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Vivências de familiares de crianças diagnosticadas com Transtorno do Espectro Autista

RESUMO

Objetivo:

Descrever, na percepção das mães, as experiências vivenciadas por famílias no cuidado de crianças com Transtorno do Espectro Autista.

Método:

Estudo qualitativo, realizado com 20 mães de crianças diagnosticadas com transtorno autístico, acompanhadas por uma instituição em Teresina, Piauí. Entrevistas semiestruturadas foram realizadas entre fevereiro e março de 2019, e submetidas à análise de conteúdo.

Resultados:

Foram identificadas cinco ideias centrais relacionadas aos estágios vividos pelos familiares após o diagnóstico, desde a negação até a aceitação. Familiares e cuidadores vivenciam sentimentos de tristeza e luto pela descoberta da impossibilidade de cura da síndrome, revelando a necessidade de cuidado para com essa família. A busca por ajuda e as adaptações da rotina são vivências constantes.

Conclusão:

Cuidar de crianças com transtorno autístico envolve aprendizados que vão dos aspectos estruturais aos emocionais, como lidar com as limitações e impossibilidade de cura, apontando para a necessidade de um cuidado familiar.

Palavras-chave:
Transtorno autístico; Saúde mental; Saúde da família

ABSTRACT

Objective:

To describe, in the mothers’ perception, the experiences lived by families in the care of children with autism spectrum disorder.

Method:

Qualitative study, carried out with 20 mothers of children diagnosed with autistic disorder accompanied by an institution in Teresina-Piauí, Brazil. Semi-structured interviews were conducted between February and March 2019 and subjected to content analysis.

Results:

Five central ideas related to the stages experienced by family members after the diagnosis were identified, ranging from denial to acceptance. Family members and caregivers experience feelings of sadness and mourning for the discovery of the impossibility of curing the syndrome, revealing the need for care for this family. The search for help and adaptations of the routine are constant experiences.

Conclusion:

Caring for children who live with autistic disorder involves learning ranging from structural to emotional aspects, such as dealing with limitations and impossibility of cure, pointing out to the need for family care.

Keywords:
Autistic disorder; Mental health; Family health

RESUMEN

Objetivo:

Describir, en la percepción de las madres, las experiencias vividas por las familias en el cuidado de niños con trastorno del espectro autista.

Método:

Estudio cualitativo, realizado con 20 madres de niños diagnosticados de trastorno autista acompañados de una institución en Teresina-Piauí, Brasil. Las entrevistas semiestructuradas se realizaron entre febrero y marzo de 2019 y se sometieron a análisis de contenido.

Resultados:

Se identificaron cinco ideas centrales relacionadas con las etapas vividas por los familiares luego del diagnóstico, que van desde la negación hasta la aceptación. Los familiares y cuidadores experimentan sentimientos de tristeza y duelo por el descubrimiento de la imposibilidad de curar el síndrome, revelando la necesidad de cuidar a esta familia. La búsqueda de ayuda y adaptaciones de la rutina son experiencias constantes.

Conclusión:

Cuidar a los niños que viven con trastorno autista implica aprender que van desde los aspectos estructurales hasta los emocionales, cómo afrontar las limitaciones y la imposibilidad de cura, apuntando a la necesidad del cuidado familiar.

Palabras clave:
Trastorno autístico; Salud mental; Salud de la familia

INTRODUÇÃO

O Transtorno do Espectro Autista (TEA) é considerado uma síndrome de origem multicausal, pois envolve diversos fatores neurológicos, genéticos e sociais. No entanto, a especificidade de etiologia ainda é desconhecida11. Sociedade Brasileira de Pediatria. Departamento Científico de Pediatria do Desenvolvimento e Comportamento. Manual de Orientação: transtorno do espectro do autismo. Rio de Janeiro: Sociedade Brasileira de Pediatria; 2019 [cited 2020 Sep 30]. Available from: https://www.sbp.com.br/fileadmin/user_upload/21775d-MO_-_Transtorno_do_Espectro_do_Autismo__2_.pdf
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. Nos últimos anos, houve aumento significativo de diagnósticos de TEA11. Sociedade Brasileira de Pediatria. Departamento Científico de Pediatria do Desenvolvimento e Comportamento. Manual de Orientação: transtorno do espectro do autismo. Rio de Janeiro: Sociedade Brasileira de Pediatria; 2019 [cited 2020 Sep 30]. Available from: https://www.sbp.com.br/fileadmin/user_upload/21775d-MO_-_Transtorno_do_Espectro_do_Autismo__2_.pdf
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. A estimativa mundial é que 1% da população é diagnosticada com o transtorno22. American Psychiatric Association. Diagnostic and statistical manual of mental disorders. DSM-5. Washington (DC): American Psychiatric Association; 2013..

