Acessibilidade / Reportar erro

SENSORIALIDADE PARA CRIANÇAS: O PALADAR NA EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR

SENSORIALITY FOR CHILDREN: THE TASTE IN SCHOOL PHYSICAL EDUCATION

RESUMO

Este artigo apresenta os resultados de um Programa de Jogos Sensoriais (ProJsei), voltado para a percepção gustativa, pertencente à Pedagogia da Corporeidade (PC), com crianças de quatro e cinco anos da rede pública de ensino de João Pessoa-PB. O ProJsei foi ministrado em 20 aulas de educação física infantil, durante dois meses, utilizando-se os jogos da cultura infantil como espaço de experimentações com alimentos de sabores básicos (doce, salgado, azedo e amargo). Numa pesquisa participante, o ProJsei foi implementado, segundo a Estruturação da Aula-laboratório da PC, e desenvolveu-se em três fases: inicial, com avaliação; intermediária, com intervenção educativa, e final, com avaliação comparativa dos resultados obtidos. O ProJsei, além de articular a Educação Física com a Nutrição na escola, incentiva as crianças a degustarem alimentos diferentes, para que possam lidar com as escolhas alimentares.

Palavras-chave:
Percepção; Jogo; Corporeidade; Educação física; Infância

ABSTRACT

This article presents the results of a Program of Sensory Games (ProJsei), focused on taste perception, which belongs to the Pedagogy of Corporeity (PC) in children aged between four and five years of public schools in João Pessoa-PB. The ProJsei was teach in 20 classes of children's physical education for two months, using the games of children's culture as trials space with basic flavors of food (sweet, salty, sour and bitter). During the participant research, ProJsei held according to the Class-Laboratory structuring of PC and developed it in three phases: initial, with evaluation; intermediate, with educational intervention and end with assessment, comparing the obtained results. ProJsei not only articulates physics and nutrition education at the school, but also encourages children to taste different foods, thus providing incentives to better cooperate with the food choices.

Keywords:
Perception; Game; Corporeity; Physical education; Childhood

INTRODUÇÃO

É por meio dos sentidos que temos a percepção do ambiente. Os sentidos são a possibilidade de estendermos nosso corpo na assimilação do mundo. Assim como os animais, os seres humanos precisam monitorar e interagir com o conteúdo químico de seu ambiente. Para isso, precisam compreender os sentidos como um atributo vital para a sobrevivência (SCHIFFMAN, 2005SCHIFFMAN, H. R. Sensação e percepção. Rio de Janeiro: LTC, 2005.)

Partimos da Teoria Ecológica da Percepção, proposta por Gibson (1986GIBSON, J. J. The ecological approach to visual perception. New Jersey: Lawrence Earlbaum Associates, 1986.) que, numa concepção sistêmica biocêntrica, afirma a relação inseparável entre o agente e o ambiente. Concebe o observador como parte integrante do universo em que vive, portanto, é ativo no processo de percepção do mundo (GIBSON, 1966GIBSON, J. J. The senses considered as perceptual systems. Boston: Houghton Mifflin, 1966., 1986GIBSON, J. J. The useful dimensions of sensitivity.American Psychologist,Washington, DC,v.18, no.1, p.1-15, dez. 1962. ). As primeiras e últimas impressões do indivíduo sobre o ambiente são dadas por seus sentidos. E quanto mais experiências vivenciar, maior será a aquisição de informações provenientes do meio pela percepção. O autor conclui que "a criança tem de aprender a perceber". Ela já faz isso ao explorar o meio "com olhos, mãos, boca e todos os seus órgãos, ampliando e aprimorando suas dimensões da sensibilidade" (GIBSON, 1962GIBSON, J. J. The useful dimensions of sensitivity.American Psychologist,Washington, DC,v.18, no.1, p.1-15, dez. 1962. , p.15). Seu movimentar-se, explorando o espaço, é que lhe possibilita situar-se em relação ao meio em que vive. Ao conciliar tato e visão, por exemplo, a experiência da criança ganha um novo significado, pois a percepção visual faz o indivíduo assimilar com mais exatidão a dimensão do espaço, superfícies, inclinações, assim como a noção real de sua presença no entorno ao se deslocar no espaço (GIBSON, 1986GIBSON, J. J. The ecological approach to visual perception. New Jersey: Lawrence Earlbaum Associates, 1986.).

Nesta pesquisa, restringimo-nos à percepção gustativa ou, especificamente, ao paladar, que é o sentido responsável pela detecção de qualquer substância química que entra na boca. Do ponto de vista fisiológico, os órgãos sensoriais estão sempre vinculados ao tecido epitelial, e o paladar ocorre através do contato de uma substância com a pele da língua (BOLSANELLO, 2005BOLSANELLO, D. Educação somática: o corpo enquanto experiência. Motriz, Rio Claro, v.11, n.2, p.89-96, maio/ago. 2005.). É nessa pele em que se encontram os botões gustativos que estão localizados na boca e cuja função é de fornecer as sensações gustativas da região da língua para o sistema nervoso central. Porém, os botões gustativos não se limitam à língua, porque também se encontram no palato, na epiglote e nas membranas que recobrem a garganta (DÉBROUILLARDS, 2005DÉBROUILLARDS, A. F. P. O olfato e o paladar: experimentos fáceis e divertidos. São Paulo: Edições SM, 2005.).

Falam-nos Costa, Santana e Almeida (2010COSTA, M. M. B.; SANTANA, E.; ALMEIDA, J. Oral taste recognition in health volunteers.Arquivos de Gastroenterologia, São Paulo, v.47, no. 2, p. 152-158, abr./jun. 2010. ) que salgado, doce, azedo e amargo são considerados os quatro sabores básicos ou primários, porém existem outros, como o metálico, o adstringente e um gosto de glutamato monossódico chamado de "umami". Porém, nesta pesquisa, adotamos os sabores ou gostos básicos por entender que esses são os determinantes das escolhas alimentares (VON ATZINGEN; PINTO E SILVA, 2010VON ATZINGEN, M. C. B. C.; PINTO E SILVA, M. E. M. Características sensoriais dos alimentos como determinante das escolhas alimentares. Nutrire: Revista da Sociedade Brasileira de Alimentação, São Paulo, v. 35, n. 3, p. 183-196, dez. 2010.).

De acordo com Moura (2007MOURA, S. L. Determinants of food rejection amongst school children. Appetite, San Diego,v. 49, no. 3, p. 716-719, 2007.), existe uma necessidade de informação que oriente o desenvolvimento e a implementação de iniciativas escolares que influenciem efetivamente o consumo alimentar das crianças.O'Connor (2011)O'CONNOR, Á. Promoting healthy eating and an active lifestyle in schoolchildren. Nursing standard, Harrow,v. 5, no. 48, p. 48-56, 2011. afirma que os hábitos alimentares que ajudam a reduzir o risco de doença crônica em adultos são mais bem estabelecidos na infância. Dessa forma, a intervenção na promoção de hábitos alimentares saudáveis deve ser enfatizada durante a infância para que eles permaneçam ao longo da vida.

