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Para repensar o papel do Estado sem ser um neoliberal

To rethink the role of the state without being a neoliberal

RESUMO

Este artigo trata de alguns dos elementos do debate sobre a reforma do Estado brasileiro, que está ocorrendo atualmente. É preciso levar em conta a origem keynesiana do intervencionismo contemporâneo e a trajetória da implementação do programa nacional de industrialização. Este programa foi, inicialmente, discutido nos anos 1930 e, posteriormente, nos anos 1940, tratado teoricamente pela CEPAL. Ele lida com os gargalos criados pela industrialização e argumenta que a crise da década de 1980 se deveu à natureza contraditória da crise financeira do setor público. Por fim, propõe algumas ideias básicas para a reforma do Estado como condição para uma nova estratégia de desenvolvimento.

PALAVRAS-CHAVE:
Estado; reforma; neoliberalismo; Keynes; CEPAL

ABSTRACT

This article deals with some of the elements on the debate on the reform of the Brazilian State, which is taking place at the present time. It takes it to account the Keynesian origin of the contemporary interventionism and the trajectory of the implementation of national program of industrialization. This program was, at first, discussed in the l930’s and later, in the 1940’s, dealt theoretically by CEPAL. It deals with the bottlenecks created by the industrialization and argues that the crisis of the 1980 were due to the contradictory nature of the financial crisis of the public sector. Finally, it proposes some basic ideas for the reform of the state as a condition to a new strategy of development.

KEYWORDS:
State; reform; neoliberalism; Keynes; ECLAC

I. INTRODUÇÃO

Atribui-se a Keynes o desenho teórico da estratégia político-econômica que, desde a década de 30, transformou a natureza do Estado e de suas relações com a economia e as sociedades capitalistas avançadas. Na verdade, sua ação efetiva é posterior aos anos 40, ainda quando são inúmeros os fatores objetivos que, a partir da crise de 29, contribuíram, de forma decisiva, para a constituição das economias mistas e dos sistemas de bem-estar e proteção social. Deposto o pensamento liberal/conservador, pelo ataque teórico-ideológico dos keynesianos e pelo avanço político dos social-democratas - ocorridos à sombra dos efeitos devastadores de duas guerras mundiais -, abriram-se os caminhos para a presença de um Estado ativo e intervencionista. Um Estado que, reorganizado, foi ator central na viabilização do mais longo e contínuo crescimento de longo prazo experimentado pelas economias avançadas.

As políticas de corte keynesiano, atuando de forma indireta sobre a demanda, redinamizaram as economias e diminuíram, durante trinta anos, o impacto cíclico das crises, permitindo o pleno emprego e desativando a idéia socialista de controle direto e detalhado da produção. Mais do que isso, criaram as premissas de um pacto explícito ou implícito entre sindicatos e capitalistas, que fundou as bases do Welfare State e de uma paz social que duraria até os anos 70. Utilizando, em maior ou menor medida, o planejamento indicativo e a constituição de empresas estatais, os países europeus armaram uma institucionalidade e definiram uma estratégia tirando o melhor proveito, no longo prazo, das transformações produzidas pela guerra mundial e pelos efeitos da nova hegemonia econômica e militar norte-americana.

Desde os anos 70, profundas modificações tecnológicas e financeiras, acompanhadas da desaceleração do crescimento econômico e das “crises fiscais” do Estado de bem-estar, anunciaram uma nova crise, frente à qual as políticas econômicas keynesianas mostraram-se ineficazes. Abriam-se as portas para o ressurgimento do pensamento liberal - político e econômico - e sua vitória política em vários países europeus. Desde então, no debate teórico e ideológico, assim como na ação concreta dos governos, avança vitoriosa a crítica ao intervencionismo estatal, responsabilizado pela própria crise.

Nos anos 80, a era keynesiano-social-democrata pareceu encerrada, ainda que não completamente definidos os parâmetros e a institucionalidades que regerá a presença do Estado no crescimento econômico futuro das economias avançadas.

No mesmo tempo, mas num espaço distinto, atribui-se a Prebisch e à CEPAL a paternidade teórica dos vários projetos de desenvolvimento nacional, implementados de um ou outra forma, em grande número de países latino-americanos. As políticas de corte cepalino ou desenvolvimentista propunham a superação do atraso através de uma industrialização induzida pelo Estado.

O objetivo explícito ou implícito do projeto foi a criação de economias nacionais autossustentáveis que reproduzissem, nos espaços domésticos, estruturas industriais integradas e não especializadas. Sua estratégia envolvia, de um lado, o controle estatal do câmbio como instrumento para uma industrialização orientada pela pauta de importações; e, de outro, a presença ativa do Estado, como produtor de insumos e fornecedor das infraestruturas de transporte e comunicações. Além de principal financiador dos investimentos privados nacionais e pivô central da articulação entre os capitais nacionais privados e públicos e os capitais internacionais.

