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Relações de poder e saber na escolha pela cesárea: perspectiva de puérperas

RESUMO

Objetivos:

analisar as razões e motivos que mobilizam a escolha pela cesariana por meio da descrição das tramas, relações de poder, lutas e regimes de verdades sobre essa forma de parir.

Métodos:

pesquisa qualitativa, inserida na vertente pós-estruturalista e realizada em um município do sul do Rio Grande do Sul. Teve como cenários um hospital de ensino e os domicílios. Participaram 13 puérperas que realizaram cesariana. A análise se constituiu de questões elaboradas diante das informações produzidas e articuladas com as teorizações foucaultianas.

Resultados:

foram elaboradas duas categorias: Eu queria parto vaginal, mas foi cesárea, e Tu tens certeza que queres parto normal?: caminhos e descaminhos na escolha pela cesariana.

Considerações Finais:

o estudo permitiu problematizar que a escolha pela cesariana está veiculada à circulação de “verdades”, que acontecem por meio de discursos na sociedade.

Descritores:
Cesárea; Relações Médico-Paciente; Saúde da Mulher; Parto; Obstetrícia

ABSTRACT

Objectives:

to analyze the reasons and motives that initiates the decision to choose a cesarean section, by describing the plots, power relationships, struggles, and systems of truths regarding this method of childbirth.

Methods:

a qualitative study, inserted into a poststructuralist perspective, and conducted in a city in southern Rio Grande do Sul state. The settings were a teaching hospital and home residences. Thirteen postpartum women who had a cesarean section participated. The analysis consisted of questions based on the information produced and articulated with Foucauldian theories.

Results:

two categories were developed: “I wanted a vaginal delivery, but it was a cesarean section”, and, “Are you sure you want a vaginal delivery: paths and detours in the choice of cesarean section”.

Final Considerations:

the study allowed us to identify problems in the choice for a cesarean section, which is associated with the circulation of “truths” that occur via discourses on society.

Descriptors:
Cesarean Section; Physician Patient Relations; Women’s Health; Parturition; Obstetrics

RESUMEN

Objetivos:

analizar las razones y motivos que llevaron a escoger el parto cesáreo, utilizando la descripción de tramas, relaciones de poder, luchas y régimen de verdades sobre esa forma de parir.

Métodos:

investigación cualitativa, incluida en la vertiente postestructuralista y realizada en un municipio del sur de Rio Grande do Sul. Tuvo como escenarios, un hospital docente y los domicilios. Participaron 13 puérperas sometidas a parto cesárea. El análisis, fue construido por preguntas elaboradas frente a las informaciones producidas y articuladas con las teorías Foucaultianas.

Resultados:

fueron elaboradas dos categorías: ¿yo quería parto vaginal, pero fue cesaría y tú tienes seguridad que quieres parto normal?: trayectoria y obstáculos para decidir por el parto cesárea.

Consideraciones Finales:

el estudio permitió problematizar que escoger la cesaría está condicionada a un círculo de “verdades”, que ocurren por medio de discursos en la sociedad.

Descriptores:
Cesárea; Relaciones Médico-Paciente; Salud de la Mujer; Parto; Obstetricia

INTRODUÇÃO

Até o século XIX, as práticas relacionadas ao parto eram vislumbradas sob a perspectiva da feminilidade, por se tratar de um evento que acontecia entre as mulheres. Em resposta ao aperfeiçoamento científico, as questões referentes ao parto tornaram-se parte do campo da medicina e, para responder às necessidades da época, esse evento passou a ser considerado sob a perspectiva patológica, que demandava intervenções, medicalização e procedimentos invasivos. Frente a isso, a cesariana passou a ser considerada na sociedade como uma possibilidade de via de nascimento, tendo em vista que os avanços nas técnicas anestésicas, cirúrgicas e de hemoderivados tornaram o procedimento mais seguro ao longo dos anos(11 Abreu LP, Lira Filho RL, Santana RL. Obstetric characteristics of pregnant women undergoing cesarean section, by the Robson Classification. Rev Enferm UERJ. 2019;27(e37858). https://doi.org/10.12957/reuerj.2019.37858
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).