O TEA consiste em um conjunto de condições que se caracterizam por uma série de fatores que comprometem a comunicação, a linguagem e o comportamento social11. Sociedade Brasileira de Pediatria. Departamento Científico de Pediatria do Desenvolvimento e Comportamento. Manual de Orientação: transtorno do espectro do autismo. Rio de Janeiro: Sociedade Brasileira de Pediatria; 2019 [cited 2020 Sep 30]. Available from: https://www.sbp.com.br/fileadmin/user_upload/21775d-MO_-_Transtorno_do_Espectro_do_Autismo__2_.pdf
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-22. American Psychiatric Association. Diagnostic and statistical manual of mental disorders. DSM-5. Washington (DC): American Psychiatric Association; 2013.. Identifica-se como transtorno do desenvolvimento, pois a definição tem base em avaliações do comportamento do indivíduo, sendo determinado por déficits na comunicação social, na interação, na sensibilidade sensorial, na coordenação motora e nos níveis de atenção, apresentando dificuldades no que se refere ao esforço e envolvimento para realizar atividades11. Sociedade Brasileira de Pediatria. Departamento Científico de Pediatria do Desenvolvimento e Comportamento. Manual de Orientação: transtorno do espectro do autismo. Rio de Janeiro: Sociedade Brasileira de Pediatria; 2019 [cited 2020 Sep 30]. Available from: https://www.sbp.com.br/fileadmin/user_upload/21775d-MO_-_Transtorno_do_Espectro_do_Autismo__2_.pdf
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-33. Carvalho Filha FSS, Silva HMC, Castro RP, Moraes Filho IM, Nascimento FLSC. Coping e estresse familiar e enfrentamento na perspectiva do transtorno do espectro do autismo. Rev Cient Sena Aires. 2018 [cited 2020 Sep 25];7(1):23-30. Available from: http://revistafacesa.senaaires.com.br/index.php/revisa/article/view/300
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O diagnóstico ocorre geralmente na infância, fase em que as manifestações da síndrome podem ser percebidas pelas alterações nas funções cognitivas mencionadas anteriormente11. Sociedade Brasileira de Pediatria. Departamento Científico de Pediatria do Desenvolvimento e Comportamento. Manual de Orientação: transtorno do espectro do autismo. Rio de Janeiro: Sociedade Brasileira de Pediatria; 2019 [cited 2020 Sep 30]. Available from: https://www.sbp.com.br/fileadmin/user_upload/21775d-MO_-_Transtorno_do_Espectro_do_Autismo__2_.pdf
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-33. Carvalho Filha FSS, Silva HMC, Castro RP, Moraes Filho IM, Nascimento FLSC. Coping e estresse familiar e enfrentamento na perspectiva do transtorno do espectro do autismo. Rev Cient Sena Aires. 2018 [cited 2020 Sep 25];7(1):23-30. Available from: http://revistafacesa.senaaires.com.br/index.php/revisa/article/view/300
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. Não há cura para o TEA. No entanto, desde a década de 1980, existem intervenções comportamentais intensivas que têm proporcionado melhoras relevantes no desenvolvimento de crianças diagnosticadas, especialmente quando aliadas à detecção precoce11. Sociedade Brasileira de Pediatria. Departamento Científico de Pediatria do Desenvolvimento e Comportamento. Manual de Orientação: transtorno do espectro do autismo. Rio de Janeiro: Sociedade Brasileira de Pediatria; 2019 [cited 2020 Sep 30]. Available from: https://www.sbp.com.br/fileadmin/user_upload/21775d-MO_-_Transtorno_do_Espectro_do_Autismo__2_.pdf
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-44. Gomes CGS, Souza DG, Silveira AD, Oliveira IM. Intervenção comportamental precoce e intensiva com crianças com autismo por meio da capacitação de cuidadores. Rev Bras Educ Espec. 2017;23(3):377-90. doi: https://doi.org/10.1590/s1413-65382317000300005
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Após receber o diagnóstico do transtorno, os familiares dessas crianças se sentem angustiados e desamparados; portanto, necessitam de apoio emocional e incentivo para cuidar dos filhos. É importante que esses pais recebam assistência no que se refere ao papel educativo que devem desempenhar, pois é fundamental a sua participação no tratamento da criança55. Merlleti C. Autism in question: diagnostic historicity, clinical practice and parents’ narratives. Psicol USP. 2018;29(1):146-51. doi: http://doi.org/10.1590/0103-656420170062
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Os familiares das crianças com TEA são impactados pelo diagnóstico dos filhos por ficarem receosos quanto ao seu futuro, uma vez que existem limitações no desenvolvimento da criança. Esse conhecimento gera preocupação com os cuidados dos filhos quando eles não estiverem mais presentes66. Correa B, Simas F, Portes JRM. Socialization goals and action strategies of mothers of children with suspected autism spectrum disorder. Rev Bras Educ Espec. 2018;24(2):287-302. doi: https://doi.org/10.1590/s1413-65382418000200010
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A maioria das famílias se sente fragilizada ao receber o diagnóstico e tarda a acreditar que o filho apresente algum problema. No entanto, os pais/cuidadores percebem - mesmo antes do diagnóstico - que os filhos apresentam comportamento diferente das outras crianças, motivo pelo qual buscam avaliação médica33. Carvalho Filha FSS, Silva HMC, Castro RP, Moraes Filho IM, Nascimento FLSC. Coping e estresse familiar e enfrentamento na perspectiva do transtorno do espectro do autismo. Rev Cient Sena Aires. 2018 [cited 2020 Sep 25];7(1):23-30. Available from: http://revistafacesa.senaaires.com.br/index.php/revisa/article/view/300
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-66. Correa B, Simas F, Portes JRM. Socialization goals and action strategies of mothers of children with suspected autism spectrum disorder. Rev Bras Educ Espec. 2018;24(2):287-302. doi: https://doi.org/10.1590/s1413-65382418000200010
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Estudos indicam que o cotidiano da família se altera, na maioria dos casos, é preciso deixar de participar de alguns eventos ou mesmo prescindir do tempo de lazer devido à condição do filho. A presença em certas atividades - como as que envolvem convívio social - exige atenção redobrada, considerando que, geralmente, quem vive com TEA apresenta dificuldade de interação social. Dessa forma, deve-se avaliar o cenário acerca do número de pessoas que estarão no lugar, bem como a intensidade do som no ambiente, entre outros pontos, ocasionando, na maioria das vezes, o cancelamento da participação nessas atividades de lazer66. Correa B, Simas F, Portes JRM. Socialization goals and action strategies of mothers of children with suspected autism spectrum disorder. Rev Bras Educ Espec. 2018;24(2):287-302. doi: https://doi.org/10.1590/s1413-65382418000200010
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-88. Jaswal VK, Dinishak J, Stephan C, Akhtar N. Experiencing social connection: a qualitative study of mothers of nonspeaking autistic children. Plos One. 2020;15(11):e0242661. doi: https://doi.org/10.1371/journal.pone.0242661
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Ao saber que a criança com TEA possui apego às atividades limitadas e contínuas, a família deve elaborar uma nova rotina, que permita a adaptação às suas necessidades. Desse modo, é importante que a família esteja completamente em harmonia com a criança, para lidar com as frequentes mudanças comportamentais que ela pode apresentar. Estudo apontou que os avós dessas crianças possuem papel importante, pois são eles os responsáveis pelo cuidado quando os pais estão no trabalho, sendo centrais para o seu bem-estar77. Desiningrum DR. Grandparents' roles and psychological well-being in the elderly: a correlational study in families with an autistic child. Enferm Clin. 2018;28(1 Supl.):304-9. doi: https://doi.org/10.1016/S1130-8621(18)30175-X
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Pessoas da família da criança com TEA, na maioria das vezes, são exclusivamente responsáveis pelos cuidados, não contando com ajuda profissional. Dessa maneira, entende-se que a família também precisa de cuidados específicos99. Morris R, Muskat B, Greenblatt A. Working with children with autism and their families: pediatric hospital social worker perceptions of family needs and the role of social work. Soc Work Health Care. 2018;57(7):483-501. doi: https://doi.org/10.1080/00981389.2018.1461730
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, além de instruções e técnicas para aliviar o estresse, pois as tarefas que o cuidador da criança assume gera impacto na sua qualidade de vida. A finalidade é que a família tenha uma condição de vida melhor, de forma que possa fornecer maior atenção ao integrante que possui TEA.