Essas ideias, aqui como nos países avançados, enfrentaram escassa resistência do pensamento liberal, na medida em que recolhiam práticas e tendências institucionalizadas desde os anos 30 como reação defensiva à crise internacional. Por isso, acabaram constituindo o núcleo de uma consenso desenvolvimentista análogo, em força e extensão, ao keynesianismo europeu. A proposta de criar uma economia nacional independente, alavancada pela ação inteligente do Estado, conquistou apoio nas elites da esquerda anti-imperialista, assim como entre os nacionalistas conservadores e, sobretudo, em alguns países como o Brasil, entre os militares preocupados com a Segurança Nacional. Na América Latina, como alhures, os liberais estiveram, teoricamente, na defensiva durante décadas, mesmo quando politicamente presentes em várias coalizões governamentais. Nesse sentido, a contraface da hegemonia política social-democrata na Europa foi a supremacia nacional-desenvolvimentista na América Latina.

A história dos anos 50 e 60, entretanto, demonstrou que a estratégia desenvolvimentista não era viável em países pequenos e com economias agrícolas e especializadas. E quando a crise internacional dos anos 70 trouxe de volta as ideias liberais, o fez na Europa tanto quanto na América Latina, onde apenas Brasil e México ainda se mantinham fiéis ao projeto ao desenvolvimento nacional dos anos 40. Finalmente, só o Brasil chegou aos anos 90 sem abandonar o projeto original, ainda que vivendo uma crise profunda. De todos os países latino-americanos, foi o único que logrou montar uma estrutura industrial relativamente acabada e integrada, a despeito de sua escassa autonomia tecnológica. Mas também aqui o nacional-desenvovimentismo está hoje na defensiva e sob o ataque implacável de um ideário liberal já hegemônico - no seio das elites -, ainda que impreciso quanto à estratégia para o desenvolvimento futuro de longo prazo da economia brasileira.

Se o antiestatismo é a característica central do quadro ideológico e político europeu e latino-americano, porém, no início da década de 90 o intervencionismo asiático tem sido extraordinariamente bem-sucedido, mantendo viva a tese de que se a ação do Estado não é suficiente, foi certamente indispensável em todos os casos de desenvolvimento acelerado a partir da crise dos anos 30. Verificação que mantém acesa - a despeito da avalancha liberal - o debate teórico e a luta política sobre o papel do Estado no desenvolvimento de longo prazo de todos os países situados na periferia capitalista.

No debate, a experiência latino-americana parece diferenciar-se da asiática na medida em que, aqui, o Estado Desenvolvimentista combinou intensa preocupação com a expansão do potencial produtivo industrial a um alto padrão de iniquidade distributiva. E uma contraditória busca da autonomia ou do controle nacional de um crescimento que se deu de forma internacionalizada e sem um projeto que articulasse o Estado com o empresariado nacional.

Na América Latina como nos países asiáticos e em todas as industrializações tardias, no entanto, coube ao Estado a múltipla tarefa de promover o crescimento, administrar o ciclo econômico, disciplinar a distribuição social da riqueza e comandar a inserção nacional dos interesses multinacionais, o que lhe outorgou uma posição decisiva na reprodução econômica, social e política. Estressado, entretanto, por essas múltiplas funções, muitas vezes divergentes, o Estado Desenvolvimentista agigantou sua estrutura, debruçando-se - quase sempre de forma autoritária e corporativa - sobre os vários grupos de interesse gerados pelo próprio processo de industrialização. Sua intervenção e sua política econômica, em particular, definiram - durante a vigência dos projetos de desenvolvimento nacional - os objetivos de curto e longo prazos da sociedade como um todo, decidindo sobre seus planos estratégicos e táticas de implementação. Mais que nas economias avançadas, a política econômica estabeleceu os horizontes coletivos, organizando, em torno de seu processo de decisão e de sua burocracia uma multiplicidade infinita de atores, com interesses e expectativas extremamente heterogêneos, o que, no longo prazo, lhe impôs limites. No Brasil esses limites parecem havê-lo levado à impotência e à necessidade de profundas transformações, que não coincidem com as defendidas pelo ideário liberal.

II. ESTADO E CRESCIMENTO DE LONGO PRAZO NO BRASIL

O Brasil foi e ainda é o caso mais completo e bem-sucedido (em seus termos) de realização do projeto latino-americano de desenvolvimento nacional. Seu Estado Desenvolvimentista cumpriu papel decisivo no crescimento iniciado nos anos 30 e na industrialização acelerada a partir dos anos 50, através de uma política industrial estruturada com base em seu setor produtivo articulado com os capitais nacionais e internacionais.

