Acessibilidade / Reportar erro

A privatização no governo Collor: triunfo do liberalismo ou colapso do Estado desenvolvimentista?* * Tradução de Ricardo Borges Costa.

Privatization in the Collor government: triumph of liberalism or collapse of the developmental state?

RESUMO

Este artigo examina e avalia a experiência brasileira de privatização. Um novo consenso emerge no governo Collor, favorecendo a liberalização do comércio e a privatização. A estratégia de substituição de importações está esgotada e as ideias de dependência e estruturalistas estão em crise, mas isso não significa que as ideias liberais agora sejam dominantes. A nova estratégia orientada para o mercado tem um caráter bastante pragmático.

PALAVRAS-CHAVE:
Privatização; novo consenso; dependência; estruturalismo; desenvolvimentismo

ABSTRACT

This paper surveys and evaluates the Brazilian experience of privatization. A New consensus emerges in the Collor Government, favouring trade liberalization and privatization. The import substitution strategy is exhausted, and the dependency and structuralist ideas are in crisis, but this does not mean that the liberal ideas are now dominant. New market-oriented strategy has rather a pragmatic character.

KEYWORDS:
Privatization; new consensus dependency; structuralism; developmentalism

I. UM CASO DA AUSÊNCIA DA DIREITA1 1 Agradeço ao Programa Fulbright e ao Programa de Estudos Latino-americanos da Princeton University pelo apoio financeiro. Colegas do Instituto de Economia do Setor Público (IESP) e do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP) em São Paulo forneceram assistência logística indispensável e comentários valiosos. Simone Silva Pereira e Marcos Ribeiro de Moraes ajudaram muito na pesquisa.

Imediatamente após assumir o cargo em março de 1990, Fernando Collor de Mello deu início a um ataque frontal ao Estado. Na primeira semana de sua administração, Collor extinguiu onze empresas estatais (que empregavam 14.500 trabalhadores) e treze outras agências (Gazeta Mercantil e Folha de S. Paulo, 17 de março de 1990). Ao mesmo tempo, anunciou um ambicioso programa de privatização e, durante o ano de 1990, forçou os bancos a comprarem por volta de $500 milhões em Certificados de Privatização, uma nova moeda que só pode ser trocada por ações de empresas estatais. Até dezembro, seu governo havia ainda conseguido cortar 100 mil empregos de um total de 1,7 milhão no restante do governo federal, muito mais que qualquer governo anterior fizera no passado.2 2 Os dados sobre o total de empregos foram extraídos de uma entrevista com João Santana, Secretário da Administração Federal, em Veja de 18 de abril de 1990, p. 5. Até dezembro, o governo conseguiu cortar 107.000, de um total prometido de 360.000, e colocar outros 65.000 em disponibilidade, pagando, porém, salários integrais (Folha de S. Paulo de 22 de dezembro de 1990, p. 5).

É ainda muito cedo para avaliar inteiramente o programa de privatização de Collor. Governos anteriores anunciaram grandes planos e não fizeram nada, e o governo Collor não havia vendido nada até janeiro de 1991. Contudo, as indicações eram de que, a não ser por sérios retrocessos nos planos de estabilização ou nos fronts internacionais, a privatização prosseguiria muito além dos fracos programas dos anos 80.3 3 Para visões gerais dos anos 80, veja: BNDESPAR, “Processos de Privatização Conduzidos pela ­BNDESPAR”. Rio de Janeiro, 1990; Trevisan Auditores e Consultores, “Privatização no Brasil”. São Paulo, 1990; Bolsa de Valores de São Paulo, “O Caminho da Privatização”. 1990; e Conselho Federal de Desestatização, Relatório, 1985-1989. Brasília, 1990. Uma análise da privatização no Brasil em 1990 deve abordar, portanto, como questões principais, os fatores que impulsionaram a privatização além do ponto a que havia chegado nos anos 80 e como Collor estava incorporando a privatização na estratégia política global de seu governo.

A privatização é uma política normalmente associada a e preconizada por movimentos conservadores e principalmente neoliberais. No Brasil, o que causa perplexidade é que o governo Collor adotou uma política de privatização sem um mandato eleitoral neoliberal (como teria sido o caso de Mario Vargas Llosa no Peru), sem a pressão de partidos políticos de direita (como na Argentina e no México) e sem que uma tecnocracia neoliberal tivesse se apoderado do Estado (como no México nos anos 80 e no Chile e Argentina nos anos 70).

Do ponto de vista geral, o que chama a atenção é que a privatização (estritamente compreendida como a venda ou transferência de empresas estatais ao setor privado) raramente produz entusiasmo entre as massas ou um apoio político líquido para os governos que a promovem. No Brasil, depois de uma campanha eleitoral intensa em 1989, em que o papel do Estado era um dos temas principais, menos de 40% dos entrevistados em São Paulo e no Rio de. Janeiro alegaram ter lido ou ouvido notícias sobre a privatização ou sobre seu oposto, a “estatização”, e essa proporção cai para menos de 25% para aqueles de níveis mais baixos de renda e instrução.4 4 Pesquisa Gallup entre 1.490 adultos realizada a pedido da Bolsa de Valores de São Paulo, Diário de Comércio e Indústria, 12 de fevereiro de 1990.

Além da falta de apelo popular, vários cálculos políticos induzirão a maioria dos governos, em tempos normais, a se afastarem da privatização. Em termos de ação coletiva, os beneficiários de empresas estatais são poucos em número e auferem benefícios significativos. Seus interesses são intensos, portanto, e sua disposição de organizar-se elevada, bem como sua capacidade de fazê-lo. Os beneficiários potenciais da privatização são frequentemente difíceis até mesmo de identificar. Os que seriam beneficiados por, digamos, impostos marginalmente menores, por exemplo, incapazes de perceber o ganho individual resultante, não teriam razão alguma para se organizar. Em termos da formação de lobbies, os que se opõem à privatização excedem os que a apoiam, tanto em número quanto em peso.

