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Sobre a imaterialidade dos corpos imigrantes na Irlanda: esboço de uma teoria a partir do caso dos brasileiros

On the immateriality of immigrant bodies in Ireland: sketch of a theory based on the case of Brazilians.

Resumo

Esse artigo procura entrelaçar uma reflexão sobre as regras burocráticas de documentação de imigrantes na Irlanda com a questão de visibilidade ou invisibilidade dos corpos de imigrantes brasileiros. O argumento central é que os regimes de documentação/indocumentação são responsáveis por uma flutuação na visibilidade dos imigrantes para o Estado irlandês, tornando-os ora materiais e visíveis e ora imateriais e invisíveis e, muitas vezes, em algum lugar entre esses dois polos. Essa flutuação é responsável por várias ordens de dificuldades na vida de muitos imigrantes, desde a falta de acesso a serviços até processos de lenta ocultação dos próprios corpos. Para a realização do texto, utilizo-me de dados do trabalho de campo etnográfico, realizado entre imigrantes brasileiros na Irlanda entre março e junho de 2022, assim como da análise das legislações de migração irlandesas.

Palavras-chave:
Imigração brasileira; legislação de imigração; Irlanda; regimes de materialidade

Abstract

This article seeks to intertwine a reflection on the bureaucratic rules of immigrant documentation in Ireland with the issue of visibility or invisibility of the bodies of Brazilian immigrants. The central argument is that documentation/undocumentation regimes are responsible for a fluctuation in the visibility of immigrants to the Irish State, making them sometimes material and visible, occasionally immaterial and invisible, and often somewhere between these two poles. This fluctuation is responsible for several orders of difficulties in the lives of many immigrants, from lack of access to services to processes of slow concealment of their bodies. To realise the text, I use data from ethnographic fieldwork carried out among Brazilian immigrants in Ireland between March and June 2022 and the analysis of Irish migration legislation.

Key words:
Brazilian immigration; immigration legislation; Ireland; materiality regimes

Introdução

Esse trabalho procura entrelaçar uma reflexão sobre as regras burocráticas de documentação de imigrantes na Irlanda com a questão de visibilidade ou invisibilidade dos corpos migrantes, especialmente brasileiros. O argumento central é que os regimes de documentação/indocumentação são responsáveis por uma flutuação na visibilidade dos imigrantes para o Estado irlandês, tornando os imigrantes ora materiais e visíveis e ora imateriais e invisíveis e, muitas vezes, em algum lugar entre esses dois polos. Essa flutuação é responsável por várias ordens de dificuldades na vida de muitos imigrantes, desde a falta de acesso a serviços até processos de lenta ocultação dos próprios corpos. A estratégia legal de “variação de materialidade”, digamos assim, implica numa vontade política de manter os imigrantes no país, ainda que em condições de subalternidade e vulnerabilidade extremas. A assunção da visibilidade total e, portanto, de completa materialidade para o Estado acontece nas duas situações extremas e opostas: a efetivação da cidadania irlandesa ou a prisão para deportação. Entre essas duas situações vive a maioria dos imigrantes brasileiros na Irlanda hoje em dia.

O texto é uma etnografia baseada em trabalho de campo, realizada nos meses de março, abril e maio de 2022, numa estratégia de “dispersão territorial” por toda Irlanda. Com apoio de alguns contatos pude viajar por todo o país e encontrar brasileiros em diversas localizações da república irlandesa. Embora centrado na região da cidade de Ennis, o contato com uma rede de trabalhadores em empresas de transporte de produtos brasileiros me possibilitou conhecer brasileiros por toda a Irlanda. Essas empresas entregam produtos alimentícios brasileiros para imigrantes ao redor do país, e eu pude viajar com os trabalhadores para fazer entregas e, ao mesmo tempo, conhecer imigrantes por todo país. Assim, minha etnografia é multissituada, apresentado uma variedade de situações diferentes dos imigrantes brasileiros. Além disso, realizei cerca de 20 entrevistas semi-estruturadas que também ajudam a entender o cenário da imigração brasileira na Irlanda.

Esse artigo se concentra especificamente na questão das estratégias do Estado para documentar (ou expulsar) imigrantes, por um lado, e nas estratégias que os imigrantes desenvolvem para lidar com as práticas do Estado. Temos um jogo complexo de visibilidades e invisibilidades que nos permitem entender um pouco das complexidades das políticas migratórias e seus impactos na vida dos imigrantes brasileiros.