Ao considerar as colocações e os aspectos apontados, formulou-se, como ponto de partida para o estudo sobre o tema, a seguinte questão norteadora: quais as experiências vivenciadas por familiares de crianças diagnosticadas com TEA? A partir dela, objetivou-se descrever, na percepção das mães, as experiências vivenciadas por famílias no cuidado de crianças com Transtorno do Espectro Autista.

MÉTODO

Trata-se de estudo qualitativo e descritivo, desenvolvido em instituição de caráter público, localizada na cidade de Teresina, Piauí, Brasil. Essa associação, criada em 2010, é constituída por pais e profissionais que buscam ampliar a conscientização das pessoas sobre o TEA e dar suporte a essas famílias. O principal objetivo dessa associação é melhorar a capacidade de adaptação e a qualidade de vida de pessoas com TEA, bem como de seus familiares, de forma a minimizar o preconceito relacionado ao transtorno.

Adotou-se como critério de inclusão ser familiar de criança com diagnóstico de TEA e, como critério de exclusão, tempo de acompanhamento na instituição inferior a seis meses.

Utilizou-se, para a seleção dos participantes, a amostragem intencional composta pelos familiares de crianças que tinham o diagnóstico do TEA, obedecendo-se os critérios de elegibilidade. Dessa forma, elencaram-se 20 familiares, não havendo recusas e/ou desistências.

Efetuou-se a coleta de dados nos meses de fevereiro e março de 2019, na própria instituição de estudo, por meio de entrevistas individuais semiestruturadas, gravadas em áudio e transcritas na íntegra. Vale ressaltar que as entrevistas foram agendadas previamente, conforme a disponibilidade dos participantes, e aconteceram quando a criança estava em atendimento com os profissionais da associação. A coleta de dados foi realizada em ambiente privado, com a participação de uma pesquisadora e um participante.

Empregou-se, para tanto, um roteiro de entrevista que contemplava caracterização sociodemográfica - faixa etária, grau de parentesco com a criança, quantidade de filhos, estado civil, renda familiar, residência, idade da criança no momento do diagnóstico do TEA e casos de TEA na família - e solicitou-se que os participantes falassem abertamente sobre a repercussão do diagnóstico de autismo infantil na sua família e as vivências cotidianas como familiar de uma criança com TEA.