No Brasil, as empresas estatais têm beneficiado enormemente vários grupos. Nos anos 80, funcionários do governo permitiram que os preços públicos ficassem defasados com relação aos aumentos gerais de preços, numa tentativa de conter a inflação. Em 1986, por exemplo, os preços reais do aço eram 40% menores que em 1980, as tarifas telefônicas eram 65% menores e a energia elétrica 16% mais barata.5 5 Correia, Eduardo Luiz. “Formação Bruta de Capital Fixo das Estatais.” Conjuntura Econômica, 1989, p. 49. Nesses e em outros casos, as empresas estatais subsidiam os consumidores. Os produtores de aço, durante os anos 80, amargaram preços baixos que redundaram num subsídio aos consumidores de $4,5 bilhões no período.6 6 Serra, José. “Existe uma Saída.” Veja, 1º de agosto de 1990, p. 64. Na área petroquímica, cálculos do Banco Mundial demonstram que o governo havia fixado o preço da nafta “significativamente abaixo de seu custo de oportunidade.”7 7 World Bank. “Brazil: Prospects for Privatization.” Washington, D.C., 1989, annex V, p. 5. É claro que o governo utiliza outros instrumentos além das empresas estatais para subsidiar atividades-alvo, mas a privatização torna mais palpável o potencial fim dos subsídios existentes.

Os empregados de empresas estatais gozam de muitos benefícios que não são largamente disponíveis no setor privado, incluindo maior estabilidade de emprego, melhores salário e maiores benefícios. Setenta por cento dos trabalhadores da indústria ganham menos de seis salários-mínimos (por volta de $ 500 ao mês em agosto de 1990) ao passo que 86% dos trabalhadores em empresas estatais recebem seis ou mais8 8 Cutolo, Sérgio. “Desestatização.” Folha de S. Paulo, 2 de setembro de 1990, B-2. . Vários fatores, incluindo a intensidade de capital e tecnologia, afetam a estrutura de salários, mas, em alguns setores, uma boa parte se deve à condição de propriedade estatal. Além disso, as empresas estatais historicamente têm dado preferência, mesmo a custos mais elevados, a firmas de construção e fornecedores de bens de capital nacionais.

Finalmente, os políticos que, particularmente durante o governo Sarney, foram responsáveis pela indicação de milhares de empregados a cargos em empresas públicas. Todos esses grupos perderão se “suas” empresas forem privatizadas, podendo potencialmente formar uma forte coalizão de resistência.

Os governos podem tentar compensar os que se opõem à privatização através da venda de ações com grandes descontos aos trabalhadores, generosos pacotes de indenização para os trabalhadores em redundância de cargos ou outros benefícios (side payments) a clientes ou compradores.9 9 Butler, Stuart M. “Changing the Political Dynamics of Government”. In Steve H. Hanke (ed). Prospects for Privatization, New York: The Academy of Political Science, 1987. E o governo poderá tentar, no médio prazo, criar um “contra-lobby” em favor da privatização através do financiamento do capitalismo popular (a venda de empresas estatais para uma massa de investidores individuais). Contudo, tais medidas compensatórias são muito custosas e podem absorver a maior parte da receita que se espera derivar do próprio programa de privatização.

A alta visibilidade da privatização causa ainda outras preocupações políticas. Ao contrário de muitas outras transferências que o governo realiza diariamente, a venda de uma empresa estatal atrai muitos repórteres. As regulamentações fiscais, a alocação de créditos ou as políticas de preços podem transferir mais recursos sem, no entanto, implicar investigação tão minuciosa pela mídia.

A privatização também produz muita desconfiança, uma vez que há muitas formas de usar os recursos públicos para ganhos pessoais e porque o preço sempre parece ser baixo.

Em todo caso, a maioria dos líderes políticos, mesmo aqueles de direita que poderiam defender fortemente a redução da intervenção do Estado, mostram-se muito cautelosos quando o tema é privatização. Os líderes dos anos 80 que mais privatizaram, Thatcher e Pinochet, tendiam à extrema direita no espectro ideológico (e estavam dispostos a utilizar uma boa dose de recursos políticos e econômicos na busca de objetivos ideológicos), tinham o apoio de movimentos fortemente direitistas e usaram a privatização para enfraquecer diretamente seus opositores. Esses fatores não se destacavam nos estágios iniciais do programa de privatização de Collor. A posição ideológica de Collor era ambígua e móvel, o Brasil não possuía uma direita ideológica forte e o governo Collor parecia menos interessado em destruir a esquerda. De modo geral, o planejamento inicial da privatização não se preocupava em mobilizar recursos com o propósito de aplacar opositores e ganhar amigos.

Essas considerações suscitam duas questões principais que inspiram o restante deste ensaio. Em primeiro lugar, de onde terá nascido, na ausência de fortes movimentos ideológicos ou partidários, o novo consenso em favor da privatização? Em segundo lugar, como é que o programa de privatização do governo Collor, apesar da aparente pequena atenção dada às suas consequências políticas, foi incorporado em sua estratégia política global (compreendida como medidas projetadas para manter sua popularidade, apoio congressual ou uma coalizão social ampla)? Collor chegou ao poder sem contar com uma base articulada de sustentação (seja por uma coalizão partidária, seja pelo apoio organizado da sociedade civil); tampouco possuía um projeto político e econômico explícito para seu governo. Assim, políticas tais como a privatização foram duplamente importantes para a análise política na medida em que puderam ajudar a revelar qual era o projeto de Collor e qual era o apoio político que ele visava conseguir para poder encaminhá-lo.10 10 Para uma análise geral do projeto de modernização conservadora de Collor e de sua estratégia política global, veja Schneider, Ben Ross, “Brazil under Collor: Anatomy of a Crisis”. World Policy Journal 8 (2), Spring 1991, pp. 321-347.

II. SURGE UM CONSENSO

Durante o governo Sarney, as forças contra a privatização de um modo geral prevaleceram.11 11 Veja Schneider, Ben Ross. “Partly for Sale: Privatization and State Strength in Brazil and Mexico.” Journal of Interamerican Studies and World Affairs (1989), 30 (4), pp. 89-116; e Schneider, Ben Ross. “The Politics of Privatization in Brazil and Mexico: Variations on a Statist Theme”. ln John Waterbury e Ezra Suleiman (eds). The Political Economy of Public Sector Reform and Privatization. Boulder, CO: Westview Press, 1990. Entretanto, no curso da campanha presidencial e nos primeiros meses do governo Collor, os observadores começaram a escrever acerca de um “consenso” em favor da privatização.12 12 Por exemplo, Prado, Sérgio, “Notas (Preliminares) sobre Privatização em Geral e a Privatização no Governo Collor.” Mimeo, 1990, p. 28; Carlos Lessa (numa entrevista ao Jornal do Brasil (1º. de julho de 1990); e Luiz Carlos Bresser-Pereira (Folha de S. Paulo, 19 de setembro de 1990, A-3) utilizam a palavra consenso. Até mesmo Falcão, ex-treinador da equipe nacional, tem defendido a privatização do futebol brasileiro. O termo “consenso” superestima o nível de concordância em políticas específicas, mas a falta de uma oposição aberta em 1990 às propostas abrangentes de privatização de Collor indicavam uma onda de mudança em favor da redução das funções empreendedoras do Estado. Uma explicação integral para a mudança deve incorporar um fator conjuntural (tendências internacionais), dois grupos que passaram a favorecer cada vez mais a privatização (administradores públicos e empresas privadas) e o catalisador representado pela campanha de Collor e pela sua inauguração como primeiro presidente popularmente eleito no Brasil em 29 anos.

