Há pertinência científica no enredo dos filmes e documentários sobre transtornos alimentares?

RESUMO

Objetivos:

analisar filmes e documentários sobre transtornos alimentares dos últimos vinte anos, identificando o modo como abordam a temática, bem como sua pertinência para o uso didático no ensino do campo da saúde.

Métodos:

estudo descritivo, cuja coleta de dados foi realizada nas principais plataformas de streaming e vídeos, resultando no levantamento de 60 mídias. Dessas, apenas 25 tinham áudio/legenda em português (critério de inclusão). A pertinência científica foi analisada considerando aspectos psicopatológicos e epidemiológicos desses transtornos. Utilizaram-se um questionário sobre o enredo, as personagens e análise descritiva dos dados.

Resultados:

a maioria das mídias eram dramas sobre adolescentes do sexo feminino que tentavam adequar-se aos estereótipos de beleza, cujos sintomas retratados convergiam com os manuais de diagnósticos médicos atuais.

Conclusões:

em termos práticos, elaborou-se uma lista classificatória de 11 mídias que poderão ser utilizadas como recurso didático para o ensino desse tema no campo da saúde.

Descritores:
Anorexia; Transtornos da Alimentação e da Ingestão de Alimentos; Ensino; Mídia Audiovisual; Filmes

ABSTRACT

Objectives:

to analyze films and documentaries about eating disorders from the last twenty years, identifying the way they approach the topic as well as their relevance for didactic use in teaching the health field.

Methods:

a descriptive study, whose data collection was carried out on the main streaming and video platforms, resulting in the survey of 60 media. Of these, only 25 had audio/subtitles in Portuguese (inclusion criteria). scientific relevance was analyzed considering psychopathological and epidemiological aspects of these disorders. A questionnaire about the plot, characters and descriptive data analysis were used.

Results:

most media were dramas about female teenagers who tried to conform to beauty stereotypes, whose symptoms portrayed converged with current medical diagnostic manuals.

Conclusions:

in practical terms, a classificatory list of 11 media was prepared that could be used as a teaching resource for teaching this topic in the health field.

Descriptors:
Anorexia; Feeding and Eating Disorders; Teaching; Audiovisual Media; Films

RESUMEN

Objetivos:

analizar películas y documentales sobre trastornos alimentarios de los últimos veinte años, identificando la forma en que abordan el tema, así como su relevancia para su uso didáctico en la enseñanza del campo de la salud.

Métodos:

estudio descriptivo, cuya recolección de datos se realizó en las principales plataformas de streaming y video, dando como resultado la encuesta a 60 medios. De estos, sólo 25 tenían audio/subtítulos en portugués (criterios de inclusión). Se analizó la relevancia científica considerando aspectos psicopatológicos y epidemiológicos de estos trastornos. Se utilizó un cuestionario sobre la trama, los personajes y el análisis de datos descriptivos.

Resultados:

la mayoría de los medios fueron dramas sobre mujeres adolescentes que intentaban ajustarse a estereotipos de belleza, cuyos síntomas retratados convergían con los manuales de diagnóstico médico vigentes.

Conclusiones:

en términos prácticos, se elaboró un listado clasificatorio de 11 medios que podrían ser utilizados como recurso didáctico para la enseñanza de este tema en el campo de la salud.

Descriptores:
Anorexia; Trastornos de Alimentación y de la Ingestión de Alimentos; Enseñanza; Medios Audiovisuales; Películas

INTRODUÇÃO

Os transtornos alimentares (TA), descritos como perturbações persistentes relacionadas ao padrão de alimentação, caracterizam-se por comportamentos que culminam no emagrecimento extremo, na obesidade, ou ainda em outros problemas de ordem física e emocional com impactos negativos na saúde e no funcionamento psicossocial do indivíduo, além do contexto sociocultural que dissemina certos estereótipos relacionados ao padrão de beleza na sociedade(¹-⁵).

Na cultura ocidental contemporânea, o ideal de beleza feminina é majoritariamente associado à magreza. Tal biotipo tem sido também apreendido como símbolo de maior competência, mais sucesso, autocontrole e atratividade social, corroborando a noção de body-instrumentality, isto é, a ideia de que a “melhoria” do corpo físico por meio de dietas e exercícios culminaria em maior controle emocional e conquista social(⁶-⁷).