Uma alimentação saudável precisa ser introduzida de forma gradual e mantida na idade escolar, priorizando a formação de hábitos alimentares adequados com estratégias de educação nutricional (BERTIN et. al., 2010BERTIN, R. L. et al. Estado nutricional, hábitos alimentares e conhecimentos de nutrição em escolares. Revista Paulista de Pediatria, São Paulo,v.28, n.3, p. 303-308, 2010. ), porque a promoção de práticas alimentares saudáveis apresenta-se como relevante questão de saúde global, que é uma preocupação de instituições governamentais e profissionais da área de saúde, assim como de indivíduos que sofrem com os efeitos dos hábitos alimentares inadequados (LARA; PAIVA, 2012PAIVA, J. B.; FREITAS, M. C. S.; SANTOS, L. A. S. Hábitos alimentares regionais no Programa Nacional de Alimentação Escolar: um estudo qualitativo em um município do sertão da Bahia, Brasil. Revista de Nutrição, Campinas, SP, v.25, n.2, p.191-202, mar./abr. 2012.; KNUTH; LOCH, 2014KNUTH, A.; LOCH, M. R. "Saúde é o que interessa, o resto não tem pressa?":um ensaio sobre educação física e saúde na escola., Revista Brasileira de Atividade Física e Saúde Pelotas, v.19, n. 4, p. 429-440, jul. 2014. ).

A escola é um ambiente propício para obter conhecimento em relação às opções de alimentação saudável, especialmente nas aulas de educação física, por ser um espaço de estimulação dos sentidos. Freire (2009FREIRE, J. B. Por uma educação de corpo inteiro. In: HERMIDA, J. F. (Org.). Educação física: conhecimento e saber escolar. João Pessoa: Ed. da UFPB, 2009. p. 157-180.) afirma que, como o conteúdo de aprendizagem da aula de educação física é o jogo, o brinquedo ou a brincadeira, ela proporciona uma liberdade de movimentos numa atmosfera de diversão. Assim, de acordo com a Pedagogia da Corporeidade (PC) (GOMES-DA-SILVA, 2014GOMES-DA-SILVA, P. N. Pedagogia da corporeidade: o decifrar e o subjetivar na educação. Tempos e espaços em educação,Aracaju,v.13,p. 15-39, maio/ago. 2014.), o conteúdo da educação física compreende situações de movimento, especialmente o jogo, que se manifesta por meio de diferentes esportes, lutas, danças, ginástica, brinquedos/brincadeiras, exercícios terapêuticos e outros, além de conciliar os objetivos educacionais com os da saúde, numa perspectiva mais integrativa, portanto, menos patogênica de enfoque biológico individualista. O jogo, para a PC, é eleito como um espaço de excelência para a experimentação nas aulas de educação física, que inclui determinadas temáticas importantes para a vida dos sujeitos, como no caso desta pesquisa, que é a educação sensorial. É uma sistematização de conteúdos que, ministrados ao longo do processo de ensino-aprendizagem, produzirá um impacto duradouro no estilo de vida do aluno, ajudando-o na maneira de lidar com as escolhas alimentares (GUINDULAIN; ZUBIRI; IRIGOYEN, 2012GUINDULAIN, M. C.; ZUBIRI, S. B.; IRIGOYEN, M. O. Obesidad infantil: cómo cambiar hábitos. Formación Médica Continuada en Atención Primaria, Barcelona,v.19, n. 3, p. 129-136, 2012.).

Segundo Guindulain, Zuribi e Irigoyen (2012GUINDULAIN, M. C.; ZUBIRI, S. B.; IRIGOYEN, M. O. Obesidad infantil: cómo cambiar hábitos. Formación Médica Continuada en Atención Primaria, Barcelona,v.19, n. 3, p. 129-136, 2012.), o período pré-escolar é uma etapa em que acontecem as interações primordiais com o meio, chave do desenvolvimento das preferências e dos hábitos alimentares, portanto, de grande importância para o futuro nutricional. Assim, resolvemos nortear nossa pesquisa pela seguinte questão-problema: Como implementar um Programa de Jogos Sensoriais (ProJsei) para a educação física escolar na infância, que propicie uma ampliação da percepção gustativa e possibilite melhores escolhas alimentares?

Selecionamos o sentido do paladar, dentro do ProJsei, desenvolvido pela Pedagogia da Corporeidade (GOMES-DA-SILVA, 2011GOMES-DA-SILVA, P. N. O jogo da cultura e a cultura do jogo: por uma semiótica da corporeidade. João Pessoa: Ed. da UFPB, 2011.), no Laboratório de Estudos e Pesquisas em Corporeidade, Cultura e Educação - LEPEC/CCS/UFPB. A Pedagogia da Corporeidade é uma teoria ecológica da ação de ensinar e de aprender situações de movimento, especialmente a conduta do jogar, como pivô do desenvolvimento do ser brincante (GOMES-DA-SILVA, 2014GOMES-DA-SILVA, P. N. Pedagogia da corporeidade: o decifrar e o subjetivar na educação. Tempos e espaços em educação,Aracaju,v.13,p. 15-39, maio/ago. 2014.). A PC compreende que a educação sensorial faz parte dos conteúdos da educação física escolar, por isso tem produzido pesquisas de intervenção nesse âmbito (GONÇALVES; GOMES-DA-SILVA, 2008GONÇALVES, D. M. O.; GOMES-DA-SILVA, P. N. Práticas de educação sensorial para crianças. In: ENCONTRO DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA DA UFPB,16., 2008, João Pessoa. Anais...João Pessoa: Universidade Federal da Paraíba, 2008.). Dentre os outros programas de jogos sensoriais (audição, visão, tato, olfato) da PC, escolhemos para esta pesquisa a percepção gustativa, para ser tratada nas aulas de educação física infantil, com o fim de ampliar a capacidade gustativa das crianças para não se fixarem em alimentos de uma ou outra classe de sabor. Assim, suspeitamos de que, com a disponibilidade de experiências, as crianças podem adquirir preferências alimentares mais saudáveis.

A meta desta pesquisa foi, portanto, implementar jogos que estimulassem a percepção gustativa das crianças e analisar suas repercussões em termos de aguçar a palatabilidade e, consequentemente, possibilitar que, futuramente, haja mais chances de mudar os hábitos alimentares dos estudantes.

MÉTODO

Trata-se de uma pesquisa de natureza descritiva, de abordagem qualitativa, do tipo pesquisa participante. As aulas aconteceram no ano de 2011, em um dos Centros de Referência da Educação Infantil da Prefeitura Municipal de João Pessoa-PB, denominado CREI El-Shadday, com 40 crianças distribuídas em duas turmas Pré I (quatro anos) e Pré II (cinco anos). Os alunos eram provenientes de famílias de baixa renda, moradores do Bairro residencial de Jaguaribe.