É difícil mensurar o impacto interno de tendências e ideias populares no exterior, mas a onda de privatizações dos anos 80, verificada no primeiro e segundo mundos, e a retirada das ideias socialistas tradicionais sobre a atuação empresarial do Estado encontraram ressonância nos debates ocorridos no Brasil. O argumento constante nos debates sobre a reforma do Estado era a preocupação de que o Brasil não perdesse o “bonde da história”, ou seja, se o Primeiro Mundo está mudando, então o Brasil, caso não mude também, poderá perder sua oportunidade de se integrar. A reorientação explícita da política externa de Collor de uma posição terceiro-mundista para uma (re)identificação com as democracias industriais, especialmente as europeias, ajudou a canalizar o fluxo de ideias e informação.

As últimas ideias e experiências vividas no exterior aparecem nos debates brasileiros. O Brasil não possui, entretanto, um veículo identificável de ideias internacionais tal como os Chicago boys de Pinochet ou o proeminente grupo de economistas com títulos de graduação de universidades americanas nos dois últimos governos mexicanos.13 13 Centeno, Miguel Angel. “The New Científicos: Technocratic Politics in Mexico, 1970-90.” Ph.D. Dissertation, Yale University, 1990. Em 1990, nos dois ministérios da área econômica mais importantes, o da Economia e o da Infraestrutura, apenas 1/4 dos 54 funcionários de nível mais alto possuía títulos de graduação de universidades estrangeiras, e essas se dividiam entre europeias e americanas.14 14 Cálculos baseados em informações extraídas de Brazil Watch, “A Businessman’s Guide to the Collor Government.” Brasília, 1990. Não existia associação, seja das políticas de privatização de Collor, seja de sua equipe econômica, com qualquer grupo particular de economistas, instituição brasileira ou meio profissional específico.

Em termos de grupos sociais organizados, líderes e associações do setor privado têm feito oposição, há décadas, à intervenção e à atuação empresarial do Estado.15 15 Cruz, Sebastião Carlos Velasco e, “Empresários e o Regime no Brasil: A Campanha contra a Estatização.” Tese de Doutorado, Universidade de S. Paulo, 1984. A oposição geral frequentemente evapora quando se trata de programas e firmas específicas, mas o discurso tem sido pró-mercado. Mudanças políticas e materiais nos anos 80 podem ter reduzido até mesmo a oposição em causa própria. Sarney politizou vários organismos de tomada de decisão e excluiu empresários. Mais adiante, as empresas estatais deixaram de conceder benefícios ao mesmo tempo em que cada vez mais capitalistas sentiam que os déficits politicamente inspirados eram os principais culpados pela instabilidade macroeconômica crônica no Brasil. Em 1991, até mesmo Teófilo Orth, presidente da associação de produtores de bens de capital (um setor em grande medida criado e sustentado através de subsídios governamentais e por encomendas diretas de empresas estatais) pedia ao governo que acelerasse a privatização, alegando que os investimentos na indústria pesada, e portanto os pedidos às firmas de sua organização, só poderiam ser retomados quando o Estado indigente transferisse essas empresas a proprietários privados com dinheiro para investir (Folha de S. Paulo, 19 de janeiro de 1991, B-2).

Uma pesquisa realizada pela Confederação Nacional da Indústria no final de 1989 revelou que os empresários ainda queriam que o Estado conduzisse a modernização, porém sem lançar mão de barreiras à importação e sem contar com as empresas estatais. Quando lhes foi pedido que enumerassem elementos de uma política industrial em ordem de prioridade, 67% de 550 líderes industriais consideraram a privatização muito importante (a terceira maior colocação dentre 14 elementos) contra apenas 27% que sentiam o mesmo em relação à contratação por empresas estatais.16 16 Confederação Nacional da Indústria, “Competitividade e Estratégia Industrial: A Visão de Líderes Industriais Brasileiros.” Rio de Janeiro, 1990, p. 17. A CNI utilizou uma amostragem por sistema de quotas dos principais setores da indústria no Brasil. Quanto aos mecanismos de promoção de indústrias de alta tecnologia, apenas 8% defendiam a criação de empresas públicas, enquanto 63% aprovavam o financiamento de áreas prioritárias pelo BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) (a mais alta colocação dentre nove instrumentos). Respondendo a uma pergunta diferente, 84% eram favoráveis à expansão dos financiamentos de longo prazo de um modo geral pelo BNDES. Os empresários industriais queriam reformar a intervenção do Estado, não eliminá-la.

Numa análise mecanicista da privatização, os administradores públicos são os arqui-inimigos da reforma, uma vez que perderão status, benefícios, salários ou empregos. Contudo, os administradores públicos não são necessariamente tais bestas unidimensionais. No Brasil, a privatização ganhou adeptos dentro do Estado particularmente no setor do aço e no BNDES. A privatização que houve nos anos 80 deveu-se principalmente ao BNDES. Para o BNDES a privatização era um programa pragmático, “sem qualquer engajamento ideológico”, para restaurar a estabilidade financeira.17 17 BNDESPAR, “Processos de Privatização Conduzidos pela BNDESPAR.” (Rio de Janeiro, 1990), p. 1. Veja também Schneider, Ben Ross, “The Politics of Privatization in Brazil and Mexico: Variations on a Statist Theme”. In John Waterbury e Ezra Suleiman (eds). The Political Economy of Public Sector Reform and Privatization. Boulder, CO: Westview Press, 1990. Márcio Fortes, Presidente do BNDES no Governo Sarney, escreveu um artigo, “Por um Estado Forte” (Folha de São Paulo, 25 de dezembro de 1989), no qual critica o “liberalismo irresponsável” e defende a privatização como medida de fortalecimento do Estado. Um grupo de subsidiárias do BNDESPAR, naquilo que os técnicos do Banco chamavam de “hospital do BNDES” para empresas privadas agonizantes, absorveu metade de todos os desembolsos do BNDESPAR durante o período de 1982-1985 sem contribuir para o seu papel de promover desenvolvimento.18 18 BNDESPAR, “Processos de Privatização Conduzidos pela BNDESPAR”. Rio de Janeiro, 1990, p. 3. Até 1989, o BNDES havia re-privatizado quase todas essas subsidiárias. Baseado nessa sua bem-sucedida arrumação da casa, o BNDES tornou-se um defensor da privatização para o restante do Estado; sua experiência e conhecimento acumulados fizeram dele a escolha natural para executar o programa de Collor.