A Lei Alves Branco, do século passado, já sugeria uma precoce preocupação protecionista, mas foi com a proteção ao café que o Estado se comprometeu mais incisivamente com uma política econômica ativa - ainda que só a partir de 1930 e como efeito indireto de uma política defensiva do setor agroexportador tenha sido possível identificar uma ação econômica consistente do Estado, mesmo que não intencionalmente industrializante. Na verdade, foi nos anos 30 que se formou uma burocracia capaz de centralizar e universalizar as regras e o controle das principais funções e variáveis macroeconômicas, como o câmbio, os juros, o crédito, os salários etc. Naquele momento se normatizaram as grandes áreas da atividade econômica nacional e se elaboraram os códigos e regulamentações dos serviços de utilidade pública, de informação estatística etc. Formularam-se, igualmente, os primeiros planos para a industrialização pesada e explicitaram-se as preocupações com os problemas de infraestrutura energética e de transportes. Criaram-se inclusive as primeiras instâncias político-administrativas para o exercício de coordenação e planejamento global. Em síntese, nos anos 30 se construiu o arcabouço institucional básico do Estado Desenvolvimentista brasileiro, que viabilizou os passos seguintes na direção de sua modernidade industrial. Mas foi nos anos 50 que o Estado brasileiro assumiu o ideário do desenvolvimento nacional. Com Vargas, quando se começou a desbloquear os “pontos de estrangulamento” da infraestrutura de transportes e energia e se constituiu um subsistema de financiamento público de natureza fiscal baseado em empréstimos compulsórios e fundos vinculados, criando-se, ademais, instituições e empresas da importância do BNDE e da Petrobrás. E com JK e seu Plano de Metas, quando se definiram uma estratégia geral e objetivos industriais específicos, estabelecendo-se as regras de articulação entre o Estado e o capital privado nacional e internacional. Nesse momento, o BNDE passou a atuar decididamente no financiamento da infraestrutura energética e de transportes e as barreiras protetoras do mercado interno foram significativamente aumentadas pari passu com a expansão do investimento estrangeiro na indústria de bens de consumo duráveis. Vinte e três novas empresas estatais foram criadas nos anos JK, indicando o aumento da participação direta do Estado no esforço de ampliar a capacidade produtiva da economia brasileira. Como resultado, os anos 60 herdaram uma estrutura industrial já diversificada, incluindo insumos básicos, bens de consumo duráveis, bens de capital etc.

Com o regime autoritário instalado em 1964 sob a liderança tecnocrático-militar, o projeto de desenvolvimento nacional capitaneado pelo Estado alcançou sua máxima potenciação, com base em uma retórica liberalizante, mas sob o signo da ideologia da segurança nacional. Se o governo “nacional-populista” de João Goulart criou 33 novas empresas estatais, o regime militar criou 302 e levou até o fim, com o II PND, o projeto de constituição de uma estrutura industrial integrada, substituindo importações, através de investimentos públicos ou privados, muitas vezes em associação “tripédica” com o capital estrangeiro. Em todos os casos, o financiamento ou subsídio estatal foi decisivo, seja na forma de isenções ou reduções de tarifas e impostos, seja na forma de juros diferenciados ou financiamentos com correção monetária inferior à taxa de inflação etc.

Nos anos 70, inclusive, o Estado acentuou sua intervenção, promovendo exportações e sustentando a demanda interna, via manejo dos investimentos públicos, do finaciamento à construção imobiliária, da política cambial etc. Nessa direção, o II PND representou o esforço mais importante, integrado e ambicioso de política estatal voltada para a complementação da estrutura industrial brasileira. Sua implementação na segunda metade dos anos 70 logrou, apesar das dificuldades aceleradas pela crise internacional, um avanço decisivo de nossa indústria pesada, completando o processo de substituição de importações dos insumos básicos da economia.

Se os anos 80 seguiram sendo uma década de crise e indefinição sobre os caminhos do desenvolvimento nacional, é indiscutível que, na segunda metade dos anos 70, o governo Geisel, navegando contra uma maré ideológica e econômica internacional desfavorável, foi o último dos desenvolvimentistas latino-americanos e, certamente, o mais acabado realizador dos sonhos de Prebisch e da CEPAL do final dos anos 40.

III. OS ASPECTOS CRÍTICOS DA TRAJETÓRIA NÃO PROJETADA DO DESENVOLVIMENTO

Depois de cinquenta anos de crescimento continuado e ininterrupto, constituiu-se, no Brasil, uma economia industrial relativamente avançada e integrada, assentada sobre uma articulação entre capitais estatais, privados nacionais e estrangeiros. No cumprimento de seu papel dentro do velho projeto de desenvolvimento nacional, o Estado empreendeu ampla e complexa institucionalidade que se expandiu e especializou de forma contínua, por todo o período. Como produtor e coordenador dos grandes blocos de investimento e como principal agente de centralização financeira, o Estado brasileiro desenvolveu burocracias competentes na gestão de suas agências, bancos e empresas produtivas.

Essa modernização econômica e institucional, porém, produziu, paralelamente, resultados extremamente iníquos do ponto de vista social e desajustes do ponto de vista financeiro que não estavam previstos no projeto inicial do início dos anos 50, quando se supunha que a industrialização fosse acompanhada de transformações na estrutura agrária e na distribuição de renda, gerando um mercado interno dinâmico. Quando se supunha, igualmente, a viabilidade de um sistema privado/público solidário de financiamento, ao qual não faltasse o apoio dos capitais de risco ou empréstimos internacionais. Não se previam, naquela altura, dificuldades do ponto de vista do processo de centralização financeira indispensável à monopolização que deveria acompanhar a expansão da capacidade produtiva nacional. Por fim, supôs-se, sem maiores discussões, que o crescimento, permitindo uma melhor distribuição da renda, facilitaria a legitimação do regime democrático, com competição política aberta e altamente legítima de poder.

