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Ajustamento estrutural e crescimento agrícola na década de 80: notas adicionais

Structural adjustment and agricultural growth in the 1980s: additional notes

RESUMO

Este artigo trata de alguns aspectos do desenvolvimento da agricultura brasileira no passado próximo. O diferencial da taxa de crescimento entre agricultura e indústria nos anos 80 foi analisado pela primeira vez. A conclusão é que o tipo de ajuste estrutural que a economia brasileira enfrentou naquele momento favoreceu a agricultura a crescer mais rapidamente do que o setor industrial. A queda na renda nacional causada pela interrupção da poupança externa afetou principalmente os investimentos, constituídos integralmente por produtos industriais. Dessa maneira, o crescimento industrial foi muito mais afetado do que a agricultura. Mas isso não seria suficiente para explicar o crescimento real da agricultura na época. Assim, verificou-se que havia também um importante estímulo do lado da oferta à agricultura, devido a uma enorme redução nos custos de produção agrícola. Esse certamente foi um fator importante relacionado ao crescimento da agricultura nos anos 80.

PALAVRAS-CHAVE:
Crescimento econômico; setor agrícola

ABSTRACT

This paper deals with some aspects of the Brazilian agriculture development in the near past. The growth rate differential between agriculture and industry in the 80’s was first analysed. The conclusion is that the kind of structural adjustment the Brazilian economy has faced at that time has favored agriculture to grow faster than the industrial sector. The fall in the national income caused by the external savings interruption has mainly affected investment, made out integrally of industrial products. In this way, industrial growth was much more severally affected than agriculture. But this would not suffice to explain the real agriculture growth then. So, it was found that there was also an important supply side stimulus to agriculture, due to a huge reduction in the agricultural production costs. This has certainly been an important factor related to agriculture growth in the 80’s.

KEYWORDS:
Economic growth; agriculture

A análise do desenvolvimento do setor agrícola brasileiro na década de 80 sugere que o mesmo foi muito menos afetado pela crise do que o setor industrial. Como se pode ver no gráfico 1, o setor agrícola apresenta, ao longo da década, crescimento praticamente constante. Enquanto o PIB industrial real teve crescimento de 3,84% no período 1980-90, o PIB real da agropecuária teve crescimento de 28,2%, e o PIB real do setor serviços de 29,5%. Isso corresponde a uma taxa de crescimento anual média entre 1980-90 de 2,5% para a agropecuária, 2,6% para o setor serviços e apenas 0,38% para a indústria.

Gráfico 1

É interessante se observar, entretanto, que esse crescimento diferencial da agricultura se deu em ambiente econômico aparentemente adverso. Conforme pode ser observado em Ferreira F° (1994FERREIRA Fº., J.B.S. (1994). “Notas a respeito do desempenho agregado da agricultura brasileira no período 1980-1991”. Revista de Economia e Sociologia Rural. Brasília: vol. 32, no. 3, jul.-set.), a contribuição média do setor agrícola brasileiro para o crescimento do deflator implícito do PIB foi decrescente no período. Aquele autor constatou ainda ter esse fenômeno sido causado basicamente pela queda nos preços agrícolas, uma vez que a participação da agricultura no PIB real se manteve praticamente constante na década de 80.

O mesmo pode ser observado da análise da evolução dos preços individuais da agropecuária. Conforme pode ser visto na tabela 1, é evidente a tendência decrescente dos mesmos, principalmente a partir de meados da década de 80. Como explicar, então, o crescimento praticamente contínuo do setor agropecuário?

Tabela 1
Índices de Preços Reais de Produtos Agrícolas Selecionados

Na abordagem da questão, é necessário qualificar inicialmente esse crescimento. O que torna o crescimento da agricultura no período instigante não é propriamente a magnitude da sua taxa, inequivocamente modesta quando se compara com a década de 70, quando a agropecuária nacional chegou a crescer a taxas anuais médias de 5,6% (Rezende et al., 1994REZENDE, G.C & BUAINAIN, A.M. (1994). “Structural adjustment and agriculture in Brazil: the experience of the 1980’s”. Revista Brasileira de Economia. Rio de Janeiro: v. 48, nº 4, pp. 491-503, out-dez.). O que torna instigante o crescimento da agricultura na década de 80 é seu comportamento diferencial vis-à-vis o setor industrial, cujo produto real era, ao final da década, modestos 3,84% maior do que no início.