A internalização dos ideais de beleza promovidos socialmente tem sido uma questão abordada por grande parte dos estudos sobre TA(⁵-¹²), cujos autores apontam tanto as consequentes preocupações com a imagem corporal resultante de ideais muitas vezes inatingíveis quanto o papel das influências socioculturais para a internalização do ideal de magreza, sobretudo entre as mulheres, enfatizando a forte contribuição da mídia nesse sentido.

Argumenta-se que, de um modo geral, os corpos veiculados na mídia são imagens que não representam as expressões culturais e naturais do corpo humano. Denominados como “corpo-mídia”, não equivalem ao corpo natural, mas constituem-se um dos principais recursos utilizados para campanhas publicitárias de diferentes produtos(²,⁷,¹³).

Nesse sentido, diversos autores têm destacado o papel da mídia na produção e manutenção de ideologias, reforço ou combate de alguns estereótipos, representação do discurso popular e formação de uma cultura coletiva relacionada a determinados fenômenos(¹,⁷,¹²,¹⁴). Com isso, as exigências impostas pela moda e pela mídia sobre a imagem corporal têm sido apontadas por alguns estudos como fatores que repercutem negativamente, sobretudo, na saúde mental das mulheres e dos jovens(¹,⁶).

Estudos prévios sobre mídia e TA tiveram como objetivo analisar os impactos ocasionados pela mídia a partir da produção de padrões de beleza estéticos e alimentares em diferentes ambientes e fases da vida(²,⁴-⁶,⁸-¹¹,¹³-²⁰). De forma geral, tais estudos avaliaram a percepção da autoimagem corporal, comportamento alimentar e estado nutricional, e alguns destacaram a influência das redes sociais em relação à imagem corporal dos indivíduos(⁹,¹⁸,²¹).

Especificamente no âmbito internacional, o enfoque dos estudos tanto de campo(⁵-⁶,²⁰,²²) quanto de revisão(¹⁴,²¹,²³) na influência midiática tem sido referente à internalização dos padrões de beleza, sobretudo pela população feminina, decorrente da cultura ocidental e à busca de padrões físicos impostos também pela sociedade. No cenário nacional, a literatura recente que aborda a temática versa sobre o poder influenciador da mídia sobre a população mais jovem, tendo em vista o despreparo, em termos educacionais, desse público ao utilizar as redes sociais, bem como os aspectos singulares inerentes à fase da adolescência, como a busca por aceitação pelos pares e a insegurança relacionada à aparência física, configurando-os como um grupo de risco ao desenvolvimento de TA(⁹,¹⁵-¹⁶,²⁴).

Destaca-se que, desses estudos, apenas um compilou evidências sobre a mídia televisiva, especificamente as propagandas e sua influência sobre o público infanto-juvenil(¹³). Os demais se referiam à mídia impressa (revistas femininas)(¹⁹), redes sociais(²,¹⁸,²⁰-²¹) e blogs, ou à mídia de uma forma geral, sem especificar a modalidade(⁴-⁵,⁸-⁹,¹⁴-¹⁷,²²). Esse panorama destaca o potencial inovador da utilização da mídia cinematográfica como fonte de dados para pesquisas sobre o tema.

Ademais, vale destacar que um importante estudo de revisão desenvolvido na Europa(¹⁴) destaca que, a despeito do grande número de pesquisas sobre a veiculação dos ideais irrealizáveis de beleza pela mídia e suas consequências no desenvolvimento de TA, há uma escassez de estudos sobre as consequências e o papel da mídia na progressão e enfrentamento por parte de pessoas que já têm esses transtornos. Assim, tais autores ressaltam a importância do desenvolvimento de estudos que analisem como esses transtornos são abordados pelos diferentes tipos de mídia, a fim de aprofundar o entendimento de como tais representações influenciam também o grupo de pessoas que já estão adoecidas.

O presente estudo, portanto, visa contribuir com o preenchimento dessa lacuna, pois tem como foco a mídia cinematográfica, enfatizando o modo de abordagem dos TAs e discutindo suas possíveis influências no desenvolvimento e curso de tal doença, bem como a pertinência científica de tais representações e a possibilidade do uso didático de algumas dessas produções.

OBJETIVOS

Analisar filmes e documentários sobre TA dos últimos vinte anos, identificando o modo como abordam a temática, bem como sua pertinência para o uso didático no ensino do campo da saúde.