A Irlanda era um país com um pouco mais de 5 milhões de pessoas, segundo dados parciais do senso de 2022 (CSO, 2022______. Census of population 2022 - Preliminary results. 2022. Disponível em Disponível em https://www.cso.ie/en/csolatestnews/presspages/2022/censusofpopulation2022-preliminaryresults/ . Acesso em: 02.02.2023.
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). Nos dados do censo de 2016, cerca de 645 mil habitantes são não-irlandeses, ou seja, 12,9% da população na Irlanda era formada por imigrantes (CSO, 2021CSO (Central Statistics Office). Population and Migration Estimates. April 2021. Disponível em: Disponível em: https://www.cso.ie/en/releasesandpublications/ep/p-pme/populationandmigrationestimatesapril2021/mainresults/ . Acesso em: 06.06.2022.
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)⁠. Desses 645 mil, 180.2 mil eram classificados como provenientes “do resto do mundo”, na curiosa categoria das estimativas populacionais do Estado irlandês. Os brasileiros são parte desses 180 mil. No censo de 2016, os brasileiros regularmente documentados na Irlanda eram cerca de 11 mil pessoas1 1 Deve-se considerar, entretanto, que muitos brasileiros são portadores de passaportes de outros países europeus, especialmente a Itália. (O’Connell, 2018O’CONNELL, Philip. International Migration in Ireland, 2017 International Migration in Ireland. Geary IPP Working Papers. [S.l: s.n.], 2018.)⁠. As estimativas do CSO (centro de estatísticas do Estado irlandês) indicam que entre 2016 e 2018 houve um crescimento de quase 10% no número de imigrantes, para depois, durante a pandemia, vermos em 2021 uma queda no número de imigrantes documentados de certa de 27% em relação a esse pico em 2018. Segundo as estimativas do CSO, o número de imigrantes em 2021 seria menor que o de 2016 (CSO, 2021CSO (Central Statistics Office). Population and Migration Estimates. April 2021. Disponível em: Disponível em: https://www.cso.ie/en/releasesandpublications/ep/p-pme/populationandmigrationestimatesapril2021/mainresults/ . Acesso em: 06.06.2022.
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), ano do último censo populacional irlandês2 2 Um Censo Demográfico geral foi conduzido em 2022, mas escrevo esse texto antes da divulgação desses resultados definitivos. Apenas uma divulgação preliminar de dados foi realizada, sem referência às populações imigrantes (CSO, 2022). . Assim, um dos efeitos da pandemia, segundo as estimativas do CSO, foi a diminuição do número de migrantes documentados. Esses números podem ser enganosos, entretanto, tanto porque os serviços públicos estiveram fechados por um bom tempo durante a pandemia (impedindo processos de renovação de documentos tomarem o devido tempo, por exemplo) - o número de indocumentados pode ter aumentado significativamente com a ausência desses serviços - como também porque o receio dos próprios imigrantes de recorrer ao Estado durante a pandemia pode ter feito com que a indocumentação aumentasse. Além disso, alguma migração de retorno deve ter acontecido, como podemos ver pelos indícios de algumas pesquisas com imigrantes brasileiros em outros países (Fernandes, Castro, 2013FERNANDES, Duval; CASTRO, Maria da Consolação. Migração e crise: o retorno dos imigrantes brasileiros em Portugal. REMHU, Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana, v. 21, n. 41, p. 99-116, 2013.; Okamoto, Justo, Resstel, 2017OKAMOTO, Mary Yoko; JUSTO, José Sterza; RESSTEL, Cizina Célia Fernandes Pereira. Imigração e desamparo nos filhos de dekasseguis. REMHU, Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana, v. 25, n. 50, p. 203-219, 2017.; Tedesco, 2018TEDESCO, João Carlos. Crise econômica e espaços de origem ressignificados: rearranjos de imigrantes brasileiros retornados da Itália. Revista Cadernos do Ceom, v. 31, n. 49, p. 57-71, 2018.; Siqueira, 2009SIQUEIRA, Sueli. O retorno motivado pela crise na economia norte americana. Revista Tempo e Argumento, v. 1, n. 2, p. 64-79, 2009.)⁠. Entretanto, essas mesmas pesquisas indicam que há um número expressivo de “retornados” que pretendia emigrar novamente, o que parece acontecer agora no pós-pandemia, junto com a acentuada crise social brasileira desde o golpe de 2016. Em outro artigo indico como o número de emigrantes brasileiros aumentou vertiginosamente desde 2016 (Machado, 2021MACHADO, Igor J. R. Um Poder envergonhado: A diferença constrangedora dos emigrantes brasileiros. Boletim do Comitê de Migrações e Deslocamentos da ABA, v. 1, n. 1, p. 18-25, 2021.)⁠. Durante o trabalho de campo, por exemplo, eu era constantemente informado sobre uma enorme quantidade de brasileiros que chegavam à Irlanda diariamente.

Dois processos que ocorrem em 2022, entretanto, podem oferecer um cenário populacional mais claro: tanto o censo está sendo realizado, com atraso por conta da pandemia, como também um processo de anistia para imigrantes indocumentados foi colocado em prática no primeiro semestre de 2022 (Regularisation of Long-Term Undocumented Migrants Scheme, 2022Regularisation of Long-Term Undocumented Migrants Scheme. 2022. Citizensinformation, 2022. Disponível em: Disponível em: https://www.citizensinformation.ie/en/moving_country/moving_to_ireland/rights_of_residence_in_ireland/permission_to_remain_for_undocumented_noneea_nationals_in_ireland.html . Acesso em: 06.06.2022.
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; Polakowski, Quinn, 2022POLAKOWSKI, Michal; QUINN, Emma. Responses to irregularly staying migrants in Ireland. ESRI Research Series Number 140. Dublin: ESRI Research Series, 2022.)⁠. A estimativa do governo é de que cerca de 17000 imigrantes se regularizem (McGreevy, 2022McGREEVY, Ronan. Amnesty scheme for undocumented migrants opens. 2022. Disponível em: Disponível em: https://www.irishtimes.com/news/ireland/irish-news/amnesty-scheme-for-undocumented-migrants-opens-1.4789764 . Acesso em: 06.06.2022.
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)⁠. Dados preliminares indicam que apenas cerca de 7800 imigrantes solicitaram a regularização, que foi dificultada pelas condições do programa assim como pelas altas taxas para movimentar o processo. Desses 7800, cerca de 1300 são brasileiros e a nacionalidade representa a maioria entre os solicitantes (Infomigrants, 2022INFOMIGRANTS. Thousands apply for Irish regularization scheme before deadline ends. 2022. Disponível em: Disponível em: https://www.infomigrants.net/en/post/42495/thousands-apply-for-irish-regularization-scheme-before-deadline-ends . Acesso em: 24.10.2022.
https://www.infomigrants.net/en/post/424...
; Pollak, 2022POLLAK, Sorcha. Almost 8,000 undocumented migrants applied for ‘life-changing’ scheme. 2022. Disponível em: Disponível em: https://www.irishtimes.com/ireland/social-affairs/2022/08/09/almost-8000-undocumented-migrants-applied-for-life-changing-scheme/ . Acesso em: 24.10.2022.
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). Esse processo é importante, pois lida justamente com as angústias geradas nesse processo que teria a função, como afirmou a ministra da justiça da Irlanda, Helen McEntee, de melhorar a vida daqueles que continuam a viver nas “sombras legais” do Estado irlandês.