Contudo, os elevados índices de cesariana têm provocado inúmeros debates acerca dos fatores que mobilizam a escolha por essa via de nascimento na sociedade contemporânea, assim como sobre a maneira que se estabeleceu essa modalidade hegemônica de parir em determinados países, especialmente na realidade brasileira. Com isso, é preciso enfatizar que os estudos e pesquisas evidenciam que a cesariana, quando realizada de forma rotineira, pode acarretar uma gama de complicações à mãe e ao bebê(22 Caughey AB, Cahill AG, Guise JM, Rouse DJ. Safe prevention of the primary cesarean delivery. Am J Obstet Gynecol. 2014;210(3):179-93. https://doi.org/10.1016/j.ajog.2014.01.026
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-33 Russo JA. Is free choice for cesarean section really free? Physis (Rio J). 2019;29(3):1-4. https://doi.org/10.1590/S0103-73312019290301
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).

A literatura aponta que a escolha pela cesariana envolve uma série de fatores, dentre eles as questões de âmbito familiar, o medo da dor, o receio das complicações para o bebê e a influência midiática ao relacionar o parto vaginal ao sofrimento e, sobretudo, a indicação da/do obstetra. Outro aspecto inerente à escolha pela cesariana está relacionado à escassez de diálogo entre gestantes e profissionais da saúde durante a gestação sobre as reais indicações da cesariana, fato que colabora para o medo do trabalho de parto e o desejo pela via cirúrgica(44 Fernandes JA, Campos GWDS, Francisco PMSB. Profile of high-risk pregnant women and co-management of the decision on the route of birth delivery between doctor and pregnant woman. Saúde Debate. 2019;43(121):406-16. https://doi.org/10.1590/0103-1104201912109
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-55 Lara SRG, Magaton APFS, Cesar MBN, Gabrielloni MC, Barbieri M. Experience of women in labor with the use of flowers essences. Rev Pesqui: Cuid Fundam. 2020;12:162-8. https://doi.org/10.9789/2175-5361.rpcfo.v12.7178
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).

Cabe ressaltar que, em algumas situações, as mulheres quando iniciam o pré-natal apresentam preferência pelo parto vaginal, porém, com o decorrer das consultas acabam modificando sua escolha pela cesariana, aderindo ao discurso proferido, muitas vezes, pela/o obstetra(66 Veleda AA, Gerhardt TE. From home to the third-dimension ultrasound: the paths in assistance of women assisted in the supplementary health sector of Porto Alegre - RS. Saúde Soc. 2018;27(3):929-43. https://doi.org/10.1590/s0104-12902018170427
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-77 Silva SD, Nakano AR, Bonan C. Routes of women submitted to cesariana in the public health care sector. Rev Pesqui: Cuid Fundam. 2021;13:8-16. https://doi.org/10.9789/2175-5361.rpcfo.v13.7114
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). Diante disso, é possível perceber que ainda que, muitas vezes, a mulher tenha a vontade de realizar o parto vaginal e apresente informações e conhecimentos sobre essa via de nascimento, a escolha do/da obstetra pela cesariana prevalece, uma vez que nesse contexto estão permeadas as relações de poder(88 Foucault M. Ditos e Escritos IV. Estratégia poder saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2010. 222p.).

As relações de poder são ancoradas em determinados campos de saber, que acontecem por meio de discursos, determinando o que pode ser pensado e como será, o que pode ser dito e como deve ser dito em cada época histórica(99 Foucault M. A arqueologia do saber. 8 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2014. 124 p.). Nesse sentido, é possível depreender que, em muitas situações, no momento da escolha pela via de nascimento, as mulheres se submetem às ações estabelecidas e prescritas pelos/as obstetras sobre seu corpo e seu comportamento, visto que se encontram em uma relação de poder, articulada ao saber biomédico. Apresentam-se, neste artigo, os resultados provenientes de uma tese, os quais norteiam a seguinte questão: “como acontecem as relações de saber e poder na escolha pela cesariana?”.

OBJETIVOS

Analisar as razões e motivos que mobilizam a escolha pela cesariana por meio da descrição das tramas, relações de poder, lutas e regimes de verdades sobre essa forma de parir.

MÉTODOS

Aspectos éticos

A pesquisa seguiu os princípios éticos da Resolução no 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde, do Ministério da Saúde (MS) e do Código de Ética dos Profissionais de Enfermagem(1010 Ministério da Saúde (BR). Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 466 de 12 de dezembro de 2012. Regulamenta a pesquisa envolvendo seres humanos. Diário Oficial da União: República Federativa do Brasil [Internet]. 2012 [cited 2020 Dec 5]; Seção 1:59 (col.3). D Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/cns/2013/res0466_12_12_2012.html
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). O estudo foi aprovado em 15 de janeiro de 2017 pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Pelotas. A participação das puérperas foi voluntária e todas assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, sendo assegurado o sigilo e o anonimato das participantes. As puérperas foram identificadas pela palavra puérpera seguida da ordem numérica das entrevistas (Puérpera 1; Puérpera 2; Puérpera 3 e, assim, sucessivamente).