O que a história demonstrou foi a impossibilidade concreta, no Brasil, de compatibilizar todos esses supostos mais ou menos explícitos no desenho originário do projeto de desenvolvimento nacional. Se em cinquenta anos de estatismo e trinta de industrialismo lograram-se grandes avanços, ao mesmo tempo avolumaram-se os problemas gerados pelas contradições embutidas na trajetória da própria modernização. Problemas que apareceram exponenciados na crise dos anos 80, quando o projeto desenvolvimentista parecia haver alcançado o limite de suas potencialidades. Assim com:

  1. A atrofia do sistema financeiro privado, incapaz de “mobilizar recursos para créditos de longo prazo para investimentos” (W. Suzigan, 1988SUZIGAN, W. (1988) “Estado e Industrialização no Brasil”. Revista de Economia Política, São Paulo, Ed. Brasiliense, 8(4)., p. 11).

  2. O desenvolvimento truncado de centralização financeira estatal, indispensável, nessas circunstâncias, ao processo de monopolização.” As instituições financeiras públicas cumpriram apenas o lado passivo da função financeira, isto é, o de aportar massas de capital, sob diversas formas, inclusive a de crédito subsidiado. Isto é, o sistema financeiro público não participou como sujeito do processo de monopolização do capital...” (M. C. Tavares, 1978TAVARES, M. C. (1978) Ciclo e Crise - O Movimento Recente da Industrialização Brasileira. Tese apresentada à Faculdade de Economia e Administração da UFRJ para Concurso de Professor Titular, Rio de Janeiro., p. 42). Razão pela qual o financiamento do projeto de desenvolvimento nacional passou sempre, e em vários momentos, ora pela inflação, ora pelo endividamento público interno e externo. Formas igualmente precárias de manutenção de um processo que se pretendeu autossustentado, como a crise financeira dos anos 80 aliás, veio demonstrar cabalmente.

  3. A não-ocorrência, no caso brasileiro, de um autêntico processo de monopolização da economia, passo indispensável para a multiplicação de suas energias privadas de crescimento. Processo bloqueado pela inexistência de uma centralização financeira e pela capacidade política de resistência dos vários núcleos setoriais e regionais protegidos, apesar de sua ineficiência.

  4. A impossibilidade de um verdadeiro controle nacional sobre os capitais forâneos, cujos centros de decisão externos e cuja capacidade autônoma de financiamento e comércio os transformaram em peça essencial do desenvolvimento “associado”, mas a um só tempo reduziram a capacidade de planejamento nacional autônomo sobre o conjunto das variáveis e empresas envolvidas.

  5. A distribuição absolutamente regressiva da renda, sob a forma de um processo perverso de crescimento exponencial, durante quase toda a trajetória desenvolvimentista, que permitiu a constituição de um mercado amplo de consumo de massas, relegou uma parcela expressiva da população a um estado de marginalidade quase completa com relação à cidadania e ao acesso aos serviços sociais básicos. Serviços geridos por burocracias corroídas pelo clientelismo, mas que conviveram, todo esse tempo com o braço econômico e moderno da administração do Estado Desenvolvimentista.

  6. Desigualdades enrijecidas e ampliadas pela intocabilidade da estrutura fundiária e pela inexistência de “uma política agrícola de alimentos básicos, de modo a viabilizar o crescimento econômico com ganhos de salários reais e incorporação ao mercado de contingentes populacionais marginalizados”. (Idem, pág. 11)

  7. O uso excessivo, além do tempo necessário, de um protecionismo que acabou responsável em certos casos pelo que W. Suzigan (1988SUZIGAN, W. (1988) “Estado e Industrialização no Brasil”. Revista de Economia Política, São Paulo, Ed. Brasiliense, 8(4)., pág. 10) considerou “ausência de uma estratégia de desenvolvimento científico e tecnológico, como parte das políticas de industrialização implementadas a partir dos anos 50”. Sedimentando, além disso, grupos e lobbies setoriais e regionais que, travestidos de uma linguagem nacionalista, se organizaram por dentro do aparelho estatal para controlar as decisões que pudessem alterar seus mercados cativos. Por esta brecha multiplicaram-se “cartórios” e reproduziu-se uma heterogeneidade cada vez mais resistente, mais do ponto de vista político que do econômico.

  8. A compreensão tardia, por parte dos desenvolvimentistas, de que, apesar da proteção autoritária, a política econômica do governo não era impermeável às demandas políticas que entravam em conflito com a racionalidade econômica. E, por isso, uma vez decidida e aplicada, ela era ainda perfeitamente minável pelas ações autônomas dos empresários, das corporações setoriais e regionais e até (apesar do autoritarismo) dos sindicatos de trabalhadores. E mais: a interpenetração do Estado e dos interesse privados - processo universal que alguns chamaram de ‘’privatização do Estado” - fazia cada vez mais difícil a operacionalização de sua racionalidade “iluminada”, sem a adoção crescente de mecanismos de cooptação, suborno, clientelismo etc., formas todas de obter ou “comprar” os apoios necessários para fazer coincidirem as expectativas racionais dos tecnocratas com as dos empresários e da opinião pública. Mecanismos responsáveis pela corrosão do braço burocrático do Estado, encarregado, em geral, da proteção social da população.

