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Representações e práticas de pacientes com úlceras vasculogênicas sobre qualidade de vida

RESUMO

Objetivo:

Identificar as representações sociais e práticas de pacientes portadores de úlcera vasculogênica acerca da sua qualidade de vida.

Método:

Pesquisa qualitativa, com aplicação da teoria das Representações Sociais. Os participantes foram 30 pacientes com úlceras vasculogênicas cadastrados em uma unidade de saúde do Rio de Janeiro. A coleta de dados ocorreu por meio de entrevistas semiestruturadas, e a análise foi lexical.

Resultados:

As representações sociais sobre a qualidade de vida se construíram a partir dos afetos oriundos das mudanças na vida dos pacientes. Assim, as perdas oriundas da reconfiguração do cotidiano direcionaram a uma construção simbólica negativa sobre si e a sua vida, a qual resultou, de um lado, em comportamentos proativos de autocuidado e, de outro, com menor cuidado de si.

Conclusão:

Cuidados de promoção da saúde e suporte social são requeridos para a ressignificação da vida com a úlcera e adoção de novas práticas de enfrentamento.

Palavras-chave:
Qualidade de vida; Úlcera da perna; Psicologia social; Enfermagem; Atenção primária à saúde

ABSTRACT

Objective:

To identify the social representations and practices of patients with vasculogenic ulcer about their quality of life.

Method:

Qualitative research that applied the Social Representations theory. Participants were 30 patients with vasculogenic ulcers registered at a health unit in Rio de Janeiro. Data was collected through semi-structured interviews, and lexical analysis was applied. Results: The social representations about the quality of life of the patients were built from the affections arising from the changes in their lives. Thus, losses arising from the reconfiguration of daily life led to a negative symbolic construction about themselves and their lives, which resulted, on the one hand, in proactive self-care behaviors and, on the other, in less self-care.

Conclusion:

Care for health promotion and social support is required to re-signification of life with ulcer and the adoption of new coping practices.

Keywords:
Quality of life; Leg ulcer; Psychology social; Nursing; Primary health care

RESUMEN

Objetivo:

Identificar las representaciones sociales y prácticas de los pacientes con úlceras vasculares sobre su calidad de vida.

Método:

Investigación cualitativa, con aplicación de la teoría de las representaciones sociales. Los participantes fueron 30 pacientes con úlceras vasculares registrados en una unidad de salud en Río de Janeiro. La recolección de datos ocurrió a través de entrevistas semiestructuradas, y se realizó el análisis lexical.

Resultados:

Las representaciones sociales sobre la calidad de vida se construyeron a partir de los afectos derivados de los cambios en la vida de los pacientes. Así, las pérdidas derivadas de la reconfiguración de la vida cotidiana llevaron a una construcción simbólica negativa sobre sí mismo y su vida, que derivó, por un lado, en conductas proactivas de autocuidado y, por otro, en un menor autocuidado.

Conclusión:

Se requieren cuidados para la promoción de la salud y apoyo social para la construcción de nuevos significados sobre la vida con la úlcera y adoptar nuevas prácticas de afrontamiento.

Palabras clave:
Calidad de vida; Úlcera de la pierna; Psicología social; Enfermería; Atención primaria de salud

INTRODUÇÃO

As úlceras de origem vascular são tidas como um problema grave e de abrangência mundial, pois respondem por altos índices de morbimortalidade e causam significante impacto social e econômico, devido a sua natureza recorrente e ao longo tempo decorrido entre a abertura da ferida e a sua cicatrização. Caracterizam-se por um processo crônico, doloroso, recorrente, com repercussão negativa na qualidade de vida dos pacientes11. Joaquim FL, Silva RMCRA, Garcia-Caro MP, Cruz-Quintana F, Pereira ER. Impact of venous ulcers on patients’ quality of life: an integrative review. Rev Bras Enferm. 2018;71(4):2021-9. doi: http://doi.org/10.1590/0034-7167-2017-0516
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Segundo a Organização Mundial da Saúde, a qualidade de vida é definida como a percepção do indivíduo da sua posição na vida, no contexto da cultura e sistemas de valores nos quais se insere e em relação aos seus objetivos, expectativas, padrões e preocupações22. WHOQOL Group. The development of the world health organization quality of life assessment instrument (the WHOQOL). In: Orley J, Kuyken W, editors. Quality of life assessment: international perspectives. Heidelberg: Springer, 1994 [cited 2020 May 5]. 41-57. Available from: https://link.springer.com/content/pdf/10.1007%2F978-3-642-79123-9.pdf
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. Tal conceito é marcado pela subjetividade e envolve os componentes físico, psicológico, social, cultural ou espiritual.