Tipo de estudo

Pesquisa qualitativa, inserida na vertente pós-estruturalista. Os estudos nessa vertente abarcam a forma de questionar, problematizar questões e construir e elencar questões de pesquisa. Para tanto, é necessário se afastar do que é estabelecido, das verdades, das convicções, da universalidade e da tarefa de prescrever. Contudo, dispor de liberdade na elaboração desse modo de pesquisar não significa ausência de rigor. Nesse sentido, a vertente proposta no estudo considera o sujeito em fase de constituição, mudança e assujeitado às condições presentes na contemporaneidade, ou seja, com caráter modificável, como as verdades que se apresentam no seu tempo histórico(1111 Meyer DE, Paraíso MA. Metodologias de pesquisas pós-críticas ou sobre como fazemos nossas investigações. In: Meyer DE, Paraíso MA. Pesquisas pós-críticas em educação. Belo Horizonte: Mazza Edições; 2012. 15-22 p.). Além disso, para direcionar a redação deste artigo, foi utilizado o checklist Standards for Reporting Qualitative Research (SRQR)(1212 O'Brien BC, Harris IB, Beckman TJ, Reed DA, Coo DA. Standards for reporting qualitative research: a synthesis of recommendations. Acad Med. 2014;89(9):1245-51. https://doi.org/10.1097/ACM.0000000000000388
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), um guia da rede EQUATOR(1313 Equator Network. Enhancing the quality and transparency of health research [Internet]. 2019 [cited 2020 Nov 20]. Available from: http://www.equator-network.org/home
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).

Cenário do estudo

O presente estudo foi realizado em um município do sul do Rio Grande do Sul e teve um hospital de ensino e os domicílios das puérperas como espaços para a produção das informações.

Fonte de dados

Participaram do presente estudo 13 puérperas que atenderam os seguintes critérios de inclusão: ter realizado a cesariana na Clínica Ginecológica e Obstétrica do hospital participante e ser maior de 18 anos. Foram excluídas as puérperas que apresentaram natimorto. O número de puérperas foi determinado de acordo com o critério de saturação de dados, que consiste em interromper a captação de novas participantes quando ocorre a reincidência de informações(1414 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 14ª ed. São Paulo: Hucitec; 2014. 604 p.)..

Coleta de dados

Os dados foram coletados pela pesquisadora principal, por meio da técnica de entrevista em profundidade, entre os meses de março e maio de 2017. A técnica utilizada na coleta de dados prevê que o entrevistador desenvolva um grau de proximidade e intimidade com o participante do estudo, o que lhe permite destacar, com riqueza de detalhes, fatos importantes e transcendentes ao contexto de sua vivência(1515 Robles B. The in-depth interview: a useful technique in the field of physical anthropology Cuicuilco [Internet]. 2003 [cited 2021 Feb 21];18(52):39-49. Available from: http://www.scielo.org.mx/pdf/cuicui/v18n52/v18n52a4.pdf
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). Ressalta-se que a pesquisadora realizou a capacitação acerca da técnica de coleta de dados e teste piloto anterior à coleta de dados. A questão guia utilizada na entrevista foi: “Comente sobre sua experiência com o processo de escolha e realização do parto”.

O convite às participantes foi realizado após as primeiras 24 horas do nascimento do bebê, sendo que a pesquisadora não apresentava nenhum vínculo prévio com a maternidade ou com as puérperas participantes do estudo. Algumas puérperas desejaram realizar a coleta no hospital, em uma sala na maternidade ou no próprio quarto, quando privativo, a fim de preservar o sigilo. Para as puérperas que optaram por realizar a entrevista no domicílio, foi agendado o dia e horário. Com essas mulheres, a coleta aconteceu em um cômodo, com a presença somente da participante e da entrevistadora. Cabe ressaltar que todas as puérperas convidadas a participar do estudo aceitaram o convite, não havendo, portanto, nenhuma recusa.

