os demais membros opunham-se à proposta. Sumarizando a situação, um dos políticos do Cabo presente na Convenção, John Xavier Merriman, afirmava que existiam “aqueles que gostariam de se livrar completamente das raças nativas sul-africanas; contudo, havia também aqueles que defendiam que o futuro da nação passava pelo debate sobre o voto nativo – os africanos deveriam não apenas ter liberdade, mas também direito à cidadania” (GOMES, 2015, p. 175GOMES, Raquel Gryszczenko Alves. De Espinhos e Aguilhões: segregação e lei de terras na obra de Sol Plaatje. Tese de doutorado, História, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, UNICAMP, 2015.). Na tensão política na Convenção, a solução firmada colocou a “questão nativa” em segundo plano, mantendo as leis que organizavam o sufrágio em cada um dos territórios, e estabelecendo que a discussão poderia ser retomada após a concretização da União Sul-Africana.

Em fevereiro de 1909, a Convenção produziu um documento que estabelecia um esboço da constituição da União Sul-Africana e fixava a representação de cada província no novo estado nacional. A proposta foi recebida positivamente no Transvaal e em Orange River, enquanto os representantes políticos de Natal desconfiavam das implicações econômicas elaboradas pela constituição. A elite política de Natal era relutante à ideia da União Sul-Africana, pois temia a possibilidade de ser dominada pela esfera de influência afrikaner. No entanto, a revolta Zulu de 190613 13 Considerada como um exemplo de reação e resistência nativa aos avanços do colonialismo, a Revolta de Bambatha ou Revolta Zulu de 1906 foi um movimento contrário à cobrança de impostos (Poll Tax) estabelecido na Colônia de Natal, e que recaía duramente sobre os agricultores negros. A revolta foi liderada, entre outras figuras, por um inkosi zulu, Bambatha, e implicou no envolvimento (direto ou indireto) de Dinizulu, o filho de Cetshwayo e herdeiro do trono zulu. Sobre a revolta, ver: MARKS (1986); REDDING (2000). – também designada de revolta de Bambatha, em referência a uma de suas lideranças – mobilizada pelos clãs amaZondi e amaCube que resistiam à truculência colonial e a cobrança de impostos (REDDING, 2000, p. 29-54REDDING, Sean. A Blood-Stained Tax: Poll Tax and the Bambatha Rebellion in South Africa. African Studies Review, Cambridge: Cambridge University Press, v. 43, n. 2, p. 29-54, 2000. Disponível em: <https://www.jstor.org/stable/524983>. Aceso em: 11 out. 2019. DOI: https://doi.org/10.2307/524983
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), provocou ansiedades acerca da segurança interna e estabilidade política, tornando os representantes de Natal mais flexíveis ao projeto unionista. A proposta pouco tratava sobre os direitos políticos de sul-africanos negros ou a legitimação de sua cidadania, concentrando-se muito mais em garantir a reconciliação com o lado afrikaner, para garantir assim a estabilidade econômica após a criação do novo Estado.

No clima de reconciliação política, a União Sul-Africana foi estabelecida em 31 de março de 1910 e o primeiro-ministro eleito, Louis Botha14 14 Louis Botha (1862-1919) foi membro do parlamento do Transvaal, atuou na guerra sul-africana e, com a formalização da União Sul-Africana, assumiu o posto de primeiro-ministro. Ao lado de Smuts, foi um dos fundadores do South African Party. , estava cercado por um governo composto por figuras proeminentes do lado britânico e afrikaner, incluindo dois generais afrikaners, Jan Smuts e Barry Hertzog15 15 James Barry Hertzog foi um general sul-africano. Atuou na guerra de 1899, e posteriormente, entre 1924 e 1939, ocupou o cargo de primeiro-ministro. . A constituição não previa plena soberania na relação com o Império Britânico e, como resultado disso, diversos setores da economia, especialmente do comércio, das finanças e da mineração, além do serviço civil, eram dominados por britânicos. Em linhas gerais, a proposta unionista estabelecia um sistema político unitário, mantido por um parlamento composto por duas câmaras (Senado e Assembléia), e um governador-geral como chefe do executivo. As quatro colônias seriam transformadas em províncias da União Sul-Africana, cada uma contendo sua própria assembléia regional. A proposta ainda estabelecia a perspectiva de incorporação da Rodésia do Sul (atual Zimbábue) e dos territórios da Basutolândia (atual Lesoto), da Bechuanalândia (atual Botsuana) e da Suazilândia (atual Eswatini). Os representantes de todas as quatro províncias concordavam que a União seria incompleta sem a anexação destes territórios.

É preciso lembrar que a União Sul-Africana foi acompanhada pela aprovação de leis segregacionistas e pela exclusão política da população negra: o Mines and Works Act (1911) proibia sul-africanos negros de trabalhar em funções especializadas nas indústrias e o Natives’ Land Act estabelecia bases jurídicas do segregacionismo, proibindo a população negra de adquirir terras, exceto em reservas nativas, que sumarizavam uma fração minoritária de todo o território nacional. A perda da posse da terra representou um dos pilares da construção do regime colonial, posteriormente do apartheid (BARBOSA, 2011, p. 32BARBOSA, Viviane de Oliveira. Mulheres rurais e lutas sociais no Brasil e na África do Sul. Mujimbo: Revista de Estudos Étnicos e Africanos, Salvador: UFBA, v. 2, n. 1, p. 29-43, 2011. Disponível em: <http://www.mujimboposafro.ffch.ufba.br/wp-content/uploads/2012/03/3.-Mulheres-Rurais-Viviane.pdf>. Acesso em: 20 out. 2020.
http://www.mujimboposafro.ffch.ufba.br/w...
), e como resultado, milhares de sul-africanos negros foram desalojados e destituídos de seus direitos políticos, os quais estavam atrelados à posse de terras; o político e intelectual Sol Plaatje16 16 Solomon Tshekisho Plaatje (1876-1932) foi um escritor, político e jornalista de origem Barolong. Foi um dos fundadores do South African National Native Congress, e articulou, por meio de seus escritos e ações políticas, posicionamentos críticos e resistências ao aumento da opressão política e social sobre sul-africanos negros no início do século XX. Ver: GOMES (2015). , um dos fundadores do SANNAC, relatou que “ao despertar numa sexta-feira, 20 de junho de 1913, o nativo sul-africano percebeu-se não como um escravo, mas como um pária na sua terra natal” (MEREDITH, 2007, p. 523MEREDITH, Martin. Diamond’s, Gold and War: the British, the Boers and the Making of South Africa. 1ª Edição. Nova York: Public Affairs, 2007, p. 523.). Também é importante enfatizar que políticas de legislação, segregação e acesso a terras já possuíam antecedentes no contexto sul-africano. Afinal, desde a década de 1870, as repúblicas bôeres estabeleceram o sistema de passes para controlar o acesso dos nativos às áreas urbanas e, em 1894, a Colônia do Cabo promulgou o Glen Grey Act, lei idealizada pelo então primeiro-ministro Cecil Rhodes17 17 Cecil Rhodes (1853-1902) é considerado hoje como um dos principais representantes do imperialismo britânico na África. Fundou a British South African Company, uma companhia particular de mineração e colonização, e ocupou o cargo de primeiro-ministro na Colônia do Cabo na década de 1890. que colocava um fim ao “acesso comunal à terra, instituindo o sistema de posse individual em uma parcela estipulada do território”, o que promoveu “uma desarticulação identitária que passa por uma negação dos espaços da comunidade e da ancestralidade” (GOMES, 2015, p. 4GOMES, Raquel Gryszczenko Alves. De Espinhos e Aguilhões: segregação e lei de terras na obra de Sol Plaatje. Tese de doutorado, História, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, UNICAMP, 2015.).

Diversas organizações preocupadas com os direitos das populações nativas e coloureds reuniram-se naquele contexto, ao exemplo da supramencionada Native Convention em Bloemfontein em março de 1909, que se constituiu num espaço de discussão dos africanos acerca de sua participação política no novo estado nacional, e, posteriormente, a publicação do discurso de Abdullah Abdurahman, To the Coloured People of South Africa (junho de 1910), concernente aos direitos políticos dos coloureds em um momento marcado pelo estabelecimento de políticas de controle e segregação (SALVE, 2012, p. 189-190SALVE, Giovani Grillo. Uma história de traição: um projeto assimilacionista coloured na Cidade do Cabo, 1906-1910. Dissertação de mestrado, História, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, UNICAMP, 2012.). Em janeiro de 1912, surgia também o South African Native National Congress (SANNC), partido fundado por Sol Plaatje e John Langalibalele Dube com o objetivo de constituir o meio político de luta da intelectualidade negra contra as medidas segregacionistas que ganham forma na União Sul-Africana.

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Mapa da União Sul-Africana

Como Rider Haggard teria reagido às notícias do estabelecimento da União Sul-Africana? Talvez considerasse o momento como a concretização dos projetos confederacionistas da década de 1870, com os quais engajou-se fervorosamente durante a anexação do Transvaal às posses britânicas. No prefácio de Marie, romance publicado em 1912, mas ambientado na África do Sul da década de 1830, Haggard vislumbrava a perspectiva da aliança anglo-bôer diante do fato de que “a bandeira da Inglaterra sobrevoa do Zambezi ao Cabo (...)” e esperava que “sob sua sombra, todas as antigas rixas e invejas sanguinolentas sejam esquecias” (HAGGARD, 1912, p. VHAGGARD, Henry Rider. Marie. 1ª Edição. Londres: Longman’s, Green & Co., 1912.). As marcas do paternalismo em sua visão de mundo ficavam nítidas ao referir-se à “questão nativa”, pois admitia que “talvez os nativos também prosperem, e sejam justamente governados, pois afinal, no início, a terra era deles” (HAGGARD, 1912, p. VHAGGARD, Henry Rider. Marie. 1ª Edição. Londres: Longman’s, Green & Co., 1912.). Haggard tenta compatibilizar duas visões a respeito do uso das terras na África do Sul: por um lado, reconhece a legitimidade do direito de sul-africanos negros, contanto que “justamente governados” por uma autoridade centralizada e competente, mesmo que autoritária, e devidamente alocados ou protegidos em territórios administrados por brancos. Por outro lado, em seus romances e escritos ensaísticos, igualmente reconhece a expropriação de terras diante de determinadas circunstâncias, especialmente se estivessem em mãos de nativos adjetivados por ele como perigosos ou irresponsáveis, afinal, na ótica desse romancista, as experiências das coletividades negras são comumente reduzidas a laços de antagonismo ou dependência (SILVA, 2020SILVA, Evander Ruthieri. H. Rider Haggard e a questão sul-africana: literatura, cultura escrita e política colonial (1875-1914). Tese de doutorado, História, Centro de Ciências Humanas, UFPR, 2020.).