Ressalta-se que, para verificar a compreensão das questões, realizou-se um teste piloto com dois familiares de crianças autistas, cujas entrevistas foram excluídas do processo de análise dos dados. Para cessar a coleta de dados, adotou-se o critério de reincidências dos temas nas falas, que compreendeu a transcrição das entrevistas e a realização de leituras repetidas.

Para a análise de conteúdo, aplicou-se a técnica de Classificação Hierárquica Descendente (CHD), por meio do software Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires (IRAMUTEQ). Observaram-se os seguintes passos: preparação dos dados com transcrições e organização corpus textual em único arquivo; leitura flutuante para aproximação dos pesquisadores às singularidades contidas nos dados; e processamento dos dados por meio da CHD. O processamento do corpus textual permitiu obter classificação estável e definitiva do conteúdo em grupos de segmentos de texto com similaridades.

Os segmentos de texto constituintes das classes geradas pela CHD foram submetidos à técnica do Discurso do Sujeito Coletivo (DSC)1010. Lefevre F, Lefevre AMC. Discourse of the collective subject: social representations and communication interventions. Texto Contexto Enferm. 2014;23(2):502-7. doi: https://doi.org/10.1590/0104-07072014000000014
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, conforme as fases de identificação das expressões-chave (ECH) - que revelam a essência do conteúdo contido nos segmentos -, e de levantamento das ideias centrais (IC), ou seja, dos sentidos referentes ao conjunto de segmentos incluídos em uma mesma classe. Por fim, agruparam-se as IC semelhantes em categorias e elaborou-se o discurso-síntese. Procedeu-se à interpretação e inferências dos dados brutos obtidos com o software a fim de dar sentido às palavras, sendo subsidiado pela literatura disponível.

O estudo atendeu aos preceitos éticos estabelecidos para pesquisa envolvendo seres humanos, sendo iniciado após aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa, sob o Certificado de Apresentação para Apreciação Ética n.º 02853818500005210, bem como depois da leitura e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) pelos participantes.

RESULTADOS

Participaram do estudo 20 mulheres, mães de crianças com TEA, na faixa etária de 28 a 60 anos, e que possuíam entre um e quatro filhos. Nove eram casadas, nove solteiras e duas relataram estar em união estável. A renda familiar era de um a três salários-mínimos e a maioria residia em Teresina, Piauí, Brasil. A idade de diagnóstico do TEA variou entre 10 meses e 7 anos, sendo que 65% das mães relataram que não tinham informação de outros casos do transtorno na família.

A aplicação do IRAMUTEQ para análise dos depoimentos reconheceu, no corpus, 114 segmentos de texto, com 3.854 registros de ocorrências e aproveitamento de 73% do total. Por intermédio da CHD - que cruza matrizes dos segmentos de texto e palavras -, obtiveram-se cinco classes originadas de um eixo, conforme o dendograma representado na Figura 1. Segundo descrito na figura, o corpus foi inicialmente dividido em dois eixos e, do Eixo 1, surgiram as classes 1 e 4, que se correlacionam e se sustentam. Em seguida, o Eixo 2 também se ramificou: por um lado, deu origem à Classe 5; por outro, após novo cruzamento de dados, determinou as classes 2 e 3.

Figura 1 -
Dendograma das classes obtidas a partir do processamento do corpus textual. Teresina, Piauí, Brasil, 2019

Cada classe é descrita pelas palavras mais significativas (mais frequentes) e respectivas associações com a classe (X²), conforme Figura 2.

Figura 2 -

A apresentação dos resultados foi feita conforme a divisão e ordem da CHD. As ECH mais representativas para o conjunto de ideias - ou seja, que concentraram a significação e os sentidos dos relatos - foram agrupadas quando se referiam à mesma IC, construindo assim os DSC. Dessa forma, os temas estão apresentados com as respectivas IC e DSC.

Classe 1: Experiências e saberes de familiares sobre o autismo

A ideia central da Classe 1 apresenta os vocábulos de grande relevância que demonstraram o conhecimento dos familiares após o diagnóstico de TEA e a busca por ajuda em instituições de apoio. Os vocábulos foram “autismo”, “vida” e “saber”, que dispõem das concepções sobre os diagnósticos.

Sabia que era uma coisa que tinha que mudar na minha vida, tinha que ter mais responsabilidade com ela, porque elas não têm muita noção de perigo. Entendeu? Com três anos, consegui falar com a pediatra e foi onde concluiu o diagnóstico que ela realmente era autista e foi onde começou toda a minha luta e, até hoje, eu estou aqui na associação dos autistas, correndo atrás e, hoje em dia, para mim o autismo não é nada, porque o autismo dela é muito assim daqueles que ela não tolera barulho, multidão, barulhos de fogos de artifício. Ela não gosta e, certa parte, pelo comportamento, têm dias que ela está ótima, tem dia que está péssima. Então, eu vim buscar saber o que era e matricular ela, consegui uma vaga aqui na instituição dos autistas e, até hoje, estou aqui com ela e vendo mais o desempenho dela. Ela interage mais com as crianças, mas, praticamente, mesmo até hoje, eu me pergunto sem saber, ainda não sei de tudo mesmo do autismo.