Sendo visto e não visto

A ideia de que as regras de documentação (popularmente conhecidas como regras de “legalização”) podem produzir situações de visibilidade e invisibilidade foi desenvolvida inicialmente num trabalho sobre as regras portuguesas de documentação, num artigo de 2011 (Machado 2011______. A condição obscura: Reflexões sobre as políticas de imigração e controle de estrangeiros em Portugal. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 92, p. 125-145, 2011.)⁠ no qual defendi o argumento de que a lei portuguesa produzia penumbras propositais, responsáveis por manter imigrantes numa situação ambígua e facilmente explorável por empregadores não tão escrupulosos. O que eu não explorei naquele texto, mas que pode ser pensado com a situação dos brasileiros na Irlanda é que essa “situação de penumbra”, de estar nos interstícios da lei, ou mesmo fora dela, mas, ainda assim, com alguns contornos visíveis para o Estado irlandês, produz uma sensação concreta de invisibilidade e de “não existência” em diversas situações, ao passo que em outras produz o desejo de desaparecer. Em termos gerais, a busca pela documentação plena é vista como uma maneira de assumir forma e pessoalidade frente ao Estado, com a série de implicações que isso traz para a vida cotidiana dos imigrantes. Assim, proponho uma discussão sobre o corpo, mas não exatamente sobre as perspectivas das corporeidades (Vale de Almeida, 2004VALE DE ALMEIDA, Miguel. O manifesto do corpo. Revista Manifesto, v. 5, p. 17-35, 2004.) e toda discussão sobre corpos, fisicalidade, estereótipos etc. O corpo que é objeto dessa reflexão é o corpo como um objeto legal da legislação estatal que pretende regular, portanto, sua própria existência ou não: a lei aparece como um atribuidor de materialidade a esse corpo do qual falam a leis e que se pretende deixar ou não habitar o país.

Mas esse corpo legal, digamos assim, é vivido pelos imigrantes como o corpo material, real e muito objetivo da própria percepção: na confluência desses dois regimes de percepção (o dos sujeitos e o do Estado), vive-se uma experiência ambígua de materialidade e imaterialidade simultânea, de graus e níveis de “existência”, de passagens de regimes mais visíveis para regimes menos visíveis, ou vice-versa, ou ainda as duas coisas simultaneamente. Isso quer dizer que o argumento que aqui proponho é que a existência imigrante é atravessada por uma ambiguidade estrutural presente nessas regulações estatais, que tem um efeito cataclísmico na experiência vivida dos imigrantes: sofrimento, angústia, pequenas vitórias, derrotas, expectativas indefinidas. Todas essas são sensações que a situação ambígua imposta pelos regimes de materialidade e imaterialidade do Estado impõem aos sujeitos em sua inevitável constatação própria de existência efetiva como trabalhadores, pagadores de impostos, habitantes e contribuidores para a sociedade irlandesa. Quero analisar, portanto, esses conflitos, que poderíamos chamar de “materialidades alternativas”, e seus efeitos na vida dos imigrantes. Para isso vou enunciar uma série de pequenas narrativas que evidenciam essas ambiguidades e seus efeitos, não sem antes tecer alguns comentários sobre o sistema de vistos irlandês. A seguir concluo esse rápido texto com uma reflexão sobre o teor dessa ambiguidade e sobre as materialidades dos corpos imigrantes nesse contexto de confronto entre burocracia estatal e a vida vivida.

Alguns regramentos

Na Irlanda, a regulação de permanência dos estrangeiros é controlada por uma série de diferentes vistos, chamados pelos imigrantes brasileiros de “estampas” (derivado do inglês stamp). Há estampas de 1 ao 5, com regras e graus diferentes de estabilidade e precariedade. A estampa 1 é aquela que permite ao imigrante que possui uma oferta de trabalho com contrato registrado permanecer na Irlanda por um período de 2 anos, renovável consecutivamente a cada 2 anos. Nessa estampa, o imigrante precisa permanecer no mesmo emprego que gerou a possibilidade de documentação: não pode mudar de contrato de trabalho, portanto. Na estampa 2, o imigrante é um estudante e pode cursar vários tipos de instituições educativas na Irlanda. O mais comum são as escolas de inglês para estrangeiros, que possuem a autorização de oferecer esses cursos. Essa documentação permite aos estrangeiros o trabalho de 20 horas semanais e de 40 horas durante as férias de verão. Há uma série de condicionantes para essa modalidade de visto: os alunos precisam comprovar 80% de frequência nos cursos, precisam comprovar ter pelo menos 3000 euros para se sustentar, etc.

A estampa 3 é aquela que permite um estrangeiro ficar na Irlanda, mas não autoriza que ele trabalhe, acesse o sistema de saúde ou tenha quaisquer dos direitos do Estado social irlandês. Em geral, ele é o visto que as esposas ou esposos de brasileiros/as com a estampa 1 conseguem obter. Nessa modalidade de visto, a pessoa tem que provar ter recursos para se manter na Irlanda (em geral, o salário do cônjuge com a estampa 1). Já a estampa 4 é uma autorização de residência e trabalho como a estampa 1, mas sem vínculo exclusivo com um contrato de trabalho: o imigrante precisa de um contrato de trabalho que o justifique, mas pode mudar de emprego ao longo do tempo. Essa estampa deve ser renovada a cada dois anos. A estampa 5 é uma permissão de residência na Irlanda independente de tempo de permanência e sem limites para renovação. Para a nossa reflexão importam as estampas 1, 2, 3 e 4, já que não conheci nenhum brasileiro com a estampa 5.