O projeto foi apresentado à direção da escola, a todo o seu corpo pedagógico e aos pais, que estavam cientes das atividades desenvolvidas na pesquisa e autorizaram a participação de seus filhos através do preenchimento do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Esse projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa do Hospital Universitário Lauro Wanderley, da Universidade Federal da Paraíba (Protocolo n° 552/10). Em seguida, o ProJsei passou a fazer parte do cotidiano da escola, com a presença em sala do pesquisador-professor, que, inicialmente, fez isso para se adaptar ao grupo de alunos (Pré I e Pré II). Depois, assumiu os horários das aulas de educação física durante dois meses.

O ProJsei-Paladar incluiu a avaliação inicial da capacidade gustativa de cada criança; em seguida, o programa foi organizado em unidades de aulas, denominado de "aulas saborosas", na primeira, fase para distinguir os sabores, diferenciando-os em quatro classes: doce do salgado; amargo do azedo; doce do azedo e amargo do salgado. Na segunda fase, os jogos organizaram-se para diferenciar as intensidades dos sabores, identificando em cada um dos sabores o mais dos menos intensos.

No que diz respeito à estrutura, a pesquisa foi dividida em três fases. Na primeira, foram aplicadas três aulas em cada turma, a fim de avaliar a capacidade sensorial gustativa, por meio de observações naturalistas da realização das atividades. Na segunda fase, foram ministradas quatro aulas para cada turma, denominadas de "aulas saborosas". Em cada uma delas, desenvolvemos um sabor (doce, salgado, azedo, amargo), com dois momentos: um, para distinguir os sabores, e outro, para avaliar a intensidade do sabor. Na última fase, foram aplicadas três aulas, a fim de reavaliar a capacidade sensorial gustativa e comparar os resultados obtidos. No total, foram 20 aulas ministradas, 10 para cada turma, três vezes por semana, durante dois meses, cada aula com 50 minutos de duração. O modo de intervenção seguiu a Estruturação Aula-laboratório da PC, que reconhece a aprendizagem como três modos de se envolver com o conhecimento de si e do mundo, denominados de "Sentir, Agir e Refletir" (FIGUEIREDO JÚNIOR; GOMES-DA-SILVA, 2011GOMES-DA-SILVA, P. N. O jogo da cultura e a cultura do jogo: por uma semiótica da corporeidade. João Pessoa: Ed. da UFPB, 2011.). Esses modos são distribuídos num contínuo espiralado, não como etapas de uma linearidade, mas como progressões inclusivas e móveis que se mantêm girando num plano de curvas abertas a partir do seu centro - o conhecimento e o autoconhecimento.

O Sentir era o momento de sensibilização da aula, em que os alunos eram convidados a ouvir e a dançar uma cantiga de roda relacionada ao tema da aula, que sempre proporcionou uma experiência de interação na turma e o seu envolvimento com a movimentação, o canto e a alegria.

O Agir era o momento em que o professor, em um círculo com os alunos, criava a situação problema, da qual eram desencadeadas as atividades programadas. Em cada aula era tomado um sabor específico e tematizados jogos da cultura infantil, por exemplo, pega-pega, amarelinha, nunca três.

O Refletir era o momento em que os alunos eram levados a verbalizar a experiência vivida na aula, em termos de preferência alimentar com o referido sabor. Para isso, o professor relembrava os alimentos experimentados e fazia-lhes perguntas sobre os alimentos mais frequentes do cotidiano deles.

Nessa Aula-laboratório da PC realiza-se tanto a condução da aula quanto o procedimento de coleta da pesquisa. Durante os jogos, que eram adaptados para a degustação de alimentos, perguntávamos às crianças: Esses alimentos são doces, amargos, azedos ou salgados?Quem tem o sabor mais forte? Em uma planilha, assinalava todas as respostas das crianças, tanto em relação à capacidade de distinguir a que classe de sabor básico pertencia aquele alimento, quanto à capacidade de discriminar a intensidade do sabor.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

ProJsei-Paladar: fase reconhecimento

Com giz, foi desenhada no chão uma pista de amarelinha com nove quadrados, cada um media 30x30cm. A situação-problema era definida pelo jogar de um grande dado, que definia o número de saltos que a criança deveria dar na amarelinha. Se acertasse, poderia rolar o dado para o colega seguinte e provar dois alimentos. Então, o aluno saltitava os quadrados, tomava o dado e, antes de repassar ao colega, o professor-pesquisador entregava-lhe dois copos com alimentos diferentes, porém pertencentes à mesma classe de sensação de sabor e com intensidades diferentes, um com mais agente flavorizante do que o outro para intensificar o sabor. O aluno experimentava um alimento e, em seguida, o outro. Então, o professor gerava a primeira pergunta, que era feita individualmente:Esses alimentos são doces, amargos, azedos ou salgados?Logo após a resposta, fazia a segunda pergunta: Qual deles tem o sabor mais forte?

Depois de responder, o aluno bebia um pouco de água para retirar os resíduos dos alimentos e voltava ao "lugar de plateia", de onde observava os colegas em ação e torcia por eles. Desse modo, era feita a avaliação, uma por vez, descriminando a classe e a intensidade dos sabores. Só quando o aluno retomava a ação é que provava os alimentos de outra classe de sabor, sempre muito alegre por se sentir desafiado a acertar os saltos e os alimentos. É importante ressaltar que todos os alunos beberam água, depois de cada classe de sabor, para enxaguar a boca entre as amostras.

Utilizando o princípio dos alimentos naturais conhecidos e disponíveis na região, para avaliar o sabor doce, foi utilizado um suco de manga muito adocicado e um suco de uva pouco adocicado. Para avaliar o sabor azedo, o aluno experimentava um suco de limão e um suco de laranja; para o amargo, servimos um chá de marcela, muito amargo e um café sem açúcar; para analisar o sabor salgado, utilizamos uma carne de charque muito salgada e uma carne de sol pouco salgada. Escolhemos esses alimentos pelo fato de serem os mais familiares no dia a dia das crianças, para evitar que estranhassem e por serem significativos do ponto de vista sociocultural. Esses alimentos foram selecionados a partir da consulta sobre preferência alimentar entre alunos, professores, pais e cozinheiras da escola, por meio da recordatório do dia anterior.

As três aulas dessa fase de avaliação foram realizadas utilizando-se três diferentes jogos de amarelinha com desenhos tradicionais, em "x" e em "caracol", seguindo variações dos modos de fazer o percurso.

ProJsei-Paladar: fase intervenção

Nessa fase, o ensino esteve voltado para diferenciar os sabores. Por meio de jogos da cultura infantil ou jogos tradicionais, foi utilizado um sabor por aula em cada turma. No jogo, as situações-problemas eram criadas no momento de degustar os alimentos, em que era necessário distinguir a que classe de sabor básico pertenciam os referidos alimentos (doce, amargo, salgado e azedo), e discriminar as diferentes intensidades do sabor experimentado. Assim, seguindo a estrutura da Aula-laboratório da PC, as aulas saborosas ficaram assim distribuídas:

"Aula Doce"

No Sentir, as aulas começavam com uma música infantil cantada por todos os alunos, em círculo, e todas as crianças se envolviam na dança, com muita alegria e diversão. Em seguida, ainda em círculo, sentavam no chão, e o professor fazia considerações sobre o sabor doce e perguntava coletivamente: Vocês já provaram algum alimento doce? Quem pode citar um? Os alimentos doces são saborosos? Depois, citava alguns exemplos de alimentos do cotidiano que são doces, por exemplo: bombons e chocolates. Só depois desse momento começavam as experiências gustativas propriamente ditas.