Ademais, pelo racismo estruturante de suas visões de mundo, certamente preocupava-se com as diferenças numéricas entre negros e brancos no novo estado nacional. Em março de 1914, o jornal Natal Witness publicou um dos discursos de Haggard, no qual apontava suas preocupações concernentes ao futuro da África do Sul: “qualquer um que conhece a África será imprudente ao profetizar que não há problemas adiante, pois sem problemas não haveria a África”. De modo prioritário, concernia à Haggard “a questão do aumento da população branca; que não está ocorrendo tão rápido como se poderia esperar (...). E então você tem o aumento da população nativa, que é uma questão séria e difícil”. Acreditava que a nação sul-africana precisaria investir em sua economia interna, mas, acima de tudo, “as raças precisam aprender a conviver e lutar juntas com o objetivo do bem comum” (HAGGARD, 1914b p. 1HAGGARD, Henry Rider. Echoes of the Past: Famous Novelist’s Reminiscences. Natal Witness, Natal, 28/03/1914b, p. 1.). Por volta desse mesmo período, o letrado compartilhava dos temores de muitos proprietários brancos acerca do “tratamento desrespeitoso” dos negros, pois afirma que “nos anos 70 [do século XIX] nunca ouvi falar de um ataque sobre uma mulher branca feito por um nativo. Agora, essa história é frequentemente contada” (HAGGARD, 1913, p. 5HAGGARD, Henry Rider. Umslopogaas and Makokel. Sir H. Rider Haggard on Zulu Types. The Times, Londres, 16 ago. 1913, p. 5.). A ênfase na violência aparecia aqui para justificar a urgência na subordinação de africanos ao trabalho, sobretudo nas indústrias e propriedades agrícolas, compreendido por Haggard como uma forma de dissipar as resistências nativas e integrar os africanos à “civilização”.

Em janeiro de 1912, Haggard foi convidado pelo governo britânico para integrar uma comitiva com o objetivo de visitar, em um período de três anos, os antigos territórios coloniais da Austrália, Nova Zelândia, África do Sul, Newfoundland e Canadá, categorizados como “domínios” ultramarinos, termo introduzido em 1907 para se referir a regiões com governo autônomo, embora ainda vinculadas ao Império. A Comissão Real (Dominions Royal Comission) seria integrada por seis emissários da metrópole, e cinco representantes de cada um dos territórios visitados. O projeto enquadrava-se em um momento de crescente competição internacional entre nações industrializadas, e possivelmente vinha em resposta aos temores de declínio nas esferas econômica e militar, sobretudo na competição internacional com outros projetos expansionistas (Alemanha, França, Rússia). Simultaneamente, as funções da Comissão possivelmente integravam as perspectivas de uma Greater Britain elaboradas no final do século XIX, uma fantasia política que enredava a aproximação de antigas colônias e novos Estados nacionais como alternativa ao colonialismo praticado até aquele momento (BELL, 2012, p. 33-55BELL, Duncan. The Project for a New Anglo Century: Race, Space and Global Order. In: KATZENSTEIN, Peter (org.). Anglo-America and its Discontents: Civilizational Identities Beyond West and East. 1ª. Edição. Londres: Routledge, 2012, p. 33-55.). A Comissão estaria encarregada de elaborar um relatório acerca da situação política, social e econômica nos domínios ultramarinos, além de investigar os recursos naturais, as possibilidades de investimento industrial, as condições de comércio interno e externo, além das demandas locais por gêneros alimentícios e matérias primas. Feitos os preparativos, os membros da Comissão viajaram para a Austrália e a Nova Zelândia em 1913, e para a África do Sul em fevereiro de 1914. O momento marcou o retorno de Haggard à África do Sul, e o letrado registrou suas impressões de viagens em um diário18 18 É preciso esclarecer que, de fato, existiram quatro diários: um rough diary (esboço), salvaguardado no Norfolk Records Office (MC32/51 NRO), o qual sumariza, em cerca de 190 páginas manuscritas, as informações mais essenciais da viagem (datas, lugares, e breves apontamentos sobre o trajeto percorrido); uma versão revisada, redigida na viagem de retorno (que se encontra desaparecida); e uma versão posteriormente datilografada por sua secretária, Ida Hector. Na década de 1950, uma segunda transcrição datilografada foi realizada, embora com diversas grafias alteradas, em especial acerca de topônimos sul-africanos. O artigo utiliza como base o rough diary e a versão publicada do diário datilografado, editado por Stephen Coan em 2001. , que corresponde ao período entre fevereiro e maio daquele ano.

“O glorioso e eterno sol africano”

A documentação elencada – diários de viagens – insere-se em uma longa tradição de viajantes europeus que, pelo menos desde meados do século XV, registraram suas impressões a respeito da África, por meio de narrativas que revelavam as analogias, perplexidades e categorizações destes homens e mulheres diante de espaços e grupos étnico-sociais desconhecidos. Além do mais, os relatos de viagem “estavam orientados por esquemas de percepção e de representação de sua época” (CORREA, 2008, p. 13CORREA, Sílvio Marcus de Souza. Evidências de História nos relatos de viajantes sobre a África pré-colonial. Revista Aedos, Porto Alegre: UFRGS, v.1, n.1, 2008. Disponível em: <https://seer.ufrgs.br/aedos/article/view/9809/5600>. Acesso em: 08 out. 2019.
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), comumente retratando a África e os africanos negros como povos sem conhecimentos de leis ou de escritas, anacrônicos ou extemporâneos. Em termos metodológicos, a análise sobre relatos de viagem implica em uma atenção redobrada aos entrecruzamentos de realidade e ficção, para apreender os lastros do imaginário do viajante e os processos de construção de suas visões de mundo. No caso, interessa compreender as vias pelas quais o letrado representa a ação política e as resistências sul-africanas, especialmente de sul-africanos negros, em um contexto marcado pelo enrijecimento de leis segregacionistas, especialmente devido aos impactos do Natives’ Land Act de 1913.

No que compete aos relatos produzidos por viajantes no embate colonial, a atenção da pesquisa recai sobre o que Mary Louise Pratt classifica como um complexo de laços interculturais, gestados a partir das “zonas de contato”, isto é, “espaços sociais onde culturas díspares se encontram, se chocam, se entrelaçam uma com a outra, frequentemente em relações extremamente assimétricas de dominação e subordinação”, ao exemplo do “colonialismo, o escravismo ou seus sucedâneos ora praticados em todo o mundo” (PRATT, 1999, p. 27PRATT, Mary Louise. Os olhos do Império: relatos de viagem e transculturação. Tradução de Jézio Hernani Bonfim Gutierre. 1ª. Edição. Bauru: EDUSC, 1999.). Tais relatos de viajantes, com certa frequência publicados e ilustrados no retorno à Europa, momento em que atingiam um público mais amplo, contribuíam para a construção daquilo que Valentim Mudimbe designou de “biblioteca colonial” (MUDIMBE, 2013, p. 12MUDIMBE, Valentim-Yves. A invenção da África: gnose, filosofia e a ordem do conhecimento. Tradução de Leonor Pires Martins. 1ª Edição. Lisboa: Mangualde, 2013, p. 12.), isto é, um conjunto de discursos de alteridade erigidos a partir do Ocidente em categorias etnocêntricas, que teriam interferido fortemente na compreensão das circunstâncias sociais concretas vivenciadas no continente, tanto dos atores externos quanto dos próprios africanos.

Após uma passagem pelas Ilhas Madeira, local que serviu de cenário ao primeiro romance de Haggard (Dawn, publicado em 1881), a Comissão chegou ao porto da Cidade do Cabo no final de fevereiro de 1914. O itinerário de viagem da Comissão previa visitas pelas quatro províncias (Cabo, Orange River, Natal e o Transvaal); Haggard planejou ainda, após a finalização dos trabalhos, visitar a Rodésia e a Zululândia. A chegada ao Cabo foi registrada no diário como marcada por “prazer, misturada com certa melancolia, que mais uma vez eu vi as nuvens que se erguiam feito água jorrando sobre os kloofs e as laterais íngremes de Table Mountain”. Na perspectiva do letrado, a África do Sul não era a mesma de sua juventude, mas “o raiar do sol é o mesmo – o glorioso e eterno sol africano”, capaz de fazer “esta terra de problemas parecer tão pacífica” (HAGGARD, 2001, p. 52-53HAGGARD, Henry Rider. Diary of an African Journey. 1ª Edição. Nova York: New York University Press, 2001.). Aqui, assim como alhures, denota-se a persistência de traços da sensibilidade romântica na escrita de viagem de Haggard, na medida em que determinados sentimentos (o belo, o sublime, o pitoresco) eram mobilizados na busca por sentidos explicativos para o espaço natural, o campo e a cidade, bem como suas gentes (NAXARA, 2004NAXARA, Márcia Regina Capelari. Cientificismo e sensibilidade romântica. 1ª. Edição. Brasília: UNB, 2004.).

Entre jantares e reuniões na Cidade do Cabo, Haggard teve oportunidade de encontrar-se com diversas lideranças políticas, sobretudo afrikaners e britânicos, ao exemplo do primeiro-ministro Louis Botha. De imediato, uma mesma questão ressalta nos diálogos narrados entre Haggard e Botha: a gestão da mão-de-obra na África do Sul. O movimento operário e as greves trabalhistas em Joanesburgo, promovidas por mineradores brancos em 1913, eram vistas com apreensão pelos políticos na Cidade do Cabo e, na ótica de Haggard, estava claro que Botha “favorecia o emprego de mais nativos e menos brancos problemáticos e bem pagos”, os quais recebiam remuneração “nove vezes maior [do que os nativos]” (HAGGARD, 2001, p. 54HAGGARD, Henry Rider. Diary of an African Journey. 1ª Edição. Nova York: New York University Press, 2001.). O contexto foi marcado pela emergência de movimentos trabalhistas ou de orientação socialista, especialmente no Cabo, tais como o Labour Party, fundado em março de 1910 com a premissa de defender os direitos do operariado branco. Adicionalmente, em junho de 1913, cerca de dezoito mil funcionários das minas de Witwatersrand aderiram à greve em resposta às condições de trabalho e à baixa remuneração. Os confrontos com as forças policiais levaram o governo sul-africano a instaurar lei marcial, e após semanas de repressão violenta, o governo entrou em negociação com os trabalhadores em Pretória; a despeito das discordâncias de alguns líderes socialistas, outras lideranças do movimento aceitaram os termos e a greve foi dissolvida (KATZ, 1976KATZ, Elaine. White Workers in the Transvaal – A Trade Union Aristocracy: A History of White Workers in the Transvaal and the General Strike of 1913. 1ª Edição. Joanesburgo: University of the Witwatersrand, 1976.).

Ademais, é preciso lembrar que a fala de Botha estava profundamente enraizada no contexto de aprovação do Natives’ Land Act de 1913, o qual legitimava exatamente as ambições dos randlords, isto é, “o desejo de controlar o nativo e a demanda por mão de obra na indústria mineradora” (GOMES, 2015, p. 181GOMES, Raquel Gryszczenko Alves. De Espinhos e Aguilhões: segregação e lei de terras na obra de Sol Plaatje. Tese de doutorado, História, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, UNICAMP, 2015.). Antes mesmo da implementação do Natives’ Land Act, o governo já havia promovido esforços para garantir a continuidade, o controle e o barateamento da mão-de-obra de sul-africanos negros. Em 1911, por exemplo, criou o Native Labour Bureau, uma subseção do Departamento de Assuntos Nativos, e aprovou o Native Labour Regulation Act, com a intenção de manter um fluxo constante de trabalhadores migrantes para as minas de ouro, além de centralizar o controle estatal sobre operários negros nas áreas industriais (DUNCAN, 1990, p. 1-28DUNCAN, David. The Regulation of Working Conditions for Africans, 1918-1948 (paper não publicado). History Workshop: Structure and Experience in the Making of Apartheid. Joanesburgo: University of the Witwatersrand, 1990.). O Native Labour Regulation Act criminalizou as greves realizadas por negros submetidos formalmente a contratos de trabalho (WILSON, 1972, p. 10WILSON, Francis. Labour in the South African Gold Mines (1911-1969). 1ª Edição. Cambridge: Cambridge University Press, 1972.), e respondia “em grande medida pelo vínculo compulsório que os trabalhadores negros mantinham com os fazendeiros brancos, de forma assimétrica, tendo em vista que os últimos podiam legalmente se livrar de seus trabalhadores quando fosse conveniente” (BORGES, 2011, p. 216BORGES, Antonádia. Sem sombra para descansar: etnografia de funerais na África do Sul contemporânea. Anuário Antropológico, Brasília: UNB, v. 36, n. 1, p. 215-252, 2011. Disponível em: <https://periodicos.unb.br/index.php/anuarioantropologico/article/view/7011> Acesso em: 20 out. 2020
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). Além disso, a já mencionada Mines and Work Act permitia a “garantia de certificados de competência para um grande número de ocupações especializadas na indústria mineira somente para brancos e coloureds” (FRITZEN, 2019, p. 30FRITZEN, Marlova Teresinha. Classe e raça na formação do mundo do trabalho na União Sul-Africana, de 1907-1936. Dissertação de mestrado, História, Centro de Ciências Humanas, UFPR, 2019.) – que na prática atribuía posições de supervisão aos funcionários brancos e reservava aos negros o trabalho braçal.