Todos esses vistos são mais ou menos intercambiáveis, é possível passar de um visto para ou outro e há subtipos de visto (visto 1g por exemplo). Para acessar a cidadania irlandesa (ou obter o passaporte vermelho, como dizem os brasileiros), é preciso 5 anos ininterruptos na Irlanda sob o manto dos vistos 1 ou 4 - o tempo como estudante na estampa 2 não conta. Em termos gerais, a perspectiva dos imigrantes brasileiros é obter a estampa 4, que permite uma flexibilidade no mercado de trabalho e, portanto, menos dependência de um empregador e, claro, menos vulnerabilidade. Se um brasileiro ou brasileira casa com um/a irlandês/a, tem acesso ao visto 4, podendo se naturalizar após 3 anos de casamento (e mais algumas condicionantes).

Nesse quadro geral temos a situação de muitos brasileiros, somando-se ainda aqueles que se encontram em situação de indocumentação, ou seja, que não são reconhecidos pelo Estado irlandês como habitantes regulares no país. Os próprios brasileiros nessa situação se chamam de “ilegais”, que aparece como um termo nativo cheio de ironia. Esses diferentes vistos implicam diferentes situações de vulnerabilidade, especialmente marcadas por uma relação muito difícil com os empregadores sob a estampa 1: o desejo é ultrapassar esses 5 primeiros anos que muitos veem como um tipo de escravidão.

Mas todos esses vistos implicam diferentes regimes de materialidade e imaterialidade, ou seja, eles produzem mais ou menos “presença” sob a perspectiva do Estado que os emite. De certa forma, podemos pensar que essa diferenciação entre os vistos e seus regimes de materialidade são organizados pela percepção do Estado sobre quem deveria ou não permanecer na Irlanda após o tempo inicial de provação que todos esses vistos impõem antes de permitir o acesso à cidadania irlandesa. Para dar mais clareza ao que chamo de “regimes de materialidade” é mais produtivo seguirmos alguns exemplos para, a seguir, entender o argumento geral desse texto.

Regimes de materialidade e imaterialidade

a) O invisível

Romário trabalha em uma Van, executando serviços de transporte por toda Irlanda: é contratado por outras empresas para fazer entregas de diversas ordens. Para isso, ele constituiu sua própria empresa, da qual presta contas regularmente para o imposto de renda irlandês (income tax). Sobre os pagamentos que lhe são feitos, paga regularmente os impostos obrigatórios. Para conseguir abrir sua empresa, foi preciso conseguir um PPS (personal public service), um documento semelhante ao CPF brasileiro. Qualquer empregado precisa ter um PPS. Para acessar alguns serviços públicos, é preciso um PPS, por exemplo. Para conseguir o PPS, Romário utilizou os registros de pagamento de luz de sua residência. Ele tem filhos brasileiros que estudaram na Irlanda, além de sua esposa que trabalha numa loja de tecidos. Romário paga seu aluguel religiosamente para seu Landlord (locatário). Para fazer as entregas, precisou tirar uma carteira de motorista irlandesa, há 10 anos. Faz 13 anos que se encontra na Irlanda.

O fato mais relevante é que ele está em situação de indocumentação, ou “ilegal”, como ele mesmo diz. Chegou como turista e permaneceu após o prazo de 90 dias, entrando na indocumentação. Durante um prazo de 1 ano conseguiu um visto de estudante, com ajuda de uma escola, e foi, portanto, “documentado” e “legal” nesse curto período. Assim, segundo o Estado Irlandês, ele não existe oficialmente no país, sua presença não é reconhecida. Mas ele tem o PPS, uma empresa, carteira de motorista e paga todos os impostos. Assim, em certos lugares do Estado, ele existe: no site do Revenue (o equivalente à Receita Federal) ele está presente, no site do Mywelfare (onde se tira o PPS, no Departamento de Proteção Social) ele está presente, etc. Mas frente a um policial ele não tem uma prova de que tem o direito de estar na Irlanda: não tem nenhuma estampa em seu passaporte e não é listado como cidadão irlandês. Frente a um policial ele pode ser encaminhado a um processo de deportação, por exemplo. Seria um corpo invasor, cuja materialidade revelada num encontro policial seria concretizada apenas para ser expulso do país.

Para os cálculos do governo, portanto, ele não existe, não tem corpo. Embora subsistam algumas evidências de sua passagem pela Irlanda: documentos, pagamentos, contas, e-mails etc. Esse conjunto de evidências lança alguma consistência na sua invisibilidade: ele é invisível, mas projeta algumas sombras, contra as quais o Estado poderia, se quisesse, identificar sua presença. Mas isso seria reconhecer sua visibilidade, o que é justamente o que não quer o Estado: o desejo é manter a invisibilidade. Ao menos até certo ponto.

Romário tem filhos, ambos com passagem por escolas irlandesas (com evidências de matrículas), pelo sistema de saúde pública, pois todas as crianças com menos de 6 anos têm direito à saúde gratuita independentemente do estatuto migratório. Um deles casou-se com uma brasileira, outro com uma irlandesa. Ambos já têm seus filhos. Os de um casal são brasileiros e, como o pai e o avô, estão em situação indocumentada. Os de outro são irlandeses, já que têm uma mãe irlandesa. Assim, Romário tem netos documentados e também netos em situação de indocumentação: sujeitos a distintos regimes de materialidade. Uns podem ser deportados, outros desfrutam de todos os direitos do estado de bem-estar social irlandês3 3 Sobre as políticas sociais do Estado irlandês, ver (McCashin, 2019). .