No caso dos pacientes com úlceras vasculogênicas, os estudos evidenciam diferentes aspectos que afetam substancialmente a sua qualidade de vida33. Phillips P, Lumley E, Duncan R, Aber A, Woods HB, Jones GL, et al. A systematic review of qualitative research into people's experiences of living with venous leg ulcers. J Adv Nurs. 2018;74(3):550-63. doi: http://doi.org/10.1111/jan.13465
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-66. Peart J. Influence of psychosocial factors on coping and living with a venous leg ulcer. Br J Community Nurs. 2015;20(Suppl 6):S21-S27. doi: http://doi.org/10.12968/bjcn.2015.20.Sup6.S21
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. A dor é um dos sintomas mais reportados. Revisão sistemática sobre os sintomas e a qualidade de vida relacionada à saúde de pacientes com úlceras venosas de perna apontou que a dor relacionada ao tratamento traz impactos significantes no sono, mobilidade e humor33. Phillips P, Lumley E, Duncan R, Aber A, Woods HB, Jones GL, et al. A systematic review of qualitative research into people's experiences of living with venous leg ulcers. J Adv Nurs. 2018;74(3):550-63. doi: http://doi.org/10.1111/jan.13465
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Acerca dos aspectos psicossociais, diferentes estudos internacionais abordam este tipo de impacto na qualidade de vida44. Platsidaki E, Kouris A, Christodoulou C. Psychosocial aspects in patients with chronic leg ulcers. Wounds. 2017;29(10):306-10. doi: http://doi.org/10.25270/wnds/2017.10.306310
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-66. Peart J. Influence of psychosocial factors on coping and living with a venous leg ulcer. Br J Community Nurs. 2015;20(Suppl 6):S21-S27. doi: http://doi.org/10.12968/bjcn.2015.20.Sup6.S21
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. Um dos estudos objetivou descrever os impactos sociais negativos e os prejuízos à qualidade de vida dos pacientes com úlceras venosas crônicas nas pernas. Os resultados apontaram que as capacidades para trabalhar, resolver tarefas domésticas e de realizar a higiene pessoal podem ser afetadas. Além disso, os pacientes experimentaram sentimentos negativos como vergonha, solidão, frustração, com níveis mais altos de depressão e ansiedade44. Platsidaki E, Kouris A, Christodoulou C. Psychosocial aspects in patients with chronic leg ulcers. Wounds. 2017;29(10):306-10. doi: http://doi.org/10.25270/wnds/2017.10.306310
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Essa afirmativa é corroborada por investigação que avaliou a ansiedade, depressão, autoestima e solidão em 102 pacientes com úlceras de perna. Os pacientes apresentaram escores mais altos na escala de ansiedade e depressão em relação aos pacientes saudáveis, e as mulheres um escore de ansiedade e isolamento social superior ao dos homens55. Kouris A, Armyra K, Christodoulou C, Sgontzou T, Karypidis D, Kontochristopoulos G, et al. Quality of life psychosocial characteristics in Greek patients with leg ulcers: a case control study. Int Wound J. 2016;13(5):744-7. doi: http://doi.org/10.1111/iwj.12363
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Os impactos da úlcera vasculogênica evidenciados na literatura indicam que a qualidade de vida é um objeto de relevância social77. Jodelet D. Representações sociais: um domínio em expansão. In: Jodelet D, organizadora. As representações sociais. Rio de Janeiro: EdUERJ; 2001. p.17-44.) para este grupo. Diante disso, levantou-se o pressuposto teórico de que esses indivíduos elaboram representações sociais (RS) sobre a sua qualidade de vida que influenciam o modo como se relacionam consigo mesmo e com o mundo que os cerca, orientando comportamentos que retratam a maneira como enfrentam esta condição e aderem à terapêutica.

Acerca da identificação dos fenômenos de RS, ressalta-se que nem sempre o grupo selecionado tem representação de um determinado objeto, pois esse deve ter espessura social, relevância sociocultural para o grupo88. Sá CP. A construção do objeto de pesquisa em representações sociais. Rio de Janeiro: EdUERJ; 1998.. Neste entendimento, ao considerar a qualidade de vida como um fenômeno de conhecimento psicossociológico para esta clientela, parte-se da compreensão de que tal objeto traz imbricado uma dimensão imagética que retrata essa espessura social.

Isto porque, na sociedade atual a imagem corporal e os aspectos estéticos são hipervalorizados, atribuindo-se importância extrema às características corporais desejáveis. A presença de uma úlcera na perna, por sua vez, altera essa imagem do corpo ideal e gera estigma à pessoa com lesão crônica. Com isso, os pacientes com úlceras de perna têm medo de se expor socialmente e de olhar para seu corpo, apresentam baixa autoestima e sentimentos negativos sobre o seu corpo99. Oliveira AC, Rocha DM, Bezerra SMG, Andrade EMLR, Santos AMR, Nogueira LT. Quality of life of people with chronic wounds. Acta Paul Enferm. 2019;32(2):194-201. doi: http://doi.org/10.1590/1982-0194201900027
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-1010. Salomé GM, Almeida SA, Pereira MTJ, Massahud Júnior MR, Moreira CNO, Brito MJA, et al. The impact of venous leg ulcers on body image and self-esteem. Adv Skin Wound Care. 2016;29(7):316-21. doi: http://doi.org/10.1097/01.ASW.0000484243.32091.0c
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Essa imagem social da pessoa portadora deste tipo de lesão gera a pressão à inferência, isto é, mobiliza pensamentos e sentimentos que resultam numa pressão para que o sujeito produza teorias explicativas, ponto de partida das representações e práticas sociais77. Jodelet D. Representações sociais: um domínio em expansão. In: Jodelet D, organizadora. As representações sociais. Rio de Janeiro: EdUERJ; 2001. p.17-44..

Por fim, acrescenta-se à problematização, que em análise da produção do conhecimento realizada pelos autores para o desenvolvimento da pesquisa, nas bases de dados Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS) e Medical Literature Analysis and Retrieval Sistem on-line (MEDLINE), foram identificados 542 artigos com o cruzamento dos descritores “úlcera da perna|” e “qualidade de vida|”. Após a aplicação dos critérios de seleção e leitura exploratória dos conteúdos, foram analisados 20 artigos com aderência ao tema. Desses, 16 tratavam-se de estudos quantitativos que objetivavam mensurar a qualidade de vida, validar instrumentos e/ou testar a sua eficácia; três buscavam compreender dimensões subjetivas da qualidade de vida dos pacientes com úlceras vasculogênicas.

Portanto, em face dessa análise, considera-se que conhecer os sentidos sociosimbólicos dos pacientes sobre a qualidade de vida, como tais sentidos são construídos e como esses repercutem nas suas ações é relevante, pois irá contribuir para ampliar o conhecimento existente nessa perspectiva psicossocial sobre a qualidade de vida dos pacientes com úlceras vasculogênicas.

Ademais, o conhecimento gerado poderá ser aplicado na proposição de tecnologias de cuidado que atendam às necessidades integrais de saúde dos pacientes com úlceras vasculogênicas, em vista da melhoria da sua qualidade de vida. Diante disso, o objetivo da pesquisa foi identificar as RS e práticas dos pacientes portadores de úlcera vasculogênica acerca da sua qualidade de vida.