Para Haggard, assim como muitos de seus contemporâneos, a questão do trabalho na África do Sul era indissociável da questão racial. Não apenas pela hierarquização do trabalho nas minas e na agricultura de acordo com a legislação racial que se assentava naquele momento, mas também pelas perspectivas do letrado diante a formação de uma elite sul-africana composta por uma aliança anglo-bôer, já que “as animosidades raciais estão começando a desaparecer” – embora, deva-se destacar, há certamente algo de paternalista no modo como o romancista descreve as novas lealdades dos afrikaners à autoridade britânica, já que oblitera as resistências, cisões e ressentimentos nesse processo. Haggard parece atenuar, por exemplo, o fato de que a comunidade afrikaner encontrava-se dividida, especialmente entre aqueles que se identificavam com o projeto político de Louis Botha, e outros que persistiam no modelo republicano e nacionalista delineado pelo National Party do general Barry Hertzog, que ocupava a ala anti-imperialista durante o governo de Botha. Por extensão, muitos bôeres do antigo Estado Livre de Orange ressentiam e opunham-se ao governo de Botha, considerando-o como um “líder do Transvaal” incapaz de lidar com as crises econômicas pós-1902, especialmente no setor agrícola (GEYER, 2014, p. 142-143GEYER, René. The Union Defence Force and the 1914 strike: the dynamics of the shadow of the burgher. Historia. Durban: Historical Association of South Africa, v. 59, n. 2, 2014, p. 136-151. Disponível em: <http://www.scielo.org.za/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0018-229X2014000200009>. Acesso em: 23 mar. 2020.
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). E, alguns meses após o retorno de Haggard à metrópole, um grupo de bôeres “bittereinders” (“bitter enders”), “amargurados” com o fim da guerra de 1899-1902 e inconformados com a dissolução da República Sul-Africana (Transvaal), promoveu a chamada “rebelião de Maritz”, em defesa da independência das antigas repúblicas bôeres e como resposta à decisão do governo sul-africano de entrar na Primeira Guerra Mundial ao lado do Império Britânico (SWART, 1998SWART, Sandra. A Boer and His Gun and His Wife Are Three Things Always Together: Republican Masculinity and the 1914 Rebellion. Journal of Southern African Studies. Londres: Routledge, v. 24, n. 4, p. 737–751, 1998. Disponível em: <https://www.tandfonline.com/toc/cjss20/24/4?nav=tocList>. Acesso em: 24 mar. 2010. doi: https://doi.org/10.1080/03057079808708599 .
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). A rebelião, comandada por oficiais de alta patente do exército sul-africano que nutriam simpatias pela causa alemã, foi eventualmente reprimida pelas tropas do governo no início de 1915.

Além de vislumbrar os benefícios da aproximação entre britânicos e bôeres, os rastros do emergente segregacionismo na África do Sul aparecem nas falas relatadas por Haggard em seu diário: em um dos jantares na Cidade do Cabo, o letrado registrou o posicionamento do militar e político sul-africano Henry Nourse, o qual advogava a “segregação de todos os nativos, ao ponto de não permitir que nenhum deles seja empregado em funções domésticas” (...), e substituídos “por pessoas brancas, especialmente mulheres jovens, que seriam trazidas da metrópole” (HAGGARD, 2001, p. 56HAGGARD, Henry Rider. Diary of an African Journey. 1ª Edição. Nova York: New York University Press, 2001.). O posicionamento de Nourse encontrava respaldo na legislação segregacionista que passava a regulamentar o acesso às terras e ao trabalho, bem como na institucionalização do “racismo científico” na África do Sul (DUBOW, 1995DUBOW, Saul. Scientific racism in modern South Africa. 1ª Edição. Cambridge: Cambridge University Press, 1995.). Em nenhum momento Haggard se opõe à proposta, mas reconhece a impossibilidade de sua realização, não tanto pelas resistências da população nativa, mas sim porque “essas miríades exportáveis não existem no Reino Unido; e que se existissem eles nunca viriam à África do Sul para fazer o trabalho de um lacaio” (HAGGARD, 2001, p. 56-57HAGGARD, Henry Rider. Diary of an African Journey. 1ª Edição. Nova York: New York University Press, 2001.). A tendência, na perspectiva dele, rumava a direções contrárias:

O homem negro está movendo uma cunha no tecido da civilização Europeia, e está permeando através dele. Ele está se tornando habilidoso em muitas formas, e está adquirindo educação (...). Ele está começando a pensar por si próprio, e demandar uma retribuição justa pelas recompensas de seu trabalho. O trabalhador branco, por outro lado, está declinando, daí sua fúria e violência. Milhares deles, por exemplo, que foram importados ao Rand, sobretudo talvez para serem convertidos em eleitores brancos, perdem seus trabalhos, ou correm o risco, já que o nativo pode fazer o mesmo pela metade ou um quarto do preço, e é muito mais tratável e geralmente trabalha melhor. Um apto cavalheiro com quem almocei hoje na Parliament House, [o senador] Sir Meiring Becke, foi ainda mais longe ao sugerir que uma solução final para os problemas esse país possa ser a fusão das raças branca e negra, não apenas para a África do Sul, mas para o mundo Ocidental em geral. Sua ideia era que se e quando os povos europeus falharem devido ao suicídio racial e exaustão, o Ariano e o Oriental amarelo irão invadir e absorver ao invés de massacrar os sobreviventes (HAGGARD, 2001, p. 57HAGGARD, Henry Rider. Diary of an African Journey. 1ª Edição. Nova York: New York University Press, 2001.).

Da ótica de Haggard, as reivindicações de sul-africanos negros por direitos políticos, ao exemplo das pautas levantadas na Native Convention e do SANNC, aparentavam ser um elemento novo – “ele está começando a pensar por si próprio”. O posicionamento evidencia a extensão da visão de mundo paternalista do letrado, incapaz de observar os sul-africanos negros enquanto dotados de sua própria agência, para reivindicar seus direitos e resistir às forças coloniais, exceto por meios violentos. Com efeito, uma das primeiras medidas tomadas pelo SANNC diante do Natives’ Land Act foi enviar uma petição ao governo britânico, para reforçar “que os nativos procuram resolver suas contendas pelos meios constitucionais, e não através da violência – sutil lembrança de que não foram eles, os assim chamados “bárbaros incivilizados”, os causadores dos tumultos em Witwatersrand” (GOMES, 2013, p. 195). Por outro lado, o romancista parece demonstrar razoável percepção dos processos de racialização do mundo do trabalho na África do Sul – daí a “fúria e violência” dos trabalhadores brancos – na medida em que, mesmo no cerne dos movimentos trabalhistas, difundia-se a ideia de que brancos e negros possuíam vontades e atuações distintas no campo profissional, construindo assim uma estrutura rigorosamente hierárquica da força de trabalho.

As questões étnico-raciais permeiam o cotidiano de Haggard em sua jornada pelo Cabo e, nas suas anotações referentes à tarde ensolarada de 7 de março de 1914, relata os almoços com a família do primeiro-ministro e as discussões a respeito do destino racial da África do Sul: “o nativo não pode mais ser suprimido, ou mesmo oprimido: ele deve seguir seu destino e frequentemente ele tem sido um indivíduo competente e capaz”. Por outro lado, entre os afrikaners, Haggard já identificava as marcas do “suicídio racial” (HAGGARD, 2001, p. 72-73HAGGARD, Henry Rider. Diary of an African Journey. 1ª Edição. Nova York: New York University Press, 2001.), isto é, a transformação nos padrões familiares marcada pela diminuição do número de filhos. A ideia de “suicídio racial” não estava apartada de uma série de discursos produzidos por britânicos acerca dos afrikaners na África do Sul, cuja permanência prolongada nas colônias teria resultado na degeneração racial, no fanatismo religioso e no extremismo político. O medo da mestiçagem, ou do que se chamava no período de “cafrealização”, permeava os imaginários de muitos letrados na época, temerosos do contato entre brancos e negros na região. Como resultado, na perspectiva de Haggard:

Talvez finalmente a África do Sul seja o resultado das raças negras com uma mistura de sangue branco. O risco de guerra entre os brancos e os Bantos passou, mas há outros riscos. Assim, o que eu vi no dia anterior, homem branco e negro, trabalhando lado a lado, era um deles: assinalava a igualdade vindoura. E uma vez que isso seja estabelecido, como poderão as minguantes pessoas brancas defender-se contra uma raça emergente, que já é quatro ou cinco vezes mais numerosa? (HAGGARD, 2001, p. 73HAGGARD, Henry Rider. Diary of an African Journey. 1ª Edição. Nova York: New York University Press, 2001.).

Na metade de março, Haggard e a Comissão Real seguiram de trem até Kimberley, atravessando a antiga república bôer do Estado Livre de Orange. Na região entre Kimberley e Bloemfontein, Haggard deparou-se com os efeitos da falta de chuvas no karoo, que resultou em perdas catastróficas para muitos agricultores na região e na desvalorização das terras. Além das fazendas locais, Haggard visitou as instalações da companhia de mineração De Beers, fundada pelo “magnata da mineração” Cecil Rhodes em 1888, com atenção flutuante às condições de vida e trabalho dos empregados negros. Se julgarmos pelos registros do letrado, os trabalhadores negros, “todos de diferentes tribos, alguns poucos Zulus mas [vi] um gigantesco Matabele [Ndebele]” (HAGGARD, 1914a s.p.HAGGARD, Henry Rider. Diário manuscrito. NRO MC32/51, Norfolk Records Office, 1914a.), estavam submetidos a um processo de disciplinarização e adestramento para a labuta nas minas. Haggard afirma que esses mineradores viviam em alojamentos “por quatro a seis meses por vez em um estado de estrito aprisionamento” (HAGGARD, 2001, p. 97HAGGARD, Henry Rider. Diary of an African Journey. 1ª Edição. Nova York: New York University Press, 2001.), sob vigilância para evitar o contrabando de diamantes, inspeções médicas obrigatórias e sujeitos a constantes epidemias de pneumonia e escorbuto. Além disso, antes de serem liberados de suas funções, “são trancados por quatro ou cinco dias pelo medo de que tenham engolido quaisquer diamantes, um negócio horrível e humilhante para todos os envolvidos, mas talvez necessário” (HAGGARD, 2001, p. 97HAGGARD, Henry Rider. Diary of an African Journey. 1ª Edição. Nova York: New York University Press, 2001.).