MÉTODO

Aspectos éticos

No presente estudo, foram utilizadas informações de domínio público disponíveis em plataformas de livre acesso. Desse modo, o estudo enquadra-se no parágrafo único do Artigo 1 da Resolução nº 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde, que determina as diretrizes éticas específicas para as ciências humanas e sociais não necessitando de avaliação pelo Comitê de Ética em Pesquisa/Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CEP/CONEP).

Desenho, período e local do estudo

Trata-se de estudo descritivo exploratório, que foi desenvolvido no período de agosto de 2019 a julho de 2020 a partir de dados obtidos nas produções cinematográficas, como filmes e documentários produzidos nos últimos 20 anos, a contar do período de realização do estudo. O método foi estruturado a partir de uma adaptação do estudo sobre análise documental de mídia escrita proposto por Souza et al. (2020)(²⁵) e também dos itens descritos no instrumento Meta-analyses Of Observational Studies in Epidemiology (MOOSE).

Procedimentos para composição da amostra

O levantamento das produções a serem analisadas foi realizado em duas etapas. A primeira etapa consistiu na definição do conjunto de mídias produzidas no período elencado (“população do estudo”). A segunda etapa consistiu na identificação das mídias que atendiam aos critérios de elegibilidade para a análise propriamente dita (“amostra”).

Na primeira etapa, foram utilizados os descritores, em português e inglês, “transtorno alimentar”, “mídia”, “anorexia”, “bulimia”. As plataformas utilizadas foram a Internet Movie Database (IMDB), que possibilita a consulta de mídias, a Netflix, provedora global de filmes e séries de televisão via streaming, a Globoplay, plataforma digital de streaming de vídeos sob demanda criada e desenvolvida pelo Grupo Globo, e Google Play, com serviço de distribuição digital de aplicativos, jogos, filmes, programas de televisão, músicas e livros, desenvolvido e operado pela Google. Tal busca resultou em uma lista de 100 títulos, dos quais 40 eram repetidos e 35 não tinham áudio ou legenda em português (critério de inclusão), resultando em uma amostra de 25 títulos, sendo 16 filmes e nove documentários.

Coleta dos dados

Os dados foram coletados por duas autoras do estudo treinadas para essa finalidade e com expertise na temática em questão. Utilizou-se um questionário previamente elaborado pelo grupo de pesquisa e avaliado por dois pesquisadores externos, como uma nutricionista com expertise no ensino e na pesquisa de tais transtornos e uma enfermeira com doutorado na área de enfermagem psiquiátrica com experiência assistencial em unidades de atenção primária.

A Figura 1 apresenta a estrutura e os itens do questionário utilizado. Conforme pode ser observado, este foi estruturado em três grandes temas: 1) as mídias e os enredos; 2) as personagens com TA; e 3) os TAs. Tais temas englobaram cinco itens norteadores, a saber: 1.1) dados gerais das mídias; 1.2) especificidades do enredo; 2.1) características da personagem; 2.2) características do seu entorno social; e 3.1) caracterização do transtorno. Além disso, o instrumento incluía a minutagem das cenas que caracterizavam os itens analisados.

Figura 1
Estrutura e detalhamento dos itens do questionário utilizado na coleta dos dados, Ribeirão Preto, São Paulo, Brasil, 2020

Todas as 25 mídias cinematográficas foram assistidas na íntegra com concomitante preenchimento do questionário pelas duas autoras do estudo no período de fevereiro a março de 2020. As dúvidas e inconsistências no preenchimento dos itens foram dirimidas junto à orientadora do estudo considerando as cenas e minutagens correspondentes.

Análise dos dados

A análise foi empreendida em três etapas. A primeira teve como finalidade traçar um panorama geral sobre as mídias elencadas. Primeiramente, identificaram-se o percentual dos enredos que correspondia a filmes ou documentários, bem como o número de mídias classificadas em cada gênero (drama, comédia, romance e musical). Em seguida, foi discriminada a distribuição das mesmas de acordo com o ano de produção. Analisou-se também descritivamente (n e %) a distribuição das mídias de acordo com sexo, faixa etária e disponibilidade de apoio social das protagonistas.