MÉTODO

Pesquisa de abordagem qualitativa, baseando-se no aporte da teoria das RS, na vertente processual. As RS se relacionam à maneira como os indivíduos pensam e interpretam os fenômenos, considerando as relações que estabelecem com seus outros significantes no cotidiano e que os permitem construírem um conjunto de imagens e significados que referência, orienta e os influencia na interpretação da sua própria vida>77. Jodelet D. Representações sociais: um domínio em expansão. In: Jodelet D, organizadora. As representações sociais. Rio de Janeiro: EdUERJ; 2001. p.17-44..

No interesse do fenômeno de investigação, o fato de portar uma ferida crônica que não cicatriza, ou cicatriza e pode reaparecer, interfere totalmente na qualidade de vida. Logo, a escolha pela abordagem do objeto à luz das representações sociais oferece suporte teórico para analisar as vivências dos participantes em torno da qualidade de vida, estabelecendo nexos com os modos de expressão dessa experiência subjetiva nas linhas de ação estabelecidas pelos pacientes, principalmente quanto ao cuidado de si.

A pesquisa desenvolveu-se numa Clínica da Família do município do Rio de Janeiro - Brasil, tendo como lócus, a Sala de Curativos desta unidade, setor que atende diariamente, em média, 20 pacientes. No momento da pesquisa estavam cadastrados no setor 86 pacientes, os quais realizavam o acompanhamento clínico de úlceras crônicas (neuropáticas, vasculogênicas) e lesões agudas (feridas operatórias, escoriações, abscessos). O atendimento era feito por técnicos de enfermagem, sob supervisão eventual de uma enfermeira.

Os participantes da pesquisa foram pacientes selecionados pelos critérios: faixa etária maior que 18 anos; sem limitações neurológicas que interferissem na fala; portadores de úlceras vasculogênicas em membros inferiores, por um período superior a 90 dias, tempo em que o tecido pode cicatrizar, fazendo com que a úlcera deixe de ser uma lesão crônica.

Excluíram-se pacientes com úlceras vasculogênicas que possuíam: outras doenças crônicas ou comorbidades severas, pois se entendeu que estas condições afetam substancialmente a qualidade de vida e podiam incidir na elaboração das RS; e que apresentavam sinais de déficits cognitivos no momento da produção dos dados, os quais foram avaliados pela coerência de respostas aos questionamentos realizados pela pesquisadora durante a exploração de campo.

Após a aprovação do projeto pelo Comitê de Ética, a pesquisadora se inseriu no cenário da pesquisa, e realizou a coleta de dados no período de setembro do ano de 2017 até janeiro de 2018. Houve uma fase de aproximação com a clientela atendida na Sala de Curativos e com a equipe atuante neste setor, para que a pesquisadora criasse um vínculo com estes e tivesse familiaridade com a realidade a ser investigada.

A partir desta etapa de aproximação ao campo, captou-se 30 dos 86 pacientes cadastrados, considerando os critérios de inclusão da investigação, que foram abordados e aceitaram o convite de participação na pesquisa. A captação dos participantes foi finalizada com 30 participantes, pois houve interrupção do funcionamento na unidade estudada no período da pesquisa, pela falta de insumos. Diante disso, procedeu-se a imersão analítica para a avaliação do material coletado e concluiu-se que o mesmo possuía densidade suficiente para a compreensão do fenômeno e das dimensões da RS. Ademais, este número atende ao consenso entre estudiosos da abordagem qualitativa sobre a adoção do quantitativo mínimo de 30 participantes para análise com densidade do fenômeno1111. Minayo MCS. Amostragem e saturação em pesquisa qualitativa: consensos e controvérsias. Rev Pesq Qual. 2017 [cited 2018 Jan 31];5(7):01-12. Available from: https://editora.sepq.org.br/rpq/article/view/82/59
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Os dados foram coletados por meio de entrevista semiestruturada. Para a sua realização utilizou-se de um roteiro dividido em duas partes: a primeira parte visava delinear o perfil sociodemográfico dos participantes. O instrumento continha dados sobre: idade, tempo da ferida, escolaridade, atividade profissional, renda familiar, atividade física.

A segunda parte do roteiro explorou informações relevantes ao atendimento dos objetivos da pesquisa. As 11 perguntas desta seção versavam sobre o cotidiano dos pacientes, ou seja, atividades diárias, mudanças na vida, dificuldades, contato com o serviço de saúde. As entrevistas foram realizadas em uma sala da instituição, após a execução do curativo pelo paciente, de modo a não haver interferência na sua realização, com duração média de 20 a 30 minutos e registro em dispositivo digital do tipo mp4.

Os dados provenientes da aplicação do instrumento para captação do perfil sociodemográfico foram utilizados na construção de linhas de comando que separavam as entrevistas que constituíram o corpus, o qual após revisado e organizado foi submetido ao software Alceste, versão 2012. O objetivo do Alceste é quantificar o texto para extrair as suas estruturas mais significativas. Desta feita, o software realiza uma análise lexicográfica, na qual se classifica os enunciados e se compara os perfis lexicais. Busca-se apreender os mundos lexicais que estruturam os discursos dos sujeitos e dão coerência os seus enunciados1212. Alba M. El método Alceste y su aplicación al estúdio de lãs representaciones sociales del spacio urbano: el caso de la Ciudad de Mexico. Papers Social Representations. 2004 [citado 2020 nov 25];13:1.1-1.20. Disponible en: Disponible en: http://www.psr.jku.at/PSR2004/13_01Alb.pdf
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Na análise lexical efetuada ocorreu a contagem de palavras do corpus, e avançou-se sistematicamente na direção da identificação da dimensão do texto holisticamente. O processo se deu mediante a identificação do número total e tipos de palavras utilizadas no vocabulário das respostas.