b)Descartável

João é trabalhador de frigoríficos. Era sua profissão no Brasil e, através de um contratador irlandês, no Brasil, recebeu uma oferta de trabalho na Irlanda. Como maior produtora de carne da União Europeia, a Irlanda é um país cheio de frigoríficos e muitos contratam profissionais brasileiros para suas instalações. Parte considerável da bibliografia sobre a migração brasileira na Irlanda trata desse mercado, especificamente (Cawley, 2018CAWLEY, Mary. Labour and education-related migration in the age of globalisation: new links between Brazil and Ireland in the age of globalisation. Espaço Aberto, v. 8, n. 2, p. 37-56, 2018.; Freitas, 2019FREITAS, Bárbara Ferreira. Entre Brasil e Irlanda, 10 anos de afetos e opressões: um estudo de caso sobre migração à trabalho. Revista Feminismos, v. 7, n. 2, p. 97-108, 2019.; Maher, 2010MAHER, Garret. A transnational migrant circuit: Remittances from ireland to Brazil. Irish Geography, v. 43, n. 2, p. 177-199, 2010.; Maher, Cawley, 2015MAHER, Garret; CAWLEY, Mary. Short-Term Labour Migration: Brazilian Migrants in Ireland. Population, Space and Place, v. 22, n. 1, p. 23-35, 2016., 2016MAHER, Garret; CAWLEY, Mary. Social Networks and Labour Market Access among Brazilian Migrants in Ireland. Journal of Ethnic and Migration Studies, v. 41, n. 14, p. 2336-2356, 2015.; McGrath, 2010McGRATH, Brian. Social capital in community, family, and work lives of Brazilian migrant parents in Ireland. Community, Work and Family, v. 13, n. 2, p. 147-165, 2010.; McNamara, 2008McNAMARA, Pat. Migrant Workers in Ireland. Spiritan Magazine, v. 32, n. 3, p. 11, 2008.; Silva, 2016SILVA, Reijane. Imigrantes Goianas na Irlanda: Agências e Interpretações. Revista Latino-americana de Geografia e Genero, v. 7, n. 2, p. 54-75, 2016.; Soares, 2014SOARES, Alessandra Garcia. O Brasil na Irlanda : vidas em deslocamento na mobilidade contemporânea. Dissertação de Mestrado em geografia. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, p. 152, 2014.). Como um trabalhador contratado, João recebeu um visto 1, ou seja, a estampa 1, que lhe permite ficar na Irlanda desde que permaneça no mesmo trabalho. Se for demitido, deve retornar ao Brasil. Se ficar 5 anos como contratado no mesmo lugar, pode pleitear a estampa 4, que lhe daria o direito de mudar de trabalho.

Por que essa imposição de permanecer num emprego apenas e que tipo de regime de materialidade é esse? É um regime de semi-materialidade ou materialidade precária: o trabalhador é visível apenas enquanto trabalhador de um contrato específico e de nenhuma outra maneira. Em seu contrato, regula-se o pagamento: ele deve ganhar 13 euros por hora de trabalho. Entretanto, o empregador lhe paga apenas 10 euros. Mas João não quer reclamar, pois o empregador pode simplesmente demiti-lo e o deixar invisível para o Estado: deixaria de ser visto e perderia o direito de ficar na Irlanda. Nesse caso, o Estado terceiriza o regime de materialidade: ela fica a cargo de um empregador, que detém esse direito por longos 5 anos, nos quais João continuará a receber menos do que o que lhe fora prometido. Mas ele não reclama em voz alta: tem família para criar e contas para pagar.

Com a estampa 1 ele pode acessar alguns direitos: consegue ganhar o complemento de renda por filhos (child benefit) e também o complemento de renda familiar (working family benefit). Essa renda extra é fundamental para conseguir pagar o aluguel - cujo custo é altíssimo na Irlanda - e as contas básicas. Se ele perder a estampa 1, perde imediatamente o direito a esses benefícios (ele deixa de existir para o Estado). Assim, prefere abaixar a cabeça à exploração de seu empregador, já que esse detém o poder de fazê-lo ficar invisível. João está sujeito a um regime de materialidade condicional, já que um mero ato administrativo pode fazê-lo imaterial de uma hora para outra. Como ele me diz: “estou esperando dar os 5 anos e acabar com a escravidão”. E como sabe que é relativamente fácil colocar outro trabalhador brasileiro em seu lugar, especialmente agora que o Brasil vive uma crise econômica e social extrema, não pode arriscar buscar seus direitos.

Esse processo, comum a milhares de brasileiros e brasileiras na Irlanda, caracteriza um outro regime de materialidade relativo ao visto: é um regime instável e propositalmente frágil, a fim de produzir esse trabalhador extremamente vulnerável e, no fim das contas, descartável. É descartável porque o Estado delega para os empregadores um poder de seleção que o próprio Estado não quer (e não pode) assumir ele mesmo. A possibilidade muito clara de exploração é um efeito desejado desse tipo de regime de materialidade que produz um corpo visível sob um olhar que pode, a qualquer momento, invisibilizá-lo. A passagem desse regime para o regime da imaterialidade similar ao de Romário não é rara, pois muitos dos trabalhadores são tão explorados que acabam por preferir deixar os empregos em busca de outras alternativas.

c)Imobilizada

Luísa tem uma estampa 3. Seu marido é cuidador de cavalos e tem um emprego num haras no interior da Irlanda. Depois de idas e vindas, ele se instalou na mesma cidade onde morava antes de tentar voltar ao Brasil, onde ficou um tempo e depois voltou novamente para Irlanda. Nessas mudanças, o casamento anterior acabou e Luísa veio com ele do Brasil como nova esposa. Como ele tem um contrato de trabalho no haras, tem a estampa 1, num regime similar ao de João. Mas sua esposa não tem um contrato de trabalho e conseguiu tão somente a estampa 3, que lhe permite apenas estar na Irlanda legalmente, sem poder trabalhar ou acessar os serviços de saúde, por exemplo.

Para obter a estampa 3, Luísa teve que confirmar que tinha condições de residir na Irlanda sem renda de emprego próprio, sustentada pelo marido, além de ser obrigada a apresentar os documentos de um seguro-saúde privado, como prova de não precisar acessar o sistema de saúde. Luísa fica em casa cuidando dos dois filhos, pois não pode trabalhar e permanece numa situação liminar que gera angústia e dificuldades financeiras, já que a renda de apenas um salário é pouca para sustentar uma família com duas crianças. Luísa tem plenas condições de trabalhar, mas não quer se expor no mercado sem o visto adequado (muitos fazem isso e trabalham, apesar do visto 3), já que isso também acabaria por colocar em perigo o complemento de renda que conseguiu do Estado por conta dos filhos (child benefit).