Procedeu-se a mudança similar no aço estatal, embora mais surpreendente, uma vez que os próprios administradores das empresas a serem privatizadas começaram a favorecer tal movimento.19 19 Gazeta Mercantil, 1º de junho de 1989; Brasil Mineral, agosto de 1988; e uma entrevista com Moacélio Mendes, presidente da Siderbrás 1987-90, 13 de junho de 1989. Os administradores sentiam que os planejadores centrais haviam resolvido abusar especialmente do setor: forçaram as empresas a tomar empréstimos internacionais de que não precisavam, mantiveram os preços baixos e negaram às empresas acesso a outras fontes de capital de investimento. Para as empresas estatais como um todo, o investimento como uma porcentagem do PIB caiu pela metade de 1980 a 1988 enquanto o serviço da dívida mais que dobrou.20 20 Cutolo, Sérgio, “Desestatização.” Folha de S. Paulo, 2 de setembro de 1990, B-2. Para o aço estatal, o aperto financeiro foi ainda pior. Ademais, os aliados políticos de Sarney passaram a ter cada vez mais controle sobre as indicações para cargos nas empresas produtoras do insumo, a ponto de provocar o pedido de demissão de Amaro Lanari, presidente (1985-87) da Holding estatal Siderbrás. Muitos administradores sentiam que deveriam parar de servir os objetivos políticos e macroeconômicos do governo e voltar a produzir aço.

Ozires Silva, Ministro da Infraestrutura de Collor (ministério que detém o controle formal da maioria das grandes empresas estatais), é mais um caso de um apoiador inesperado. Ouvi-lo defender a privatização faz supor que ele teria vindo do setor privado ou de um instituto liberal. De fato, Ozires é um coronel aposentado da força aérea, tendo passado a maior parte dos últimos vinte anos no comando da Embraer, uma construtora estatal de aeronaves que ajudou a fundar. Numa conferência em São Paulo, em 14 de setembro de 1990, ele explicou claramente sua conversão. Para Ozires, o Estado, em desespero financeiro, tentou impor tantos controles centrais sobre suas empresas (salários, preços, investimento, contratações, importações, empréstimos, publicidade etc.) que já não era mais possível administrá-las. Dada a persistente crise fiscal, Ozires julgava ser a privatização a melhor solução.

Administradores no BNDES, no aço estatal e em outros setores viam seus papéis desenvolvimentistas comprometidos pela propriedade estatal.21 21 Administradores no setor petroquímico podem compartilhar os mesmos sentimentos. Carlos Guttmann, Diretor Financeiro da Copesul, disse que ele e outros administradores da empresa eram favoráveis à sua privatização (entrevista, 12 de setembro de 1990). Tais visões podem não ser amplamente compartilhadas em outros grandes conglomerados estatais como a Petrobrás (cuja propriedade estatal é cara aos nacionalistas), Eletrobrás (onde é grande a desconfiança com relação ao monopólio privado) ou Companhia Vale do Rio Doce (a empresa pode ser lucrativa demais para ser privatizada). Contudo, os administradores públicos não podem ser automaticamente classificados como sendo contra a privatização, podendo ser inclusive aliados voluntários.

Reformas neoliberais como a privatização têm recebido relativamente pouca atenção nos debates políticos porque o Brasil não possui uma direita disposta a defender uma agenda neoliberal explícita. A maioria dos políticos evita o rótulo “direita” por causa da associação tão próxima com o desacreditado regime militar. Nenhum deputado na Assembleia Constituinte (1986-88) adotou a denominação de direita radical, 6% se consideraram moderados ou de centro-direita, 37% de centro e 52% de esquerda.22 22 Rodrigues, Leôncio Martins. Quem é Quem na Constituinte: Uma Análise Sôcio-Politica dos Partidos e Deputados. São Paulo, Maltese, 1987, como citado em Power, Timothy J., ‘’A Direita Política: Discurso e Comportamento, 1987-1990.” Mimeo, 1990, p. 2. Contudo, a campanha vitoriosa de Collor tornou as ideias liberais publicamente aceitáveis, dando-lhes a nova embalagem de “modernas”. Sua campanha serviu como catalisador dos diferentes grupos que defendiam a reforma do Estado, dando-lhes um idioma comum e transformando o que era uma discussão fechada de elite num tema de debate de massa.

Ao nível das massas, a campanha de Collor enfatizava um ataque provocante e moralista ao Estado e à corrupção, centrado sobre os assim chamados Marajás, os ricos indolentes do Estado brasileiro, ao invés de uma defesa programática positiva da privatização. A “caça aos Marajás”, sua marca registrada, ilegitimava o Estado, tornando difícil para os outros candidatos fazerem a defesa do status quo. Ao final da campanha para o primeiro turno da eleição, quase todos os partidos (exceto o PT) condenavam a excessiva intervenção estatal (Veja, 15 de novembro de 1989, p. 81). Daí à privatização não foi um passo necessário, mas o caminho ficou livre.

Não se pode interpretar diretamente a vitória de Collor como um firme mandato para a privatização. Dados de pesquisa mostravam um apoio quase maioritário à privatização mas não uma indicação clara de que se deveria cortar grandes pedaços do Estado. No início de 1990, 43% dos entrevistados numa pesquisa apoiavam a privatização.23 23 Jornal do Brasil, 16 de fevereiro de 1990, p. 2. Menem descobriu que o apoio geral nem sempre se traduz por uma popularidade na defesa de casos específicos. Na Argentina, 56% apoiavam a privatização em geral, mas apenas 26% apoiavam “a forma adotada pelo governo de privatização da ENTel” (Somos, 2 de maio de 1990, pp. 13-14). Em outra pesquisa, 49% eram favoráveis à expansão do setor privado contra 33% favoráveis ao crescimento da atuação empresarial do Estado. Os números mudam dramaticamente na categoria de renda mais alta, onde 64% defendem o setor privado contra 16% a favor do Estado empresário. É importante lembrar, contudo, que foi nessa pesquisa que aproximadamente dois terços dos entrevistados não tinham ouvido ou lido qualquer notícia sobre a privatização.24 24 Pesquisa Gallup entre 1.490 adultos em São Paulo e Rio de Janeiro realizada a pedido da Bolsa de Valores de São Paulo, Diário de Comércio e Indústria, 12 de fevereiro de 1990. A campanha de Collor popularizou uma visão negativa do Estado e tornou o liberalismo mais aceitável, mas não fez de privatização uma palavra do dia a dia.