Neste processo, ocorreu o agrupamento das raízes semânticas das palavras e a definição de classes lexicais, considerando a função da palavra. A associação do léxico e das variáveis de caracterização dos participantes à classe foi expressa por um valor de qui-quadrado (Phi²). Neste artigo, utilizou-se o resultado da Classificação Hierárquica Descendente (CHD) para aprofundamento analítico. A CHD tem por objetivo a repartição dos enunciados em classes marcadas pelo contraste do vocabulário. Deste modo, a partir do cruzamento das formas reduzidas e unidades de contexto elementar (uce), obteve-se classes de uce que têm vocabulário semelhante entre si e diferente das uce de outras classes. Assim, se analisou as relações dos conteúdos entre as classes, de oposição e similaridade, a partir da árvore hierárquica bem como a partir das uce, excertos de entrevista recortados pelo programa1212. Alba M. El método Alceste y su aplicación al estúdio de lãs representaciones sociales del spacio urbano: el caso de la Ciudad de Mexico. Papers Social Representations. 2004 [citado 2020 nov 25];13:1.1-1.20. Disponible en: Disponible en: http://www.psr.jku.at/PSR2004/13_01Alb.pdf
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O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do campo de estudo, nº de parecer: 1.836.571. Foi solicitado o aceite dos participantes mediante a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. A confidencialidade dos participantes foi garantida através da identificação a partir da codificação gerada pelo Alceste, na qual Ind=indivíduo, seguido pelo número arábico da ordem de captação.

RESULTADOS

Em relação ao perfil sociodemográfico dos participantes, destacaram-se as seguintes características: 60% de mulheres; 50% casados; 50% entre 51 e 70 anos; 57% com renda familiar entre dois e três salários mínimos; 70% com ensino fundamental incompleto; 45% com tempo de lesão entre três e dez anos; 47% evangélicos; 90% sem prática de atividade física.

No corpus formado por 30 entrevistas submetido ao software Alceste, no que se refere ao cálculo do dicionário, obteve-se 2.983 formas distintas ou palavras diferentes, com um número de ocorrências de 32.182. O corpus foi dividido em 679 uce e, em duas classificações hierárquicas descendentes, manteve a mesma subdivisão em dois blocos de classes, com um total de cinco classes lexicais e 63% de aproveitamento, conforme se observa no Quadro 1.

O corpus sofreu uma primeira divisão em duas partes, uma que deu origem a classe 1 e 2, e a outra que, logo em seguida, gerou a classe 5 em separado. No prosseguimento, esta segunda parte sofreu uma nova divisão para gerar as classes 3 e 4, organizando assim dois grandes blocos de classe lexicais. A análise das aproximações e distanciamentos entre as classes lexicais revelou que o bloco de classes que se estruturou ao redor das classes 3, 4 e 5 colocou em evidência aspectos da qualidade de vida de pacientes portadores de úlceras vasculogênicas, as dificuldades enfrentadas e os efeitos da doença na sua vida, foco do artigo em tela.

Quadro 1 -
Dendograma da Classificação Hierárquica Descendente, Rio de Janeiro, RJ, Brasil, 2018

A classe 5 foi formada por 55 uce, e correspondeu a 13% do corpus. Esta classe caracterizou-se pelo discurso do paciente com úlcera vasculogênica acerca das repercussões físicas desta condição e das limitações que enfrentam no seu cotidiano. Os léxicos sentado/deitar que compuseram a classe 05 foram os de maior associação estatística (Phi²), e se reportavam à necessidade de repouso no cotidiano pelo paciente, pelas repercussões físicas da presença da úlcera vasculogênica.

Então a maior parte das coisas eu faço sentado. À noite, como eu não durmo cedo mesmo vendo filme, eu coloco o pé para o alto no sofá, até na parede. (uce n° 21, ind 01)

Minha rotina é mais deitada do que de pé, andando, geralmente muita dor, é mais deitada, assistindo televisão, quando dá para fazer uma comida eu vou e faço, mas tem dias que nem isso eu faço, se eu ficar muito tempo em pé começa a doer. (uce n° 172, ind 11)

Os léxicos dificuldade, comida, banho se referiram aos esforços que os pacientes precisam fazer para realizarem suas atividades cotidianas em razão das limitações físicas ocasionadas pela ferida. Assim, essas dificuldades enfrentadas limitam o cumprimento das atividades diárias como tomar banho, preparar a refeição, bem como subir ou descer escadas.

Nem tomar banho é um banho normal, tem anos que não sei o que é tomar um banho direito, porque o pé fica para fora com plástico, eu tomo banho sentado numa cadeira porque eu fico com medo de desequilibrar, a vida muda totalmente. (uce n° 506, ind 23)

Sim, tem muita coisa que não consigo fazer mais por muito tempo, como ficar em pé muito tempo, não dá. Se eu tiver que lavar uma louça eu não consigo ficar em pé o tempo todo, eu consigo até tomar banho sozinha, coloco o pé em uma cadeira e tomo o banho, porque não pode molhar, mas também não posso ficar por muito tempo. (uce n° 43, ind 03)

A dor foi o principal sintoma físico verbalizado pelos pacientes que possuem esse tipo de ferida, evidenciada pelos léxicos dor/dói, inchada. Os depoimentos dos pacientes sobre a intensidade variável da dor indicaram que a dor se manifesta de acordo com a etiologia da lesão. Dentre as principais repercussões causadas pela dor mencionadas pelos pacientes se destacou a alteração no padrão de sono, verificada através do léxico durmo/dorme.

Não, consigo fazer tudo, sinto dor às vezes, a ferida ardeu muito essa noite, ficou latejando, por causa dos curativos que eu não vim fazer. Normalmente só dói à noite, nem sempre consigo dormir bem por conta disso, não durmo bem não, fica aquele negócio igual pássaro, bicando, bicando. (uce n° 36, ind 02)

À noite eu consigo ver novela, ler a bíblia um pouco, mas a dor, a dor impede tudo, essa dor é uma dor terrível, não desejo para o meu pior (inimigo). (uce n° 407, ind 20)

Desta feita, os discursos dos pacientes mostraram que a dor é um momento que lhe traz à lembrança um grande sofrimento, algo com significado negativo, causando mal-estar, angústia, e afetando, portanto, a percepção sobre o seu bem-estar.