Essa questão tem sido estudada por diversos autores, entre eles Rezende (1986REZENDE, G.C. (1986). “Crescimento econômico e oferta de alimentos no Brasil”. Revista de Economia Política. vol. 6, nº 1, jan.-abr., 1988REZENDE, G.C. (1988). “Ajuste externo e agricultura no Brasil, 1981-1986”. Revista Brasileira de Economia. Rio de Janeiro: v. 42, nº 2, pp. 101-37, abr.-jun.), Carvalho (1989CARVALHO, J.L. (1989). “Choques externos e a resposta interna: ‘semeando ventos e colhendo tempestades’ na agricultura brasileira”. Revista Brasileira de Economia. Rio de Janeiro: v. 43, nº 2., pp. 139-75. abr.-jun.), Rezende (1990, 1992), Rezende e Buainain (1994REZENDE, G.C & BUAINAIN, A.M. (1994). “Structural adjustment and agriculture in Brazil: the experience of the 1980’s”. Revista Brasileira de Economia. Rio de Janeiro: v. 48, nº 4, pp. 491-503, out-dez.), e Goldin e Rezende (1990GOLDIN, I. & REZENDE, G.C. (1990). Agriculture and economic crisis: lessons from Brazil. Paris: OCDE. Development Centre Studies.), que centram a discussão principalmente nas circunstâncias da política econômica que, ano a ano, afetaram o setor. Dessa forma, aqueles autores analisam detalhadamente a evolução da política de preços e de comercialização levadas a efeito, bem como os episódios de desindexação pelos quais passou a economia brasileira então. Uma descrição bastante cuidadosa dos instrumentos de política agrícola no período pode ser encontrada nesses estudos.

A argumentação que se pretende desenvolver neste trabalho, entretanto, tem o objetivo de trazer à discussão pelo menos mais dois aspectos relacionados ao tema. A ideia central a ser desenvolvida aqui é que o mecanismo de ajustamento da economia brasileira à crise dos 80 gerou as condições para que a agricultura tivesse um desempenho mais favorável que a indústria, em termos agregados, ao afetar mais severamente a demanda pelos produtos industriais do que os agrícolas, no período. Isso se deu pelo tipo de contração de demanda agregada levado a efeito como forma de gerar divisas. Além disso, houve durante a década uma importante queda nos custos de produção agrícolas, gerada em parte pela importante queda nos preços dos principais fatores de produção utilizados pela agricultura. Esses dois aspectos serão explorados separadamente a seguir.

1. O AJUSTAMENTO MACROECONÔMICO DA DÉCADA DE 80

Com a crise cambial iniciada com a moratória mexicana de 1982, o Brasil inicia uma fase mais rigorosa de ajuste de sua economia, que consistia na redução dos déficits em conta corrente. A fórmula utilizada para tal ajuste foi a desvalorização real do câmbio, conjuntamente com adoção de políticas de redução da absorção interna. Assim, em fevereiro de 1983 houve uma maxidesvalorização cambial de 30%, tornada efetiva através da indexação do câmbio ao IGP. Em termos da redução da demanda global interna, o ajuste fiscal e monetário implicava a contenção do crédito internamente, o que, para a agricultura, significou uma redução do crédito de custeio já em 1983, bem como a introdução da correção monetária nos contratos.

Essa foi, de maneira geral, a tônica da política econômica até 1986, quando, com o Plano Cruzado, iniciou-se a era dos planos heterodoxos de estabilização. A partir daí, a política econômica assumiu um caráter errático, notadamente em relação à agricultura, com os instrumentos de política sendo manejados de acordo com os objetivos mais prementes de curto prazo. Dessa forma, o que se procurará fazer aqui é analisar os efeitos últimos daquelas políticas, através da análise da evolução de alguns dos principais agregados das contas nacionais, apresentados no gráfico 2. A análise dessa figura ilustra o ponto que se deseja aqui abordar, e que é bastante conhecido nas análises macroeconômicas: o de que o consumo é um agregado bastante mais estável do que o investimento no ciclo econômico. Como se pode ver nas figuras mencionadas, as políticas de desabsorção do período e toda a instabilidade pela qual passou a economia então afetaram muito mais o investimento do que o consumo. De fato, a crise pela qual passou a economia brasileira no período pode ser caracterizada como uma crise do investimento, iniciada quando o país se depara com a necessidade de bruscamente modificar seu modelo de financiamento baseado em poupança externa. As quedas no ritmo de crescimento do PIB (e as quedas do PIB) observadas podem ser explicadas principalmente pelas quedas no nível do investimento agregado.