Considerando todos os fatores favoráveis, parecia inevitável um programa de privatização mais ambicioso. Não foi esse o caso, porém. Em dezembro de 1989, não era ainda difícil imaginar uma vitória de Lula que poderia ter dispersado e dissipado as várias forças pró-privatização. Assim, Collor e sua campanha vitoriosa tornaram-se variáveis determinantes (necessárias, porém não suficientes). É um erro argumentar, contudo, que Collor tenha concorrido com uma plataforma neoliberal, articulado uma coalizão de centro-direita e então meramente implementado suas promessas de campanha. As bases políticas de Collor, bem como o apoio à privatização, são demasiado complexas e desarticuladas para permitir uma interpretação tão direta.

III. PRIVATIZAÇÃO E ESTRATÉGIA POLÍTICA

Collor pode ter ganho votos com seu discurso anti-Estado e também conseguido reunir diferentes tipos de privatizadores em sua campanha e em seu governo. Essa agregação, no entanto, não significa necessariamente que a privatização deva passar a fazer parte de uma estratégia política projetada para ganhar o apoio em pesquisas de opinião, no Congresso e junto a outros grupos sociais organizados. De fato, durante 1990, Collor e sua equipe no BNDES responsável por conduzir a privatização tentaram isolar e despolitizar a implementação de políticas - o que implicou um custo político ao governo - ao invés de procurar gerar popularidade entre as massas ou apoio entre a elite política e econômica.

A decisão de legislar por meio de decretos presidenciais custou a Collor o apoio do Congresso. Este havia barrado uma proposta anterior do Executivo porque o governo Sarney havia tentado fazê-la passar com o restante de um plano de estabilização. Mais tarde, cresceu o apoio à privatização e em 1989 vários projetos, não tão diferentes do de Collor, circulavam no Congresso. Collor optou, contudo, pela centralização e pelos decretos ao invés de arriscar a negociação e possíveis demoras no Congresso (veja Folha de S. Paulo, 21 de fevereiro de 1990). Os decretos relativos à privatização vieram juntamente com o restante do Plano Collor de estabilização da economia, o qual, diante do colapso econômico iminente, foi aprovado pelo Congresso. Assessores na Comissão Econômica da Câmara dos Deputados tinham trabalhado para fundir as Medidas Provisórias de Collor com os projetos anteriores e sua emenda passou com uma votação de 370 contra 90 (entrevistas, 7 de junho de 1990). Collor, contudo, vetou muitas das emendas, especialmente uma - considerada crítica - que teria dado ao Congresso o direito de aprovar os candidatos do governo à privatização. O estilo arbitrário e descompromissado de Collor exclui potenciais apoiadores no Congresso.25 25 Em pelo menos uma situação menos importante, Collor parece ter acomodado o Congresso. As primeiras listas das empresas a serem vendidas continham firmas de Estados diferentes. A seleção distribuía as perdas geograficamente, prevenindo assim uma reação regional contra o programa. Entrevistas com membros da assessoria da Comissão Econômica, Câmara do Deputados, 7 de junho de 1990.

O desejo de Collor de isolar o processo de tomada de decisão no programa de privatização também se manifestou em suas nomeações para a formalmente poderosa Comissão Diretora do Programa Nacional de Desestatização. Quatro dentre os membros são funcionários de segundo escalão das agências mais afetadas (Os ministérios da Economia, Trabalho e Infraestrutura, e do BNDES). Afora um famoso economista, os outros sete membros do setor privado são especialistas pouco conhecidos nos campos do direito, contabilidade e finanças. Os governos anteriores usualmente utilizavam tais comissões mistas para aumentar a representação corporativa através da indicação dos presidentes de associações do setor privado, mas Collor barrou tal representação direta.

Não obstante os tomadores de decisão se reunirem a portas fechadas, suas decisões não estavam dessintonizadas com a opinião da elite. Numa pesquisa estratificada entre 450 indivíduos das elites intelectual, da mídia, política, empresarial, sindical e militar, o IDESP sondou as visões acerca de qual seria a distribuição setorial apropriada para as empresas estatais. Mais da metade acreditava serem as empresas estatais desnecessárias ou pouco necessárias nos setores do aço, comércio internacional, informática e aviação comercial.26 26 Instituto de Estudos Sociais, Econômicos e Políticos de S. Paulo (IDESP), “As Elites Brasileiras e a Modernização do Setor Público.” Relatório de Pesquisa, São Paulo, 1990, p. 12. Em sua primeira semana no cargo, Collor extinguiu a Siderbrás (a holding estatal de aço), a Portobrás (holding que administrava os portos) e a Interbrás (uma companhia em comércio internacional) e a maior parte do dinheiro que o governo irá arrecadar nas primeiras vendas - por volta de doze - virá de duas usinas de aço gigantes. Mais de metade da mesma amostra acreditava serem as empresas estatais muito ou totalmente necessárias nos setores de petróleo, energia elétrica, ciência e tecnologia, telecomunicações e ensino de nível superior, áreas inicialmente não destinadas à privatização (embora algumas fossem ser abertas a novos investimentos privados). Além do assim chamado consenso a favor da privatização, havia entre as elites uma visão mais diversificada sobre os setores que o Estado deveria delegar à iniciativa privada. O programa de Collor inicialmente se moldou à visão desses elites; aparentemente, mais para evitar o confronto que para incorporar sua participação.