E não é aquela dor de uma hora, meia hora, fica sete, oito horas, tem dia que passa o dia e a noite doendo. Agora ela está voltando de novo. O que tem de bom para mim é ficar sentado o dia todo com a perna para o alto. Não, sinto muita dor, é ruim, porque eu queria estar me movimentando, fazendo alguma coisa, fazendo algo. (uce n° 408, ind 20)

É uma dor que eu não desejo para meu pior inimigo. É um sofrimento, se tiver frio então, eu tenho é vontade de arrancar a perna, já até desejei isso, Deus que me perdoe, mas é muito sofrimento. (uce n° 476, ind 22)

A classe 4 foi composta por 40 uce, equivalente a 9% do corpus. Teve nexos com a classe 5, pois descreveu como os pacientes vivenciam o seu dia a dia expresso nos turnos da manhã, tarde e noite. Desta maneira, ao descreverem seus afazeres nestes turnos os pacientes evidenciaram que, mesmo com as dificuldades, procuram manter suas atividades cotidianas.

Observou-se que as palavras almoçar, acordar e café serviram de referência para a divisão dos períodos do dia feita pelos pacientes, a partir da qual se inserem as suas atividades rotineiras. Os pacientes tentam manter suas rotinas com a realização de atos simples e comuns, expressos nos verbos de ação vou/dou.

Minha rotina é como de qualquer dona de casa, acordo, faço café para mim e para o meu esposo, meu filho vai trabalhar, depois dou um jeitinho na casa, meu esposo me ajuda se tiver que ir à rua comprar algo para o almoço. (uce n° 640, ind 29)

Eu acordo, faço o almoço, varro a casa, lavo o banheiro, ponho a roupa no varal. Faço os afazeres de casa, não sou mulher de ficar na rua, nunca gostei. (uce n° 153, ind 10)

Os discursos desta classe revelaram o protagonismo feminino, identificado nas uce dos participantes 10 e 29, em que as mulheres, mesmo tendo que cuidar de si em razão das manifestações clínicas da doença, mantêm suas identidades no cuidado com a família. Assim, a despeito das dificuldades, tentam não perder a sua função social no lar. Por sua vez, os léxicos rua, trabalho e praça mostraram que muitos pacientes também tentam manter um cotidiano ativo para além dos afazeres em casa, conciliando-os com as atividades de trabalho ou outras tarefas.

Então, eu já acordo e tento acelerar as crianças para escola, eu estando em casa eu arrumo a casa, preparo o almoço e eu corro para o trabalho, porque eu tenho dois horários, tem dias que eu pego no horário de meio dia às sete da noite. (uce n° 373, ind 19)

Meu dia a dia é aquilo, acordo de madrugada umas quatro da manhã para trabalhar, não tomo café em casa, deixo para tomar na firma, trabalho de oito até as dezoito. (uce n° 115, ind 07)

A convivência com a úlcera vasculogênica provoca mudanças na rotina e no planejamento de atividades, aumentando as responsabilidades com os cuidados de saúde, pela necessidade de ida à clínica da família. Esta responsabilidade foi visualizada pela aproximação dos verbos “acordar e venho”, ligada ao fato de que diariamente, após realizarem suas atividades de casa, os pacientes se dirigem à Clínica da Família para realização do curativo.

Mas eu já acordo, faço café, já boto uma roupa na máquina, vou comprar o pão, e depois que todo mundo sai, eu venho para clínica, eu gosto de vir de manhã logo, porque quando acordo às vezes o curativo já molhou muito, molhou até o colchão. (uce n° 540, ind25)

É normal, eu acordo mais ou menos cinco e quinze da manhã. Tomo café, vou, trabalho ali na banca de jornal das seis até as três da tarde, vou em casa almoçar, venho aqui na clínica e faço curativo, depois volto para casa. (uce n° 105, ind 06)

A classe 3 foi composta por 34 uce e responsável pelo conteúdo de 8% do corpus. Foi organizada com base no depoimento dos pacientes que abordavam a importância dos processos familiares e as restrições vivenciadas com relação a esta convivência social e as práticas do lazer. Visualizaram-se, ainda, estratégias de suporte criadas para lidar com tais restrições.

Os impactos no convívio familiar trazidos pelas modificações relacionadas com a úlcera vasculogênica resultam no afastamento social do paciente portador desta condição. Isto porque o odor oriundo da ferida, a necessidade de realização diária do curativo, as repercussões da presença do curativo na autoimagem, fazem com que o paciente prefira não se expor socialmente, se afastando desta convivência. Esta afirmação encontrou respaldo nas uce abaixo, que retrataram hábitos sociais antes e depois da úlcera expressos no verbo ir/ia:

Niterói eu quase não vou, porque é uma situação um pouco chata para ir para casa dos outros, porque antes quando eu ia para lá, a gente ia, eu passava uma semana lá, um tempo, quinze dias, minhas irmãs tem casa em Mangaratiba na praia. (uce n° 450, ind 21)

Eu raramente costumo sair, ano passado então eu nem fui ver minhas irmãs, só mesmo a igreja aos domingos. Interfere em muita coisa que a gente tem vontade de fazer, como viajar, como eu tenho parente em São Paulo, eu tenho vontade. (uce n° 449, ind 21)

Quando a depoente 21 referiu que tem vontade de viajar, ir à igreja, sair para ver a família, mas raramente consegue, identificou-se como a presença deste tipo de lesão interfere na liberdade/autonomia. Esta interferência traz à tona a solidariedade familiar e a rede social de apoio. Desta feita, os pacientes avaliaram como algo positivo quando visitam ou recebem visita de seus familiares, e negativo quando deixam de ir vê-los por conta da ferida.