Gráfico 2

Ora, a formação bruta de capital fixo na economia se faz basicamente a partir da produção da indústria. De acordo com os dados da Matriz de Insumo-Produto para o Brasil em 1980 (IBGE, 1989), 61,37% da demanda por investimento naquele ano foi por produtos da construção civil, enquanto outros 18,75% o foram por produtos das indústrias mecânica e elétrica. No total, portanto, cerca de 80% da demanda por investimento se concentrou em produtos dessas indústrias. A tabela 2 traz alguns dados ilustrativos da questão.

Tabela 2
Evolução Comparativa do PIB Real do Setor Agropecuário e de Setores Selecionados da Indústria. 1980-90

Como se pode ver da tabela 2, os índices de produto real da agropecuária e de alguns setores da indústria que produzem bens de consumo (produtos alimentares, papel e papelão, bebidas, vestuário e calçados) apresentam uma evolução bastante próxima no período, com a mesma tendência. Há exceções, naturalmente, como é o caso da indústria de vestuário e de calçados, que apresenta tendência inversa, o que provavelmente está relacionado com suas características de consumo.

Em contraste, pode-se verificar também que os setores industriais que produzem bens de investimento (construção civil, metalurgia, mecânica, e material de transporte) apresentam tendência contrária, em termos de evolução do produto real, ao da agropecuária e, como visto, dos próprios produtos industriais destinados ao consumo. Como se pode observar da tabela mencionada acima, dos produtos industriais com importante parcela da produção destinada ao investimento, apenas o setor metalurgia apresentou, ao longo da década de 80, três anos nos quais seu produto real foi maior do que o observado em 1980, e mesmo assim chega ao final da década com redução real de produto. Dos demais setores industriais analisados, ou seja, construção civil, indústria mecânica e indústria de materiais de transporte, nenhum atingiu, durante a década de 80, os valores respectivamente observados no ano de 1980.

Desse modo, nada mais lógico que o PIB setorial da indústria tenha sentido mais a queda do investimento agregado do que a do setor agrícola. Naturalmente, a queda de renda agregada subsequente afeta a demanda por todos os bens da economia através do efeito “renda”, mas de forma diferenciada. E, como se sabe, a demanda por produtos agrícolas geralmente apresenta, no agregado, baixas elasticidades de preço e renda. Dessa forma, a interrupção do fluxo de capitais externos, ao reduzir a renda agregada da economia, reduziu, em contrapartida, mais a poupança agregada (e, portanto, o investimento) do que o consumo agregado em geral, e de produtos da agropecuária em particular.

Esse simples fato, portanto, ajuda a entender em parte o porquê do desenvolvimento mais favorável da agricultura quando comparado à indústria na década de 80, e vem se somar aos mecanismos microeconômicos relacionados por Rezende (1989aREZENDE, G.C. (1989a). “Agricultura e ajuste externo no Brasil: novas considerações”. Pesquisa e Planejamento Econômico. Rio de Janeiro: 19(3): 553-78, dez.). Tem-se, desse modo, um mecanismo fundamental a afetar de forma diferencial a demanda por produtos da agricultura e da indústria. Mas sempre se poderia argumentar que esse mecanismo, embora válido, deveria atuar no sentido de que o produto da agricultura não caísse tanto quanto o da indústria, ou seja, deveria atuar como atenuante da queda, uma vez que o cenário foi de preços cadentes para os produtos da agropecuária. Como se pode ver, entretanto, a agricultura efetivamente cresceu no período, embora a taxas relativamente baixas, se comparadas ao período anterior.

De fato, a argumentação que se desenvolverá a seguir pretende mostrar que, ao lado do mecanismo acima descrito, que afetou a demanda agrícola de forma diferencial, houve ainda um importante fenômeno atuando do lado da oferta, que a estimulou, e que compensou, de forma não desprezível, aquela queda de preços.