O professor apresentava aos alunos uma pequena quantidade de açúcar branco industrializado, em pequenos copos, para que as crianças degustassem em seu estado puro, e informava sua associação à produção do sabor doce nos alimentos. Após a ingestão, o professor perguntava sobre o que sentiram ao experimentar o açúcar (sabor bom ou ruim?) e em que alimentos eles encontravam esse sabor? A partir das respostas dadas, era explicitado as qualidades e os prejuízos causados pelos alimentos doces.

No Agir, com os alunos ainda sentados em círculo, o professor apresentava-lhes um suco de manga e um suco de uva, ambos com açúcar, porém o suco de manga com um teor de açúcar maior do que o de uva. O professor pedia que as crianças provassem um dos sucos, o mesmo para todas. Elas degustavam, tomavam um pouco de água e experimentavam o outro suco. Depois de todos provarem os sucos e beberem água, era lhes perguntado coletivamente: Que sabor é esse? Dos dois sucos, qual é o mais doce? Então, registradas as respostas, esclarecia qual o suco que tinha o sabor doce mais intenso e observava se as crianças percebiam essa diferença ao provar os sucos.

Depois de experimentar os sucos de uva ou de manga e distinguir o que tivesse o sabor mais intenso e o menos intenso, o professor propôs o jogo de boliche: um aluno, de cada vez, jogava uma bola para derrubar pinos dispostos em pé, um ao lado do outro, com cores distintas, sendo que uns maiores, outros menores. Isto é, havia pinos cor de vinho (representando a uva) e pinos amarelos (que representavam o suco de manga). Os maiores representavam o sabor mais forte, e os menores, o mais fraco. Para cada cor havia pinos maiores e menores. Depois de discriminar o sabor e a intensidade dos sucos, o aluno tomava uma bola, deslocava-se na pista do boliche e a arremessava, com o objetivo de acertar a cor e o tamanho do pino que correspondesse ao suco recém-degustado. Essa atividade exigia dos alunos que soubessem discriminar os alimentos, a cor do pino e a habilidade motora para derrubar o pino correto. O professor retomava o círculo e dava aos alunos mais dois alimentos doces - um pedaço de doce de goiaba e um biscoito doce sem recheio - para que experimentassem e percebessem as diferenças de intensidade entre eles. Apesar de esses serem alimentos diferentes, o sabor do doce de goiaba é mais intenso do que o do biscoito. O professor repetiu o mesmo procedimento que foi realizado com os sucos - as crianças experimentaram o doce, beberam a água e provaram o biscoito.

No Refletir, fim da aula, o professor relembrava os alimentos que foram experimentados com maior e menor intensidade e finalizava cantando e dançando com as crianças a mesma música infantil do início.

Os doces, na aula, sempre foram sinal de alvoroço, de inquietude e, por conseguinte, desatenção. Antes de provar os alimentos, as crianças estavam inquietas e ansiosas para provar as guloseimas. Ao provar os alimentos doces, elas expressavam satisfação e bem-estar, porque o doce, devido às suas características, provocam inquietação e desejo por comer mais.

Muitas frutas doces perdem um pouco do sabor quando são experimentadas na forma de suco. Isso acontece porque o sabor de uma substância pode se alterar de acordo com sua concentração - ser mais ou menos forte. Por isso, não usamos a própria fruta, pois poderia haver uma confusão quanto à palatabilidade do sabor. Além da concentração, outro fator que afeta a gustação é a natureza química do estímulo. Por exemplo: quem experimenta uma laranja em seu estado natural poderá dizer que ela tem um gosto azedo e um pouco doce ou vice-versa. Porém quem a experimenta em forma de suco dirá que predomina o sabor azedo e um pouco amargo, jamais doce. Isso ocorre porque a concentração se altera ao se degustar uma fruta no estado natural ou transformada em suco. A percepção do sabor das substâncias químicas na boca fica condicionada à presença de moléculas hidrossolúveis. Por isso, as substâncias oleosas e sólidas são estímulos geralmente fracos para o paladar (SCHIFFMAN, 2005SCHIFFMAN, H. R. Sensação e percepção. Rio de Janeiro: LTC, 2005.).

"Aula Salgada"

Na mesma estrutura de aula, os alunos provavam o sal puro distribuído em pequenas quantidades em copos. Enquanto isso, o professor os informava sobre as qualidades do sal, o fácil acesso a ele e os prejuízos que podem causar à saúde. O material empregado experimentalmente foi o sal comum de mesa - o cloreto de sódio - mesmo esclarecendo que esse produto é apenas um de uma grande categoria de sais. Em seguida, o professor apresentou dois tipos de carne assada: carne de sol e carne de charque, em copos distintos, um maior e o outro menor. Em cada um, havia um pedaço de carne, sendo que a carne de charque estava bem mais salgada do que a de sol. Depois que todos provavam as duas carnes, no intervalo de beber água, o professor lhes perguntava: qual era a carne mais salgada?

Dadas as explicações, foi desenvolvido o jogo do pega-pega. A turma foi dividida em duas equipes: a "Equipe Charque" e a "Equipe Sol". Ambas as equipes tinham como tarefa proteger sua mercadoria (carne) dos adversários. Para cada equipe, havia uma mesa onde ficavam os recipientes com as carnes, a qual se localizava dentro de um grande círculo. Cada equipe guardava recipientes que continham carne de charque e carne de sol. Em cada recipiente, havia sempre dois pedaços de carne, um mais salgado do que o outro. O objetivo era de que a equipe alcançasse a mesa entrando no círculo da equipe adversária, provasse a carne, e depois de experimentá-la, identificasse a que correspondesse a sua equipe e levasse para sua mesa sem ser pega.

A regra era: aquele que fosse tocado, antes ou depois de entrar no círculo, seria transformado em estátua e só sairia dessa condição se outro colega o tocasse. Cada participante só podia tomar um recipiente por vez, provar, identificar e levar para sua mesa. Vencia a equipe que mais roubasse recipientes com carnes da outra equipe. O jogo do pega-pega fez com que a aprendizagem gustativa fizesse sentido nas ações motoras da criança no jogo, pois, além de defender seu alimento, deveriam acertar a classe e a intensidade dos sabores a fim de adquirir pontos para sua equipe.