  9. Finalmente, a estreita “afinidade eletiva” historicamente verificada entre o projeto de desenvolvimento nacional, capitaneado pelo Estado, e os regimes autoritários. Sendo que, no caso brasileiro, dos cinquenta anos de crescimento continuado, 35 vividos sob ditaduras civis e militares. Também isso não estava previsto nos sonhos desenvolvimentistas de Prebisch, CEPAL e seus discípulos, ortodoxos ou heterodoxos. Um autoritarismo que foi assumido em si pelo Vargas dos anos 30 e defendido como solução instrumental e transitória durante os vinte anos do regime militar iniciado em 1964.

IV. O ESGOTAMENTO ESTRUTURAL DO ESTADO DESENVOLVIMENTISTA

A crise dos anos 80, ocorrendo no ápice da industrialização por substituição das importações, pareceu hierarquizar as determinações, trazendo à luz os limites impostos pelas contradições presentes no pacto de dominação que sustentou a estratégia de crescimento e modernização liderado pelo Estado desenvolvimentista.

Combinou desaceleração continuada da taxa de investimento com hiper aceleração inflacionária e esgotamento da capacidade de endividamento externo; estrangulamento fiscal da possibilidade de gasto público com a exaustão do regime autoritário e uma difícil transição para a democracia. A condução político-econômica desses problemas tem apontado inexorável para a deterioração dos salários de base e o agravamento das condições sociais, com aumento dá incerteza e retração especulativa dos capitais. Situado no epicentro da crise, o Estado perdeu o comando da política macroeconômica e a iniciativa do crescimento, o que exponencia, a cada momento e em cadeia, todas as dimensões apontadas, gerando um processo acumulativo e entrópico de destruição do setor público e de desorientação do setor privado.

À diferença de outras crises passadas, entretanto, esta não parece ter natureza meramente conjuntural, nem se vislumbra no horizonte próximo a possibilidade de crescer “fugindo para frente” e evitando a agudização dos conflitos pelo refortalecimento do Estado central. Tampouco há possibilidade de revigorar laços solidários com os processos de internacionalização produtiva e financeira, uma vez que a economia internacional vive clara redefinição de sua trajetória, com particular desconfiança ante os países endividados, como é o caso brasileiro.

A crise atual é de natureza estrutural e esgota, em nosso entender, o potencial schumpeteriano de nosso Estado Desenvolvimentista, que, durante quatro décadas, conseguiu ser economicamente eficiente, apesar de suas contradições e dos desvios de sua estratégia. Não por acaso, esse esgotamento se dá de forma simultânea com a exaustão do autoritarismo militar. Ambas as entropias convergem e coincidem num mesmo impasse, exigindo radical reformulação do Estado: na sua organização burocrático-administrativa e, certamente, nas suas funções como agente econômico-financeiro, mas, sobretudo, enquanto pacto de dominação e estratégia de expansão.

A própria duração da crise atual desnuda a estreiteza e as contradições desenvolvimentistas do pacto, imobilizando as políticas e restringindo os espaços de manobra do Estado, além de exponenciar os pontos críticos e as consequências nefastas da estratégia vigente nas últimas décadas.

Nessa direção devem ser lidos vários fatos que hoje convergem na mesma importância.

  1. O poder arbitrário do Estado sobre o valor do dinheiro e a eficácia das normas está sendo questionado por número crescente de grupos sociais e econômicos, empresariais e sindicais, apesar de ainda não se haverem disposto integralmente a substituir o arbítrio por regras constantes e consensuais;

  2. A capacidade estatal de definir horizontes e criar novos espaços de acumulação está fortemente prejudicada pelo encurtamento dos recursos internos e externos. Independentemente, porém, a orientação estratégica da ação estatal de substituição de importações vê-se prejudicada a partir do instante em que se cumpriu a agenda industrializante própria do padrão de desenvolvimento do pós­Segunda Guerra Mundial. Até então, os horizontes eram nítidos e, de alguma forma, os passos e decisões cruciais obedeciam o roteiro das demais industrializações. Agora, já não há setores básicos a serem constituídos, uma vez que a estrutura industrial brasileira se encontra praticamente consolidada. Impõe-se que mude a intervenção estatal, mas isso não é fácil. A enorme diversidade e heterogeneidade da estrutura econômica e institucional - em que cada bloco de capitais e setor de atividade foi constituído segundo padrões e regras diferenciados - dificulta, hoje, qualquer comportamento homogêneo e constante por parte das agências reguladoras estatais, impedindo mesmo o desenho de uma nova estratégia, com objetivos e meios claramente definidos e hierarquizados;

  3. Os mecanismos clássicos de absorção/cooptação de interesses através das várias formas de proteção perderam sua abrangência. Processo lento de exaustão, de contornos dramáticos na crise atual, chamando a atenção para a flexibilidade limitada dos recursos incorporativos do Estado Desenvolvimentista, estreitamente associados à sua capacidade financeira e ao seu poder de arbítrio aleatório sobre a moeda;

  4. A manutenção autoritária dos limites e mecanismos de exclusão, ou a incorporação seletiva e clientelista dos interesses populares, alcançou um ponto cuja sustentação simultânea com uma crise financeira global demandaria níveis ainda mais altos e intoleráveis de autoritarismo. Alternativa difícil, no momento em que a retirada das Forças Armadas do primeiro plano da gestão do Estado foi o indicador mais expressivo de que essa instituição não se considera mais capaz de arbitrar e assegurar os velhos e os novos compromissos, expandidos com o sucesso da industrialização e da modernização, pela via da centralização impositiva;

  5. As várias instâncias administrativas do Estado, nacionais e subnacionais, diretas e indiretas, alcançaram um ponto de máxima desarticulação, premidas pela crise de financiamento que reduz as margens de liberdade da gestão econômica, mas sobretudo desorganizadas pela falta de uma estratégia política do Estado em qualquer dos seus níveis.