Na segunda etapa da análise, o propósito foi descrever o modo como os TAs eram abordados. Nesse item, os dados de cada mídia foram analisados separadamente para discriminar quais delas apresentavam cenas que referenciavam o peso da protagonista, ilustravam a veiculação de estereótipos de beleza, mostravam tentativas das personagens de se adequarem a tais estereótipos, representavam a relação da protagonista com os membros da família e os diferentes tipos de desfechos clínicos. Em seguida, as respectivas cenas destacadas nas minutagens foram descritas detalhadamente, a fim de obter exemplos concretos das características de tais cenas.

Ainda nessa etapa, foram analisados quantos sintomas de TA foram representados em cada mídia e sua correspondência com os critérios diagnósticos do Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais 5.ª edição (DSM-5)(³). Analisaram-se a quantidade de mídias que representavam cada transtorno (anorexia ou bulimia) e respectivos fatores desencadeantes, classificando-os em apelo midiático e/ou estresse familiar. Os desencadeadores dos transtornos, os diagnósticos, tratamentos propostos e as características do entorno social representados em cada um dos enredos foram confrontados com a literatura relacionada aos aspectos psicopatológicos e epidemiológicos desse quadro.

Análises de cada enredo também foram empreendidas para elencar o número de mídias que ilustravam comportamentos com potencial de serem reproduzidos pelo telespectador, e as respectivas cenas também foram descritivamente detalhadas. Em seguida, tais descrições foram categorizadas nos seguintes temas: recusa em buscar tratamento ou pedir ajuda; dietas nocivas; modos de induzir o vômito; rotina exagerada de exercícios. Elencaram-se, então, quantas e quais mídias representaram cada uma dessas categorias.

A terceira etapa, portanto, correspondeu à classificação dos títulos considerados pertinentes em termos científicos e que, portanto, seriam apropriados para o uso com a finalidade didática. Para tal, foi considerado como critério que a mídia apresentasse no enredo ao menos três dos cinco aspectos: 1) atuação do profissional de saúde; 2) algum aspecto relacionado ao diagnóstico; 3) encaminhamento para tratamento; 4) maior número de sintomas do transtorno; e 5) enredos com maior ênfase nas atitudes positivas das personagens diante do transtorno.

Assim, foram listadas as mídias que atenderam a tal critério (n=11). Destaca-se que, dessas, cinco atenderam a todos os critérios e foram encaminhadas para um terceiro analista com expertise no ensino de tais transtornos, que assistiu às mídias selecionadas na íntegra, focando também nas características enfatizadas nas minutagens indicadas, a fim de conferir maior controle de qualidade às interpretações e validar tal indicação.

Quanto à avaliação da pertinência dos critérios adotados e das mídias elencadas nessa lista final, empreendeu-se o teste exato de Fisher para analisar a associação entre a variável “mídias consideradas como veiculadoras de informações pautadas no conhecimento científico” (sim/não) e as seguintes: “presença de profissionais de saúde no enredo” (sim/não); “a protagonista é encaminhada para o tratamento” (sim/não); “número de sintomas que corroboram com os critérios do DSM-5” (até três/quatro ou mais); “enredos com ênfase nas atitudes positivas das personagens diante do transtorno” (sim/não); “desfechos para a personagem no enredo” (melhora/piora ou manutenção do quadro). O propósito foi validar a significância desses itens na composição do critério utilizado para considerar as mídias pertinentes em termos científicos (nível de significância p<0,05).

RESULTADOS

Panorama geral das mídias

As mídias analisadas foram ordenadas conforme uma linha do tempo. Assim, 16 (64%) eram filmes e nove (36%) eram documentários, sendo a maioria (64%) produzida nos Estados Unidos com ênfase nos anos de 2014, 2015, 2017 e 2018 (Figura 2).

Figura 2
Distribuição das mídias analisadas a partir do questionário, Ribeirão Preto, São Paulo, Brasil, 2020 (N=25)

Vale destacar que aproximadamente metade dessas mídias (48%) não correspondia a um único gênero cinematográfico. Portanto, o gênero predominante foi drama (n=16), e quatro das mídias desse gênero eram filmes ou documentários biográficos. Os demais gêneros identificados foram, respectivamente, comédia (n=5), romance e musical (n=3), e sempre vinculados a algum outro gênero.

Em relação aos desfechos clínicos, conforme a Tabela 1, a maioria das personagens com TA apresentava melhora (evidenciada pelo autorrelato das mesmas ou cenas dessas retomando hábitos alimentares funcionais, interagindo com a rede de apoio, aceitando ajuda e realizando tratamento) ou o quadro clínico se mantinha sem alterações.