No front da estabilização, o programa de privatização pouco ajudou o malfadado Plano Collor. O governo empenhou-se em quebrar as expectativas inflacionárias, em particular pela promessa de equilibrar o orçamento, associando sempre privatização à redução do déficit e consequente estabilização. Essa vinculação configurou um tiro pela culatra, dado que os porta-vozes do governo viram-se forçados a reduzir paulatinamente o valor das receitas esperadas com as vendas para o ano de 1990, que era o período crítico do ponto de vista das expectativas inflacionárias. Antes de assumir, o governo projetou receitas de aproximadamente $3,5 bilhões. As estimativas subiram para $9 bilhões no início de maio, caíram para $7 bilhões no final do mesmo mês, terminando por situar-se em $4 bilhões no final de julho.27 27 Gazeta Mercantil, 20 de fevereiro de 1990; Folha de S. Paulo, 3 de maio de 1990; Diário do Comércio e Indústria, 29 de maio de 1990; Jornal do Brasil, 25 de julho de 1990. No início de setembro, já estava claro que o governo não venderia nada em 1990. Da mesma maneira, o governo foi obrigado a reavaliar o valor das receitas esperadas com a venda dos Certificados de Privatização: primeiro de $2,7 bilhões para $1 bilhão (Folha de S. Paulo, 15 de agosto de 1990, B-16) e finalmente para $500 milhões efetivamente vendidos em 1990.

Além do equívoco do governo de amarrar a privatização a políticas fiscais de curto prazo, o compromisso de usar o produto das vendas para saldar sua dívida dificilmente inspiraria algum apoio. Como destacamos anteriormente, os que poderiam ser beneficiados com uma redução da dívida pública não se sentiriam incentivados a se organizar para apoiar a medida. Se o governo tivesse prometido investir os fundos nas áreas social ou industrial, como fez Salinas no México, tais promessas despertariam maior entusiasmo, especialmente num ano eleitoral.

Um dos elementos mais engenhosos e originais do Plano Collor foi o Certificado de Privatização.28 28 Prado, Sérgio. “Notas (Preliminares) sobre Privatização em Geral e Privatização no Governo Collor.” Mimeo, 1990. Por meio de decreto, o governo obrigou as instituições financeiras a comprarem os CPs, só utilizáveis na compra de empresas estatais. Depois de vendida a primeira empresa, os CPs restantes começariam, muito lentamente, a perder valor. As instituições financeiras, contudo, começaram a perder dinheiro imediatamente, uma vez que os CPs rendiam menos que outros instrumentos financeiros.

Os CPs deverão ajudar na solução de problemas encontrados anteriormente no Brasil e em outros países. O governo Sarney levou a leilão várias empresas, sem, no entanto, conseguir compradores. Os CPs permitem que os compradores e as propostas competidoras elevem os preços. Geram receitas antes mesmo de as empresas irem à sala de leilões; em 1990 o governo recebeu centenas de milhões de dólares pelos CPs sem efetivamente ter vendido nada. Os CPs também criam um lobby (embora coagido e artificial) em favor da privatização (pelo menos das empresas lucrativas). Ademais, dada a perda no valor real dos CPs, os bancos gastarão mais em termos nominais para comprar as empresas. Por permitirem que o preço de venda aparentemente inflacione, os CPs ajudarão a esvaziar a acusação usual de que o governo estaria vendendo o patrimônio público muito barato.

Os decretos do governo incluem referências ao capitalismo popular ou capitalismo dos trabalhadores (venda de ações a investidores individuais e empregados, respectivamente), mas durante 1990 o governo fez pouco para converter esses aliados da massa à causa da privatização.29 29 Eduardo Scaletski, Assessor Técnico do DIEESE para Assuntos Estatais, disse num seminário em 14 de setembro de 1990 que o governo não tinha ainda empreendido qualquer esforço no sentido de incluir os sindicatos no processo de privatização. Medidas concretas de preparação para o capitalismo popular, conhecido no Brasil como pulverização, tinham que esperar decisões específicas da Comissão de Supervisão sobre quanto de cada empresa deveria ser vendido, a quem e por quanto. Enquanto isso, os cortes de pessoal realizados por Collor, assim como sua irredutibilidade quanto a aumentar salários, azedavam as relações entre governo e empregados de empresas estatais e seus sindicatos.

Eduardo Modiano, presidente do BNDES e da Comissão de Supervisão, ainda tentou despolitizar decisões eminentemente políticas, tais como quantas ações seriam vendidas a indivíduos, estrangeiros ou trabalhadores, e por quanto seriam vendidas. As firmas de consultoria contratadas para determinar o valor das empresas a serem vendidas também foram responsáveis pela recomendação de como e para quem o governo deveria fazê-lo. Modiano chamou isso de “privatização da privatização” (entrevista, 5 de outubro de 1990).

Apesar de uma certa dose de engenharia política criativa (algumas vezes não intencional), demonstrada na criação dos Certificados de Privatização, a maioria dos outros aspectos do programa de privatização, ou ainda a preparação para o programa, procuravam impedir a participação, o confronto e a política de um modo geral. Durante o início de 1991, o governo foi em boa medida bem-sucedido nesse sentido. Após alguma controvérsia inicial, particularmente no Congresso, nenhuma oposição organizada surgiu e o tópico foi gradativamente desaparecendo dos noticiários. Como elemento de uma estratégia política global, a privatização foi essencialmente negativa: minimizar perdas ao invés de maximizar ganhos.30 30 Veja Schneider, Ben Ross. “Por uma Política Positiva de Privatizações”, Folha de S, Paulo, 30 de setembro de 1990, C-2. Essa estratégia, contudo, só será realmente posta à prova quando o governo começar a trazer as empresas para a sala de leilão, provavelmente em 1991, ano em que o governo prometeu vender 27 empresas e levantar $ 18 bilhões.31 31 Eduardo Modiano, Folha de S. Paulo, 12 de janeiro de 1991, B-2.

IV. REINTRODUZINDO A POLÍTICA NA PRIVATIZAÇÃO

Durante a maior parte de 1990, o programa de privatização ficou subordinado à obsessão fiscal. A retórica dos pronunciamentos do governo manteve a tônica da campanha de caça aos “marajás”. Collor e sua equipe econômica demonstraram aversão tecnocrática ou neoliberal à política e à negociação. Collor poderia ter usado a privatização (e ainda poderá fazê-lo) para conseguir aliados no Congresso, no setor privado, no Estado e na sociedade como um todo, mas durante 1990 ele alienou ou isolou potenciais apoiadores.

Os elementos estratégicos que restaram no programa prometido foram um ataque negativo ao cartorialismo, ao corporativismo e ao capitalismo político. Nesse sentido, Collor seguiu sua estratégia de campanha de se colocar contra os poucos setores organizados da sociedade brasileira e apelar à massa desorganizada de descamisados.32 32 Veja Figueiredo, Marcus F. “O Recado das Urnas.” O Estado de S. Paulo, Caderno de Cultura, 3 de março de 1990, p. 12. A privatização tem como consequências a despolitização das decisões econômicas, o enfraquecimento dos sindicatos do setor público e a desarticulação das alianças entre empresas e burocracia econômica. Nesse aspecto, a estratégia de Collor lembra a dos presidentes de la Madrid e Salinas em seus ataques ao corporativismo mexicano e na intenção de usar a privatização contra as organizações existentes na sociedade.