As entrevistas foram gravadas em áudio e, após a transcrição, foram armazenadas em um arquivo único, com duração média de uma hora. A análise do material empírico foi pautada nas orientações sugeridas em pesquisas pós-estruturalistas, com leitura das informações produzidas, seguidas de ponderações a partir dessas questões. Nessa perspectiva, optou-se por evitar o seguinte tipo de questão: por que você escolheu a cesariana? Nos detivemos em questionar: como acontecem os discursos em relação à escolha da cesariana? Como se estabelecem as relações de poder e saber na escolha pela cesariana? Quais discursos ou práticas se constituem como regimes de verdade em relação à cesariana? O mapeamento dessas questões foi constituído em um quadro, a partir da similaridade das ideias presentes nos excertos das entrevistas. Na sequência, a interpretação dos dados foi descrita e articulada com os conceitos de relações de poder, saber e discurso(1111 Meyer DE, Paraíso MA. Metodologias de pesquisas pós-críticas ou sobre como fazemos nossas investigações. In: Meyer DE, Paraíso MA. Pesquisas pós-críticas em educação. Belo Horizonte: Mazza Edições; 2012. 15-22 p.), o que permitiu a elaboração de duas categorias analíticas: “Eu queria parto vaginal, mas foi cesárea e Tu tens certeza que queres parto normal?: caminhos e descaminhos na escolha pela cesariana”, que serão apresentadas a seguir.

RESULTADOS

Participaram da pesquisa 13 puérperas, com idade entre 20 a 41 anos. Seis delas apresentavam ensino superior completo, cinco concluíram o ensino médio e duas puérperas apresentavam ensino médio incompleto. Todas as puérperas realizaram o pré-natal. O número de consultas foi de oito a 13 consultas. No que se refere à internação hospitalar, seis puérperas foram atendidas pelo sistema privado e/ou particular e sete puérperas pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

Eu queria parto vaginal, mas foi cesárea

A presente categoria foi composta por excertos das entrevistas de puérperas que realizaram cesariana, tendo o parto vaginal como escolha inicial. Nove puérperas relataram que tinham escolhido o parto vaginal no início do pré-natal, entretanto, em razão de alterações fisiológicas, organização familiar e decisão do/da obstetra, modificaram essa escolha. Conforme os relatos, percebe-se que as mulheres escolheram o parto vaginal entendendo que esse proporcionaria maior protagonismo e autonomia.

Eu já li várias coisas sobre o parto. Quando eu comecei a pensar em engravidar e ter o meu filho, eu comecei a ler muito sobre parto normal, sobre parto humanizado, enfim, sobre o pós-operatório da cesárea e também deixar uma criança nascer quando ela está pronta, sabe? A natureza. Eu queria fazer parte disso. Eu queria ser a protagonista. Eu queria ter o meu filho. Quando ele saísse, eu queria segurar, eu fazer, eu me empoderar, eu li várias coisas sobre empoderamento [...]. Eu escolhi a [nome da obstetra] por indicação de uma colega de trabalho que tinha tido um filho e ela disse que ela era defensora de parto normal e eu queria parto normal, eu sempre quis e desde o início. (Puérpera 01)

Eu tive que fazer o pré-natal com outra obstetra que não era a minha ginecologista que me acompanhava, mas como a gente tinha o plano de saúde, eu mudei de obstetra. Desde o início, eu sempre falei para ela que eu queria fazer parto vaginal, porque como eu já tinha essa vontade e passei muito mal no outro pós-operatório [gravidez ectópica anterior]. Eu já disse para ela desde o início: “olha, eu quero parto normal!”. (Puérpera 10)

A preferência pelo parto vaginal também esteve relacionada à experiência prévia com o nascimento da/o primeira/o filha/o. Elas também mencionaram os benefícios da recuperação do parto vaginal em relação à cesariana, uma vez que favoreceria o retorno mais rápido às atividades.