2. A EVOLUÇÃO DOS CUSTOS DE PRODUÇÃO AGRÍCOLAS

Como se viu na discussão efetuada até aqui, o ajustamento macroeconômico da década de 80 pode explicar em parte o crescimento diferencial agricultura/indústria no período. Mas não é suficiente para explicar como a agricultura efetivamente cresceu, em cenário de preços tão adverso. Claramente, algum outro fenômeno deve ter afetado o crescimento agrícola pelo lado da oferta, uma vez que, ao contrário, a queda de preços agrícolas deveria ter reduzido a produção ceteris paribus.

De maneira geral, tem-se buscado explicar o fenômeno através da mudança tecnológica. De fato, parece não haver dúvidas a respeito de que o padrão de desenvolvimento da agricultura brasileira na década de 80 baseou-se mais no crescimento do produto por área, ao contrário do observado na década de 70, mais extensivo (Rezende, 1989bREZENDE, G.C. (1989b). “Política econômica e a agricultura na década de 80”. Anais do XXVII Congresso Brasileiro de Economia e Sociologia Rural. Piracicaba: vol. II: 284-309.; Dias, 1989DIAS, G.L.S. (1989). “O papel da agricultura no processo de ajustamento: nota adicional”. Anais do XXVII Congresso Brasileiro de Economia e Sociologia Rural. Piracicaba: vol. II: 310-17.; Guasquez e Villa Verde, 1990GUASQUEZ, J.G. & VILLA VERDE, C.M. (1990). Crescimento da agricultura brasileira e política agrícola nos anos oitenta. Texto para Discussão, nº 204. Brasília: IPEA.; Vegro e Ferreira, 1996VEGRO, C.L.R & FERREIRA, C.R.R.P.T. (1996). “Comparativo entre evolução dos preços recebidos e da produtividade de culturas, Brasil, 1970-94”. Informações Econômicas. São Paulo: v. 26, nº 5, mai.). Quer tenha sido o processo guiado por adoção de novas tecnologias, quer por saída da atividade dos produtores menos eficientes, é possível se argumentar que as curvas de custo médio, por força daquele fenômeno, tenham se deslocado para baixo, permitindo dessa forma a manutenção da produção mesmo com a queda dos preços agrícolas.

Se essa é uma explicação satisfatória ou não é uma questão complexa, que precisa, para ser adequadamente abordada, de uma análise específica, que vai além do objetivo deste trabalho. O que se pretende argumentar aqui, entretanto, é que, independentemente desse fato, há outras variáveis capazes de fazer baixar as curvas de custo médio dos produtores, gerando o mesmo efeito já mencionado, e sem haver necessidade de se recorrer ao argumento do progresso técnico. Aquele, entretanto, não fica invalidado, uma vez que ambos os efeitos operam no mesmo sentido.

As variáveis às quais está se referindo são os preços dos fatores de produção utilizados na agricultura. Conforme notado por alguns autores (Melo, 1992MELO, F.B.H. (1992). ‘Tendência de queda nos preços reais de insumos agrícolas”. Revista de Economia Política. vol. 12, nº 1, jan.-mar.; Rezende, 1989REZENDE, G.C. (1989b). “Política econômica e a agricultura na década de 80”. Anais do XXVII Congresso Brasileiro de Economia e Sociologia Rural. Piracicaba: vol. II: 284-309.; Gasquez e Villa Verde, 1990), houve no período uma queda nos preços dos principais insumos agrícolas, o que teria amenizado o efeito da queda dos preços agrícolas no período. O que se argumentará a seguir, contudo, é que aquela queda de preços não se limitou aos insumos agrícolas (ou seja, fatores de produção agrícolas produzidos pela indústria), mas se estendeu aos fatores primários de produção e resultou em uma redução geral dos custos de produção agrícolas. Ainda, essa queda de custos pode ter tido um papel mais importante no processo de crescimento agrícola do passado recente do que lhe tem sido atribuído até aqui.

Isso pode ser visto na tabela 3. Como se pode observar, os preços de fertilizantes, defensivos e combustíveis apresentaram uma expressiva queda no período, o que não acontece, entretanto, com os preços de tratores agrícolas. Em termos da evolução dos preços do trabalho agrícola, verifica-se que, a partir de 1981 e com exceção do ano de 1986, a tendência também é de queda

Tabela 3
Evolução dos Índices de Preços Reais de Insumos Agrícolas no Brasil. 1980-90.