Classe 2: A descoberta do autismo para a família

A Classe 2 discorre como a família vivencia o cuidado da criança diagnosticada com TEA, o que foi percebido pelas expressões-chave “melhor”, “bem”, “entender” e “família”. Enfatiza-se a importância de prestar assistência adequada aos responsáveis da criança com TEA, pois a família é o primeiro ambiente de sua socialização e busca forças para lidar com dificuldades e percalços relacionados ao TEA.

Para a gente, não foi muita surpresa pelo diagnóstico dela de nascido. Eu acompanhei minha sobrinha quando ela nasceu na maternidade e, de impacto, logo a médica que viu, disse que ela tinha e que ela era especial. Eu, como tia, eu a amo demais. Daí tirei minhas férias para vim acompanhá-la, eu abracei a causa. Aí tive meu filho e, com três, dois anos, eu comecei a descobrir que ele tinha algumas dificuldades, eu não sabia bem qual era, e foi quando começou toda a minha luta. Para outros, ele não falava, gesticulava, falava na terceira pessoa, achava mesmo que era a idade, uma criança de dois, três anos, geralmente, tem essas atitudes, mas chegou ao ponto que ele foi crescendo e em vez de melhorar, ele foi piorando. Quando a gente descobriu, não sabíamos o que era, com a questão de o tempo passar, fomos nos aprofundando, não teve tanto impacto porque não sabíamos, não conhecíamos. A única coisa que teve no começo foi a curiosidade em saber, quando fomos pesquisando e sabendo, fomos adquirindo e tudo mais. Tem gente que se desespera, a gente não teve essa curiosidade para poder ajudá-lo porque, se têm outros autistas na família, a gente não sabe, mas a minha família sempre procurou interagir para ajudar no tratamento dele.

Classe 3: Aceitação das famílias frente ao diagnóstico de TEA nas crianças

A Classe 3 apresenta como ideia central, pelos discursos, a difícil experiência do diagnóstico de TEA, que alterna momentos de aceitação, rejeição, esperança e angústia. A família busca compreender melhor o transtorno que afeta a vida das crianças, tentando entender o diagnóstico para proporcionar tratamento adequado, saber lidar com ele e promover boa qualidade de vida para a criança e os demais membros da família. Os vocábulos de grande relevância foram “querer”, “difícil”, “aceitar” e “continuar”, os quais demonstraram os sentimentos dos familiares após o diagnóstico.

Eu acho até que eu aceitei rápido, tive aquela compreensão rápida. A mãe, às vezes, fica com aquela dorzinha no coração, porque a gente sabe que vai mudar muita coisa; mas tranquilo, levei. Então, é uma coisa que eu estava trabalhando e fui buscar atrás de tratamento. Não teve aquela questão do luto. Isso foi mais com o pai dele que foi difícil aceitar, falaram que o menino não tinha nada: só não tem paciência de ficar na sala de aula. Eu não me desesperei, só busquei conhecer o que é o autismo, meu sentimento foi de querer entender mesmo. Já ele (o pai) não queria admitir, não queria nem que eu usasse a blusa daqui, dizendo que o menino não tinha isso que o povo iria ver, ele ficou mais preocupado, mas com o tempo ele foi aceitando, agora ele exagera demais. A gente pensa que é um castigo porque isso aconteceu, principalmente para mim, que eu não tenho suporte familiar nenhum. Eu não tenho ninguém para apoiar, estou sozinha com ele, então, para mim, foi bem difícil. Estão vendo com outro olhar a questão do meu filho que tem uma necessidade e precisa de mais ajuda, primeiro a gente tem aquela sensação de culpa, acho que toda mãe quando descobre fica se perguntando. Para mim, no meu caso, no início, eu senti porque eu não estava preparada, porque embora já tivesse um na família, mas a gente nunca sente quando não é na pele da gente. Para mim, eu senti que muito foi difícil de aceitar.

Classe 4: Mudança na rotina de familiares de crianças com TEA

A ideia central desta classe é especificada pelas expressões-chave “deixar”, “cuidar”, “trabalhar” e “mudar”. Ela aborda, pelos discursos, a vivência de familiares para se adaptar à rotina e incorporar novos hábitos, bem como reorganizar o estilo de vida, os relacionamentos e vínculos do trabalho, que devem ser reavaliados para permitir o cuidado da criança autista.

A mudança foi tudo, porque eu não posso trabalhar, eu tenho que cuidar só da minha filha, frequentar escola junto com ela. Para mim, mudou tudo, porque eu praticamente vivo só para ela. Eu fiquei triste, mas era uma coisa que eu estava trabalhando mesmo na minha cabeça, devido a esse curso de Enfermagem que eu fiz, então, eu estava vendo as características, mas eu não podia dizer. A mudança foi porque eu tive que correr atrás do tratamento dela e deixar o meu trabalho de lado. Eu trabalhava e levava minha criança para o trabalho, porque realmente eu não tenho ninguém e eu não pude mais fazer isso, porque eu tinha que estar buscando as consultas dela, o tratamento dela. Na época, eu tinha uma farmácia, acabei a farmácia para ir cuidar dela, como era pouca coisa e vendia muito pouco, era só uma ocupação mesmo, foi melhor fechar, então, o que mudou foi a minha rotina. À medida que ela foi crescendo, eu tive que parar de trabalhar, porque antes eu trabalhava, eu passei os quatro meses de licença-maternidade e deixei ela uns seis meses com a minha sogra. Então, o que mudou foi que eu parei de trabalhar e vivo só em casa agora, eu não tenho como trabalhar, porque na hora que eu procuro uma pessoa para ela ficar, a maioria diz que não pode. Tive que deixar de trabalhar fora para me dedicar a cuidar dela, porque, se eu como mãe não me dedicasse totalmente a ela, eu poderia não ver melhoras em relação a ela. Eu deixo de fazer as coisas para olhá-la, porque eu tenho medo dela correr e cair dentro da água, tenho que ficar de olho.