Tudo isso reforça a convicção de que o que poderia parecer um temporário desequilíbrio fiscal das contas públicas, mais visível a partir de 1982, não representava, em 1990, mera crise orçamentária ou desequilíbrio financeiro do governo. Transformou-se em crise geral de financiamento provocada, em última instância, pelos passivos acumulados de um endividamento externo que hoje corre, basicamente, por conta da autoridade pública. Na contraface real do processo, é que assistimos à degradação progressiva da infraestrutura econômica e à deterioração acelerada da qualidade dos serviços públicos, condenando o Estado à impossibilidade de cumprir até mesmo suas responsabilidades mais tradicionais: serviços urbanos, educação, saúde etc. Nesse sentido, os anos 80 marcaram o esgotamento da estratégia desenvolvimentista de cunho autoritário e excludente que vigia desde os anos 30. Por isso, hoje, a coincidência num mesmo plano e em um mesmo tempo de uma profunda crise de Governo, Regime e Estado, sob o manto de uma catástrofe financeira. A forma assumida pela crise final do Estado Desenvolvimentista evidencia que sua ação esteve sempre condicionada por um pacto conservador, de intocabilidade da terra e dos vários interesses confederados - setoriais, corporativos e regionais-, que vetou qualquer alternativa para a monopolização produtiva ou centralização financeira por parte do Estado. Limites que constrangeram o padrão de financiamento de seu projeto de industrialização nacional, obrigando-o a uma aliança com o grande capital produtivo e financeiro internacional e a um arbítrio sobre o dinheiro e o crédito submetido às exigências de proteção da heterogeneidade de nossas elites empresariais.

Como já dissemos, a crise dos anos 80 trouxe à tona o fato de que “o braço forte do capital agrário-mercantil e bancário não via no Estado o condotieri de um projeto de afirmação nacional, econômica ou militar. Optara-se pela associação com o capital internacional, produtivo ou financeiro, como única forma possível de financiar uma industrialização tardia e periférica que jamais se tornou um projeto verdadeiramente nacional, ao estilo prussiano ou japonês” (Fiori, 1989FIORI, J. L. (1989) “Sonhos Prussianos, Crises Brasileiras”. Texto para Discussão, n 201, IEI/UFRJ., p. 21). Apesar de sua evidência atual, este não é, portanto, um fato novo. Foi a condição que acompanhou a trajetória de nosso desenvolvimentismo, a contradição básica de nosso Estado. Contradição exacerbada toda vez que as elites tecno-militares forçaram a face nacional do projeto, tentando empurrar a industrialização pesada e enfrentando a oposição cerrada dos conservadores liberais, aliados no autoritarismo antipopular e no protecionismo cartorial, mas adversários ferrenhos de qualquer pretensão de um capitalismo nacional de Estado. E foi o que, uma vez mais, aconteceu quando o financiamento do II PND impôs um endividamento público interno e externo, feito com os instrumentos legais da reforma monetário-financeira dos anos 60. Endividamento que acabou degenerando na especulação improdutiva e no estrangulamento financeiro do Estado ocorrido nos anos 80.

A crise nos permite hoje um retrato fiel do que foi sempre a força e a fragilidade do Estado Desenvolvimentista. Forte enquanto arbitrou com certa autonomia o valor interno do dinheiro e dos créditos. Fraco toda vez que quis ir além dos limites estabelecidos pelos seus compromissos constitutivos. Movendo-se sempre no fio da navalha de uma aliança liberal-desenvolvimentista entre interesses extremamente segmentados e heterogêneos, acabou sucumbindo às contradições que o acionaram e instabilizaram constantemente, sendo levado em sua trajet­ria crítica à mais completa entropia de sua face schumpeteriana.

V. UM NOVO ESTADO, UMA NOVA ESTRATÉGIA

A tese central deste artigo retoma nosso argumento (Fiori, 1984FIORI, J. L. (1984) Conjuntura e Ciclo na Dinâmica de um Estado Periférico. Tese de Doutoramento, USP.) de que a prolongada crise financeira dos anos 80 encobre uma crise orgânica do Estado brasileiro, sinalizando o esgotamento estrutural da reorganização estatal ocorrida nos anos 30. A superação da crise, neste sentido, aponta para o inevitável e radical realinhamento dos velhos compromissos, de forma a viabilizar uma nova estratégia de desenvolvimento, o que envolve uma reestruturação das relações sociais e econômicas, uma redefinição do espaço da cidadania e uma recomposição do Estado, tão ou mais radical que nos anos 30, mas agora na forma de um Regime Democrático.