Tabela 1
Distribuição das mídias de acordo com as características das protagonistas com transtorno alimentar, Ribeirão Preto, São Paulo, Brasil, 2020 (N=25)

Variáveis	n	Mídias correspondentes*
Protagonistas com transtorno alimentar
Sexo
Feminino	24	1-12, 14-25
Masculino	1	13
Faixa etária
Criança	1	13
Adolescente	17	1-5, 9-12, 14, 16, 20-25
Adulto	7	6-8, 15, 17-19
Recebe apoio social	21	1-4, 6, 9-10, 12-25
Cenas de destaque em relação ao tema
Referência ao peso da protagonista	6	4, 6-7, 12, 16, 18
Tentativa de se adequar aos padrões de beleza†	23	1-16, 18-24
Veiculação de um estereótipo de beleza†	20	1-2, 4, 6-7, 9-14, 16-20, 22-25
Televisão	11	1-2, 7, 9-10, 13, 17-19, 23-24
Internet em geral	12	9-13, 16-17, 19-20, 22-23, 25
Redes sociais	8	9, 14, 17, 19-20, 23-25
Principal reação dos membros da família†
Indiferença	11	3, 7-8, 10-11, 14-18, 20
Apoio ao tratamento	13	1-2, 4, 6, 9, 12-13, 16, 20-23, 25
Desfechos clínicos
Piora‡	5	7-8, 10, 17-18
Melhora	8	2, 9, 12, 16, 20-22, 25
Sem alteração	8	1, 3-6, 11, 15, 23

• ^*
  Figura 1
• ^†
  Como esses itens podem ser considerados subjetivos e sujeitos a vieses de interpretação, nos parágrafos seguintes, são apresentadas cenas que exemplificam o teor da análise empreendida;
• ^‡
  Morte (n=3), suicídio (n=1) e tentativa de suicídio (n=1).

Modo de abordagem do transtorno

Na maioria das mídias, as protagonistas com TA eram adolescentes do sexo feminino. As cenas de destaque relacionadas ao tema foram aquelas nas quais a personagem com TA tentava se adequar a algum padrão de beleza e outras que mostravam veiculação midiática de um estereótipo de beleza (Tabela 1).

No filme “Sob a Luz da Fama”, no minuto 15, a protagonista, em uma festa, observa como outras mulheres se vestem e agem, vai ao banheiro e se arruma de um modo semelhante ao que observou nas outras mulheres (decote, cabelo solto, maquiagem). No filme “O Mínimo Para Viver”, no minuto 3, a protagonista faz exercícios olhando os desenhos que ela fez com corpos magros e ossos salientes fixados na parede. Esses são alguns exemplos de cenas nas quais a protagonista tentava se adequar aos padrões de beleza.

Já em relação à veiculação de um estereótipo de beleza, alguns exemplos estão no filme “Anorexia: A Ilusão da Beleza”, no minuto 8, em que a amiga da protagonista lhe mostra um site na internet chamado “magra inspiração”, que propaga dietas e fotos de mulheres magras e com ossos salientes, e no filme “Dying to Dance”, minuto 19, em que a protagonista se pesa, anota o peso em um papel e cola em seu espelho ao lado de recortes de revistas com corpos de mulheres magras e dicas de dietas.

No tocante à reação da família, um exemplo de indiferença pode ser observado no filme “DUFF”, minuto 41, no qual a protagonista está contando para a mãe o que sentia em relação a um rapaz e como precisava mudar para ele prestar atenção nela; a mãe lhe interrompeu e voltou a falar de si mesma. Por outro lado, “Sharing the Secret”, minuto 71, ilustra a família apoiando o tratamento. A mãe da protagonista estava no banheiro com ela, dizendo que a amava e não queria vê-la se machucando e, em seguida, a adolescente vomitou, ambas choraram e a protagonista pediu ajuda para a mãe. Na cena posterior (minuto 71), a mãe visitou a protagonista, que estava internada para tratamento, levando roupas e conversando de modo compreensivo com ela.