Estávamos conscientes dos fatores que alteram não só a intensidade do sabor, mas também o próprio gosto, dependendo da concentração que está sendo degustada, por exemplo, o cloreto de lítio tem sabor doce em concentrações baixas, mas passa para azedo e salgado à medida que a concentração aumenta (SCHIFFMAN, 2005SCHIFFMAN, H. R. Sensação e percepção. Rio de Janeiro: LTC, 2005.). Também em relação à temperatura, tanto o frio quanto o calor podem alterar a percepção de sabores, pois, no calor, as papilas gustativas se dilatam, e isso aumenta a sensibilidade, e no frio, os sensores de gosto da língua são adormecidos (DÉBROUILLIARDS, 2005). Assim, para evitar possíveis interpretações equivocadas sobre o sabor dos alimentos, cuidamos para que todos os alimentos salgados experimentados estivessem na mesma temperatura, portanto, na temperatura ambiente.

As reações ao salgado foram semelhantes às do doce - as crianças mostraram-se inquietas por comer os alimentos salgados. Além do estímulo do pega-pega e das carnes, os alunos não desejavam o fim da aula, estavam muito estimulados a participar das experiências.

"Aula Azeda"

Seguindo a mesma estrutura de aula, no momento da sensibilização, ao explorar o sabor azedo, nas frutas em que era encontrado, perguntamos às crianças se conheciam o sabor das frutas: limão, laranja e acerola. Em seguida, se essas frutas ou seus sucos eram saborosos ou não. Depois, distribuímos para cada aluno dois copos de suco, um de limão e outro de laranja, ambos em seu estado natural, sem acréscimo de outras substâncias. Os alunos provaram, e o professor explicou que se tratava do sabor azedo e perguntou-lhes qual era o sabor mais forte. Na sequência, entregou um copo às crianças, que continha uma acerola em seu estado original. Elas provaram, e o professor perguntou se identificavam o sabor azedo.

Foi proposto o jogo de amarelinha. Com o auxílio dos alunos, o professor desenhou uma grande amarelinha, do tipo tradicional, com quadrados enfileirados num único sentido. Cada quadrado continha a imagem de limão, laranja ou acerola. Cada aluno, um de cada vez, jogava um dado que continha o número de casas no qual ele deveria saltitar, porém, cada vez em que ele pisava nas figuras, as crianças falavam em voz alta o nome da fruta que pisou e se errasse diziam: "Volte para o início". Assim o aluno saltava o número de casas sorteadas pelo dado e, ao parar na casa que fora sorteada, provava a fruta corresponde ao quadrado e tomava dois sucos para distinguir seu sabor e sua intensidade. Assim, os alunos degustaram os sucos de limão, laranja e acerola em seu estado natural.

Essa foi a aula mais colorida do ProJsei-Paladar, devido à aparência dos alimentos na pista da amarelinha. Percebemos que, quanto mais forte o colorido, maior era a curiosidade das crianças em distinguir e apreciar os alimentos. Isso se justifica porque as cores "convocam a imaginação, a intuição, as emoções, a capacidade de conjecturar, de comparar, na busca da perfilização do objeto ou do achado", confirma Freire (1997FREIRE, P.Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. , p.98).

É importante destacar que a maioria dos alunos conseguiu identificar as frutas de sabor azedo. Eles reagiram imediatamente à experimentação dos alimentos. Com efeito, o sabor azedo foi o que mais provocou expressão facial no ProJsei-Paladar, visto que as expressões das crianças demonstravam a intensidade desse sabor. A experiência gustativa ocasionou um transbordar de expressões, no sentido de que o sabor experimentado causava um impacto indisfarçável no comportamento expressivo-motor. Como afirma Gomes-da-Silva (2012)GOMES-DA-SILVA, P. N. A corporeidade do movimento: por uma análise existencial das práticas corporais. In: HERMIDA, J. F.; ZOBOLI, F. (Org.). Corporeidade e educação. João Pessoa: Ed. da UFPB, 2012. p. 139-173. ao referir-se que o movimento humano é configurado na interação com o meio ambiente que o provocou, e a expressão facial desencadeada consistiu numa linguagem do ser brincante.

A expressão era de repulsa, de algo desagradável, pois, ao provar o suco de limão, por exemplo, em seu sabor intenso, muitas crianças não queriam provar nenhum outro suco. A experiência negativa ou desagradável com o sabor azedo fez com que houvesse certa resistência para provar outros alimentos da mesma classe de sabor, como a laranja e a acerola. Essa experiência gustativa negativa repercutiu no comportamento motor da turma durante a aula. O receio causado pelo limão fez que as crianças, que antes estavam atentas à aula, parecessem mais dispostas a participar. Contudo, a utilização do jogo de amarelinha foi importante por superar esse impacto negativo causado pela degustação do limão. Em sua atmosfera de descontração e atratividade, o jogo permitiu ao professor-pesquisador trabalhar os demais alimentos, devido ao fato de esse jogo ter sido bem aceito.

"Aula Amarga"

Na mesma estrutura da aula-laboratório, o professor apresentou o tema da aula e perguntou à turma se conhecia o sabor amargo ou se já havia provado algum alimento com esse sabor. Em seguida, apresentou-lhes dois copos - um com café e o outro com chá de marcela - sendo que o chá tinha um teor de amargor muito maior do que o café. Os alunos provaram um copo de cada vez e beberam água entre uma prova e outra. Depois das degustações, o professor explicava que o sabor dos alimentos que eles tinham acabado de provar era amargo. Perguntou se eles conseguiram perceber o amargor do sabor, qual deles era o mais forte. Os alunos provaram duas substâncias amargas em estados diferentes, uma líquida e outra sólida - suco de jiló e chocolate amargo. Ao provar esses alimentos, perceberam que eram amargos e discriminaram qual o mais forte entre os dois.

Para otimizar o processo de assimilação dos sabores e das intensidades, foi utilizado o jogo da memória. No chão, o professor posicionava várias folhas de ofício, cada uma com um desenho de alimentos amargos; jiló, xícara (chá), grãos de café, sendo que cada folha estava com a imagem virada para baixo, dispostas uma ao lado da outra, formando linhas e colunas. As crianças, uma de cada vez se dirigiam até uma dessas folhas, virava-a, e experimentava o suco que correspondia à imagem escolhida. Logo em seguida, escolhia outra folha, repetindo o mesmo processo. No final, verbalizava sobre o sabor experimentado e qual teve a maior intensidade. Esse processo se encerrava quando os alunos conseguiam encontrar pares de alimentos iguais nas imagens. No final da aula, o professor relembrava os alimentos degustados, mencionando os que tinham sabor mais intenso, e pedia às crianças que citassem os que mais apreciaram. Para encerrar a aula, cantava com a turma a música infantil de início.

A aparência desses alimentos, a maioria em forma de sucos, geralmente de cor estranha e cheiro desagradável, fazia as crianças ficarem apreensivas em hesitar e provar os alimentos. Contudo essa experiência serviu de base para que não os julgassem somente pela cor ou pelo cheiro, mas que experimentassem, já que o sabor amargo é importante para as escolhas alimentares. A aceitação desse sabor, presente em muitas sementes, legumes e verduras, amplia as possibilidades de as crianças apreciarem sabores não familiares.