A nova Constituição brasileira, aprovada em 1988, representa, assim, um primeiro passo, consagrando o novo regime e profundas transformações nas relações internas entre as várias instâncias e dimensões do poder, o que significa já uma ampla reforma do Estado. Mas uma reforma que fica incompleta na medida em que depende de legislação complementar e não resolve - nem poderia - os problemas centrais de uma nova estratégia de desenvolvimento. Nessa direção, as últimas eleições presidenciais representaram um avanço mais importante. Não apenas porque testaram a possibilidade de uma competição política aberta em pleno período de crise econômica, mas também porque definiram parâmetros que deverão ser respeitados pela nova estratégia, independentemente de quem seja seu gestor. A força e extensão do voto de esquerda representou um desafio que deverá ser digerido, inevitavelmente, pela vitória conservadora. Os assalariados e os marginalizados de todo tipo e de tanto tempo não parecem mais dispostos a pagar a conta de uma estabilização que aparece como condição inevitável de uma nova estratégia. Não têm condições materiais de o fazer e dispõem de um poder político que só poderá ser destruído por uma nova ditadura. Baixos salários, excludência social e más condições de proteção pública estão vetados como caminhos de estabilização e crescimento. Em nosso entender, balizou-se, com as eleições, um caminho sem volta de modificação profunda nas relações entre capital e trabalho e entre o Estado e os trabalhadores. O velho corporativismo estatal parece estar em xeque, apesar da imensa resistência de vários e sedimentados espaços cartoriais.

Uma nova estratégia de desenvolvimento, entretanto, envolve uma complexidade tão grande de questões, que sua discussão escapa às dimensões deste artigo. Questões que vão da reorganização econômico-financeira e geopolítica mundial até o difícil plano das escolhas tecnológicas e dos mercados preferenciais. Todas, contudo, supõem, no curto prazo, a solução da face financeira da crise, e exigem, para o longo prazo, a clarificação das novas regras de relacionamento do Estado com o Mercado e dos vários capitais, nacionais e internacionais, entre si. Regras impensáveis fora de um projeto que hierarquize objetivos e meios com base em um novo relacionamento entre o Estado, os empresários e os trabalhadores.

Neste ponto agiganta-se, hoje, entre nossas elites empresariais e intelectuais, um consenso liberal-privatista e antiestatal que vê no mercado a solução para todos os problemas, inclusive os de natureza social, gerados na contramão política do sucesso industrializante do desenvolvimentismo. Um discurso liberal esgrimido, muitas vezes, pelos maiores beneficiários da “ineficiência” estatal, um discurso que desconhece completamente os limites impostos à ação do Estado pelo pacto conservador. Desconhece, sobretudo, como é óbvio, o preço pago pelo Estado desenvolvimentista à sua base de apoio social, plasmado em sua face cartorial, tão atacada pelos ideólogos liberais, mas tão estranhamente eficiente na resistência concreta às tentativas de transformação do status quo. Neste sentido, sua crítica tem por alvo um Estado tão etéreo e a-histórico quanto o Estado mínimo que se propõe construir numa sociedade complexa e de extensão continental como a brasileira. Embalados por um “tatcherismo” fora de lugar, esses neoliberais propõem submeter a complexidade à sabedoria de um mercado que, fora de sua configuração ideológica, está completamente oligopolizado internamente e repartido internacionalmente. E ainda acreditam que esse Mercado consiga, substituindo a Nação, resolver os desequilíbrios e iniquidades sociais e regionais construídos historicamente pela resistência das elites dominantes a toda e qualquer transformação que lhes afete os seus interesses. Resistência conservadora cristalizada desde os tempos em que nossos liberais conseguiram ser a um só tempo liberais e escravocratas.

Do outro lado do debate e posto na defensiva, o discurso estato-desenvolvimentista sobrevive, hoje, mais da resistência concreta de seus bolsões de proteção, cartoriais e corporativos, que da força de seus argumentos. E isso, talvez, porque jamais conseguiu esclarecer com nitidez as razões de seu rígido protecionismo e de sua lealdade - ainda quando contrários a seus interesses estratégicos - aos compromissos com as várias formas e faces do “atraso” que levaram, entre outras coisas, à falência financeira dos anos 80. Tampouco conseguiram, jamais, justificar ou mesmo explicar a extraordinária “afinidade eletiva” do seu projeto com o autoritarismo e com a excludência social.

Nesse sentido, ainda quando situados em extremos opostos do debate ideológico-político, neoliberais e desenvolvimentistas atacam e defendem um Estado igualmente abstrato e a-histórico, e acabam propondo alternativas caolhas do ponto de vista teórico e impotentes do ponto de vista histórico.

Uma nova estratégia implica objetivos claros. E estes supõem um poder hegemônico capaz de arbitrar os custos da estabilização e estabelecer a rota do crescimento. Reformas administrativas, fiscais e patrimoniais do Estado podem e devem ser feitas, mas nenhuma delas resolverá o problema da falta de supremacia ou de hegemonia. Ao contrário, as reformas só terão sentido e curso normal se encaminharem e servirem as opções fundamentais, que, no curto prazo, passam por uma profunda reforma financeira, com inevitáveis perdedores. Logo depois, ou simultaneamente, deverá haver a formulação de uma política industrial e tecnológica. Esta, se alijar completamente a concorrência externa, manterá os fundamentos da inflação e acumulará ineficiências; se optar por uma abertura completa de mercados, porá em risco as conquistas positivas do processo de industrialização, atingindo ademais o emprego, a estabilidade interna e a própria possibilidade de crescimento, dado o nosso endividamento externo.