A sua situação é de uma quase imaterialidade: ela existe formalmente, mas apenas enquanto uma figura imobilizada por um regime de permanência que a empurra para ficar apenas em casa, praticamente escondida da sociedade irlandesa. Mesmo conseguir a assistência estatal para os filhos foi um problema. A assistente social relutava em conceder o direito ao recebimento da renda para cada filho, pois sua situação legal indicava uma capacidade de sustento. Entretanto, o Estado gera suas próprias ambiguidades legais e as crianças são também filhas do marido de Luísa, que tem a estampa 1 e, portanto, tem direito a acessar esse benefício social. Nesse jogo de diferentes leituras dos diferentes regimes de residência, a tendência é que o direito das crianças prevaleça. Luísa conseguiu receber o complemento que é fundamental para a família conseguir se sustentar.

Mas ela não conseguiu acessar o complemento de renda familiar (working family benefit), já que nesse caso a interpretação dos burocratas do Estado pende para uma leitura mais desfavorável quando ponderam os dois diferentes regimes de permanência, gerando aqui um jogo de sombras que podemos pensar como uma materialidade oscilante: em alguns momentos visível, em outros, invisível, seguindo um registro das diferentes situações legais. E o motivo decisivo para não conseguir acessar esse benefício social foi o fato de não conseguir apresentar o comprovante de pagamento mensal do seguro de saúde privado, que é obrigatório sob a situação legal da estampa 3. Com a renda familiar insuficiente, Luísa não conseguiu pagar o seguro-saúde para ela e os filhos (o marido não é obrigado a pagar, já que tem a estampa 1).

Aqui a situação se transforma num labirinto cruel: ela precisa de renda para completar o orçamento, mas não consegue o benefício por justamente não ter renda para bancar o seguro-saúde. Entre as duas situações de documentação (a dela e de seu marido), seria possível que o benefício de auxílio de renda familiar fosse concedido ao marido que, ao fim e ao cabo, preencheria todas as condições para recebê-lo. Porém, o fato de ter se comprometido a sustentar a mulher no pedido do visto 3 para ela, abre uma brecha para o Estado bloquear a concessão do direito. Aqui fica claro um regime de materialidade oscilante, onde o Estado acha uma alternativa para acolher as famílias dos trabalhadores “descartáveis” sem nenhum compromisso de conceder direitos mínimos, criando uma situação de imobilidade e de invisibilidade seletiva: Luísa às vezes é vista, às vezes não.

d)Libertada

Outras histórias se parecem com a de Nádia. Ela veio como estudante de uma escola de inglês, com a estampa 2, que permite o trabalho temporário de 20 horas semanais. Durante esse tempo trabalhou como babá e garçonete. Nádia tem curso superior em universidade pública brasileira e se especializou na área de TI. Desde o começo tentou empregos na sua área, enquanto estudava mais inglês. Nesses dois primeiros anos morou em vários lugares, pulando de quarto em quarto por conta dos preços e das dificuldades de manter os pagamentos em dia.

No terceiro ano, finalmente, conseguiu uma vaga de emprego na sua área, mas ainda com 20 h e ainda com a estampa 2. Ao longo do ano, conseguiu convencer o empregador a oferecer um contrato de trabalho com base no critério de “habilidades especiais”. Com a oferta de contrato de trabalho, conseguiu passar para a estampa 1, depois de um tempo razoável de espera. Assim, não precisava mais estar vinculada a uma escola de inglês. Mas a situação não era tão confortável: o salário pago na empresa onde trabalhava era muito menor que o dos colegas com a mesma função. Ao mesmo tempo, era cobrada em dobro para trabalhar mais que esses mesmos colegas. Sob o regime da estampa 1, entretanto, caía na mesma situação de dependência que João.

Durante dois anos trabalhou com um salário ridiculamente menor que o de seus colegas e sempre ouvindo do empregador que ela lhe devia o direito de ficar na Irlanda e, portanto, deveria ser grata. A única saída seria encontrar outra empresa que lhe oferecesse o mesmo contrato de trabalho e tentar uma mudança de emprego autorizada pelo ministério da justiça, situação pouco provável de acontecer, mas ainda sim possível. Desde o primeiro ano Nádia iniciou uma relação amorosa com um Irlandês. O casamento era uma possibilidade, mas só virou uma opção concreta quando o empregador lhe disse explicitamente que ela não tinha alternativa, a não ser trabalhar naquelas situações, já que ninguém daria trabalho a uma mulher brasileira em qualquer outra empresa. Acabou cedendo ao companheiro e decidiram casar. Depois de um processo complexo que é o casamento com estrangeiros na Irlanda4 4 O casamento entre irlandeses e estrangeiros é analisado pela polícia irlandesa (Garda) em vista de possíveis fraudes com finalidade de acessar níveis mais estáveis de documentação. O casamento é verificado, os cônjuges são entrevistados e investigados e qualquer dúvida por parte da burocracia pode impedir o casamento de acontecer. , ela conseguiu realizar a cerimônia legal e passou a ter direito à estampa 4, por ser cônjuge de Irlandês. Deu entrada no pedido de estampa 4, junto com o de demissão do emprego. Quando obteve a estampa, saiu em busca de um novo emprego, que encontrou menos de um mês depois: em sua área de especialização, agora sem precisar de um “favor” da empresa, pois o visto 4 lhe permite trabalhar livremente. Depois de um ano, mudou para outro emprego que pagava melhor, também na própria área de experiência, mas agora trabalhando para uma firma europeia, com sede em outro país. Foi contratada como trabalhadora remota na Irlanda.