Antes, porém, de um julgamento precipitado da estratégia política de Collor quanto à privatização, vale recordar como tais políticas se desenvolveram na Grã-Bretanha e no Chile. Tanto Thatcher quanto Pinochet recorreram à privatização inicialmente como reação de curto prazo à estatização dos governos anteriores. Só mais tarde é que esses líderes conceberam a privatização como elemento de uma estratégia global de remodelação da sociedade, do comportamento econômico e das alianças políticas. Essa comparação não quer dizer que o Brasil seguirá a mesma trajetória. Pinochet e Thatcher adotaram a privatização contra uma esquerda forte em meio a uma atmosfera política altamente polarizada. Collor, ao contrário, não enfrentou uma esquerda forte, gozando de uma atmosfera mais consensual. Ambas as diferenças ajudam a explicar por que seu programa de governo não estava explicitamente amarrado a uma ofensiva de direita e porque a ocorrência futura desta associação é menos provável. O governo Collor provavelmente irá repensar como a privatização se encaixa em sua estratégia política quando atingir a fase de sua efetiva implementação.

Não obstante a falta de resultados concretos, a privatização e o neoliberalismo ganharam o espaço e a respeitabilidade que não possuíam no Brasil antes de 1990. Essa mudança por si só é significativa, uma vez que ideias antiliberais tais como corporativismo, ISI (industrialização por substituição de importações), teorias de dependência e o estruturalismo têm mantido uma hegemonia mais firme no Brasil que na maioria dos outros países em desenvolvimento. Comparados, porém, com vitórias recentes da direita na Europa, Estados Unidos e outros países da América Latina, os liberais brasileiros de maneira alguma triunfaram.

No Brasil, essas ideias foram incorporadas a reações mais pragmáticas à crise continuada da estratégia de desenvolvimento. O Estado brasileiro perdeu sua capacidade de investir. Alguns setores específicos de profunda intervenção estatal, tais como o do aço, não eram mais limitantes do desenvolvimento. E os desenvolvimentistas foram repelidos pela politização fisiológica do Estado empreendida por Sarney. No contexto brasileiro, contudo, a reação contra o colapso do Estado desenvolvimentista nos anos 80 não conduziu diretamente ao endosso de um Estado mínimo.

A opinião da elite acerca dessa concepção extremamente liberal do Estado era ainda altamente polarizada; a grosso modo, um terço a favor (particularmente empresários), um terço contra (especialmente trabalhadores e intelectuais), um terço ambivalente (a imprensa, os políticos e a alta burocracia).33 33 IDESP, “As Elites Brasileiras e a Modernização do Setor Público.” Relatório de Pesquisa, São Paulo, 1990, p. 11. A análise mais particularizada desse apoio apresentada nas seções anteriores mostrou que a maioria dos líderes na indústria ainda era favorável a formas selecionadas de intervenção estatal. E o apoio de muitos administradores públicos à privatização derivava da crise financeira, que variou de um setor para o outro, podendo o resultado ser diferente para o Estado como um todo. Se o futuro do Estado estiver na dependência da aceitação da elite e, em particular, dos administradores do setor público e privado, o resultado será provavelmente um Estado reformado, distante e mais enxuto, mas ainda desenvolvimentista.

O programa de privatização do governo Collor conformou-se à opinião da elite, particularmente ao fazer do aço estatal a espinha dorsal do programa, mas Collor dispensou a participação direta, alienando o Congresso e os grupos sociais organizados do processo de tomada de decisão. Collor e sua equipe econômica apresentaram a privatização como uma reforma técnica, procurando mantê-la à margem da política. Essa postura poderá mudar na medida em que as vendas programadas para 1991 inevitavelmente detonem uma controvérsia política mais intensa.