Em todos os enredos analisados, foram apresentados ao menos um sintoma de TA coerente com o DSM-5(³), e, em grande parte deles (n=11), as pessoas com transtorno apresentaram quatro ou mais sintomas com tal característica. Destaca-se que em quase metade dos enredos (n=12) a protagonista recebeu o diagnóstico formal de TA e, em todos esses casos, as manifestações apresentadas por ela correspondiam aos sintomas descritos no DSM-5(³) e corroboravam os dados epidemiológicos mais recentes sobre tal transtorno. Entre os diagnósticos apresentados pelas personagens, a anorexia foi o mais prevalente (n=10).

Em relação aos fatores que possivelmente contribuíram para o desenvolvimento do TA das personagens no enredo, o apelo midiático foi o fator com maior prevalência (n=18), seguido do estresse familiar (n=11). Em todos os enredos, há cenas que ilustram comportamentos com potencial de serem reproduzidos pelo telespectador e, na maioria deles (n=13), há maior ênfase nas atitudes negativas das personagens, como recusa a buscar tratamento ou pedir ajuda (mídias 1, 8, 10-14, 16, 18, 21 e 23), dietas nocivas (1, 7, 10-14, 16, 18, 21 e 23), modos de induzir o vômito (5, 8, 10, 12, 16 e 18) e rotina de exercícios que excede a capacidade física individual (8, 12-13, 21 e 23).

Pertinência científica em termos didáticos para o campo da saúde

Nos filmes e documentários que atenderam aos critérios de veiculação de informações pautadas no conhecimento científico (n=11), os enredos, de um modo geral, enfatizavam as atitudes positivas das personagens com TA, e as protagonistas apresentavam mais de três sintomas coerentes com o DSM-5³ e recebiam tratamento em uma unidade de saúde (Tabela 2). As principais características que resultaram na exclusão de 14 mídias foi a apresentação de um enredo com ênfase apenas no estereótipo do biotipo e comportamento das pessoas com TA, sem uma clara exposição da complexidade do desenvolvimento de tais transtornos.

Tabela 2
Distribuição dos filmes e documentários que atenderam aos critérios relacionados à veiculação de informações pautadas no conhecimento científico de acordo com as especificidades analisadas, Ribeirão Preto, São Paulo, Brasil, 2020 (n=11)

Características	Conhecimento científico (n=11)
	n	%	Valor de p
Maior ênfase nas atitudes positivas das personagens*	8	73	0,047
Presença de profissionais de saúde no enredo	10	91	0,122
Sintomas baseados no DSM-5			0,017
3 ou menos	3	27
4 ou mais	8	73
Protagonista recebe tratamento	11	100	0,001

• ^*
  Como esse item também pode ser considerado subjetivo e sujeito a vieses de interpretação, no parágrafo seguinte, são apresentadas cenas que exemplificam o teor da análise empreendida.

No documentário “Thin”, na minutagem 10’30”, a terapeuta do grupo pede para alguém apresentar as regras e objetivo do grupo; estão presentes várias pacientes e uma refere que o grupo é um espaço para pedir ou receber suporte/apoio. Na minutagem 25’50”, um terapeuta atende uma jovem acompanhada de seu pai, internada na instituição. Ambos descrevem como se sentem em relação à situação de sofrimento da filha e são acolhidos pelo terapeuta que proporciona um espaço para os relatos. Essas cenas ilustram uma das mídias nas quais o enredo deu maior ênfase nas atitudes positivas das personagens. Outro exemplo disso pode ser observado na minutagem 68 do filme “Anorexia: A Ilusão da Beleza”, na qual a protagonista cria um site na internet chamado “lindo é o meu corpo”, que propaga mensagens de autoaceitação corporal.

A Tabela 3 apresenta o título dos filmes e documentários que atenderam aos critérios relacionados à veiculação de informações pautadas no conhecimento científico, detalhando as características mais relevantes e com destaque para as cinco mídias consideradas mais pertinentes para o ensino psicopatológico e assistencial dos TA.