O sabor amargo tem como característica marcante o limiar de sensibilidade que é maior do que todos os outros sabores. Isso se deve a uma importante função protetora, uma vez que muitas das toxinas mortais encontradas nas plantas venenosas são alcaloides e causam uma sensação intensamente amarga, que faz com que animal ou pessoa rejeite o alimento (SCHIFFMAN, 2005SCHIFFMAN, H. R. Sensação e percepção. Rio de Janeiro: LTC, 2005.). A primeira experiência com o sabor amargo pode ser difícil, porque causa uma forte sensação no fundo da língua. Imediatamente após a experiência, as crianças levavam as mãos à garganta, com a expressão de um fechamento facial e total recusa a outras experiências. O amargo não é um sabor de fácil degustar, talvez porque, comumente, está associado ao "gosto de remédio", como disse certa criança.

É importante as crianças aprenderem a gostar do sabor amargo, pois a maioria das verduras e dos legumes são fontes essenciais de nutrientes e sais minerais (WANG et. al. 2010WANG, M. et al. Exposure to a comprehensive school intervention increases vegetable consumption. Journal of Adolescent Health, San Francisco,v.47, no. 1, p. 74-82, 2010.). A deficiência de experiências com esse sabor já na infância faz com que a criança cresça e desenvolva-se cultivando um hábito de restrição alimentar, o que pode causar grande déficit no consumo de nutrientes e vitaminas presentes nos alimentos com esse sabor.

ProJsei-Paladar: fase comparação

Foi percebido que as crianças do Pré I tiveram mais dificuldades do que as do Pré II de assimilar os sabores experimentados. No Quadro 1, podemos observar o quantitativo de crianças do Pré I (quatro anos) que participaram efetivamente do ProJsei, verificando o total de acertos do sabor e a intensidade de cada classe (doce, azedo, salgado e amargo). No quadro podemos perceber o quanto as crianças de quatro anos obtiveram baixo índice de acertos na fase final do ProJsei.

Quadro 1
Acertos dos alunos do Pré I: Sabor e intensidade no início e final do ProJsei.

No Quadro 2, observa-se um melhor desempenho nos acertos pelas crianças do Pré II (cinco anos), por ocasião das suas respostas na fase final do ProJsei. Essa diferença de idade parece ter interferido na capacidade perceptiva, já que as crianças de quatro ou cinco anos pertenciam à mesma escola, com a mesma condição social e vivenciaram o mesmo programa de jogos sensoriais. No entanto houve uma diferença significativa entre os dois grupos, conforme apresenta o quadro a seguir.

Quadro 2
Acertos dos alunos do Pré II (cinco anos) em relação ao sabor e à intensidade: início e final do ProJsei.

Os dois grupos de crianças (Pré I e Pré II) estão caracterizados pelo pensamento egocêntrico, portanto, o processo de assimilação ocorre por via do jogo simbólico, como uma atividade real do pensamento cuja função "consiste em satisfazer o eu por meio de uma transformação do real em função dos desejos" afirma Piaget (1987PIAGET, J. Seis estudos de psicologia. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987., p. 29). No entanto, mesmo tratando com jogos simbólicos no ProJsei, vimos uma diferença considerável na assimilação e na construção do real. Durante as aulas, percebemos que as crianças do Pré I (quatro anos) tiveram mais dificuldades de realizar os jogos propostos, de compreender sua lógica interna, como, por exemplo, percorrer toda a amarelinha num mesmo sentido progressivo. A turma também demorava a compreender a distinção dos sabores básicos e sua variável de intensidade.

O próprio Piaget (1987PIAGET, J. Seis estudos de psicologia. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987.) nos ajuda a compreender o ocorrido, pois, ao tratar da atividade perceptiva, ele afirma haver uma relação inseparável entre a percepção e a ação, tal como ratificaGibson (1966GIBSON, J. J. The senses considered as perceptual systems. Boston: Houghton Mifflin, 1966.) ao compreender os sentidos como canais de informação para a movimentação do sujeito no mundo. A percepção encerra um conjunto de regulações do tipo orgânica ou neuromotora, uma espécie de coordenação responsável pelas centrações sucessivas, tanto retroativas quanto proativas. Isso explica o surpreendente resultado da aprendizagem perceptiva do Pré-II, em que, com os mesmos estímulos, obtiveram um êxito em quase toda a totalidade da turma.

A sensibilidade sensorial ou perceptiva da turma de cinco anos oferece-nos mais um caso de incontestável relação entre a experiência de se movimentar no mundo e as estruturas cognoscitivas. As experiências de movimentação das crianças do Pré-II, visível na assimilação e na acomodação das brincadeiras, foram fundamentais para as estruturas perceptivas. Ou seja, a experiência organizadora do sujeito em perceber e classificar os sabores e as intensidades demonstrou estar relacionada às situações e ao fluxo de acontecimentos já vividos. A coordenação para experimentar, distinguir e diferenciar relaciona-se com as centrações retroativas dos acontecimentos. "Regulação perceptiva" é o termo utilizado por Piaget para essa aprendizagem exitosa de alcançar o equilíbrio entre o organismo e o meio. Em nosso caso, a regulação efetuou-se por meio de referências comandadas pelos esquemas sensório-motores habituais da ação. O Pré II já havia vivido todos os jogos tradicionais propostos, de modo que foi mais fácil ajustar a percepção gustativa ao êxito gustativo-cinestésico.

Piaget (1978PIAGET, J.; INHELDER, B. Gênese das estruturas lógicas elementares. 3. ed. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1978. ) entende que, para o conhecimento ser construído pelo sujeito, é necessário que tenha estruturas capazes de assimilá-lo. Vimos que não basta as estruturas cognoscitivas estarem em condições é necessário igualmente às experiências de ação, razão por que os dois grupos estavam, a princípio, no mesmo estágio de desenvolvimento, mas as experiências de vida são muito distintas. Um ano de escolarização e de sociabilidade vividas e de experiências culturais interferiu sobremaneira na regulação perceptiva. Explica Piaget (1973, p. 288) que "a percepção nunca é independente da ação nem, nos níveis superiores, dessa coordenação interiorizada dos esquemas de ação que constitui a inteligência".

Naquele instante, as crianças mais novas ainda não tinham experiências de ação suficientes capazes de suportar a capacidade perceptiva solicitada. No momento final do ProJsei, percebemos que muitas crianças respondiam de maneira aleatória as perguntas. E apesar de algumas terem acertado os questionamentos, ficou evidente que as respostas eram dadas de maneira intuitiva, sem consciência da distinção dos sabores e suas intensidades de concentração.