Se não tivesse casado, que foi a forma legal de acessar a cobiçada estampa 4, teria que se sujeitar ao emprego inicial por 5 anos antes de pleitear a mudança do regime de permanência. Ou seja, teria que conviver com o um salário muito aquém da média, em função da situação de exploração que esse regime de materialidade possibilita ao empregador, o onipotente garantidor da situação de documentação do trabalhador estrangeiro com a estampa 1. Quando acessa o regime de materialidade da estampa 4, ela passa a ser um corpo visível em toda a sua extensão e foge da ambiguidade que os outros regimes geram. Ela permanece visível o tempo todo, e isso mesmo quando tem que renovar a estampa, que é sempre um processo de humilhação que o imigrante passa na Garda (polícia) irlandesa, já que o princípio nessas situações é que o estrangeiro seja encarado como um suspeito. Agora, em todas as renovações, ela leva junto o marido irlandês, para diminuir os constrangimentos e suspeitas.

Materialidades e imaterialidades

Os casos narrados acima são apenas alguns exemplos das trajetórias possíveis e das múltiplas formas de estar na Irlanda por parte dos imigrantes brasileiros. Desde a completa indocumentação até a aquisição da nacionalidade, passando por meandros complexos de materialidade e imaterialidade para o Estado. Trajetórias em geral navegam em ambiguidades produzidas pelas políticas de permanência do Estado irlandês e refletem mais e menos desejabilidade5 5 Sobre a questão da preferência dos Estados por certos tipos de migrantes, ver, entre outros (McDonald, 2009; Robertson, 2014; Simon-Kumar, 2015). em contextos que vão se alterando de forma muito complexa.

Assim, um imigrante indocumentado pode ter documentos, como uma carteira de motorista, por ter um neto legitimamente irlandês que tem, por sua vez, primos nascidos na Irlanda que são também considerados não documentados pelo Estado. Que tipo de sombras complexas um caso como esse lança? Podemos ver uma situação onde documentação e indocumentação se alternam, se combinam em formas mais ou menos aleatórias, e onde os sujeitos sentem as contradições das várias formas que o Estado possibilita ou não a permanência. Esses são regimes de materialidade, que implicam o reconhecimento ou não de imigrantes como sujeitos de direitos e, muitas vezes, como simultaneamente sujeitos e não sujeitos de direito como o caso de Luísa ilustra.

Parece evidente que esse aparecer e desaparecer para o Estado é uma política intencional, uma forma tanto de tolerar imigrantes não tão desejados por um tempo, desde que devidamente domesticados no mercado de trabalho, como de escolher aqueles mais desejáveis, fazendo-os aparecer mais solidamente no meio das múltiplas materialidades. Mas, evidentemente, os projetos e desejos do Estado são também atravessados pelas vicissitudes da vida: relacionamentos amorosos podem impor uma outra forma de materialização dos imigrantes; a existência de crianças nas famílias pode produzir mais materialidade, e mesmo os absolutamente invisíveis podem constituir uma vida estável na penumbra, produzindo parentesco, produzindo novos irlandeses e também novos “ilegais”.

Esses regimes de materialidade são sentidos pelos imigrantes na sua vida cotidiana. Eles produzem impactos e, muitas vezes, duros golpes. O processo de invisibilização produzido pelo regime de materialidade para os que estão em situação de indocumentação pode, ao mesmo tempo, gerar um pagador de impostos e um sujeito sem acesso aos direitos sociais básicos. Romário pode trabalhar como entregador de produtos com sua Van, pagar todos os impostos possíveis, mas não conseguiu renovar sua carteira de motorista quando o prazo de 10 anos de validade se esgotou: o processo de digitalização dos trâmites burocráticos agora exige que um documento que prova a “legalidade” do estrangeiro que quer renovar ou tirar uma carteira. Esse documento tem que ser inserido e como Romário não o tem, não consegue renovar sua carteira.

O processo de invisibilização vai se sofisticando, aumentando a eficiência de sua sombra. Antes, um funcionário poderia fazer vista grossa e entregar a carteira de motorista, mas agora já não é possível: o sistema registra todos os atos e exige o documento para a liberação do documento. Romário tem que dirigir sem a carteira, se amparando no frágil artifício de marcar sucessivas datas de renovação da carteira, para informar a um eventual guarda que está prestes a renová-la. Mas já vem fazendo isso há mais de um ano. Do ponto de vista de Romário, é um mergulho cheio de angústias nas sombras de uma imaterialidade produzida, pois dirigir é justamente seu ganha-pão, aquilo que lhe permite pagar os impostos regularmente.

João se sente um escravo, limitado pelo regime de materialidade que seu visto impõe: não pode reclamar, não pode clamar por seus direitos, não pode falar muito alto. Ele precisa se manter nas sombras: embora seu regime lhe permita uma certa materialidade, ele não pode efetivamente ser muito visível, precisa construir uma invisibilidade que lhe permita atravessar esse período de provação colocado pelo Estado irlandês. Uma independência e uma possibilidade de ganhar a cidadania está lá no fim dessa jornada de opressão a que se sujeita cotidianamente para trabalhar e sustentar sua família. Esse regime gera medo, gera vulnerabilidade e gera tristeza.

Luísa e Nádia vivem regimes diferentes, a primeira sente-se aprisionada pelo Estado, tornada invisível mesmo tendo direito à estadia na Irlanda: ela tem que ficar em casa, não pode trabalhar, não pode contribuir com o orçamento familiar. Mas ela luta para ser mais visível, mais material, quando tenta obter direitos que seriam garantidos pelos regimes de permanência que ela e seu marido acessam. É essa luta mesma que torna evidente as ambiguidades e contradições desse regime, as ambiguidades entre a materialidade da preocupação com as crianças e a vontade do Estado de não gastar com imigrantes vistos como dispensáveis e não tão desejáveis. A sensação de estar aprisionada pelas regras a que está sujeita também gera angústia, preocupação e sofrimento.