Haggard referia-se aos chamados “native compounds”, isto é, os alojamentos masculinos que concentravam as atividades cotidianas dos trabalhadores, e que, no caso da De Beers, acomodavam aproximadamente três mil homens (HARRIES, 1994, p. 197-199HARRIES, Patrick. Work, Culture and Identity: Migrant Labourers in Mozambique and South Africa 1860-1910. 1ª Edição. Portsmouth: Heinemann; Joanesburgo: Witwatersrand University Press; Londres: James Currey, 1994.). Somado à legislação de terras, esse contexto laboral visava forçar os trabalhadores sul-africanos a se enquadrar no que as elites políticas do período categorizavam como a “dignidade do trabalho” (GILIOMEE; MBENGA, 2007, p. 202GILIOMEE, Hermann; MBENGA, Bernard. New History of South Africa. 1ª Edição. Cidade do Cabo: Tafelberg Publishers, 2007.). Na prática, isso implicava na sujeição dos operários negros à disciplina do trabalho, além de migrar de sua comunidade de origem para as fazendas ou áreas de mineração. Nesses lugares, “o sistema de passes e compounds aguardava estes trabalhadores com sua política de repressão”, especialmente pelos contratos laborais, os quais “não lhes permitiam nenhuma liberdade de escolha de outras opções de trabalho” (FRITZEN, 2019, p. 158FRITZEN, Marlova Teresinha. Classe e raça na formação do mundo do trabalho na União Sul-Africana, de 1907-1936. Dissertação de mestrado, História, Centro de Ciências Humanas, UFPR, 2019.). A rigidez da hierarquia de trabalho ainda era, como mencionado anteriormente, perpassada pelas marcas da racialização, na medida em que restringiam os trabalhadores negros e coloureds às funções mais pesadas e insalubres.

Contudo, Haggard deixa escapar breves referências às instâncias nas quais a rede disciplinar era fraturada por meio de práticas culturais e táticas mobilizadas pelos trabalhadores negros diante das normatizações cotidianas: seja por um dos mineradores que portava “um fragmento de algum amuleto ou medicamento (mouti) escondido em um chapéu”, ou o outro que “tocava banjo e lia a Bíblia”, ou nas “ocasionais lutas selvagens e tribais” (HAGGARD, 2001, p. 97HAGGARD, Henry Rider. Diary of an African Journey. 1ª Edição. Nova York: New York University Press, 2001.) que certamente rompiam o cotidiano do trabalho nas minas. O reforço à disciplina e a hierarquização racial, enquanto formas de manutenção da ordem nos campos de mineração, conviviam com circunstâncias nas quais elementos culturais e práticas sociais dos trabalhadores negros eram acionados para criar fissuras nas forças de constrangimento no mundo do trabalho. Ademais, sabe-se que a vida nos compounds possibilitava a formação de laços de solidariedade e vínculos de sociabilidade entre os mineiros negros, em paralelo à preservação de hierarquias que separavam trabalhadores mais velhos ou experientes e os mais jovens (HARRIES, 1994, p. 197HARRIES, Patrick. Work, Culture and Identity: Migrant Labourers in Mozambique and South Africa 1860-1910. 1ª Edição. Portsmouth: Heinemann; Joanesburgo: Witwatersrand University Press; Londres: James Currey, 1994.).

O período de estadia em Orange River foi breve, e na semana seguinte a Comissão avançou à Natal, atravessando a cordilheira de Drakensberg rumo às cidades de Ladysmith, Colenso e Newcastle, trajeto no qual Haggard visitou os antigos campos de batalha e os túmulos de soldados britânicos e afrikaners mortos durante a guerra. Para Haggard, aquela parte da viagem soava como uma nota pessoal: o letrado aproveitou a ocasião para visitar sua antiga fazenda, Hilldrop, de onde acompanhou o desenrolar da insurreição bôer, no início da década de 1880. No destino seguinte, Maritzburg, Haggard encontrou-se com o historiador e linguista James Stuart, que posteriormente acompanhou-o na jornada à Zululândia. Stuart acumulou uma carreira como funcionário civil em Natal e intérprete de isiZulu, atuando na implementação de políticas de controle colonial ao mesmo tempo em que demonstrava empatia com a situação política dos nativos sul-africanos. Como resultado, registrou os testemunhos orais de cerca de duzentos africanos de Natal, da Zululândia e da Suazilândia, constituindo um dos acervos mais expressivos sobre a história dos Zulus e dos reinos, linhagens e chefias daquelas regiões (WRIGHT, 1996WRIGHT, John. Making the James Stuart Archive. History in Africa. Cambridge: Cambridge University Press, v. 23, 1996, p. 333-350. Disponível em: <https://doi.org/10.2307/3171947> Acesso em: 25 nov. 2019. doi: https://doi.org/10.2307/3171947
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; HAMILTON, 1994HAMILTON, Carolyn. James Stuart and the establishment of a living source of tradition. African Studies Institute (paper não publicado). University of the Witwatersrand. 1994, 28p.). Além disso, publicou A History of the Zulu Rebellion em 1907, no qual estudou o sistema de organização político-militar dos Zulus nas causas e consequências da revolta de Bambatha.

Na ocasião do encontro com Haggard na África do Sul, Stuart localizou um conhecido da juventude do letrado: Mazuku, antigo empregado Zulu, figura recorrente nos seus relatos sul-africanos da década de 1870. Descrito como um “boy”, embora tivesse praticamente a mesma idade que Haggard, sabe-se que Mazuku pertencia à linhagem Zulu Buthelezi; seu pai havia lutado ao lado de Cetshwayo durante a batalha de Ndondakusuka19 19 A batalha de Ndondakusuka (1856) ocorreu em um contexto de disputas internas entre dois pretendentes ao poder Zulu: Cetshwayo kaMpande e seu meio-irmão Mbuyazi. A batalha marcou a derrota de Mbuyazi, e pavimentou a passagem do poder à Cetshwayo. (1856), mas as tensões políticas e suspeitas de traição forçaram-no ao exílio em Natal (COAN, 2001, p. 37COAN, Stephen. Introduction. In: HAGGARD, H. Rider. Diary of an African Journey. 1ª Edição. Nova York: New York University, 2001.). O empregado Zulu representava, no ideário compartilhado por Haggard, um exemplo de “bom selvagem” pacato e desinteressado, capaz de atos de gratidão e conformidade com o projeto colonial. Nessa visão de mundo marcada pelas forças do paternalismo e do racismo, Mazuku continuava sendo, a despeito da idade avançada, o “menino Zulu”, fiel e obediente, e o letrado relata de forma emocionada o modo como, já idoso, continuava a responder às ordens com um “Inkoosi y pagate! Baba! (antigo chefe! Pai!), portanto significando obediência à ordem” (HAGGARD, 2001, p. 33HAGGARD, Henry Rider. Diary of an African Journey. 1ª Edição. Nova York: New York University Press, 2001.). Posteriormente, descreve a devoção de Mazuku, ao afirmar que continuaria a viver com Haggard, caso decidisse permanecer na África do Sul. O romancista ainda se surpreende por ser identificado como “o filho de Sompseu”, em referência ao modo como os nativos designavam Theophilus Shepstone – um lembrete dos laços paternalistas que constituem sua visão acerca das relações hierárquicas de poder entre sul-africanos negros e europeus brancos, traduzidos em um mundo de simbolismo paterno e obediência filial.

Na ocasião do reencontro com Stuart e Mazuku, Haggard discutiu com o historiador diversos tópicos referentes à história dos Zulus, especialmente elementos históricos que haviam sido apropriados pelo letrado em seu romance Zulu, Nada the Lily, publicado em 1892, o qual narrava a ascensão e queda do primeiro inkosi Shaka kaSenzangakhona, considerado como um dos fundadores do reino Zulu (HAMILTON, 1998HAMILTON, Carolyn. Terrific Majesty: The Powers of Shaka Zulu and the Limits of Historical Invention. 1ª Edição. Cambridge: Harvard University Press, 1998.). No dia seguinte, o romancista registrou seu encontro com Socwatsha, um Zulu idoso e caracterizado em suas anotações como o “filho de Papu da tribo Ngcobo” (HAGGARD, 1914a, s.p.HAGGARD, Henry Rider. Diário manuscrito. NRO MC32/51, Norfolk Records Office, 1914a.), o qual relatou o luto proclamado por Shaka pela ocasião da morte de sua mãe, Nandi, bem como os rumores em torno da morte do príncipe Mbuyazi, morto em disputas dinásticas com seu irmão, Cetshwayo, o último inkosi independente dos Zulus. O episódio descrito no diário evidencia um dos traços centrais na constituição do imaginário de Haggard ao longo de sua trajetória: sua dependência em testemunhos orais de africanos negros, especialmente se vinculados à elite política Zulu, em circunstâncias culturais atreladas às “zonas de contato” do colonialismo. Ao lado disso, demonstra que, na perspectiva do romancista, a produção ficcional estava profundamente entrelaçada aos relatos produzidos por historiadores como James Stuart e contribuiria para a formação do senso de coesão política e unidade territorial ao contexto sul-africano.

Os “brancos pobres” e a mão de obra nativa

A Comissão chegou ao Transvaal no final de março, e iniciou sua visita em Pretória, onde Haggard havia exercido funções administrativas no final da década de 1870, junto à comitiva de Theophilus Shepstone. A estadia no Transvaal foi perpassada por reuniões e conferências acerca da agricultura e mineração na África do Sul, bem como debates sobre os “brancos pobres, os quais são muito numerosos na África do Sul e especialmente em Joanesburgo”. Neste ponto, Haggard parece mobilizar certa perspectiva de remanejamento agrário que desenvolvia em seus escritos desde meados da década de 1890, propondo que tais camadas da população fossem reintegradas ao serviço agrícola com o apoio de instituições de caridade, incumbidas com a formação moral dos filhos de agricultores empobrecidos. Na visão dele, “a questão do branco empobrecido é um dos grandes problemas da África do Sul moderna e é complicada pela presença de uma vasta população nativa que faz com que o homem branco pense que é indigno fazer o que ele chama de ‘trabalho de negro’” (HAGGARD, 2001, p. 134HAGGARD, Henry Rider. Diary of an African Journey. 1ª Edição. Nova York: New York University Press, 2001.). O letrado muito possivelmente aludia ao que, na documentação do período, era categorizado de forma depreciativa: o trabalho mais pesado e degradante, destinado somente aos sul-africanos negros, ao exemplo da exploração das minas mais profundas. Na primeira década do século XX, uma grave onda de desemprego assolou Joanesburgo, e o governo municipal ofereceu essas vagas nas minas aos trabalhadores brancos e pobres, muitos dos quais se recusaram a ocupar funções consideradas como pesadas, mal remuneradas e associadas à mão de obra nativa (VAN ONSELEN, 2001, p. 321-236VAN ONSELEN, Charles. New Babylon, New Nineveh: Everyday Life on the Witwatersrand, 1886-1914. 1ª Edição. Jeppestown: Jonathan Ball Publishers, 2001.).