Classe 5: Sentimentos de familiares após o diagnóstico do autismo infantil

A Classe 5 tem como ideia central os vocábulos de grande relevância demonstrando os sentimentos das mães após o diagnóstico do TEA. Os vocábulos e as expressões-chave prevalentes foram “dar”, “momento”, “chão” e “ajudar”, que relatam suas concepções sobre os diagnósticos. Percebeu-se, por meio dos discursos, que muitas desconheciam esse distúrbio, ou achavam que seria possível curá-lo, permitindo que os sentimentos de tristeza e luto se manifestassem.

É o sentimento que eu tenho até hoje é de solidão. Se ela tivesse aceitado mais cedo, hoje ela estaria falando. Na hora eu não senti nada porque eu não tinha noção do que fosse, mas a partir do momento eu comecei a pesquisar e a me interessar em tudo que acontecia, mas o carinho é essencial. Será o que eu fiz de errado? Por que será que meu filho nasceu assim? Por que Deus me deu uma criança assim? Eu sempre fui muito positiva, a partir do momento eu passei uma semana de luto. Aquela semana que você tenta andar, mas parece que você não está pisando no chão porque seu pensamento é voltado todo para aquela necessidade, mas eu sabia que não podia nem me dar esse luxo de parar para pensar muito tempo porque eu tinha que agir. No tempo que o diagnóstico foi dado não era assim tão conhecido quanto agora. Quem sempre tomou de conta foi eu, então eu e meu marido chegamos à conclusão que ela precisava de tratamentos de terapia. Na verdade, eu fiquei sem chão, mas em momento algum pensei em me desesperar. Só pensava: eu quero que Deus me dê um jeito para eu ajudar meu filho. Quando o médico me disse foi a primeira coisa que veio na minha cabeça, então senti esse sentimento de desespero, de luto que as pessoas falam. Eu senti aquela vontade de fazer tudo que eu pudesse de ir atrás de onde tivesse ajuda para ajudar ele. Foi uma bomba porque a gente nunca imaginava, eu nunca imaginei que iria ter um filho especial assim, porque eu sempre tive muito medo, não sei por que, mas eu sempre tive muito medo de ter um filho especial. Eu senti como se o chão tivesse aberto e eu entrado, é um sentimento indescritível, parecia que meu filho tinha morrido, o filho que eu desejei, o filho que eu planejei para mim.