Dessa forma, uma combinação de elevação da produtividade na agricultura e queda de preços de insumos agrícolas poderiam justificar, com segurança, o fenômeno do crescimento agrícola na década dos 80. Uma maneira mais adequada de se observar a evolução da importância conjunta desses dois aspectos para a agricultura é a análise da evolução dos custos de produção agrícola, uma vez que os mesmos englobam tanto a variação dos preços como as variações nas quantidades (e qualidade) utilizadas dos fatores. O custo de produção é, dessa maneira, um índice de preços composto, do qual participam todos os fatores utilizados no processo produtivo, ponderados pela quantidade utilizada de cada um.

É possível se contar, em relação a isso, com as séries de custos de produção do Instituto de Economia Agrícola do Estado de São Paulo (IEA, vários anosINSTITUTO DE ECONOMIA AGRÍCOLA. (1993). “Estatísticas de mercado de terras agrícolas no estado de São Paulo”. Série Informações Estatísticas da Agricultura, fev. São Paulo: IEA.), que calcula, de longa data, os custos anuais de produção para as principais culturas do estado. Embora os dados se refiram ao estado de São Paulo, não parece uma hipótese muito forte considerá-los uma proxy adequada para as demais regiões do Brasil, pelo menos no que se refere ao Centro-Sul. Ainda, os coeficientes técnicos dessas planilhas de custos são periodicamente revisados pelo IEA, de forma a incorporar as mudanças tecnológicas.

Os sistemas de produção tomados como base pelo IEA para a realização de suas planilhas de custo, entretanto, não são sempre os mesmos ao longo do tempo, refletindo condições climáticas e mudanças tecnológicas. Escolheu-se, assim, para efeito de elaboração de uma série de custos, os sistemas de produção mais próximos possíveis entre anos, em termos de quantidade produzida por área. Uma descrição completa dos sistemas de produção a que se referem os dados de custo operacional aqui utilizados podem ser vistos no apêndice.

Dessa forma, os dados de custo de produção1 1 Trata-se do conceito de custo operacional total. Todos os índices de valores reais utilizados foram construídos a partir das séries originais via deflacionamento através do IGP-FGV para as culturas escolhidas neste estudo foram transformados em custos unitários de produção (custo por unidade produzida), e podem ser vistos na tabela 4, onde os valores são índices de valores reais. Nessa tabela, os valores até o ano de 1987 (inclusive) provêm do “resultado econômico” calculado pelo IEA e, de 1988 em diante, das estimativas de custo operacional. A diferença entre ambos é que o resultado econômico é calculado ex post, ou seja, após a safra de cada cultura, e leva em consideração a produtividade realmente observada.

Tabela 4
Índices de Custo Unitário de Produção. Culturas Selecionadas

A estimativa de custo operacional, por outro lado, é uma grandeza ex ante, e baseia-se em uma produtividade “normal”. A razão para tal procedimento é que até 1985 as estimativas de custo operacional embutiam uma projeção da inflação esperada em alguns itens de custo, tornando impossível o deflacionamento. A partir de 1986, entretanto, essa metodologia foi abandonada, tornando-se então possível o deflacionamento das estimativas de custo operacional. A série de resultados operacionais, entretanto, está disponível apenas até o ano de 1987, pelo que foi utilizada a estimativa de custo operacional de 1988 em diante. Como se pode ver, a evolução dos custos de produção segue, de modo geral, a tendência de queda de preços dos insumos observada anteriormente. Dentre as culturas analisadas, a única exceção parece ser a cultura da mandioca, onde a queda no custo unitário não é observada. Mas aqui, deve-se observar que a produtividade a que se referem os custos também diminuiu, o que eleva o custo unitário (ver apêndice APÊNDICE Sistemas de Produção Referentes às Planilhas de Custo de Produção Adotados no Estudo Ano Algodão Arroz Feijão Milho Mandioca Soja Trigo @/ha sc/ha sc/ha sc/ha ton/ha sc/ha sc/ha 80 TM 119 TM39 TMA16 TM 47 TMA20 TM 35 TM 19 81 TM 119 TM 39 TMA16 TM 47 TMA 20 TM 35 TM 19 82 TM 145 TM 39 TMA16 TM 47 TMA 25 TM 30 TM 19 83 TM 145 TM 39 TMA16 TM 47 TMA 25 TM 30 TM 19 84 TM 145 TM39 TMA16 TM 50 TMA 25 TM 30 TM 19 85 TM 145 TM 39 TMA16 TM 50 TMA25 TM 30 TM19 86 TM145 TM 55 TMA16 TM 60 TMA25 TM 30 TM 19 87 TM 145 TM 55 TMA 16 TM 60 TMA20 TM 30 TM 19 88 TM 145 TM 55 TMA16 TM 60 TMA 20 TM 30 TM 19 89 TM 145 TM 60 TMA12 TM 60 TMA 18 TM 35 TM 19 90 TM 145 TM 70 TM 22 TM 60 TM 18 TM 35 TM 27 91 TM 145 TM70 TM 27 TM 60 TM 18 TM 35 TM 27 92 TM 159 TM 70 TM 27 TM 80 TM 18 TM 35 TM 27 93 TM 159 TM 70 TM 27 TM 80 TM18 TM35 94 TM 159 TM 70 TM 27 TM 80 TM 20 TM 38 TM = tração motomecanizada TMA = tração motomecanizada animal. TMA = tração motomecanizada animal. Fonte: IEA ).