Aquela era a ponta do iceberg de um quadro estrutural de transformações nos mundos do trabalho naquela região da África do Sul da virada do século. O desenvolvimento da exploração de minérios em Joanesburgo provocou a gradual industrialização e subsequente urbanização, especialmente com o estabelecimento de afrikaners nas áreas urbanas, cuja população quintuplicou nas primeiras décadas do século XX. Joanesburgo e as minas de Witwatersrand eram o ponto central de atração destes movimentos migratórios, os quais haviam sido intensificados pela depressão econômica pós-guerra de 1899-1902. Como resultado da precarização das condições agrícolas, as terras para a ocupação latifundiária de afrikaners tornavam-se cada vez mais escassas. Além disso, muitos pecuaristas foram arruinados pela epidemia de rinderpest de 1896-1897, que resultou na morte de milhões de cabeças de gado e acelerou o processo de proletarização de afrikaners e sul-africanos negros (MUTOWO, 2001MUTOWO, Maurice. Animal Diseases and Human Populations in Colonial Zimbabwe: The Rinderpest Epidemic of 1896-1898. Zambezia. Harare: University of Zimbabwe, v. xxviii, n.1, 2001, p. 1-22. Disponível em: <https://www.ajol.info/index.php/zjh/article/view/6755> Acesso em: 23 mar. 2020. doi: http://dx.doi.org/10.4314/zjh.v28i1.6755
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).

É neste contexto que uma camada de afrikaners pobres, trabalhadores sem especialização e expostos a períodos prolongados de desemprego, surgiu e tentava subsistir, atuando “em pequenas parcelas improdutivas de terra” ou ainda como “arrendatários e meeiros em propriedades de terras maiores” (FRITZEN, 2019, p. 90FRITZEN, Marlova Teresinha. Classe e raça na formação do mundo do trabalho na União Sul-Africana, de 1907-1936. Dissertação de mestrado, História, Centro de Ciências Humanas, UFPR, 2019.). A situação era agravada por imposições culturais, já que, durante gerações, esses afrikaners associavam o trabalho manual aos escravizados e negros, e muitos brancos destituídos de terras para a agricultura eram incapazes de superar tais preconceitos, tornando-se dependentes de familiares abastados ou mudando-se para os centros urbanos. Para Haggard, a solução ao problema residia não apenas em reintegrá-los ao trabalho agrícola, distribuindo terras a valores módicos, mas também em reeducá-los para se tornarem “cidadãos úteis” (HAGGARD, 2001, p. 133HAGGARD, Henry Rider. Diary of an African Journey. 1ª Edição. Nova York: New York University Press, 2001.), isto é, disciplinados, produtivos e laboriosos. Na perspectiva de Haggard, o problema do “branco empobrecido” seria resolvido com um projeto político de reforma social capaz de implementar mudanças materiais nos mundos do trabalho e transformações comportamentais, por meio da modulação das ações e sentimentos de negros e “brancos pobres”.

Com o encerramento das atividades da Comissão Real no Transvaal, Haggard partiu para a Rodésia do Sul, então administrada pela British South Africa Company graças a um alvará concedido pela coroa britânica a Cecil Rhodes em 1889. Posteriormente, a companhia de colonização dividiu a Rodésia do Sul em duas províncias, a saber, a Mashonalândia e a Matabelelândia, que correspondiam respectivamente aos territórios dos Shona e dos Ndebele. Em decorrência de negociações e concessões realizadas com o inkosi Ndebele, Lobengula20 20 Lobengula (1845-1894) foi o inkosi Ndebele entre 1869 e 1894. Tanto por meio de negociações diplomáticas quanto por ações militares tentou preservar a independência de seu reino diante do avanço colonialista, especialmente de companhias britânicas interessadas na exploração de minérios na região. , a Company teve acesso aos territórios correspondentes atualmente ao Zimbábue e Zâmbia. De trem, Haggard deixou Mafeking, local de importância no contexto da guerra sul-africana devido ao cerco bôer à cidade que perdurou mais de duzentos dias, e rumou à Bulawayo, capital da Matabelelândia, que sofria com os efeitos da falta de chuvas. Após visitar o túmulo de Rhodes, Haggard partiu para Salisbury (atual Harare), cujo trajeto levou-o a concluir que a Rodésia “não é um lugar para o homem pobre”, e demandava o investimento de “homens com capital” (HAGGARD, 2001, p. 151HAGGARD, Henry Rider. Diary of an African Journey. 1ª Edição. Nova York: New York University Press, 2001.) para garantir sua ocupação efetiva. A retórica adotada por Haggard parece deixar em evidência certo antagonismo fundamental entre o capital dos randlords e a figura do trabalhador assalariado, que talvez, inserindo-se numa visão que enquadrava o operariado nas “classes perigosas”, adjetivasse com a pobreza para demarcar sua resignação ou revolta, insubordinação e lutas internas.

Afinal, greves de trabalhadores nas minas da Rodésia não eram desconhecidas naquele momento. Em dezembro de 1912, cerca de 160 trabalhadores negros nas carvoarias Wankie, no nordeste da Rodésia, interromperam os trabalhos de extração e instauraram estado de greve, em decorrência das insalubres condições de vida, trabalho e alimentação, que resultavam em alto índice de mortes devido a doenças como escorbuto, anemia e úlceras. A ausência de estações chuvosas no karoo, frequentemente mencionada por Haggard em seus relatos, agravou a situação, privando os trabalhadores das minas de alimentos frescos. A truculência e os castigos físicos promovidos pela administração apenas intensificaram a insatisfação dos trabalhadores, que mantiveram o estado de greve até janeiro de 1913 (VAN ONSELEN, 1974, p. 275-289VAN ONSELEN, Charles. The 1912 Wankie Colliery strike. The Journal of African History. Cambridge: Cambridge University Press, v. 15, n. 2, 1974, p. 275-289. Disponível em: <https://www.jstor.org/stable/181073>. Acesso em: 12 fev. 2020.
https://www.jstor.org/stable/181073...
). Somada às menções de Haggard às greves de trabalhadores brancos em Joanesburgo, bem como seus desdobramentos em Witwatersrand em janeiro de 1914 (GEYER, 2014GEYER, René. The Union Defence Force and the 1914 strike: the dynamics of the shadow of the burgher. Historia. Durban: Historical Association of South Africa, v. 59, n. 2, 2014, p. 136-151. Disponível em: <http://www.scielo.org.za/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0018-229X2014000200009>. Acesso em: 23 mar. 2020.
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), depreende-se que, para o letrado, a reestruturação da economia na Rodésia e na África do Sul dependia da fixação da força de trabalho, do abrandamento dos conflitos sociais e da disciplinarização dos trabalhadores, sejam eles brancos ou negros.

A jornada pela Rodésia encerrou-se com “uma terrível tempestade (...), irregular e selvagem, feito as línguas de serpentes em chamas” (HAGGARD, 2001, p. 167HAGGARD, Henry Rider. Diary of an African Journey. 1ª Edição. Nova York: New York University Press, 2001.) – o mesmo tipo de fenômeno natural que o romancista, com largas doses de sensibilidade romântica, incrementou em seus romances ambientados naquela região. Na metade de abril, Haggard partiu para a última parte de sua jornada: uma travessia de quatrocentas milhas de Durban em direção da Zululândia, acompanhado por Mazuku e Stuart. Com um pouco de imaginação histórica, pode-se especular que aquele talvez fosse o momento mais aguardado da viagem para Haggard, pois representava uma oportunidade ímpar de visitar cenários que havia recorrentemente imaginado em seus romances de aventura. O primeiro destino da travessia era a localidade de Gingindhlovu, onde o inkosi Cetshwayo havia estabelecido uma de suas povoações (kraal), e que também foi cenário de parte dos conflitos da guerra Anglo-Zulu. No caminho, Haggard mencionou a localidade “onde vive o Reverendo John Dube, um clérigo nativo de mente muito progressiva”, o qual, além de “editar um jornal e manter uma escola”, era visto “com muita suspeita por aquilo que poderia chamar de partido ‘ultra-branco” (HAGGARD, 2001, p. 179HAGGARD, Henry Rider. Diary of an African Journey. 1ª Edição. Nova York: New York University Press, 2001.), possivelmente em referência ao Het Volk ou, mais provável, ao Afrikaner Bond, fundado em 1881 com o objetivo de defender os interesses afrikaners.

Nesse ponto da jornada, Haggard aludia a John Langalibalele Mafukuzela Dube – educador, jornalista e político que fundou, ao lado de Solomon Plaatje, o SANNC (posteriormente chamado de African Native Congress). Além disso, Dube havia sido o criador do primeiro jornal (Ilanga Lase Natal) e do primeiro romance redigidos em isiZulu, por meio dos quais, somados às suas ações políticas, visava “interpretar e mudar um mundo nos quais princípios e práticas de igualdade e cidadania eram cotidianamente negados particularmente para a população africana e negra”, em um esforço de fornecer ao povo Zulu e aos sul-africanos negros, “experiências e perspectivas de liberdade e de acesso à cidadania” (BARROS, 2013, p. 1BARROS, Antônio Evaldo Almeida. John Dube e os desafios da segregação na África do Sul. Boletim do Tempo Presente. São Cristóvão: UFS, n. 6, 2013. Disponível em: <https://seer.ufs.br/index.php/tempopresente/article/view/4182>. Acesso em: 05 set. 2017.
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). Dube preocupou-se com os problemas sociais, políticos e econômicos enfrentados pela população negra sul-africana, especialmente os Zulus, e em muitos dos seus escritos condenou as ações dos administradores em Natal. Além disso, reconhecia a importância do acesso à educação e da leitura, especialmente de periódicos, na formação dos atributos morais e intelectuais do que chama de “nação Zulu”.

“Uma grande sede por educação” (HAGGARD, 2001, p. 197HAGGARD, Henry Rider. Diary of an African Journey. 1ª Edição. Nova York: New York University Press, 2001.) entre os sul-africanos negros era apontada por Haggard, o qual lamenta que a única possibilidade formal de escolarização dependia exclusivamente das ações dos missionários, deixando-os “em completa confusão”. Posteriormente, o letrado visitou a missão de St. Augustine em Rorke’s Drift, e a ordem religiosa beneditina sediada em Mariannhill, responsável pelo estabelecimento de diversas missões em Natal, no Transkei, na Rodésia e na Griqualândia, e que atendia – se levarmos em consideração os cálculos de Haggard – cerca de cinco mil crianças negras nas suas escolas. Em alguns dos seus romances, ao exemplo de The Ghost Kings (1908), Haggard descrevia os missionários enquanto homens iludidos ou até mesmo demagogos, pouco cientes das reais condições de vida na África do Sul e desinteressados pelas práticas culturais e sociais das populações negras. O que o letrado parece ignorar nesse ponto reside no fato de que “os conhecimentos engendrados no espaço das missões eram articulados por africanos na propagação de suas ideias e lutas políticas” (GOMES, 2017, p. 193GOMES, Raquel Gryszczenko Alves. Letras e missões: a influência da educação em espaço missionário na África do Sul – os casos de Olive Schreiner e Sol Plaatje. Revista do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, n. 12, 2017, pp. 193-195. Disponível em: <http://wpro.rio.rj.gov.br/revistaagcrj/letras-e-missoes-a-influencia-da-educacao-em-espaco-missionario-na-africa-do-sul-os-casos-de-olive-schreiner-e-pol-plaatje/>. Acesso em: 26 mar. 2019.
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). Líderes políticos e intelectuais sul-africanos, ao exemplo de Solomon Plaatje e John Tengo Jabavu, haviam sido educados em missões, e atuaram na formação de periódicos e partidos políticos voltados ao público negro sul-africano – muitas vezes nas prensas missionárias ou a partir de “redes de solidariedade estabelecidas a partir das experiências missionárias” (GOMES, 2017, p. 194GOMES, Raquel Gryszczenko Alves. Letras e missões: a influência da educação em espaço missionário na África do Sul – os casos de Olive Schreiner e Sol Plaatje. Revista do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, n. 12, 2017, pp. 193-195. Disponível em: <http://wpro.rio.rj.gov.br/revistaagcrj/letras-e-missoes-a-influencia-da-educacao-em-espaco-missionario-na-africa-do-sul-os-casos-de-olive-schreiner-e-pol-plaatje/>. Acesso em: 26 mar. 2019.
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).