Tabela 3
Título das mídias que atenderam aos critérios relacionados à veiculação de informações pautadas no conhecimento científico (n=11) e as mais pertinentes para finalidade didática (n=5; as cinco primeiras da lista), Ribeirão Preto, São Paulo, Brasil, 2020

Títulos	Diagnóstico	Ênfase em atitudes positivas	Profissionais de saúde	Mais sintomas do DSM-5	Tratamento
O Mínimo Para Viver	√	√	√	√	√
Louis Theroux - Sobre a Anorexia	√	√	√	√	√
Os Labirintos da Anorexia	√	√	√	√	√
Thin	√	√	√	√	√
Maris: Cura Pela Yoga	√	√	√	√	√
Body	X	√	√	√	√
Amy	X	√	√	√	√
Sharing the Secret	X	√	√	√	√
Dying to Dance	X	√	√	√	√
Stay Strong	X	√	X	√	√
A Estrada Interior	X	X	√	√	√

DISCUSSÃO

Quanto ao modo de abordagem da temática, na maioria dos enredos, são apresentados algum sinal, sintoma ou diagnóstico, bem como caracterização das protagonistas compatíveis com a literatura científica. Há uma ênfase na anorexia nervosa e nas repercussões do apelo midiático e do estresse familiar no desenvolvimento e curso dos TAs.

Apesar desse cenário, ao adotar os critérios relacionados à pertinência científica, identificou-se que grande parte das mídias enfatizava estereótipos relacionados ao biotipo da mulher ao invés de retratar a complexidade do transtorno. Quanto à indicação para o uso com finalidade didática, o que diferenciou as cinco mídias mais indicadas foi a apresentação de cenas que retratavam de forma fidedigna o diagnóstico de TA, bem como a ênfase na complexidade do desenvolvimento, curso e desfecho desse fenômeno.

A ideia de “culto ao corpo” é marcada pelo final do século XX e início do século XXI, período com forte ênfase na busca obsessiva pelo corpo perfeito. Tal busca, sobretudo às mulheres das classes médias urbanas, passou a ser um estilo de vida(²⁶). Nesse sentido, a crescente e maior veiculação de filmes e documentários sobre TA nos anos recentes, conforme apontado pelos resultados do presente estudo, sugere influência dessa ideia em relação ao interesse das pessoas na temática e possível aumento de audiência a mídias que discorrem sobre a mesma.

O modo como as personagens com TA foram representadas nos enredos, majoritariamente, correspondia aos critérios diagnósticos vigentes, bem como aos principais dados epidemiológicos relacionados às características mais prevalentes nas pessoas com tal transtorno (maioria adolescentes e adultos jovens do sexo feminino)(⁹,¹⁵,²⁰). Identificou-se também que a maioria desses enredos foram produzidos nos Estados Unidos, o que certamente promove a disseminação de aspectos específicos desse país (biotipo, vestimentas e rotina), podendo exercer, implicitamente, certa influência sobre os telespectadores de outras culturas, corroborando estudos prévios que versam sobre a influência dos fenômenos de globalização e ocidentalização no desenvolvimento do TA(⁶,²³).

Nesse sentido, vale destacar que o reflexo sociocultural no desenvolvimento e curso dos TA tem sido amplamente discutido na literatura, que destaca a potencial influência dos padrões culturais dos países desenvolvidos e ocidentais sobre os demais e o peso da globalização na disseminação de tais padrões(⁶,²³,²⁷). Estudo de revisão contra argumenta que o fenômeno da “ocidentalização”, por si só, não explica o aumento das taxas de tais transtornos nos diferentes países, apontando que a industrialização e a urbanização têm sido fatores propiciadores de mudança em diferentes esferas da sociedade. Os autores de tal revisão entendem que tais mudanças têm revelado manifestações previamente desconhecidas nas diferentes culturas, e isso tem se refletido na discrepância das taxas de prevalência dos TA entre os países. Corroboram, portanto, a noção de que múltiplos fatores devem ser considerados na discussão de tal fenômeno e que as especificidades socioculturais assumem peso importante, embora ainda não tão elucidados nos estudos científicos(²⁷).

Identificou-se que as mídias enfatizavam a possível influência midiática sobre as pessoas em relação à sua autoimagem e ao desenvolvimento de TA. Nesse sentido, outro estudo descreve que falar sobre tal temática por si só já se constitui um fator de risco para o desenvolvimento de anorexia e bulimia em grupos suscetíveis(²⁸).

Adicionalmente, cabe destacar que as principais características que diferenciam a mídia cinematográfica das demais são o tempo e a intensidade da exposição do telespectador ao enredo e à ideia veiculada, reforçando ainda mais seu possível caráter influenciador. Assim, os resultados apresentados enfatizam certa dicotomia em relação a tais mídias, pois, ao passo que proporcionam entretenimento, também se configuram um potente influenciador de comportamentos, podendo constituir um fator de risco adicional sobretudo para os grupos mais vulneráveis emocionalmente.