Nádia atravessou diferentes regimes de materialidade: três tipos diferentes de estampa em sua trajetória. O seu caminho seguiu num sentido de gradual materialidade para o Estado irlandês que, entretanto, só atingiu a concretude da estampa 4 com o casamento com um nacional: só o parentesco permitiu o processo de tornar-se visível, o que permite também a sua mobilidade de emprego e de moradia. Os demais regimes de materialidade sempre tendem a imobilizar o imigrante, mas Nádia pode ultrapassar essa barreira com o casamento. De outra forma, teria que conviver com a mesma situação de João por mais 3 anos até atingir a materialidade mais estável da estampa 4. Mas esse caminho entre os regimes de materialidade foi percorrido com incerteza, sofrimento e com as mesmas angústias dos brasileiros das demais histórias aqui contadas. Chegar à visibilidade foi um caminhar cheio de dificuldades, preconceito e exploração.

Considerações finais

Vimos aqui alguns efeitos daquilo que chamei de “regimes de materialidade” nas políticas migratórias. Focando o caso dos brasileiros na Irlanda, identifiquei diferentes regimes de materialidade atrelados aos diferentes tipos de vistos acessíveis aos imigrantes e também o regime de imaterialidade daqueles em situação de indocumetação. O que espero ter demonstrado é que cada um desses regimes estabelece um jogo próprio de sombras e luzes, no qual o imigrante torna-se mais ou menos visível para o Estado, mais ou menos sujeito de direitos, mais ou menos “material”, nessa metáfora que nos ajuda a pensar o efeito prático das políticas migratórias.

O diferente regime dos vistos implica diferentes percepções sobre os imigrantes, desde o menos desejáveis até os mais desejáveis: no caso irlandês com uma clara intenção de dificultar aqueles que têm o visto 1 (trabalhadores menos qualificados em geral). O visto de estudante, a estampa 2, aparece como um lugar especialmente ambíguo, pois serve como um teste de adaptação à sociedade irlandesa: do visto 2, os imigrantes podem seguir para um processo de mais materialidade ou cair na imaterialidade da não documentação. Como um regime ambíguo, carrega muitas contradições, pois permite o trabalho, mas só por um tempo, permite o acesso a serviços, mas não aos complementos de renda. Ele projeta luzes que dão materialidade, por outro lado também projeta sombras que podem levar o imigrante para a condição de indocumentação.

Nesse cenário, vimos que ainda assim, há evidências abundantes da presença do imigrante não documentado que são ignoradas pelo Estado, confortável em conviver com um conjunto de trabalhadores ultra-exploráveis. Mas mesmo esses “invisíveis” emitem suas próprias sombras e provas de materialidade: atualmente o Estado promove uma anistia para imigrantes não documentados, tão significativo se tornou o seu número no país, ao ponto de instituições e atores que defendem os direitos humanos terem cobrado por anos a realização de uma legalização extraordinária.

Olhar para as leis de migração como regimes de materialidade e imaterialidade permite entender as perspectivas políticas, sociais e culturais que estruturam as normas e afetam a vida dos imigrantes. Permite também entender as complexas situações que muitos encontram quando confrontados com a burocracia e com situações ordinárias da vida cotidiana: tirar uma carteira de motorista, conseguir o direito a mudar de emprego, acessar o sistema de saúde, matricular os filhos numa escola etc. Essas situações se apresentam de diferentes maneiras, a depender de qual regime de materialidade se impõe a cada um dos imigrantes. Nesse caso podemos ver as leis que regem a imigração como um mecanismo de multiplicação de regimes, alguns apontando para uma concretude acentuada da naturalização e outros praticamente empurrando os imigrantes para a indocumentação.

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  • VALE DE ALMEIDA, Miguel. O manifesto do corpo. Revista Manifesto, v. 5, p. 17-35, 2004.
  • 1
    Deve-se considerar, entretanto, que muitos brasileiros são portadores de passaportes de outros países europeus, especialmente a Itália.
  • 2
    Um Censo Demográfico geral foi conduzido em 2022, mas escrevo esse texto antes da divulgação desses resultados definitivos. Apenas uma divulgação preliminar de dados foi realizada, sem referência às populações imigrantes (CSO, 2022______. Census of population 2022 - Preliminary results. 2022. Disponível em Disponível em https://www.cso.ie/en/csolatestnews/presspages/2022/censusofpopulation2022-preliminaryresults/ . Acesso em: 02.02.2023.
    https://www.cso.ie/en/csolatestnews/pres...
    ).
  • 3
    Sobre as políticas sociais do Estado irlandês, ver (McCashin, 2019McCASHIN, Anthony. Continuity and change in the welfare state: Social security in the Republic of Ireland. Cham: Palgrave Macmillan, 2019. ).
  • 4
    O casamento entre irlandeses e estrangeiros é analisado pela polícia irlandesa (Garda) em vista de possíveis fraudes com finalidade de acessar níveis mais estáveis de documentação. O casamento é verificado, os cônjuges são entrevistados e investigados e qualquer dúvida por parte da burocracia pode impedir o casamento de acontecer.
  • 5
    Sobre a questão da preferência dos Estados por certos tipos de migrantes, ver, entre outros (McDonald, 2009McDONALD, Jean. Migrant illegality, nation-building, and the politics of regularization in Canada. Refuge, v. 26, p. 65, 2009.; Robertson, 2014ROBERTSON, Shanthi. Time and temporary migration: The case of temporary graduate workers and working holiday makers in Australia. Journal of Ethnic and Migration Studies, v. 40, n. 12, p. 1915-1933, 2014.; Simon-Kumar, 2015SIMON-KUMAR, Rachel. Neoliberalism and the new race politics of migration policy: Changing profiles of the desirable migrant in New Zealand. Journal of Ethnic and Migration Studies, v. 41, n. 7, p. 1172-1191, 2015.).

Editores de seção

Roberto Marinucci, Barbara Marciano Marques

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    24 Out 2022
  • Aceito
    01 Fev 2023
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