De positivo, só quando minha família vai lá em casa, fim de semana ver meus netos, meus filhos, pelo menos uma vez por mês eles vão lá, já que eu não posso os ver, de negativo, tudo, tudo é negativo, não poder fazer tudo o que eu sempre fiz. (uce n° 606, ind 27)

De negativo, eu sinto falta de poder ver meus parentes a hora que quero, de ir aos lugares a hora que quero ir, eu ajudei a criar meus netos e hoje quase não posso ir ver. (uce n° 645, ind 29)

A rede social de apoio é determinante do maior ou menor impacto da úlcera na vida da pessoa. Isto porque a presença da ferida no paciente impõe a necessidade de precisar de outrem para suas atividades diárias, ou seja, para se locomover/deslocamento. Os léxicos ônibus, carro ilustraram a influência da dificuldade de locomoção de ônibus e da importância do carro na manutenção da vida social ativa do paciente, o que pode gerar um sentimento de dependência.

Às vezes eu ia de carro, pegava uma carona e ia, mas depender dos outros é ruim, gosto muito não. (uce n° 414, ind 20)

Alguma coisa, além de dinheiro. Um carro ajudaria, porque depender de ônibus é muito ruim, às vezes eu pego a van, mas elas são altas e subir é ruim. (uce n° 491, ind 22)

Os léxicos festa, shopping, viajar remeteram aos aspectos no âmbito social e do lazer que os pacientes deixaram de realizar por conta das úlceras vasculogênicas. Assim, as limitações físicas fazem com que o paciente deixe de realizar as atividades sociais de que mais gostava e das atividades que desempenhava. O verbo deixar apontou estas perdas sociais, com o sentido de “deixar de fazer algo”.

Que eu acho que isso dava para fazer, mas você fica desestimulada, eu fazia tudo normal, saía, ia para baile quando era mais nova, ia para festa, para tudo quanto é canto, para praia, shopping. (uce n° 526, ind 24)

Por outro lado, alguns pacientes tentaram superar este desafio, buscando apoio para o enfrentamento na religião, no trabalho e na própria família. Houve relatos de que a esperança se encontra relacionada à fé numa existência superior/divina, que dá força e alimenta o desejo da melhora e da cura, reduzindo a ansiedade frente a esta situação.

Bom, eu trabalho, pego de cinco até as nove. Eu gosto, adoro, me sinto mal parado. Não tem nada de ruim, não fico triste não. Eu procuro coisa para ocupar minha cabeça, eu tenho medo de ficar assim encucado com qualquer coisa, porque eu já tive uma trombose. (uce n° 34, ind 2)

Então, eu aprendi isso, aprendi dentro de mim mesmo me cuidar. Se você não criar um Deus dentro de você, se você não pedir que esse Deus dê força de vontade, isso é o melhor remédio, força de vontade, saber se dominar. (uce n° 593, ind 26)

DISCUSSÃO

As RS podem ser compreendidas como uma modalidade de conhecimento que tende a dimensionar os comportamentos e guiar a comunicação entre os indivíduos, auxiliando na compreensão das mudanças sociais. Tem como base as influências sociais da comunicação, constituindo a realidade da vida cotidiana e servindo como principal veículo para estabelecer as associações com as quais as pessoas se ligam umas às outras1313. Moscovici S. Representações sociais: investigações em psicologia social. Petrópolis (RJ): Vozes; 2007..

Assim, a noção das RS possibilita compreender como os atores sociais apreendem os acontecimentos da vida comum, os dados do meio ambiente, as informações que circulam, bem como capta os pensamentos, sentimentos e experiências de vida compartilhada, através de diferentes modalidades de comunicação relacionadas ao contexto social a que pertencem1313. Moscovici S. Representações sociais: investigações em psicologia social. Petrópolis (RJ): Vozes; 2007..

No caso das RS sobre a qualidade de vida dos pacientes com uma úlcera vasculogênica, o pensamento sobre viver bem/viver melhor é construído a partir dos impactos que esta condição traz na manutenção ou mudança das atividades da vida cotidiana dos pacientes, face à presença e intensidade das manifestações clínicas da doença e dos cuidados terapêuticos que precisam adotar.

Estes impactos circulam nas conversações deste grupo de pertença, em especial as experiências compartilhadas da presença da dor, que se revestem de afetos negativos, exemplificada pelos relatos: “nada de positivo, tudo de negativo”; “tudo é negativo”. A dor é adjetivada como: “a pior coisa”; um sofrimento; “terrível”; trazendo a imagem de um inimigo.

Tal conotação é relevante, pois, além do efeito físico da dor que, em alguns momentos, provoca o desejo de “arrancar a perna”, a sua ocorrência e intensidade reconfigura o cotidiano do paciente, pela necessidade de evitá-la ou minimizar os seus efeitos através da adoção de comportamentos que restringem a sua vida. Essa reconfiguração é identificada nos depoimentos pela menção ao passado em relação à vida no presente.

Logo, os pacientes utilizam expressões como: “não posso mais fazer”; “eu gostaria de voltar a fazer”; “não faço mais” para abordar as mudanças vivenciadas. Essas mudanças trazem à tona as perdas em relação a si, na manutenção do cuidado consigo (alimentação, higiene, atividade física), ilustradas pelo relato: “tem anos que não sei o que é tomar um banho direito”; e também evidenciam as perdas sociais, quando os pacientes deixam de realizar atividades de integração social, como viajar, visita aos familiares, ida à igreja, pelas limitações físicas, pela necessidade de acompanhamento clínico ou por constrangimento pela imagem social dos outros sobre eles.

A vida atual reconfigurada é marcada por longos períodos de repouso, referida como: “mais deitada do que de pé”; “só deitada, sentada”. Isso afeta a autonomia e independência do paciente, que necessita da ajuda de outros para cumprir sua rotina, trazendo à tona afetos sobre si e sua vida.