DISCUSSÃO

As famílias de crianças com diagnóstico de TEA vivenciam um processo dinâmico, no qual os membros se mobilizam, assumindo papéis ativos frente aos sinais, diagnóstico e cuidados, de forma que a interpretação das situações vivenciadas, bem como as interações com a criança, direciona as ações realizadas por eles1111. Mapelli LD, Barbieri MC, Castro GVDZB, Bonelli MA, Wernet M, Dupas G. Child with autistic spectrum disorder: care from the family. Esc Anna Nery. 2018;22(4):e20180116. doi: https://doi.org/10.1590/2177-9465-ean-2018-0116
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O convívio diário com a criança permite às mães identificar comportamentos distintos daqueles observados em outras crianças que elas conhecem. Embora não saibam do que se trata, estão cientes de que algo se difere dos padrões notados, especialmente quando esse comportamento diferente é observado após um período de normalidade. A partir dessa percepção, a mãe - como se observou nos relatos - começa um movimento de peregrinação por consultórios, hospitais e profissionais de saúde, em busca de respostas que ajudem a compreender o que se passa com o filho1212. Segeren L, Fernandes FDM. Correlation between verbal communication of children with autism spectrum disorders and the level stress of their parents. Audiol Commun Res. 2016;21:e1611. doi: https://doi.org/10.1590/2317-6431-2015-1611
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Frente a essa situação, surgem os sentimentos de angústia e impotência em relação à saúde da criança, por não saber exatamente o que está acontecendo e nem como ajudá-la. No Brasil, a precariedade dos serviços de saúde, bem como a falta de experiência dos profissionais de saúde em reconhecer precocemente o TEA, reforça esses sentimentos e acarreta a demora e indefinição no diagnóstico1313. Pinto RNM, Torquato IMB, Collet N, Reichert APS, Souza Neto VL, Saraiva AM. Infantile autism: impact of diagnosis and repercussions in family relationships. Rev Gaúcha Enferm. 2016;37(3):e61572. doi: https://doi.org/10.1590/1983-1447.2016.03.61572
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Desse modo, é compreensível que a revelação do diagnóstico do TEA se apresente qual um momento complexo, delicado e desafiador para a família, assim como para os profissionais de saúde responsáveis por essa missão. O ambiente físico, associado às demais circunstâncias relacionadas à notícia, poderá interferir positiva ou negativamente para minimização do sofrimento familiar1414. Nobre DS, Souza AM. Experiences of parents and/or caregivers of autistic children in a psychological service. Rev Baiana Enferm. 2018;32:e22706. doi: http://doi.org/10.18471/rbe.v32.22706
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A pouca disponibilidade de tempo, a inabilidade em comunicação e o apoio emocional do profissional de saúde constituem, ainda, significativas barreiras para a ação de diagnosticar o que, legalmente, compete ao médico. Entretanto, deve-se considerar a importância da presença da equipe multiprofissional nesse processo, a fim de compartilhar os questionamentos, as angústias e as necessidades dos familiares1515. Machado MS, Londero AD, Pereira CRR. Tornar-se família de uma criança com transtorno do espectro autista. Contextos Clín. 2018;11(3):335-50. doi: https://doi.org/10.4013/ctc.2018.113.05
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Nesse contexto, é fundamental planejar como o diagnóstico será revelado à família, mantendo-se a relação dialógica compreensiva, com a finalidade de facilitar o fluxo de informações fornecidas, além de viabilizar melhor aceitação por parte da família, a fim de que ela estabeleça as estratégias de enfrentamento do problema da criança1313. Pinto RNM, Torquato IMB, Collet N, Reichert APS, Souza Neto VL, Saraiva AM. Infantile autism: impact of diagnosis and repercussions in family relationships. Rev Gaúcha Enferm. 2016;37(3):e61572. doi: https://doi.org/10.1590/1983-1447.2016.03.61572
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A dimensão do impacto do autismo nas mães participantes deste estudo abrangeu inúmeros aspectos, incluindo mudança e adaptação do espaço, redução do nível socioeconômico, mudanças de planos futuros e possibilidade de gerar conflito conjugal, entre outros. Diante dessas mobilizações, notaram-se as consequências que um membro permanentemente sintomático - como o autista - ocasiona à família, tornando-se fator relevante para estudos33. Carvalho Filha FSS, Silva HMC, Castro RP, Moraes Filho IM, Nascimento FLSC. Coping e estresse familiar e enfrentamento na perspectiva do transtorno do espectro do autismo. Rev Cient Sena Aires. 2018 [cited 2020 Sep 25];7(1):23-30. Available from: http://revistafacesa.senaaires.com.br/index.php/revisa/article/view/300
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Esse fator, muitas vezes, leva a família a comportar-se de forma disfuncional, devido às constantes adaptações que precisam vivenciar, e descobrir a melhor maneira de ajudar o filho autista, evidenciando a possibilidade de desenvolver a relação entre o autismo infantil e o estresse familiar1616. Maia FA, Almeida MTC, Oliveira LMM, Oliveira SLN, Saeger VSA, Oliveira VSD, et al. Importância do acolhimento de pais que tiveram diagnóstico do transtorno do espectro do autismo de um filho. Cad Saúde Colet. 2016;24(2):228-34. doi: https://doi.org/10.1590/1414-462X201600020282
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Por conta disso, o TEA afeta os membros da família, gerando sentimentos e respostas variadas, determinando consequências nas crianças. Ao vivenciar as dificuldades frente ao autismo, a família apresenta um estado de desequilíbrio pelas situações de tensão, que se reflete nas relações familiares, afetando a saúde emocional dos membros. O estresse parental é uma situação comum e estratégias focadas no problema ou nas emoções são usadas para o seu enfrentamento1717. Ishtiaq N, Mumtaz N, Saqulain G. Stress and coping strategies for parenting children with hearing impairment and autism. Pak J Med Sci. 2020;36(3):538-43. doi: https://doi.org/10.12669/pjms.36.3.1766
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Nesse contexto, as famílias que se encontram em circunstâncias especiais, promotoras de mudanças nas atividades de vida diária e no funcionamento psíquico dos membros, como o autismo, deparam-se com sobrecarga de tarefas e exigências especiais, que suscitam situações potencialmente indutoras de estresse e tensão emocional. Essas situações de tensão foram encontradas nas mães participantes deste estudo, que demonstraram diferentes sentimentos e emoções1616. Maia FA, Almeida MTC, Oliveira LMM, Oliveira SLN, Saeger VSA, Oliveira VSD, et al. Importância do acolhimento de pais que tiveram diagnóstico do transtorno do espectro do autismo de um filho. Cad Saúde Colet. 2016;24(2):228-34. doi: https://doi.org/10.1590/1414-462X201600020282
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,1717. Ishtiaq N, Mumtaz N, Saqulain G. Stress and coping strategies for parenting children with hearing impairment and autism. Pak J Med Sci. 2020;36(3):538-43. doi: https://doi.org/10.12669/pjms.36.3.1766
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A sobrecarga dessas mães, em função do cuidado com a criança autista, também é relatada em estudo1818. Biffi D, Ribeiro VR, Mellos A, Pereira LD, Manzoni FD. Perception about autism under the optics of mothers. Rev Enferm Atual In Derme. 2019;87(25 Suppl.). doi: https://doi.org/10.31011/reaid-2019-v.87-n.25-art.222
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que retrata a árdua luta materna na busca por assumir o cuidado integral de crianças autistas, tanto em domicílio, quanto nas idas e vindas aos serviços de assistência à criança autista. A mãe absorve o universo desse filho de tal forma que passa a relatar o seu cotidiano como se fosse o dele. Essa problemática se dá, particularmente, associada à construção social do papel da mulher como cuidadora, enquanto do homem de mantenedor do sustento da família.