Significa dizer que as experiências de ação das crianças de quatro anos foram insuficientes para estabelecer uma conceituação. Suas experiências já se constituíam em saber ou conhecimento consciente, mas necessitavam de relações sucessivas para "construir totalidades inclusivas e simultâneas" que, fundamentadas apenas na quantificação (extensão) dos elementos, fossem capazes de classificá-los por suas semelhanças ou diferenças, explica Piaget e Inhelder (1978PIAGET, J.; INHELDER, B. Gênese das estruturas lógicas elementares. 3. ed. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1978. , p. 39). Ou seja, as crianças de quatro anos identificaram os sabores, mas os categorizaram intuitivamente de modo genérico, sem estabelecer relação entre as qualidades comuns dos sabores da mesma classe (amargo, p.ex.) nem diferenciá-los em suas especificidades de concentração.

Portanto, é necessário considerar as experiências de ação das crianças, tanto dentro quanto fora da escola, e não apenas sua fase de desenvolvimento cognoscitivo, porque é nessa interação percepção-ação que o conhecimento vai se distinguindo de uma sensibilidade geral para uma sensibilidade significativa. Por isso Piaget e Inhelder consideram "a intervenção ativa do meio físico (exercício e experiência adquirida) e, além dessa aprendizagem, com todas as influências educativas do meio social" (PIAGET; INHELDER, 1978PIAGET, J.; INHELDER, B. Gênese das estruturas lógicas elementares. 3. ed. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1978. , p.17). De modo que as situações problemas apresentadas pelo pesquisador-professor, por meio dos jogos tradicionais, obtiveram êxito com a turma de cinco anos (Pré II), que conseguiu identificar a extensão dos sabores, à medida que designava sua qualidade (doce, azedo, salgado e amargo) e sua intensidade (mais ou menos concentrado), portanto, demandando habilidades mnêmicas e linguísticas.

Compreende-se que esse processo de interiorização das ações, ao relembrar os sabores e denominá-los, constitui a equilibração das aprendizagens adquiridas por parte dos sujeitos da experiência (PIAGET, 1973PIAGET, J. Biologia e conhecimento. Petrópolis: Vozes, 1973.). E mais, que esse processo termina funcionando como um "filtro" de preferências alimentares. Nas aulas observadas, evidenciou-se que a cor e a textura dos alimentos são fatores que exercem uma forte influência sobre a preferência dos alimentos pelas crianças. A maneira como os alimentos são apresentados despertam ou não o interesse delas, e os sucos coloridos e as frutas em bom estado mostraram-se importantes.

Obviamente, fora da escola, as crianças poderiam ter essas mesmas experiências e estímulos com o paladar, porém o que faz a distinção, nessas aulas de educação física, é que o jogo foi conduzido que modo a possibilitar um ambiente propício para a apreciação qualitativa e quantitativa de diferentes alimentos com seus diversos sabores. Rodrigues e Fiates (2012RODRIGUES, V. M.; FIATES, G. M. R. Hábitos alimentares e comportamento de consumo infantil: influência da renda familiar e do hábito de assistir à televisão., Revista de Nutrição Campinas, SP, v.25, n.3, p. 353-362, maio/jun. 2012. ), asseveram que o hábito de consumir guloseimas é cada vez mais frequente entre as crianças brasileiras dos mais diferentes extratos populacionais, de modo que essa deve ser uma preocupação interdisciplinar na escola com a saúde de seus educandos.

Assim, a PC focada na saúde integrativa das populações infantis resolveu criar o ProJsei como iniciativa de contribuição da educação física, de modo geral, e da educação do paladar na infância, de modo específico. A cultura do consumo em torno de certo sabor pode ser muito prejudicial à saúde infantil. A preferência por alimentos de sabor doce e salgado e o excesso de consumo deles é, em grande parte, responsável pelo surgimento de patologias sanguíneas e cardiovasculares. O excesso de sal, na maioria dos casos, reflete que essa substância talvez seja um fator importante na hipertensão e oferece um risco em potencial para a saúde (PIOVESANA; GALLANI; SAMPAIO, 2012PIOVESANA, P. M.; GALLANI, M. C. B. J.; SAMPAIO, K. L. Revisão: metodologias para análise da sensibilidade gustativa ao sal. Brazilian Journal of Food Technology, Campinas, SP, v. 15, n. 3, p. 182-190, jul./set. 2012.;SCHIFFMAN, 2005SCHIFFMAN, H. R. Sensação e percepção. Rio de Janeiro: LTC, 2005.). E mais, a pesquisa de Paiva, Freitas e Santos (2012PAIVA, J. B.; FREITAS, M. C. S.; SANTOS, L. A. S. Hábitos alimentares regionais no Programa Nacional de Alimentação Escolar: um estudo qualitativo em um município do sertão da Bahia, Brasil. Revista de Nutrição, Campinas, SP, v.25, n.2, p.191-202, mar./abr. 2012.) ressalta o fato de a preferência dos escolares por "coisas supérfluas" ser um forte constituinte da "cultura da globalização", que muito contribui para o desenvolvimento de diversos problemas de saúde, como a obesidade, "deixando de ser uma preocupação meramente estética para se transformar numa epidemia global" (FERNANDES; PENHA; BRAGA, 2012FERNANDES, M. M.; PENHA, D. S. G.; BRAGA, F. A. Obesidade infantil em crianças da rede pública de ensino: prevalência e consequências para flexibilidade, força explosiva e velocidade. Revista da Educação Física/UEM, Maringá. v. 23, n. 4, p. 629-634, 2012. , p. 629).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Concluímos que o ProJsei contribuiu para ampliar a capacidade perceptiva, ou sensibilidade significativa, especialmente das crianças da turma do Pré-II, e que os baixos índices de acertos das crianças do Pré I, que apresentaram dificuldades para assimilar o conteúdo das aulas, revelou a importância das experiências de ação e de socialização na aprendizagem e na potencialização das estruturas cognoscentes. Também contribuiu com a educação do paladar, porquanto observamos que houve uma expressiva ampliação da preferência alimentar, principalmente com as crianças de cinco anos, que passaram a degustar mais alimentos e a sentir apetite por outros alimentos que antes eram rejeitados. Nesse sentido, a experiência do PorJsei proporcionou, durante as aulas, a adesão de alguns a experimentarem alimentos não familiares e que não houve rejeição diagnosticada na fase inicial do programa. Assim, entendemos que essa intervenção colaborou para a formação de crianças gustativamente mais sensíveis, dispostas e abertas a novas sensações e experimentações.

Nesta pesquisa, o jogo se apresentou como um facilitador da aprendizagem gustativa. Muitas crianças, mesmo receosas com alguns alimentos, sentiram-se mais estimuladas a degustar devido ao jogo, como o sabor azedo, por exemplo, que só foi vivenciado pelos alunos devido à atratividade da brincadeira. Também ratificou sua eficiência no processo de aprendizagem, pois, mesmo nos distintos objetivos de cada jogo, colaborou com o reforço das experiências gustativas, na assimilação e na acomodação dos diversos sabores em suas distintas intensidades.

O ProJsei-Paladar possibilitou às aulas de educação física na infância uma sistematização de experiências de ação, que poderíamos denominar de gustativo-cinéticas, por meio das quais as crianças perceberam novos sabores, realizaram uma operação cognitiva de discriminar diferenças de qualidades e intensidades, além de possibilitar um conhecimento alimentar, influenciando na adoção de escolhas alimentares mais saudáveis.