Aqui, de novo, os extremos se tocam. O protecionismo e a abertura radicais aproximam-se no reconhecimento da impotência arbitral. A universalização da proteção, num caso, e a submissão completa ao mercado, no outro, são formas análogas de reconhecimento da falta de hegemonia e da impossibilidade de um projeto de modernização que preserve os interesses da Nação em uma economia internacionalizada.

Dessa forma, sem desconhecer a importância das reformas institucionais, a reforma essencial do Estado passa por uma redefinição de compromissos e pela afirmação de supremacias. É por isso que a reorganização do Estado é a contraface indissociável da afirmação política e econômica de um novo projeto e estratégia de desenvolvimento. Mas esse supremacia fica difícil numa sociedade com tamanho grau de heterogeneidade, tão baixo grau de monopolização econômica e tão alto nível de internacionalização decisória na estrutura produtiva. Razão pela qual a ideia de um projeto nacional construído pela via de um “pacto social” - ideia cara à proposta de uma social-democracia tropical - parece também uma solução mais fácil na cabeça dos intelectuais que na dinâmica da sociedade brasileira. A ideia é nobre, mas só foi possível onde havia poucos interlocutores, coesos e centralizados, e a hegemonia de certos setores empresariais, ainda quando inicialmente imposta por elites militares movidas por sonhos imperiais ou convicções nacionalistas, como foi o caso, por exemplo, da Coréia.

Nas sociedades europeias como nos capitalismos asiáticos, o Estado e o empresariado definiram solidariamente - às vezes - os objetivos estratégicos do crescimento e em ambos casos incluíram entre esses objetivos a proteção social de suas populações. A industrialização brasileira se orientou, na maior parte do tempo, pela bússola das menores resistências definidas pela pauta de importações. Jamais submeteu-se a um verdadeiro projeto nacional, nem respondeu a algum desafio externo. Foi alavancada pelo Estado, como em todas as industrializações tardias, mas sem contar com a solidariedade empresarial nem se preocupar com a lealdade popular. Por um Estado que, além disso, deveu submeter-se à autonomia decisória dos capitais internacionais, injetados por trás de sua proteção aos mercados internos. Nesta hora de inflação, pois, as transformações que se impõem são radicais, mas, em nosso entender, apontam para um mudança qualitativa e não para uma diminuição do papel do Estado. Uma mudança que o deve colocar na posição de sustentáculo fundamental das estratégias empresariais de conquista dos mercados externos e de luta pelos mercados internos, além de promotor ativo da justa distribuição de renda e da melhoria das condições de vida da população. Uma mudança, por outro lado, que requer imensa flexibilidade instrumental e diminuição do peso patrimonial, para viabilizar um Estado ágil, interna e externamente, em suas intervenções definidas por uma estratégia que solidarize os setores empresariais hegemônicos com as burocracias estatais.

A falta de uma compreensão adequada do que foi e do que está ocorrendo com o Estado aumenta a confusão ideológica e facilita o consumo das platitudes neoliberais, quando estas, por exemplo, querem ver na difícil e lenta privatização das estatais o caminho para resolver o déficit público de curto prazo. Ou quando, desconhecendo o superávit fiscal primário de 1989, se propõem a resolver um déficit fundamentalmente financeiro com demissão de funcionários e meras reorganizações administrativas. Ou, ainda, quando vê numa abertura indiscriminada de mercados o estímulo para a imediata recomposição de eficiências e competitividades, sem ter em conta a própria natureza oligopolizada dos mercados internacionais.

Propostas que poderiam ser consideradas ingênuas se não obliterassem a questão de fundo que está posta pelo combate imediato à inflação, a urgência de uma reforma financeira que atalhe o caminho vicioso da especulação improdutiva, feita em cima do estrangulamento financeiro do Estado. E a que está implícita, também, na definição da nova política industrial, onde não se põe a opção entre proteger e não proteger, mas sim entre quem proteger, durante quanto tempo e com que objetivos estratégicos.

As dimensões objetivas do problema, somadas à confusão ideológica e à resistência de todos contra todos, conformam um imenso desafio frente ao qual nos restam duas certezas e uma suspeita. A primeira certeza é de que ou essas transformações ocorrem como em 1930, ou o Brasil enfrentará, com maior velocidade, o que ocorreu lentamente com a sociedade argentina. Com consequências muito mais dramáticas, em função de nossas desigualdades e nossas dimensões continentais. A segunda certeza é de que essas transformações resultarão nefastas sob o receituário de um liberalismo simplório ou de um estatismo anacrônico. Quanto à suspeita, diz respeito a que essas transformações não poderão surgir apenas de um plano que enfrentará a todo momento e simultaneamente a “racionalidade” dos agentes econômicos e a multiplicidade das demandas políticas próprias de uma sociedade tão heterogênea e desigual. Transformação tão radical como a que se impõe demanda difícil combinação de força e imaginação, conflito e negociação; o que sugere um desenrolar lento e atravessado por enfrentamentos, cujos resultados só serão eficazes na medida em que definam vencedores nítidos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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  • JEL Classification: N40.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 1992
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