É muito possível que Haggard, ao mencionar anteriormente que o nativo “começa a pensar por si próprio”, estivesse se referindo a John Dube e a outros intelectuais negros que, naquele contexto, inseriam-se nas tramas da política para reivindicar seus direitos, inclusive à instrução formal e escolarização. Neste ponto da jornada, poderíamos nos questionar sobre as visões de Haggard acerca dos direitos políticos dos sul-africanos negros, embora todas as evidências apontem a uma perspectiva racialista/racista, incapaz de reconhecer ou de aceitar a extensão da cidadania ou do direito ao voto às populações negras. Por um lado, o romancista viajante expressa preocupações a respeito da ocupação de terras nativas por parte dos afrikaners e de “outros homens brancos”, questionando-se sobre o “que acontecerá com os pobres Zulus. E o que acontecerá se eles são continuadamente amontoados juntos”. Para o letrado, o contato com as forças coloniais havia resultado na “degradação” das instituições nativas e de suas práticas culturais, somado ao fato de que “frequentemente os nativos são maltratados pelo homem branco” (HAGGARD, 2001, p. 181HAGGARD, Henry Rider. Diary of an African Journey. 1ª Edição. Nova York: New York University Press, 2001.). Assim, a Zululândia apresentava-se ao viajante, nesse sentido, como um território arruinado, permeado por túmulos e “kraals” destruídos, por nativos assolados pela fome e por doenças, resultados catastróficos da empreitada colonial.

Ainda assim, direta ou indiretamente, os relatos de Haggard pela Zululândia deixam a ver instâncias de reivindicação de direitos pelas chefias nativas locais. Ao chegar em Hlabisa, Haggard assistiu a uma reunião das autoridades locais com cerca de cinquenta chefias Zulu, descritos pelo letrado como pertencentes a “todos os tons de cor, do mais puro preto ao amarelo claro”. Após longas divagações a respeito dos processos de miscigenação racial entre os Zulus, o viajante passa a descrever as reivindicações nativas: “a alteração de fronteiras, isto é, a invasão e a implantação de fazendas nas suas terras. Outros reclamavam da proliferação de nagani, ou seja, da doença da mosca tsé-tsé, outros da nova lei de terras que os impediam de morar em fazendas a menos que pagassem pelo aluguel com o seu trabalho” (HAGGARD, 2001, p. 182HAGGARD, Henry Rider. Diary of an African Journey. 1ª Edição. Nova York: New York University Press, 2001.). De sua perspectiva paternalista, Haggard enfatiza a cordialidade com o qual esses amakhosi (chefes) expressavam suas demandas; contudo, o episódio parece evidenciar uma das tensões centrais no processo de formação da nação sul-africana na década de 1910, a saber, as demandas nativas pelo acesso e pela posse de terras. Este contexto havia sido afetado pela promulgação da Natives’ Land Act, que visava regular e controlar o nativo e sua relação com a terra, mas que, por outro viés, marcou “um caminho sem volta para a articulação política nativa naquela década do século XX”, momento no qual diversos esforços, sobretudo na imprensa e nas convenções, possibilitaram aos sul-africanos negros a inserção “num código político efetivo e incisivo, preocupado em denunciar a condução das políticas de segregação na União Sul-Africana” (GOMES, 2015, p. 182GOMES, Raquel Gryszczenko Alves. De Espinhos e Aguilhões: segregação e lei de terras na obra de Sol Plaatje. Tese de doutorado, História, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, UNICAMP, 2015.).

Nesse ponto das reivindicações e articulações políticas dos amakhosi, é preciso também enfatizar que, na perspectiva da cultura Zulu, o acesso às terras ancestrais tinha um significado simbólico profundo, em especial para as comunidades rurais. Afinal, “entre os Zulus” as terras “simbolizam a relação com os seus antepassados, o contato sagrado entre os habitantes e seus ancestrais” (BARBOSA, 2011, p. 32BARBOSA, Viviane de Oliveira. Mulheres rurais e lutas sociais no Brasil e na África do Sul. Mujimbo: Revista de Estudos Étnicos e Africanos, Salvador: UFBA, v. 2, n. 1, p. 29-43, 2011. Disponível em: <http://www.mujimboposafro.ffch.ufba.br/wp-content/uploads/2012/03/3.-Mulheres-Rurais-Viviane.pdf>. Acesso em: 20 out. 2020.
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). Por esse motivo, além das dimensões econômicas derivadas da pressão para proletarizar os sul-africanos negros, transformando-os em mão de obra barata para as fazendas, é preciso levar em considerar os aspectos culturais e religiosos derivados da relação com as terras: “a necessidade de garantir o enterro de seus parentes e as visitas ao túmulo dos já falecidos” (BARBOSA, 2011, p. 33BARBOSA, Viviane de Oliveira. Mulheres rurais e lutas sociais no Brasil e na África do Sul. Mujimbo: Revista de Estudos Étnicos e Africanos, Salvador: UFBA, v. 2, n. 1, p. 29-43, 2011. Disponível em: <http://www.mujimboposafro.ffch.ufba.br/wp-content/uploads/2012/03/3.-Mulheres-Rurais-Viviane.pdf>. Acesso em: 20 out. 2020.
http://www.mujimboposafro.ffch.ufba.br/w...
).

As impressões escritas do letrado igualmente evidenciam as instâncias das resistências cotidianas diante das violências derivadas do encontro colonial: na Zululândia, Haggard e Stuart depararam-se com “uma bela vista, uma garota nativa erguida sob o telhado de uma pequena cabana”, ocupada com o cuidado dos filhos e da plantação. Ao ver a câmera de Stuart apontada para ela, a jovem nativa confundiu-a com uma pistola e, temendo pela própria vida, fugiu em um “pânico repentino” (HAGGARD, 2001, p. 201HAGGARD, Henry Rider. Diary of an African Journey. 1ª Edição. Nova York: New York University Press, 2001.). A cena, um episódio aparentemente trivial, descrita na viagem de Haggard, ilustra e exemplifica a miríade de reações de sul-africanos negros diante da presença colonial, de estratégias para sobreviver em um contexto marcado pelos traumas da violência associada ao colonialismo – e de resistir aos esforços reiterados de europeus em definir como estes homens e mulheres seriam, por vias escritas ou visuais, representados.

A jornada de Haggard prosseguiu nos dias seguintes aos lugares associados à história política dos Zulus: o letrado visitou a região de Nongoma, onde ocorreu parte da guerra civil entre o filho de Cetshwayo, Dinizulu, e o chefe Usibepu, em meados da década de 1880; a floresta Ingomi, onde Cetshwayo havia supostamente sido capturado ao final da guerra Anglo-Zulu; e as colinas próximas ao rio Pongola, onde Nongalazi, o general do rei Mpande, havia derrotado seu antecessor e meio-irmão, Dingane; os cemitérios onde Mpande teria sido sepultado; a região correspondente à Ulundi e a colina de Isandhlwana, onde ocorreu uma das principais batalhas na guerra Anglo-Zulu de 1879; a fazenda localizada no antigo kraal de Dingane, uMgungundlovu, cenário de diversos romances de Haggard, ao exemplo de The Ghost Kings, e do massacre de bôeres descrito em Marie. Em Nongoma, Haggard também se encontrou com o inkosi uMpikanina, membro da família real Zulu, o qual apresentou-se ao magistrado acompanhado de um séquito de outras lideranças locais. As queixas destes amakhosi eram semelhantes àquelas encontradas em Hlabisa, a saber, “a tomada das terras ancestrais” pelos “homens brancos” (HAGGARD, 2001, p. 189HAGGARD, Henry Rider. Diary of an African Journey. 1ª Edição. Nova York: New York University Press, 2001.). Evidentemente, o letrado viajante, como era de se esperar, pouca atenção concede ao fato, que expressava, nas entrelinhas, as insatisfações e descontentamentos das lideranças nativas diante de uma emergente legislação segregacionista que instituía processos de expropriação de terras que, na prática, já ocorriam há décadas por meio de conflitos armados.

Um “Zulu do mais elevado sangue”: John Dube

Embora Haggard seja por vezes incapaz de dar-se conta das instâncias de reivindicação política por parte dos sul-africanos negros, bem como das resistências cotidianas à presença colonial, o letrado não hesita ao descrever o modo como eram tratados na África do Sul: do ponto de vista dos brancos, “um nativo é apenas um nativo, uma pessoa de quem a terra pode ser roubada com um pretexto ou outro, ou ter seu trabalho e impostos coletados, e que, se ele resiste ao processo ou se torna de algum modo inconveniente, pode levar um tiro com a consciência limpa”. Haggard reconhece “a nota dominante [daquele] tempo” (HAGGARD, 2001, p. 189HAGGARD, Henry Rider. Diary of an African Journey. 1ª Edição. Nova York: New York University Press, 2001.), baseada na restrição de direitos aos sul-africanos negros. O trecho mencionado não aparece nas notas originais do diário (rough diary), mas apenas na versão revisada, datilografada, redigida posteriormente na viagem de retorno à Inglaterra, certamente em tom retrospectivo. O que explicaria esta tomada de consciência acerca da condição sociopolítica do nativo sul-africano após a constituição da União Sul-Africana – precisamente nesse ponto da jornada?

Dois dias depois de deixar a Zululândia, Haggard estava de volta a Durban, onde finalizaria sua jornada na África do Sul e partiria à Europa. Após despedir-se de seus companheiros de viagem, o romancista relata ter sido “afortunado” em ter uma “longa entrevista com o Reverendo J[ohn] Dube de Phoenix, próximo a Durban, o clérigo e líder Zulu, o qual eu já havia mencionado, e que veio me visitar no seu caminho para Joanesburgo e para a Inglaterra”. Em seu diário, Haggard transcreve a entrevista deste “Zulu do mais elevado sangue”, apresentando alguns breves comentários ao final. Dube apresenta-se ao entrevistador como “um educador”, encarregado de “uma posição semi-política pelo meu povo”. Eleito para a presidência do SANNC desde 1912, Dube descrevia o objetivo do partido em termos de um esforço para “unir os nativos para motivos políticos, para considerar a legislação proposta afetando seus interesses e para fazer representações para aqueles em autoridade”. Sem perder tempo, o político africano define suas objeções ao Land Act: ele “priva os nativos dos seus direitos”, por não terem o amparo legal para adquirir terras; e os sul-africanos negros tampouco poderiam “arrendar terras ou fazendas”, exceto sob a condição de se submeter à autoridade de um fazendeiro branco. Aquela era tanto uma situação problemática do ponto de vista étnico-racial, quanto um contraste de classes sociais, na medida em que “os nativos foram muito deteriorados pelo contato com brancos de classe baixa” (HAGGARD, 2001, p. 227-228HAGGARD, Henry Rider. Diary of an African Journey. 1ª Edição. Nova York: New York University Press, 2001.).