Por fim, para além das limitações do trabalho em aplicar o ProJsei em apenas uma escola e por apenas dois meses, destacamos um achado que merece mais investigação. Nas aulas "doces" e "salgadas", apesar da inquietude e da ansiedade das crianças por desejarem mais alimentos, elas estiveram mais atentas às instruções docentes ou situações problemas dos jogos. Em contrapartida, nas experiências das aulas "azedas" e "amargas", os alunos tiveram mais dificuldades de se concentrar: eles se negavam a experimentar outros alimentos do mesmo sabor e resistiram ao novo conhecimento experiencial de degustação.

REFERÊNCIAS

  • BERTIN, R. L. et al. Estado nutricional, hábitos alimentares e conhecimentos de nutrição em escolares. Revista Paulista de Pediatria, São Paulo,v.28, n.3, p. 303-308, 2010.
  • BOLSANELLO, D. Educação somática: o corpo enquanto experiência. Motriz, Rio Claro, v.11, n.2, p.89-96, maio/ago. 2005.
  • COSTA, M. M. B.; SANTANA, E.; ALMEIDA, J. Oral taste recognition in health volunteers.Arquivos de Gastroenterologia, São Paulo, v.47, no. 2, p. 152-158, abr./jun. 2010.
  • DÉBROUILLARDS, A. F. P. O olfato e o paladar: experimentos fáceis e divertidos. São Paulo: Edições SM, 2005.
  • FERNANDES, M. M.; PENHA, D. S. G.; BRAGA, F. A. Obesidade infantil em crianças da rede pública de ensino: prevalência e consequências para flexibilidade, força explosiva e velocidade. Revista da Educação Física/UEM, Maringá. v. 23, n. 4, p. 629-634, 2012.
  • FREIRE, J. B. Por uma educação de corpo inteiro. In: HERMIDA, J. F. (Org.). Educação física: conhecimento e saber escolar. João Pessoa: Ed. da UFPB, 2009. p. 157-180.
  • FREIRE, P.Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
  • FIGUEIREDO JÚNIOR, J. M.; GOMES-DA-SILVA, P. N. Expressividade e sensorialidade: por uma metodologia da educação física na saúde de idosos. Revista Brasileira de Atividade Física e Saúde, Pelotas,v.16, n.2, p. 172-176, 2011.
  • GIBSON, J. J. The useful dimensions of sensitivity.American Psychologist,Washington, DC,v.18, no.1, p.1-15, dez. 1962.
  • GIBSON, J. J. The senses considered as perceptual systems. Boston: Houghton Mifflin, 1966.
  • GIBSON, J. J. The ecological approach to visual perception. New Jersey: Lawrence Earlbaum Associates, 1986.
  • GONÇALVES, D. M. O.; GOMES-DA-SILVA, P. N. Práticas de educação sensorial para crianças. In: ENCONTRO DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA DA UFPB,16., 2008, João Pessoa. Anais...João Pessoa: Universidade Federal da Paraíba, 2008.
  • GOMES-DA-SILVA, P. N. O jogo da cultura e a cultura do jogo: por uma semiótica da corporeidade. João Pessoa: Ed. da UFPB, 2011.
  • GOMES-DA-SILVA, P. N. A corporeidade do movimento: por uma análise existencial das práticas corporais. In: HERMIDA, J. F.; ZOBOLI, F. (Org.). Corporeidade e educação. João Pessoa: Ed. da UFPB, 2012. p. 139-173.
  • GOMES-DA-SILVA, P. N. Pedagogia da corporeidade: o decifrar e o subjetivar na educação. Tempos e espaços em educação,Aracaju,v.13,p. 15-39, maio/ago. 2014.
  • GUINDULAIN, M. C.; ZUBIRI, S. B.; IRIGOYEN, M. O. Obesidad infantil: cómo cambiar hábitos. Formación Médica Continuada en Atención Primaria, Barcelona,v.19, n. 3, p. 129-136, 2012.
  • KNUTH, A.; LOCH, M. R. "Saúde é o que interessa, o resto não tem pressa?":um ensaio sobre educação física e saúde na escola., Revista Brasileira de Atividade Física e Saúde Pelotas, v.19, n. 4, p. 429-440, jul. 2014.
  • LARA, B. R.; PAIVA, V. S. F. A dimensão psicossocial na promoção de práticas alimentares saudáveis. Interface - Comunicação, saúde, educação, Botucatu,v.16, n.43, p.1039-1054, out./dez. 2012.
  • MOURA, S. L. Determinants of food rejection amongst school children. Appetite, San Diego,v. 49, no. 3, p. 716-719, 2007.
  • O'CONNOR, Á. Promoting healthy eating and an active lifestyle in schoolchildren. Nursing standard, Harrow,v. 5, no. 48, p. 48-56, 2011.
  • PAIVA, J. B.; FREITAS, M. C. S.; SANTOS, L. A. S. Hábitos alimentares regionais no Programa Nacional de Alimentação Escolar: um estudo qualitativo em um município do sertão da Bahia, Brasil. Revista de Nutrição, Campinas, SP, v.25, n.2, p.191-202, mar./abr. 2012.
  • PIAGET, J. Biologia e conhecimento. Petrópolis: Vozes, 1973.
  • PIAGET, J. Seis estudos de psicologia. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987.
  • PIAGET, J.; INHELDER, B. Gênese das estruturas lógicas elementares. 3. ed. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1978.
  • PIOVESANA, P. M.; GALLANI, M. C. B. J.; SAMPAIO, K. L. Revisão: metodologias para análise da sensibilidade gustativa ao sal. Brazilian Journal of Food Technology, Campinas, SP, v. 15, n. 3, p. 182-190, jul./set. 2012.
  • RODRIGUES, V. M.; FIATES, G. M. R. Hábitos alimentares e comportamento de consumo infantil: influência da renda familiar e do hábito de assistir à televisão., Revista de Nutrição Campinas, SP, v.25, n.3, p. 353-362, maio/jun. 2012.
  • SCHIFFMAN, H. R. Sensação e percepção. Rio de Janeiro: LTC, 2005.
  • VON ATZINGEN, M. C. B. C.; PINTO E SILVA, M. E. M. Características sensoriais dos alimentos como determinante das escolhas alimentares. Nutrire: Revista da Sociedade Brasileira de Alimentação, São Paulo, v. 35, n. 3, p. 183-196, dez. 2010.
  • WANG, M. et al. Exposure to a comprehensive school intervention increases vegetable consumption. Journal of Adolescent Health, San Francisco,v.47, no. 1, p. 74-82, 2010.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Set 2015

Histórico

  • Recebido
    09 Dez 2014
  • Revisado
    28 Abr 2015
  • Aceito
    02 Jun 2015
Universidade Estadual de Maringá Avenida Colombo, 5790, 87020-900 Maringá - PR, Tel.: (55 44) 3011 4470 - Maringá - PR - Brazil
E-mail: revdef@uem.br