  • 1
    Agradeço ao Programa Fulbright e ao Programa de Estudos Latino-americanos da Princeton University pelo apoio financeiro. Colegas do Instituto de Economia do Setor Público (IESP) e do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP) em São Paulo forneceram assistência logística indispensável e comentários valiosos. Simone Silva Pereira e Marcos Ribeiro de Moraes ajudaram muito na pesquisa.
  • 2
    Os dados sobre o total de empregos foram extraídos de uma entrevista com João Santana, Secretário da Administração Federal, em Veja de 18 de abril de 1990, p. 5. Até dezembro, o governo conseguiu cortar 107.000, de um total prometido de 360.000, e colocar outros 65.000 em disponibilidade, pagando, porém, salários integrais (Folha de S. Paulo de 22 de dezembro de 1990, p. 5).
  • 3
    Para visões gerais dos anos 80, veja: BNDESPAR, “Processos de Privatização Conduzidos pela ­BNDESPAR”. Rio de Janeiro, 1990; Trevisan Auditores e Consultores, “Privatização no Brasil”. São Paulo, 1990; Bolsa de Valores de São Paulo, “O Caminho da Privatização”. 1990; e Conselho Federal de Desestatização, Relatório, 1985-1989. Brasília, 1990.
  • 4
    Pesquisa Gallup entre 1.490 adultos realizada a pedido da Bolsa de Valores de São Paulo, Diário de Comércio e Indústria, 12 de fevereiro de 1990.
  • 5
    Correia, Eduardo Luiz. “Formação Bruta de Capital Fixo das Estatais.” Conjuntura Econômica, 1989, p. 49.
  • 6
    Serra, José. “Existe uma Saída.” Veja, 1º de agosto de 1990, p. 64.
  • 7
    World Bank. “Brazil: Prospects for Privatization.” Washington, D.C., 1989, annex V, p. 5.
  • 8
    Cutolo, Sérgio. “Desestatização.” Folha de S. Paulo, 2 de setembro de 1990, B-2.
  • 9
    Butler, Stuart M. “Changing the Political Dynamics of Government”. In Steve H. Hanke (ed). Prospects for Privatization, New York: The Academy of Political Science, 1987.
  • 10
    Para uma análise geral do projeto de modernização conservadora de Collor e de sua estratégia política global, veja Schneider, Ben Ross, “Brazil under Collor: Anatomy of a Crisis”. World Policy Journal 8 (2), Spring 1991, pp. 321-347.
  • 11
    Veja Schneider, Ben Ross. “Partly for Sale: Privatization and State Strength in Brazil and Mexico.” Journal of Interamerican Studies and World Affairs (1989), 30 (4), pp. 89-116; e Schneider, Ben Ross. “The Politics of Privatization in Brazil and Mexico: Variations on a Statist Theme”. ln John Waterbury e Ezra Suleiman (eds). The Political Economy of Public Sector Reform and Privatization. Boulder, CO: Westview Press, 1990.
  • 12
    Por exemplo, Prado, Sérgio, “Notas (Preliminares) sobre Privatização em Geral e a Privatização no Governo Collor.” Mimeo, 1990, p. 28; Carlos Lessa (numa entrevista ao Jornal do Brasil (1º. de julho de 1990); e Luiz Carlos Bresser-Pereira (Folha de S. Paulo, 19 de setembro de 1990, A-3) utilizam a palavra consenso. Até mesmo Falcão, ex-treinador da equipe nacional, tem defendido a privatização do futebol brasileiro.
  • 13
    Centeno, Miguel Angel. “The New Científicos: Technocratic Politics in Mexico, 1970-90.” Ph.D. Dissertation, Yale University, 1990.
  • 14
    Cálculos baseados em informações extraídas de Brazil Watch, “A Businessman’s Guide to the Collor Government.” Brasília, 1990.
  • 15
    Cruz, Sebastião Carlos Velasco e, “Empresários e o Regime no Brasil: A Campanha contra a Estatização.” Tese de Doutorado, Universidade de S. Paulo, 1984.
  • 16
    Confederação Nacional da Indústria, “Competitividade e Estratégia Industrial: A Visão de Líderes Industriais Brasileiros.” Rio de Janeiro, 1990, p. 17. A CNI utilizou uma amostragem por sistema de quotas dos principais setores da indústria no Brasil.
  • 17
    BNDESPAR, “Processos de Privatização Conduzidos pela BNDESPAR.” (Rio de Janeiro, 1990), p. 1. Veja também Schneider, Ben Ross, “The Politics of Privatization in Brazil and Mexico: Variations on a Statist Theme”. In John Waterbury e Ezra Suleiman (eds). The Political Economy of Public Sector Reform and Privatization. Boulder, CO: Westview Press, 1990. Márcio Fortes, Presidente do BNDES no Governo Sarney, escreveu um artigo, “Por um Estado Forte” (Folha de São Paulo, 25 de dezembro de 1989), no qual critica o “liberalismo irresponsável” e defende a privatização como medida de fortalecimento do Estado.
  • 18
    BNDESPAR, “Processos de Privatização Conduzidos pela BNDESPAR”. Rio de Janeiro, 1990, p. 3.
  • 19
    Gazeta Mercantil, 1º de junho de 1989; Brasil Mineral, agosto de 1988; e uma entrevista com Moacélio Mendes, presidente da Siderbrás 1987-90, 13 de junho de 1989.
  • 20
    Cutolo, Sérgio, “Desestatização.” Folha de S. Paulo, 2 de setembro de 1990, B-2.
  • 21
    Administradores no setor petroquímico podem compartilhar os mesmos sentimentos. Carlos Guttmann, Diretor Financeiro da Copesul, disse que ele e outros administradores da empresa eram favoráveis à sua privatização (entrevista, 12 de setembro de 1990).
  • 22
    Rodrigues, Leôncio Martins. Quem é Quem na Constituinte: Uma Análise Sôcio-Politica dos Partidos e Deputados. São Paulo, Maltese, 1987, como citado em Power, Timothy J., ‘’A Direita Política: Discurso e Comportamento, 1987-1990.” Mimeo, 1990, p. 2.
  • 23
    Jornal do Brasil, 16 de fevereiro de 1990, p. 2. Menem descobriu que o apoio geral nem sempre se traduz por uma popularidade na defesa de casos específicos. Na Argentina, 56% apoiavam a privatização em geral, mas apenas 26% apoiavam “a forma adotada pelo governo de privatização da ENTel” (Somos, 2 de maio de 1990, pp. 13-14).
  • 24
    Pesquisa Gallup entre 1.490 adultos em São Paulo e Rio de Janeiro realizada a pedido da Bolsa de Valores de São Paulo, Diário de Comércio e Indústria, 12 de fevereiro de 1990.
  • 25
    Em pelo menos uma situação menos importante, Collor parece ter acomodado o Congresso. As primeiras listas das empresas a serem vendidas continham firmas de Estados diferentes. A seleção distribuía as perdas geograficamente, prevenindo assim uma reação regional contra o programa. Entrevistas com membros da assessoria da Comissão Econômica, Câmara do Deputados, 7 de junho de 1990.
  • 26
    Instituto de Estudos Sociais, Econômicos e Políticos de S. Paulo (IDESP), “As Elites Brasileiras e a Modernização do Setor Público.” Relatório de Pesquisa, São Paulo, 1990, p. 12.
  • 27
    Gazeta Mercantil, 20 de fevereiro de 1990; Folha de S. Paulo, 3 de maio de 1990; Diário do Comércio e Indústria, 29 de maio de 1990; Jornal do Brasil, 25 de julho de 1990.
  • 28
    Prado, Sérgio. “Notas (Preliminares) sobre Privatização em Geral e Privatização no Governo Collor.” Mimeo, 1990.
  • 29
    Eduardo Scaletski, Assessor Técnico do DIEESE para Assuntos Estatais, disse num seminário em 14 de setembro de 1990 que o governo não tinha ainda empreendido qualquer esforço no sentido de incluir os sindicatos no processo de privatização.
  • 30
    Veja Schneider, Ben Ross. “Por uma Política Positiva de Privatizações”, Folha de S, Paulo, 30 de setembro de 1990, C-2.
  • 31
    Eduardo Modiano, Folha de S. Paulo, 12 de janeiro de 1991, B-2.
  • 32
    Veja Figueiredo, Marcus F. “O Recado das Urnas.” O Estado de S. Paulo, Caderno de Cultura, 3 de março de 1990, p. 12.
  • 33
    IDESP, “As Elites Brasileiras e a Modernização do Setor Público.” Relatório de Pesquisa, São Paulo, 1990, p. 11.
  • *
    Tradução de Ricardo Borges Costa.
  • JEL Classification: O1; O5.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 1992
Centro de Economia Política Rua Araripina, 106, CEP 05603-030 São Paulo - SP, Tel. (55 11) 3816-6053 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: cecilia.heise@bjpe.org.br