Nessa conjuntura, as mães, aos poucos, vão perdendo a própria história e identidade, porque passam a viver para os filhos. Diante disso, elas buscam suporte para criar um filho com TEA na Associação de Amigos dos Autistas (AMA) e na Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE), que atuam proporcionando espaços de troca de experiências e amparo, para que os cuidadores possam falar das dificuldades do dia a dia, dos sentimentos, das frustrações, além de esclarecer dúvidas e aconselharem-se com os profissionais inseridos nesses serviços. Com isso, adquirem a sensação de segurança e motivação para seguirem em frente com a batalha diária de criar filhos autistas da melhor maneira possível1919. Guareschi T, Alves MD, Naujorks MI. Autismo e políticas públicas de inclusão no Brasil. J Res Spec Educ Needs. 2016;16(s1):246-50. doi: https://doi.org/10.1111/1471-3802.12286
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É nesse contexto que a enfermagem ganha espaço de atuação, tanto no que se refere ao cuidado para com a criança quanto para com a família, em particular as mães, que, nesse momento, encontram-se fragilizadas, necessitando de apoio e orientações acerca da direção a ser tomada.

Os profissionais da enfermagem devem atentar-se às singularidades dos indivíduos e suas respectivas necessidades, prestando assistência íntegra e de qualidade - que atenda a todas as demandas de cuidado dos autistas e famílias -, contribuindo para o fortalecimento e ampliação dos laços relacionais. O enfermeiro envolvido, pela competência em cuidar do doente e da sua família, é um profissional capaz de se inserir no cuidado em domicílio, e contribuir na organização da dinâmica familiar.

A família demanda cuidados disponibilizados por profissionais de diversas áreas. Contudo, observa-se que cada profissional atua dentro da própria atribuição, isoladamente, apesar de pertencerem à mesma equipe de tratamento. Assim, o suporte oferecido se revela fragmentado, descontínuo e desproporcional para abranger todas as necessidades da família.

Cada família possui necessidades particulares, cujas fragilidades a serem abarcadas relacionam-se à sua própria dinâmica. É necessário compreender a família, a sua estrutura e o seu funcionamento, cabendo ao profissional descobrir, pelas consultas e narrativas - bem como pela compreensão do ambiente domiciliar -, como ocorre a sua organização, além das relações e resiliências. Nesse sentido, visitas domiciliares podem compor o planejamento do cuidado familiar, uma vez que revelam questões que o espaço do consultório/instituição de saúde não abrange2020. Rocha KB, Conz J, Barcinski M, Paiva D, Pizzinato A. A visita domiciliar no contexto da saúde: uma revisão de literatura. Psicol Saúde Doenças. 2017;18(1):170-85. doi: http://doi.org/10.15309/17psd180115
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As limitações deste estudo se relacionam ao número de entrevistados e ao local do estudo - uma única unidade -, o que impede a generalização dos achados. No entanto, os resultados são considerados confiáveis, pois refletem condições semelhantes verificadas em pesquisas de maior abrangência, e ressaltam a necessidade de estudos complementares que envolvam o tema, visto que ainda existe carência nesse sentido.

CONCLUSÃO

Este estudo evidenciou o impacto do diagnóstico e os efeitos sobre as relações familiares de crianças com TEA. A partir dos resultados, foi possível perceber que a revelação do diagnóstico do TEA ocasionou importantes repercussões no contexto familiar, nos anseios atribuídos às mães, bem como sobre a capacidade de entender as peculiaridades da síndrome e a importante necessidade de auxílio às crianças. O estudo enfatizou as mudanças rotineiras observadas no trabalho dessas mulheres, nas experiências e vivências para conciliar o cuidado com as crianças e manterem-se financeiramente.

Dessa forma, destacou-se a importância de que os esclarecimentos necessários sejam fornecidos, as dúvidas e os anseios das mães envolvidas nesse momento sejam minimizados e os profissionais de saúde - entre eles o enfermeiro - saibam implementar estratégias de aceitação e constituam apoio sólido na disseminação de informações.

Ressalta-se a relevância do presente estudo, considerando que os resultados obtidos enfatizam a percepção da mulher - mãe de uma criança com diagnóstico de TEA - sobre o transtorno e suas vivências nesse cuidar, levantando direcionamentos para pesquisas futuras.

Por fim, acredita-se que os achados contribuirão na busca por ações voltadas à educação e suporte para a família cuidadora de indivíduos com TEA, tanto pelos profissionais de enfermagem, quanto dos demais profissionais da área da saúde. O estudo permite, ainda, reflexões sobre a importância de prestar acolhimento apropriado a essas mulheres, mediante uma visão holística, sem se concentrar especificamente no paciente com TEA, mas focando também em seus cuidadores.

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Editado por

Editor associado:

Rosana Maffacciolli

Editor-chefe:

Maria da Graça Oliveira Crossetti

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    19 Nov 2020
  • Aceito
    06 Abr 2021
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