No diálogo com Haggard, Dube enfatizava sua crença na “educação, tanto literária quanto agrícola, como um remédio e anseio de conduzir o nativo a melhores influências” (HAGGARD, 2001, p. 228HAGGARD, Henry Rider. Diary of an African Journey. 1ª Edição. Nova York: New York University Press, 2001.). O letrado e o político provavelmente encontravam simpatias um com o outro ao observarem a poligamia como um obstáculo para o melhoramento da condição social e cultural dos africanos. Nas sociedades Zulus, “a unidade fundamental” era o “lar (umuzi, imizi), onde um único homem (umnumzana) tinha autoridade sobre sua esposa ou esposas, seus filhos, gados, jardins e pastos” (MCCLINTOCK, 2010, p. 372MCCLINTOCK, Anne. Couro Imperial: raça, gênero e sexualidade no embate colonial. 1ª. Edição. Campinas: Editora da UNICAMP, 2010.); cada esposa cultivava seus próprios campos, e vivia com seus filhos em uma palhota ou casa separada. Assim, Dube considerava que a poligamia iria eventualmente ser extinta por “pressões econômicas” (HAGGARD, 2001, p. 228HAGGARD, Henry Rider. Diary of an African Journey. 1ª Edição. Nova York: New York University Press, 2001.) derivadas das taxas cobradas por cada cabana (hut taxes). Da parte de Haggard, como relembra Anne McClintock, as preocupações políticas com a poligamia já transpareciam em seus primeiros escritos ensaísticos e literários, observando-a como uma “marca nos homens africanos” e um dos pilares socioeconômicos do Reino Zulu. O ataque à poligamia também era um ataque aos “hábitos africanos de trabalho”, já que “o trabalho excedente que o homem negro controlava através de suas esposas era visto como uma ameaça direta e mortal aos lucros dos colonos” (MCCLINTOCK, 2010, p. 372MCCLINTOCK, Anne. Couro Imperial: raça, gênero e sexualidade no embate colonial. 1ª. Edição. Campinas: Editora da UNICAMP, 2010.).

Dube ainda assegurava a Haggard que as relações entre negros e brancos haviam se deteriorado no cenário político da época, de modo que “nós [sul-africanos negros] não temos meios de comunicação com as autoridades ou com a opinião pública exceto por magistrados que tem pouco tempo para ouvir as queixas de nativos”. A solução encontrada por Dube incide sobre a representatividade constitucional, por meio da criação de um conselho formado por oficiais na Zululândia, os quais teriam o direito assegurado de criticar “todas as leis afetando os nativos”, além da prerrogativa de direcionar fundos adquiridos por impostos em “assuntos de importância local” (HAGGARD, 2001, p. 228HAGGARD, Henry Rider. Diary of an African Journey. 1ª Edição. Nova York: New York University Press, 2001.), tais como a construção de estradas e escolas.

Para o político sul-africano, a discussão não era novidade, pois, através do jornal Ilanga Lase Natal, Dube “protestara contra a influência exercida pelo Natal Farmer’s Congress sobre o governo em problemas que afetavam os africanos” (BARROS, 2013, p. 15BARROS, Antônio Evaldo Almeida. John Dube e os desafios da segregação na África do Sul. Boletim do Tempo Presente. São Cristóvão: UFS, n. 6, 2013. Disponível em: <https://seer.ufs.br/index.php/tempopresente/article/view/4182>. Acesso em: 05 set. 2017.
https://seer.ufs.br/index.php/tempoprese...
). Especialmente após a Revolta de Bambatha, Dube redirecionou suas críticas aos departamentos que lidavam com a “questão nativa”, em vias de denunciar a truculência dos magistrados, acusados de maltratar as populações negras e ignorar suas leis e costumes. Como solução, Dube defendia a nomeação de homens negros e educados aos cargos de funcionários civis (intérpretes, policiais, mensageiros), atuando como intermediários ao lado dos magistrados (GASA, 1999, p. 26-27GASA, Enoch Doctor. John L. Dube, his Ilanga Lase Natali and the Natal African Administration, 1903-1910. Tese de doutoramento, História, Universidade da Zululândia, 1999, p. 26-27.).

Além disso, Dube defende a criação de um sistema público de educação, similar ao modelo britânico, porém adequado às demandas locais: “nosso povo precisa ser educado... Eles estão sentados na escuridão” (HAGGARD, 2001, p. 230HAGGARD, Henry Rider. Diary of an African Journey. 1ª Edição. Nova York: New York University Press, 2001.). Haggard descreve de modo favorável a impressão causada por John Dube, mas parece pouco esperançoso quanto à eficácia das suas reivindicações. Contudo, o encontro com o líder africano, deve ter deixado o letrado um pouco mais sensível às condições sociais e políticas dos sul-africanos negros no emergente Estado nacional. Em carta enviada a Herbert John Gladstone, que ocupava então o cargo de governador-geral da África do Sul, Haggard refletia sobre a “infeliz posição” ocupada pelos Zulus: “cerca de dois-terços das terras deles estão nas mãos de brancos: frequentemente eles são posseiros que pagam aluguel em territórios que seus pais ocupavam (...). Eles são um povo que nós destruímos e não consertamos” (HAGGARD, 2001, p. 231HAGGARD, Henry Rider. Diary of an African Journey. 1ª Edição. Nova York: New York University Press, 2001.). Incorporando algumas das ideias de Dube, Haggard reforça a demanda por um sistema público de educação e pela representatividade de um conselho nativo, semelhante ao que já ocorria no Transkei e na Basutolândia. A respeito de Dube, Haggard mencionou-o posteriormente, em um dos relatórios enviados à Comissão Real, ecoando sua crença de que as animosidades entre brancos e negros estavam intensificando-se em um “ressentimento afiado pelas muitas memórias amargas e um senso de injustiça” (HAGGARD, 2001, p. 300HAGGARD, Henry Rider. Diary of an African Journey. 1ª Edição. Nova York: New York University Press, 2001.).

Aqueles eram os últimos dias da viagem de Haggard pela África do Sul em 1914, acompanhando a Comissão Real. Na semana seguinte, a bordo do navio Gaika, partiria rumo à Inglaterra, com passagem pela costa da África, especificamente em Moçambique e em Zanzibar. Talvez sensibilizado pelo encontro com Dube, o letrado indaga-se acerca do futuro da nação sul-africana, certo de que “o homem branco possui uma conta alta para pagar ao nativo” e de que “nenhuma raça branca teve sucesso em se estabelecer na África”. Assim como “os brancos corromperam os negros, ao final os negros podem corromper os brancos e levar à derrocada”. Ou, eventualmente, “os negros podem alcançar o poder político”. Sem deixar de lado preconceitos raciais e preceitos racialistas, ao exemplo de suas ansiedades referentes à miscigenação ou a crença nos efeitos negativos do clima africano sobre “raças nortenhas”, Haggard demonstrava, ao final da viagem, algum nível de clareza a respeito da violência e do desequilíbrio de poder provocados pelo colonialismo na África, ao compreender que “a superioridade do homem branco se deve apenas à superioridade da sua capacidade em destruir a vida com o auxílio de armas aperfeiçoadas” (HAGGARD, 2001, p. 239HAGGARD, Henry Rider. Diary of an African Journey. 1ª Edição. Nova York: New York University Press, 2001.). No que se refere ao futuro da África do Sul, diversos fatores estariam em jogo, ao exemplo do acesso à educação formal, o controle sobre a mão-de-obra, a apropriação de terras, a articulação política, os ressentimentos e violências geradas ou gestadas a partir da disseminação de leis segregacionistas.

Considerações finais

Redigido em um momento imediatamente posterior ao estabelecimento da União Sul-Africana, o diário de viagem de Haggard apresenta-se como registro importante de impressões pessoais e sensibilidades políticas referentes a um contexto no qual diversos grupos políticos esforçavam-se para definir “quem era, afinal, o sul-africano que se queria para aquela nação” (GOMES, 2015, p. 4GOMES, Raquel Gryszczenko Alves. De Espinhos e Aguilhões: segregação e lei de terras na obra de Sol Plaatje. Tese de doutorado, História, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, UNICAMP, 2015.). Contraposto a um quadro mais amplo de documentos literários e ensaísticos produzidos pelo letrado naquele momento, desponta-se um projeto de nação sul-africana baseado no abrandamento dos antagonismos político-sociais entre britânicos e bôeres e na sedimentação de uma elite branca, o que implicava na disciplinarização da mão-de-obra, sobretudo de sul-africanos negros e dos “brancos pobres”. A África do Sul descrita por Haggard em seu diário configurava-se como uma nação marcada cada vez mais pela força de leis de terras, de caráter fortemente excludente, ao exemplo da Natives’ Land Act, que confinava milhões de sul-africanos negros a pequenas frações territoriais, simultaneamente negando-lhes o reconhecimento de seus direitos políticos.

Nos escritos da viagem à África do Sul em 1914, Haggard alinhava-se à parte da elite local nos seus temores direcionados às reivindicações políticas de grupos e partidos de sul-africanos negros e coloureds, e à diferença quantitativa entre negros e brancos na nação sul-africana que se delineava naquele contexto. A atenção especial do letrado incidia sobretudo nas condições de trabalho na mineração e no setor agrícola, frequentemente reiterando os dilemas resultantes dos processos de proletarização engendrados no período de expansão do capitalismo na região. Seus relatos possibilitam vislumbrar os ecos da racialização do mundo do trabalho na África do Sul do início do século XX, somado à preocupação das elites políticas em torno da existência de uma camada de trabalhadores brancos, empobrecidos e não-especializados nos centros urbanos. Menções às greves em Joanesburgo e em Witwatersrand, sobretudo em ótica elitista, ainda reforçavam uma visão depreciativa dos movimentos de trabalhadores sul-africanos, associados à pobreza e, em consequência, à ideia de “classes perigosas”.

Ao mesmo tempo, direta ou indiretamente, o diário de Haggard deixa ver a forma como as lideranças nativas organizavam-se e mobilizavam-se em torno de conselhos e partidos políticos para questionar a apropriação ou expropriação de “terras ancestrais”. No encontro com John Dube, a ênfase recaiu na valorização da educação e da instrução formal, bem como da composição de conselhos representativos, capazes de articular as defesas dos direitos políticos e sociais dos sul-africanos negros. Os escritos do viajante ainda possibilitam vislumbrar as instâncias cotidianas de resistência e agenciamento dos sul-africanos negros, sobretudo dos Zulus, diante do enrijecimento da legislação segregacionista, especialmente por meio das leis de terras, e no processo de proletarização e disciplinarização do trabalho nas minas e lavouras.