Pontua-se que a qualidade de vida deve ser compreendida numa perspectiva multidimensional, abarcando componentes que têm uma organização complexa e dinâmica. Dentre esses componentes estão “o ser”, aquilo que o ser humano é no campo individual, que tem a ver com o físico, o psicológico e o espiritual, e abarca a nutrição, a aptidão física, os valores, as habilidades individuais, as experiências; “o pertencer”, que se refere às ligações com o meio, a casa, o trabalho, a comunidade, os grupos sociais; e “o tornar-se”, o que a pessoa faz para alcançar suas metas, envolvendo as práticas de lazer, de crescimento pessoal, de desenvolvimento de habilidades1414. Pereira EF, Teixeira CS, Santos A. Qualidade de vida: abordagens, conceitos e avaliação. Rev Bras Educ Fís Esporte. 2012;26(2):241-50. doi: http://doi.org/10.1590/S1807-55092012000200007
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Ao considerar essa compreensão abrangente, percebe-se, a partir da análise dos relatos dos participantes, como a convivência cotidiana com a presença da úlcera vasculogênica afeta a plenitude da vida do paciente, influenciando, portanto, na sua capacidade de ser, de pertencer e de tornar-se. Logo, essa influência negativa experimentada diariamente pelo paciente se projeta na sua representação social sobre a qualidade de vida e se expressa nas práticas adotadas.

Acerca dos aspectos que provocam essa influência negativa, investigações têm demonstrado a dor como a pior sensação para tais pacientes33. Phillips P, Lumley E, Duncan R, Aber A, Woods HB, Jones GL, et al. A systematic review of qualitative research into people's experiences of living with venous leg ulcers. J Adv Nurs. 2018;74(3):550-63. doi: http://doi.org/10.1111/jan.13465
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,66. Peart J. Influence of psychosocial factors on coping and living with a venous leg ulcer. Br J Community Nurs. 2015;20(Suppl 6):S21-S27. doi: http://doi.org/10.12968/bjcn.2015.20.Sup6.S21
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,1515. Lentsck MH, Baratieri T, Trincaus MR, Mattei AP, Miyahara CTS. Quality of life related to clinical aspects in people with chronic wound. Rev Esc Enferm USP. 2018;52:e03384. doi: http://doi.org/10.1590/S1980-220X2017004003384
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. Pesquisa que avaliou a qualidade de vida de 53 pessoas com ferida crônica em atendimento ambulatorial e comparou esse índice com parâmetros clínicos verificou que o índice geral e por domínios foi elevado. A dor foi identificada como o parâmetro clínico que mais afetou negativamente a qualidade de vida, principalmente nos pacientes que faziam uso da medicação analgésica e permaneciam com dor em repouso ou ao deambular1515. Lentsck MH, Baratieri T, Trincaus MR, Mattei AP, Miyahara CTS. Quality of life related to clinical aspects in people with chronic wound. Rev Esc Enferm USP. 2018;52:e03384. doi: http://doi.org/10.1590/S1980-220X2017004003384
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No Reino Unido estudo verificou que os participantes descreveram a dor como um lembrete constante de sua úlcera e contribuiu para os seus sentimentos de perda de controle. Os autores constataram que a dor esteve relacionada à perda de mobilidade, distúrbios do sono, efeito psicológico negativo e diminuição da qualidade de vida66. Peart J. Influence of psychosocial factors on coping and living with a venous leg ulcer. Br J Community Nurs. 2015;20(Suppl 6):S21-S27. doi: http://doi.org/10.12968/bjcn.2015.20.Sup6.S21
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Os afetos, a história pessoal e a posição do sujeito se engajam nas RS de um objeto. Este engajamento se explica, pois, o objeto precisa ser relevante para o sujeito e para o grupo para que dispare RS. Além disso, a institucionalização das RS só ocorre nas práticas cotidianas, as quais são empreendidas pelo sujeito conforme seu contexto e identidade social1313. Moscovici S. Representações sociais: investigações em psicologia social. Petrópolis (RJ): Vozes; 2007..

Na pesquisa em tela, evidenciou-se a perda da autonomia no processo de vida do paciente com úlcera vasculogênica advinda da reconfiguração do seu cotidiano. Todavia, para se ter qualidade de vida é preciso considerar a independência, as funções e as relações sociais, a aparência, o entretenimento, o trabalho, a situação econômica22. WHOQOL Group. The development of the world health organization quality of life assessment instrument (the WHOQOL). In: Orley J, Kuyken W, editors. Quality of life assessment: international perspectives. Heidelberg: Springer, 1994 [cited 2020 May 5]. 41-57. Available from: https://link.springer.com/content/pdf/10.1007%2F978-3-642-79123-9.pdf
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,1414. Pereira EF, Teixeira CS, Santos A. Qualidade de vida: abordagens, conceitos e avaliação. Rev Bras Educ Fís Esporte. 2012;26(2):241-50. doi: http://doi.org/10.1590/S1807-55092012000200007
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. Assim, essas perdas individuais e sociais mobilizam os afetos deste grupo, a partir dos quais constroem significados e adotam práticas de enfrentamento que concorrem para a sua identidade. Portanto, as RS indicam que quando uma pessoa tem uma ferida desta natureza não fica neutra em relação ao seu corpo, em relação à sua própria vida.

Diante desta construção simbólica, há os pacientes que se amparam no apoio da família, no suporte da religião e na ajuda dos profissionais para buscarem superar os desafios do seu dia a dia, como se observa nos discursos: “pedir que Deus me dê força de vontade”; “de positivo, quando a família vai lá em casa”.

Os que dispõem deste suporte social agem em prol de si e sua família e adotam cuidados necessários à sua recuperação, expressos pela ida constante à clínica para efetuar o curativo; tentam readaptar o seu cotidiano para que consigam realizar suas atividades mesmo com as limitações físicas, especialmente as de cunho doméstico, o que revela o papel da identidade na atitude assumida pelos pacientes; buscam seguir as orientações dos profissionais quanto ao repouso e alimentação.

Outros pacientes, contudo, diante dos efeitos negativos da doença, das dificuldades de suporte social e familiar, de dificuldades financeiras, se sentem desacreditados, desestimulados para o enfrentamento das mudanças. Isto implica, em alguns momentos, em atitudes mais passivas em prol do viver com qualidade, afastando-se socialmente e com menor adoção de ações para o cuidado de si.