Da análise dos dados acima fica inequívoco, portanto, que a agricultura brasileira (generalizando-se, conforme notado anteriormente, a partir dos dados do estado de São Paulo) passou por um importante processo de redução de custos de produção desde meados da década de 80. Mas a queda dos custos de produção sozinha poderia ainda não ser suficiente para ter sustentado o aumento da produção agrícola brasileira no período, em um cenário de queda de preços dos produtos, uma vez que essa queda de preços poderia ter anulado a redução dos custos de produção.

Como forma de se abordar este problema, calculou-se a relação preço do produto-custo unitário de produção, que pode dar uma ideia melhor da relação de trocas entre os produtos agrícolas e os fatores empregados na sua produção. Da mesma forma, essa relação evita possíveis distorções existentes no índice de preço utilizado para o deflacionamento dos valores deste estudo, e que podem ter sido introduzidas pelos sucessivos congelamentos de preços levados a efeito a partir de 1986. Esses resultados podem ser observados na tabela 5.

Tabela 5
Índice de Valor da relação Preço do Produto-Custo Unitario de Produção e Relação de Preços Recebidos/Preços Pagos por Insumos de Fora da Propriesade Rural. 1980=100.

A transformação dos dados apresentada na tabela 5 acrescenta ainda mais informação à análise e confirma, de maneira geral, a hipótese de que fatores do lado da oferta atuaram para atenuar o impacto da queda observada nos preços agrícolas na década de 80. Iniciando-se pelo algodão, verifica-se que a cultura apenas apresenta forte decréscimo na relação de trocas no período compreendido entre os anos de 1989-92, elevando-se novamente no período mais recente2 2 Os dados a partir de l988 devem ser encarados como um limite superior para a relação preço-custo, uma vez que se trata de dados de estimativas de custo operacional e de produtividade, e não de dados ex post, como os observados até o ano de 1987. . No caso do arroz, aquela relação começa a deteriorar-se mais cedo, em 1987, mas se eleva antes também, em 1991. Feijão e milho praticamente não apresentam períodos contínuos de queda da relação preço-custo, embora possam ser observados anos onde a relação cai bastante.

A mandioca, entretanto, apresenta um cenário bastante mais negativo que as demais culturas, evidenciando a situação de atraso tecnológico que de uma maneira geral ainda persiste nessa cultura, bem como a sua perda de importância econômica no Sul e Sudeste do Brasil. No caso da soja, as evidências apresentadas indicam um cenário algo pior do que o observado para o arroz. Observa-se aqui um número maior de anos onde a relação preço-custo cai mais acentuadamente, o período 1988-91, voltando a elevar-se então, como nos demais casos, à exceção da mandioca.

E, finalmente, a tabela 5 traz ainda a relação preços recebidos-preços pagos por insumos de fora da propriedade rural (IPR/IPPF3 3 Média dos valores correspondentes aos meses de agosto a dezembro de cada ano. ), calculado pelo IEA. Como se pode ver, este indicador apresenta uma tendência nítida de elevação até o ano de 1986, quando começa a cair. Até o ano de 1988, entretanto, os valores se mantêm aproximadamente nos níveis da primeira metade da década, quando então começam a cair mais acentuadamente. Deve-se observar, entretanto, que esse indicador não leva em conta variações de produtividade, como a relação preço-custo, apresentada anteriormente.