Eu queria ter parto normal porque a minha primeira filha foi de parto normal, foi até o último dia previsto. Eu me sinto bem melhor também, porque o parto normal é dolorido ali na hora, mas depois a recuperação é bem mais rápida. Porque a gente consegue se reabilitar melhor, no parto normal, no dia seguinte, a gente consegue comer melhor, caminhar melhor. Não é que nem na cesárea. Na cesárea, tu sempre sentes a dor. É bem mais dolorido. [...] já estava tudo acertado com a minha obstetra que seria parto normal. (Puérpera 02)

O parto do meu outro filho foi normal, foi muito tranquilo. Ele mamou logo depois que nasceu. A minha reabilitação foi muito rápida. Isso me fez muito querer ter parto normal novamente. Eu tenho outra criança em casa e então já precisaria cuidar das coisas da casa. Além de todos os benefícios do parto vaginal para a criança. (Puérpera 03)

Eu já havia tido cesárea na outra gestação, como eu sou gordinha tive muita dificuldade na recuperação, minha cicatrização foi difícil, além da dor. Nesta gestação, eu queria muito o parto normal, eu havia feito leituras e participava de blogs na internet sobre os benefícios do parto normal para a mãe e o bebê Além do mais, meu marido trabalha e eu tinha meu outro filho para cuidar. Então, para mim o melhor era o parto normal. (Puérpera 05)

Sempre que pensei em engravidar desde o início, sempre desejei parto normal, porque sofre menos, a recuperação é mais rápida. Como o nascimento da minha primeira filha foi cesárea, eu sofri muito com a recuperação, além da dificuldade para amamentar. Mas eu não iria insistir em algo que pudesse prejudicar o meu filho, já que não tive dilatação na gestação anterior. (Puérpera 13)

Para uma das puérperas entrevistadas, a escolha pelo parto vaginal esteve atrelada ao fato de apresentar o vírus HIV. Ela menciona que recebeu orientação médica sobre essa possibilidade e, a partir disso, passou a desejar essa via de nascimento.

Eu sempre quis ter parto normal, porque é melhor para mãe e bebê, mas por eu ser soro positivo, eu pensava que não daria, mas os médicos falaram que eu poderia ter parto normal por eu ser indetectável. Me falaram que iriam induzir o meu parto. Quem me explicou tudo isso foi a doutora. Eu sabia que por ser soro positivo, eu não poderia amamentar o meu filho. Então, eu queria a oportunidade de ter um parto normal para eu poder participar do nascimento dele, me sentir mais perto, já que eu não iria poder amamentar. (Puérpera 06)

Observa-se, assim, que o fato dessa participante ter contraindicações absolutas à amamentação, implicou no desejo pelo parto vaginal por considerar que este permitiria maior proximidade e vínculo com bebê. Ela também visualizava o parto como a sua melhor forma de protagonismo na trajetória do nascimento.

Tu tens certeza que queres parto normal?: caminhos e descaminhos na escolha pela cesariana

A seguir, apresentam-se fragmentos das entrevistas de puérperas sobre as situações que as fizeram mudar de opinião em relação à via de nascimento ao longo do acompanhamento pré-natal. Também é possível visualizar os caminhos que as distanciaram do parto vaginal e as aproximaram da cesariana. Cabe destacar a influência forte e hegemônica da/o obstetra nessa mudança, além de outras situações que colaboraram para o desfecho da cesariana.

Quando eu mostrei os meus níveis de controle glicêmico para ela [obstetra], ela já foi me preparando: “olha tu tens uma grande chance de fazer cesárea. Eu sei que tu queres parto normal, mas tu precisas ver isso aqui, isso tende a piorar durante a gravidez, tu tens que ir te preparando, tens que ficar com a cabeça aberta para o teu filho nascer da melhor maneira possível”. Mesmo assim, eu estava preparada e achava que eu iria conseguir ter parto normal. (Puérpera 01)

Tem resistência! Eu percebi uma resistência com vários motivos assim: “olha, o teu bebê é grande”, “olha, tem essa questão do mioma [a puérpera apresentou um mioma durante a gestação], tu tens certeza que queres parto normal? [pergunta da obstetra]”. Mas eu insisti até o dia do último momento. (Puérpera 10)

Eu falei para obstetra que eu tinha preferência pelo parto normal, porque meu outro filho foi normal, mas, na minha primeira consulta, a minha ginecologista já me disse que seria cesárea, por causa da minha idade, para eu não fazer forças. Ela deixou bem claro desde a primeira consulta que o meu parto seria cesariano e que iriam tirar antes das 39 ou 40 semanas. (Puérpera 03)

Eu não tinha preferência pelo parto normal, por que tenho uma filha de sete anos em idade escolar que precisa da minha atenção, mas na minha primeira consulta a minha ginecologista já me disse que seria cesárea, por causa do diabetes, devido ao risco de sangramento, e ela deixou bem claro desde a primeira consulta que seria cesariana e que iria ser realizada antes das 39 ou 40 semanas. (Puérpera 09)

Os excertos das entrevistas com as puérperas permitem observar um direcionamento dos/das obstetras durante o pré-natal para a modificação da decisão das puérperas pela via de nascimento. Destaca-se que os excertos supramencionados são de puérperas que realizaram pré-natal no sistema suplementar.