O suporte social e familiar para lidar com os impactos psicossociais de ser portador da úlcera vasculogênica é demonstrado em estudo que descreveu a experiência vivida de pacientes com insuficiência venosa crônica para explorar como esta doença crônica afeta a qualidade de vida. Os pacientes apontaram que viver com a doença venosa crônica e úlcera venosa provoca desconforto físico e questões em torno da inconveniência pela frequência de visitas ao médico e a natureza dos tratamentos. Para os participantes é importante uma forte rede social de amigos e familiares, bem como um bom relacionamento com seus prestadores de serviços médicos para ajudar a lidar com o processo da doença1616. Wellborn J, Moceri JT. The lived experiences of persons with chronic venous insufficiency and lower extremity ulcers. J Wound Ostomy Continence Nurs. 2014;41(2):122-6. doi: http://doi.org/10.1097/WON.0000000000000010
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Estudo evidenciou que uma frágil rede familiar e comunitária de apoio influencia no surgimento, cronificação e demora na cura de feridas1717. Resende NM, Nascimento TC, Lopes FRF, Prates Júnior AG, Souza NM. Cuidado de pessoas com feridas crônicas na atenção primária à saúde. J Manag Prim Heal Care. 2017;8(1):99-108. doi: http://doi.org/10.14295/jmphc.v8i1.271
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. Já investigação sobre as redes sociais de portadores de lesão crônica revelou que há fragilidades nesses vínculos, pela rede social primária ser formada por vizinhos e familiares, com tamanho reduzido, baixa densidade e poucas trocas, e a enfermeira o principal vínculo da rede secundária1818. Bandeira LA, Santos MC, Duarte ERM, Bandeira AG, Riquinho DL, Vieira LB. Social networks of patients with chronic skin lesions: nursing care. Rev Bras Enferm. 2018;71(suppl 1):652-9. doi: http://doi.org/10.1590/0034-7167-2017-0581
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À luz destas RS, no contraponto com a problemática da pesquisa, cabe refletir sobre a atuação do enfermeiro frente a tal grupo de pacientes em vista das melhorias na sua qualidade de vida. Neste aspecto, estudos têm apontado a importância de se incrementar o seu conhecimento sobre as úlceras venosas para melhorar a qualidade do atendimento1919. Adderley UJ, Thompson C. A comparison of the management of venous leg ulceration by specialist and generalist community nurses: a judgement analysis. Int J Nurs Stud. 2016;53:134-43. doi: http://doi.org/10.1016/j.ijnurstu.2015.10.002
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-2020. Ylönen M, Viljamaa J, Isoaho H, Junttila K, Leino-Kilpi H, Suhonen R. Internet-based learning programme to increase nurses' knowledge level about venous leg ulcer care in home health care. J Clin Nurs. 2017;26(21-22):3646-57. doi: http://doi.org/10.1111/jocn.13736
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Um deles indica a importância do conhecimento especializado do enfermeiro, pois ao comparar os níveis de precisão dos diagnósticos e julgamento da necessidade de tratamento entre enfermeiros especialistas em integridade da pele e generalistas em atenção comunitária no Reino Unido, mostrou que especialistas foram mais precisos nos julgamentos do diagnóstico e tratamento1919. Adderley UJ, Thompson C. A comparison of the management of venous leg ulceration by specialist and generalist community nurses: a judgement analysis. Int J Nurs Stud. 2016;53:134-43. doi: http://doi.org/10.1016/j.ijnurstu.2015.10.002
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Outra pesquisa avaliou a eficácia de um programa de educação baseado na internet sobre as úlceras venosas quanto ao nível de conhecimento teórico e atitudes de enfermeiros de atenção domiciliar, comparando o grupo de enfermeiros que participou do programa ao que não participou. Houve aumento significativo no nível de conhecimento, enquanto a atitude permaneceu inalterada2020. Ylönen M, Viljamaa J, Isoaho H, Junttila K, Leino-Kilpi H, Suhonen R. Internet-based learning programme to increase nurses' knowledge level about venous leg ulcer care in home health care. J Clin Nurs. 2017;26(21-22):3646-57. doi: http://doi.org/10.1111/jocn.13736
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CONCLUSÃO

As RS sobre a qualidade de vida se construíram a partir dos afetos resultantes das mudanças na vida dos pacientes, causadas pela presença da dor e pela necessidade de adoção dos cuidados terapêuticos da doença. Assim, a reconfiguração do cotidiano direcionou a uma representação sobre si e a sua vida de cunho negativo, a qual se expressou nas práticas de enfrentamento dos pacientes. De um lado os pacientes se comportaram de maneira ativa, adaptando o seu cotidiano para que conseguissem realizar as atividades rotineiras. Por outro lado, houve pacientes que estavam desestimulados e desmotivados com a sua vida, adotando práticas com menor cuidado de si e se afastando do convívio social.

Evidenciou-se, portanto, que as dificuldades do paciente para lidar com perdas individuais e sociais resultantes da reconfiguração da sua vida trouxeram implicações nas práticas de enfrentamento adotadas. Logo, sob a ótica do referencial empregado, o estudo contribui para a proposição de tecnologias que conduzam o paciente a um novo significado para estas mudanças que afetam a sua autonomia.

Uma dessas propostas de tecnologias é a de criação de um grupo de cuidado voltado a esta clientela, cujas ações sejam pautadas no paradigma de promoção em saúde e incentivem as mudanças e adaptações nos hábitos de vida, com estímulo ao cuidado de si e suporte social. Esse grupo deve trabalhar com a dimensão expressiva do cuidado de enfermagem, que inclui: a mobilização de forças internas, a motivação, a crença sobre si e a autoimagem, o suporte familiar, a instilação da fé e esperança.

As limitações deste estudo foram metodológicas, relacionada ao nível de aproveitamento dos dados no processamento feito pelo Alceste, o que requer novos investimentos no corpus para refinamento da análise sobre o fenômeno.

Agradecimentos:

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

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Editado por

Editor associado:

Cecília Helena Glanzner

Editor-chefe:

Maria da Graça Oliveira Crossetti

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    05 Maio 2020
  • Aceito
    06 Abr 2021
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