  • 3
    Ao longo dos séculos XVIII e XIX, diversos termos eram utilizados alternadamente para denominar os descendentes de holandeses, alemães e franceses que se estabeleceram no sul da África desde o século XVII: burgher, Dutch, Dutchman, boer (“fazendeiro”, em afrikaans), afrikaner. A partir do final do século XIX, o termo “afrikaner” passou a ganhar uma força política, para marcar a oposição aos britânicos, e também em associação a movimentos identitários. Portanto, reservo o uso do termo “afrikaner” para o contexto posterior ao final da guerra, em 1902, quando o termo “bôer”, amplamente utilizado pelas repúblicas, começou a perder sua recorrência, especialmente em contextos urbanos (GILIOMEE, 2011, p. 256-259GILIOMEE, Hermann. The Afrikaners: Biography of a People. 2a. Edição. Londres: Hurst & Company, 2011.).
  • 4
    A guerra sul-africana (também designada pela historiografia tradicional como “segunda guerra Anglo-Bôer”, entre outras denominações), foi o resultado cumulativo de tensões políticas e rivalidades entre bôeres e britânicos ao sul da África, bem como projetos divergentes a respeito da construção da nação sul-africana. Um dos seus antecedentes diz respeito ao que ficou conhecido como Jameson Raid, isto é, a tentativa malfadada de golpe militar para anexar o Transvaal às posses britânicas por Cecil Rhodes e Leander Starr Jameson em 1895. Opta-se por utilizar o termo “guerra sul-africana”, a partir das indicações de Peter Warwick (1983)WARWICK, Peter. Black People and the South African War (1899-1902). 1ª Edição. Cambridge: Cambridge University Press, 1983., para reforçar o protagonismo de outros grupos, ao exemplo de Zulus, Bapedis, Swazis e Basotos, que, durante muito tempo, foram invisibilizados por uma historiografia que perpetuou o “mito de uma guerra de homens brancos”: “a impressão que foi perpetuada em numerosos livros de história que a guerra foi simplesmente um conflito Anglo-Bôer. De fato, foi muito mais do que isso. Em certo sentido, foi uma guerra sul-africana, um conflito que diretamente tocou as vidas de centenas de milhares de pessoas negras” (WARWICK, 1983, p. 4WARWICK, Peter. Black People and the South African War (1899-1902). 1ª Edição. Cambridge: Cambridge University Press, 1983.). Remeto-me também aos estudos de Paula Krebs (1999)KREBS, Paula. Gender, Race and the Writing of Empire. Public Discourse and the Boer War. 1ª Edição. Cambridge: Cambridge University Press, 1999. acerca do papel de mulheres nas experiências cotidianas em torno da guerra.
  • 5
    Jan Smuts (1870-1950) foi um estadista e liderança militar sul-africana. Atuou na guerra sul-africana, e foi um dos fundadores do South African Party. Foi eleito primeiro-ministro da União Sul-Africana em dois momentos, entre 1919 e 1924, e novamente de 1939 a 19448.
  • 6
    Henry Herbert (1831-1890), também conhecido como Lord Carnarvon, foi um político britânico e membro do Partido Conservador. Atuou enquanto Secretário de Estados para as Colônias, e supervisionou a formação da Confederação Canadense entre 1866 e 1867.
  • 7
    Theophilus Shepstone (1817-1893) foi um administrador colonial em Natal, atuando, durante boa parte de sua carreira, enquanto Secretário de Assuntos Nativos. Foi um dos primeiros proponentes de um sistema de segregação territorial para as populações negras em Natal.
  • 8
    A Guerra Anglo-Zulu (1879), foi travada entre as forças coloniais britânicas e os guerreiros de Cetshwayo kaMpande, o último inkosi (chefe) independente do Reino Zulu. A despeito de algumas vitórias iniciais dos Zulus, foram derrotados em julho daquele ano e, como resultado, Cetshwayo foi deposto e o Reino Zulu foi dividido em treze províncias governadas por líderes nativos apontados pela administração colonial. A fragmentação do Reino Zulu ainda levou a disputas internas e guerras civis que perduraram até a metade da década de 1880 (BHEBE, 2010BHEBE, Ngwabi. Os britânicos, os bôeres e os africanos na África do Sul (1850-1880). In: AJAYI, Jacob Festus Adeniyi. História Geral da África, v. VI: África do século XIX à década de 1880. 1ª Edição. Brasília: UNESCO, 2010.).
  • 9
    Cetshwayo kaMpande (1826-1884) foi o inkosi Zulu entre 1873 e 1879. Nesse período, tentou reabilitar o sistema amabutho de regimentos militares zulus, e envolveu-se em conflitos com os britânicos após a anexação do Transvaal. Sobre essas questões, ver: GLUCKMAN (1960)GLUCKMAN, Max. The Rise of a Zulu Empire. Scientific American. Nova York: Springer Nature, v. 202, n. 4, 1960, p. 157-169. Disponível em: <https://www.jstor.org/stable/24940454?seq=1>. Acesso em: 20 out. 2020.
    https://www.jstor.org/stable/24940454?se...
    ; MORRIS (1998)MORRIS, Donald. The Washing of Spears: The Rise and Fall the Zulu Nation. 2a. Edição. Boston: Da Capo Press, 1998. e HAMILTON (1998)HAMILTON, Carolyn. Terrific Majesty: The Powers of Shaka Zulu and the Limits of Historical Invention. 1ª Edição. Cambridge: Harvard University Press, 1998..
  • 10
    O Jameson Raid, que ocorreu entre dezembro de 1895 e 1896, consistiu em uma tentativa malfadada de anexação militar da República Sul-Africana (Transvaal), engendrado pelo então primeiro-ministro do Cabo, Cecil Rhodes, e coordenado pelo médico Leander Starr Jameson. Visava destituir o presidente do Transvaal, Paul Kruger, com o apoio dos uitlanders, estrangeiros que não desfrutavam de direitos políticos na república bôer. Contudo, o apoio dos uitlanders nunca veio, e os soldados de Rhodes e Jameson foram derrotados. O golpe também é considerado como um dos estopins para a guerra de 1899-1902 (GOMES, 2015, p. 28GOMES, Raquel Gryszczenko Alves. De Espinhos e Aguilhões: segregação e lei de terras na obra de Sol Plaatje. Tese de doutorado, História, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, UNICAMP, 2015.).
  • 11
    Ocorrida em março de 1909, a South African National Native Convention (e que mais tarde daria origem ao South African Native National Congress) foi essencialmente um espaço de discussão de sul-africanos negros acerca de suas “possibilidades de participação política no estado nacional em constituição” (GOMES, 2015, p. 177GOMES, Raquel Gryszczenko Alves. De Espinhos e Aguilhões: segregação e lei de terras na obra de Sol Plaatje. Tese de doutorado, História, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, UNICAMP, 2015.). Um de seus principais organizadores foi o político e escritor Solomon Plaatje.
  • 12
    O termo oorstrooming, traduzido como “swamping” ou “inundação”, era utilizado no início do século XX pelos afrikaners para designar os temores relativos ao êxodo de africanos negros para os centros urbanos, assinalando assim riscos de perda de mão de obra, maior competitividade no mercado de trabalho e desestabilização do sistema de trabalho migrante (ALEXANDER, 2000ALEXANDER, Peter. Workers, War and the Origins of Apartheid: Labour and Politics in South Africa 1939-48. 1ª Edição. Oxford: Currey, 2000.).
  • 13
    Considerada como um exemplo de reação e resistência nativa aos avanços do colonialismo, a Revolta de Bambatha ou Revolta Zulu de 1906 foi um movimento contrário à cobrança de impostos (Poll Tax) estabelecido na Colônia de Natal, e que recaía duramente sobre os agricultores negros. A revolta foi liderada, entre outras figuras, por um inkosi zulu, Bambatha, e implicou no envolvimento (direto ou indireto) de Dinizulu, o filho de Cetshwayo e herdeiro do trono zulu. Sobre a revolta, ver: MARKS (1986)MARKS, Shula. Class, Ideology and the Bambatha Rebellion. In: CRUMMEY, Donald (org.). Banditry, Rebellion and Social Protest in Africa. 1ª Edição. Londres: James Currey, 1986.; REDDING (2000)REDDING, Sean. A Blood-Stained Tax: Poll Tax and the Bambatha Rebellion in South Africa. African Studies Review, Cambridge: Cambridge University Press, v. 43, n. 2, p. 29-54, 2000. Disponível em: <https://www.jstor.org/stable/524983>. Aceso em: 11 out. 2019. DOI: https://doi.org/10.2307/524983
    https://www.jstor.org/stable/524983...
    .
  • 14
    Louis Botha (1862-1919) foi membro do parlamento do Transvaal, atuou na guerra sul-africana e, com a formalização da União Sul-Africana, assumiu o posto de primeiro-ministro. Ao lado de Smuts, foi um dos fundadores do South African Party.
  • 15
    James Barry Hertzog foi um general sul-africano. Atuou na guerra de 1899, e posteriormente, entre 1924 e 1939, ocupou o cargo de primeiro-ministro.
  • 16
    Solomon Tshekisho Plaatje (1876-1932) foi um escritor, político e jornalista de origem Barolong. Foi um dos fundadores do South African National Native Congress, e articulou, por meio de seus escritos e ações políticas, posicionamentos críticos e resistências ao aumento da opressão política e social sobre sul-africanos negros no início do século XX. Ver: GOMES (2015)GOMES, Raquel Gryszczenko Alves. De Espinhos e Aguilhões: segregação e lei de terras na obra de Sol Plaatje. Tese de doutorado, História, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, UNICAMP, 2015..
  • 17
    Cecil Rhodes (1853-1902) é considerado hoje como um dos principais representantes do imperialismo britânico na África. Fundou a British South African Company, uma companhia particular de mineração e colonização, e ocupou o cargo de primeiro-ministro na Colônia do Cabo na década de 1890.
  • 18
    É preciso esclarecer que, de fato, existiram quatro diários: um rough diary (esboço), salvaguardado no Norfolk Records Office (MC32/51 NRO), o qual sumariza, em cerca de 190 páginas manuscritas, as informações mais essenciais da viagem (datas, lugares, e breves apontamentos sobre o trajeto percorrido); uma versão revisada, redigida na viagem de retorno (que se encontra desaparecida); e uma versão posteriormente datilografada por sua secretária, Ida Hector. Na década de 1950, uma segunda transcrição datilografada foi realizada, embora com diversas grafias alteradas, em especial acerca de topônimos sul-africanos. O artigo utiliza como base o rough diary e a versão publicada do diário datilografado, editado por Stephen Coan em 2001COAN, Stephen. Introduction. In: HAGGARD, H. Rider. Diary of an African Journey. 1ª Edição. Nova York: New York University, 2001..
  • 19
    A batalha de Ndondakusuka (1856) ocorreu em um contexto de disputas internas entre dois pretendentes ao poder Zulu: Cetshwayo kaMpande e seu meio-irmão Mbuyazi. A batalha marcou a derrota de Mbuyazi, e pavimentou a passagem do poder à Cetshwayo.
  • 20
    Lobengula (1845-1894) foi o inkosi Ndebele entre 1869 e 1894. Tanto por meio de negociações diplomáticas quanto por ações militares tentou preservar a independência de seu reino diante do avanço colonialista, especialmente de companhias britânicas interessadas na exploração de minérios na região.
  • 1
    Esse artigo é uma versão estendida do último capítulo da tese de doutoramento intitulada H. Rider Haggard e a questão sul-africana, defendida no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná em 2020, sob orientação do Prof. Dr. Clóvis Gruner, a quem agradeço. Agradeço também ao apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pela bolsa de financiamento (Processo nº 88882.381999/2019-01) que possibilitou a realização de parte da pesquisa (estágio de pesquisa no exterior) na Inglaterra. Sou grato também ao Prof. Paul Young, da University of Exeter, pela orientação durante o doutorado-sanduíche, e ao Norfolk Records Office, instituição que salvaguarda parte das fontes citadas no artigo. Artigo não publicado em plataforma de preprint. Todas as fontes e bibliografia utilizadas são referenciadas no artigo.

Referências Bibliográficas

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  • BARROS, Antônio Evaldo Almeida. John Dube e os desafios da segregação na África do Sul. Boletim do Tempo Presente. São Cristóvão: UFS, n. 6, 2013. Disponível em: <https://seer.ufs.br/index.php/tempopresente/article/view/4182>. Acesso em: 05 set. 2017.
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Editado por

Editores Responsáveis
Júlio Pimentel Pinto e Flavio de Campos

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Ago 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    28 Mar 2020
  • Aceito
    08 Dez 2020
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