Entretanto, como mostra o excerto a seguir, para as puérperas que realizaram a cesariana no SUS, não houve a explicação do porquê da mudança da via de nascimento. Ainda é necessário destacar que, em outras situações, essa mudança foi decidida pela/o obstetra, no SUS ou fora dele.

Olha, sinceramente, eu estava com tanta dor que, na hora, eu não pensei nada. É tipo assim: a senhora é médica, é a sua escolha, é o certo fazer uma cesariana? Então, vamos fazer uma cesariana. Se é, se tem que fazer uma cesariana para minha filha nascer bem, eu sinceramente esqueci de perguntar para minha irmã o porquê ela não falou também para eles que eu poderia ter parto normal. Mas eu nem me atinei na hora a falar para eles que eu queria parto normal, sabe? Porque quando tu estás ali com dor, tu esqueces de tudo, tu não ficas preocupada se vai ser parto normal ou cesariana, tu só queres que nasça o teu filho de uma vez. (Puérpera 06)

Durante todo o pré-natal, a Enfermeira do posto disse que eu tinha tudo para parto normal, eu cheguei com contração por volta das 20 horas, a bolsa já tinha rompido, a meia noite, eles chegaram dizendo que tinha que fazer cesárea, porque eu não tinha dilatação. Eu ainda perguntei se não poderia esperar, pois eu queria normal mas disseram que o bebê poderia entrar em sofrimento. (Puérpera 08)

Observa-se que a não realização do parto vaginal parece gerar frustração em algumas mulheres. As participantes demonstraram que criaram expectativas sobre essa vivência e que idealizaram a realização do parto vaginal e uma maior proximidade com o recém-nascido. Outra participante ainda menciona que não questionou sobre a possibilidade de realizar o parto vaginal, delegando à/ao obstetra o controle da situação.

Eu queria ter o meu filho. Quando ele saísse, eu queria segurar, eu queria fazer. Quando ele nasceu, colocaram ele em cima de mim, mas rápido, porque eu estava passando mal da anestesia e parecia que eu ia vomitar em cima dele e eu não queria vomitar em cima dele. Eu pedi para tirarem ele e depois eu não vi nunca mais, só depois eu fui ver quando eu fui para o quarto. (Puérpera 01)

Foi frustrante, bem frustrante, porque eu planejei isso, durante toda a gestação e eu sempre falei muito do parto, porque a maioria das pessoas aqui no nosso país faz cesariana sem indicação. Então, a gente percebe que é uma questão que poderia ser evitada porque é uma cirurgia, mas foi marcado, para você ter uma ideia, há duas semanas atrás [antes da entrevista, realizada logo após o parto]. (Puérpera 10)

Sinceramente, recém ontem eu perguntei para uma doutora o porquê de eu ter feito cesárea, porque eu queria parto normal, mas eles não me perguntaram se eu queria parto normal ou cesárea, só que eu cheguei aqui com dor e a única coisa que me falaram foi que eles davam prioridade para quem era HIV positivo. Eles faziam cesariana, porque era HIV positivo, só isso, e então eu fui para o bloco cirúrgico. Só isso. Não me perguntaram se eu queria cesárea, se eu queria parto normal, não me perguntaram nada. (Puérpera 06)

A partir do relato da puérpera, é possível inferir que, ainda que ela apresentasse conhecimento de que sua carga viral era indetectável, no momento do parto, fatores como ansiedade, temor, angústia e a preocupação com o bem-estar do bebê, corroboraram para que não fosse realizados questionamentos acerca da possibilidade de realização do parto vaginal e, assim, os/as obstetras escolheram a via de nascimento. Segundo ela, a equipe de saúde envolvida no parto não esclareceu o motivo pelo qual ela foi submetida à cesariana.

Ademais, como é possível observar nos relatos, existe a atribuição de responsabilidade às mulheres, em caso de alguma intercorrência com a/o filha/o durante o parto escolhido por elas. Assim, elas delegam ao profissional de saúde a decisão sobre a via de nascimento.