Deve-se observar que o conceito de custo analisado acima, o do custo operacional total, compreende o custo dos insumos variáveis mais a depreciação de parte do capital fixo. Não inclui, portanto, alguns outros itens de custo relevantes para o problema que se deseja analisar, como é o caso do preço da terra e de seu valor de arrendamento. Essas são, entretanto, variáveis muito importantes para o fenômeno em análise, uma vez que se relacionam à facilidade de acesso ao fator de produção terra, tanto por parte de proprietários de terra mais eficientes que desejem aumentar suas explorações como por parte de arrendatários e parceiros em geral. Assim, a evolução dos aluguéis de terras agrícolas e de pastagens, bem como os preços de terras agrícolas de primeira, de segunda e de pastagens podem ser vistos na tabela 6, a seguir.

Tabela 6
Evoluçnao dos Valores de Arrendamentos e de Preços de Terras Agrícolas e Pastagens. 1980-90

Como se pode ver na análise da tabela 6, a evolução dos valores de arrendamentos de terras agrícolas e pecuárias, bem como os preços dessas terras, ratificam a hipótese de que os fatores atuando do lado da oferta agrícola foram determinantes para explicar a evolução do setor na década de 80. O que se observa é que, com exceção do ano de 1986, para todos os valores, e do ano de 1987 para o preço das terras agrícolas de primeira, há uma tendência nítida de queda tanto nos preços de arrendamentos como nos preços das terras, do início da década de 80 para o seu final, e que perdura no início da década de 90. De fato, o que se observa é uma tendência decrescente naqueles valores, que só foi interrompida pelo Plano Cruzado em 1986, após o que a série retoma a sua tendência.

Como se pode observar, houve, de maneira geral, além de uma atenuação importante na relação preço recebido pelo produto agrícola-custo unitário de produção, uma redução expressiva nos preços das terras e dos arrendamentos agrícolas e pecuários. Em particular, esse fenômeno ajuda a explicar como a agricultura brasileira pôde crescer durante a década de 80, em cenário de preços tão adverso.

3. CONCLUSÕES

Como se pode ver, portanto, o crescimento diferencial da agricultura em relação à indústria na década de 80 é coerente com os sinais emitidos pelo mercado. Inicialmente, pelo lado da demanda, a indústria enfrentou uma grande queda na demanda por seus produtos, notadamente naqueles setores voltados para a formação de capital na economia. Isso foi decorrência do ajustamento macroeconômico do período, que reduziu principalmente a poupança agregada da economia, e, por conseguinte, o investimento agregado. Apresentando baixa elasticidade-renda da demanda no agregado, a demanda agrícola se sustentou relativamente mais, face à queda da renda agregada subsequente.

Além disso, a agricultura experimentou um importante processo de redução de custos de produção no período, o que compensou em parte a queda de preços observada para a maioria dos produtos agrícolas, fazendo com que a relação de trocas tenha evoluído de forma menos desfavorável. Em alguns anos essa evolução foi, de fato, favorável à agricultura. Esse fenômeno foi corroborado, ainda, pela queda observada nos valores de arrendamentos de terras agrícolas e pecuárias, bem como dos preços dessas terras. Observa-se, dessa forma, que a queda de preços dos fatores de produção no período em questão assumiu importância maior do que tem sido geralmente reconhecido. Essa queda parece, de fato, ter sido determinante no processo de crescimento da agricultura brasileira desde o início da década de 80.

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  • VEGRO, C.L.R & FERREIRA, C.R.R.P.T. (1996). “Comparativo entre evolução dos preços recebidos e da produtividade de culturas, Brasil, 1970-94”. Informações Econômicas. São Paulo: v. 26, nº 5, mai.
  • 1
    Trata-se do conceito de custo operacional total. Todos os índices de valores reais utilizados foram construídos a partir das séries originais via deflacionamento através do IGP-FGV
  • 2
    Os dados a partir de l988 devem ser encarados como um limite superior para a relação preço-custo, uma vez que se trata de dados de estimativas de custo operacional e de produtividade, e não de dados ex post, como os observados até o ano de 1987.
  • 3
    Média dos valores correspondentes aos meses de agosto a dezembro de cada ano.
  • 4
    JEL Classification: Q11; O47.

APÊNDICE


Sistemas de Produção Referentes às Planilhas de Custo de Produção Adotados no Estudo

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 1998
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