Logo, em termos de prevenção, entende-se que seria primordial as mídias com essas características seguirem as recomendações de aviso de conteúdo (trigger warnings), a fim de dar subsídios ao espectador para a tomada de decisão sobre o acesso ao mesmo, bem como indicarem possíveis recursos àqueles que se identificarem ou necessitarem de suporte nesse sentido, a exemplo do aviso fornecido pela Netflix em relação à série “13 Reasons Why” (“aviso de conteúdo: esta série contém cenas que os espectadores podem considerar perturbadoras, incluindo imagens explícitas de abuso sexual, consumo de drogas e suicídio. Se você ou alguém que você conhece estiver enfrentando um momento difícil e precisar de ajuda, acesse 13ReasonsWhy.info para obter mais informações”)(²⁹). Além disso, o recrudescimento de políticas públicas e estratégias relacionadas à promoção de saúde mental com foco no fortalecimento dos recursos psíquicos dos grupos vulneráveis e de suas redes de apoio devem ser priorizados a despeito de qualquer mecanismo de censura ou controle.

Apesar de todas essas ressalvas, considera-se que o uso didático de mídias cinematográficas, desde que criteriosamente selecionadas, contempla inúmeras dimensões, como a pedagógica, a ética e a psicossocial. Assim, o uso de filmes/documentários constitui-se um potente recurso que fomenta o pensamento crítico, promovendo a reflexão, a observação e estimulando debates, sendo, assim, capaz de ampliar o conhecimento conceitual e promover um ensino dinâmico acerca do assunto(¹). Em termos de finalidade didática, grande parte das mídias cinematográficas analisadas foram consideradas pertinentes para o uso no ensino psicopatológico e assistencial de estudantes da área da saúde segundo os critérios utilizados no presente estudo.

Limitações do estudo

O processo de coleta de dados, por mais objetivo que se propôs, implicou, de certo modo, a interpretação da autora diante das cenas assistidas e, portanto, passível de algum viés. Entretanto, visando minimizá-lo, utilizaram-se a estratégia de validação por um terceiro analista, o registro das minutagens das cenas para discussão com os membros do grupo, sendo explicitado os detalhamentos do teor analisado em cada uma das mídias, de modo que o leitor possa também problematizar suas percepções sobre as proposições aqui elencadas. Além disso, foram empreendidos testes estatísticos para validar os critérios adotados para a seleção dos enredos mais pertinentes em termos científicos e culturais, considerando as diferentes variáveis utilizadas.

Contribuições para as áreas da enfermagem, saúde, ou políticas públicas

Em termos práticos, a lista classificatória dos filmes e documentários propicia informações úteis para subsidiar o ensino da enfermagem no campo da saúde mental, tendo em vista que a seleção criteriosa dessas mídias abarcou as dimensões psicopatológicas, psicossociais e éticas no desenvolvimento do TA. Nesse sentido, o presente estudo contribui de maneira importante ao investigar e disponibilizar essa seleção midiática de amplo acesso que também poderá ser utilizada como recurso didático no aprimoramento formativo dos profissionais de saúde.

CONCLUSÕES

Os TAs, na maioria dos enredos, foram representados de maneira compatível com a realidade social e com a literatura científica sobre o tema. Com base nos critérios adotados, 11 das 25 mídias foram consideradas passíveis de serem utilizadas com a finalidade didática nos cursos da área da saúde. Dessas, dois filmes e três documentários se destacaram por apresentarem características e cenas mais relevantes no que diz respeito à fidedignidade dos sintomas e diagnóstico, bem como por suscitar reflexões importantes sobre as repercussões dessa doença no entorno social e os desafios do processo de reabilitação. Destaca-se que as indicações são permeadas por exemplos descritivos de cenas relacionadas ao suporte familiar, à ênfase em atitudes positivas das personagens e na sua busca por ajuda, facilitando a escolha e justificando seu potencial como recurso didático na formação dos profissionais de saúde.

• FOMENTO
  Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, sob Processo nº 127719/2019-9.

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Editado por

EDITOR CHEFE: Dulce Barbosa

EDITOR ASSOCIADO: Anabela Coelho

Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  15 Mar 2024
• Data do Fascículo
  2024

Histórico

• Recebido
  05 Out 2023
• Aceito
  02 Nov 2023