Quem escolheu o meu parto foi a médica. Se ela tivesse me apoiado e dito, “vamos lá, vamos tentar até o final e se tudo der errado a gente tenta cesárea”. Não, ela disse: “o teu bebê é grande”, sempre me questionando se eu tinha certeza do parto normal. Então, isso influencia na tua decisão. Se não tivesse a questão do mioma ou só o fato de ela ser grande, eu iria levar até ao final, mas eu até falei para minha mãe que ela veio com o papinho da cesárea, eu também não quis ir contra ela e arriscar, mas porque eu estava insegura, se eu tivesse segura eu tinha tentado o parto normal. (Puérpera 10)

Eu acredito que quando tu chegas numa decisão junto com o médico, tu estás sendo influenciada por ele, porque na verdade quem tem o conhecimento é ele, porque por mais que eu seja da área da saúde e entenda um pouco, por exemplo, eu sei como é a bioquímica da Diabetes Mellitus Gestacional, eu sei que ela pode causar vários problemas mesmo, mas, mesmo assim, eu acho que a pessoa que tem um ginecologista, ela confia nele. (Puérpera 01)

Não questionei em nenhum momento. Ah, porque eu quero parto normal! Se precisa ser cesariana vai ser, porque o médico que sabe o que é o melhor, né? O endocrinologista que me acompanhava também disse, olha tem que ser cesariana, parto normal eu não aconselho. Eu já tenho 41 anos, é a minha primeira gestação, eu queria muito o parto normal, mas confio na medicina. (Puérpera 09)

Nos excertos, as puérperas mencionaram a falta de apoio do profissional de saúde em relação à decisão materna, associada à insegurança da mulher quanto à necessidade ou não da realização da cesárea. Também percebe-se a confiança e o poder concebido pela mulher ao médico sobre o seu próprio corpo.

DISCUSSÃO

A experiência do parto vaginal, quando ancorada por respeito e segurança, pode possibilitar à mulher uma experiência existencial diferenciada, gerando sentimento de competência enquanto mãe e pessoa. Além disso, pode provocar recordações afetivas positivas relacionadas à maternidade e ao bem-estar físico e emocional por estar livre da sensação dolorosa ocasionada pela ferida operatória(55 Lara SRG, Magaton APFS, Cesar MBN, Gabrielloni MC, Barbieri M. Experience of women in labor with the use of flowers essences. Rev Pesqui: Cuid Fundam. 2020;12:162-8. https://doi.org/10.9789/2175-5361.rpcfo.v12.7178
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).

No que se refere à cesariana, a literatura aponta que, quando bem indicada, promove benefícios à mãe e ao recém-nascido, especialmente, na prevenção de sequelas neonatais. Entretanto, a realização desta prática sem critérios bem definidos acarreta riscos adicionais. Como todo processo cirúrgico, a cesariana pode apresentar complicações anestésicas, acidentes operatórios e reações transfusionais(1616 Paiva ACPC, Reis PV, Paiva LC, et al. From decision to cesarian: the woman perspective. Rev Enferm Cent Oeste Min. 2019;9:e3115. https://doi.org/10.19175/recom.v9i0.3115
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).

De acordo com as puérperas entrevistadas, a opção inicial pelo parto vaginal foi produzida e fortalecida por leituras, experiências familiares e a busca pelo autoconhecimento corporal. Entretanto, ainda que as mulheres tivessem desejo pelo parto vaginal, o discurso médico vinculado à cesariana mostrou-se hegemônico entre os/as obstetras na decisão da via de nascimento.

A experiência prévia das puérperas entrevistadas com o parto vaginal também foi determinante na escolha da via de nascimento. Outro aspecto apontado foi o entendimento de que o parto vaginal possibilitaria uma recuperação mais rápida e auxiliaria a puérpera no autocuidado e cuidado com o recém-nascido. Essa percepção foi incrementada em situações nas quais as puérperas precisavam conjugar o cuidado com outros/as filhos/as e os afazeres domésticos, sendo difícil cumprir com o repouso necessário no pós-operatório da cesariana. Nessa direção, o estudo que buscou conhecer as influências de mulheres na escolha do parto vaginal revelou que elas que haviam optado por essa via de nascimento devido à possibilidade de maior autonomia, e retorno mais rápido às atividades diárias(1717 Martins APC, Jesus MVN, Prado Júnior PP, Passos CM. Aspects influencing women’s decision making about the mode of delivery. Rev Baiana Enferm. 2018;32:e25025. https://doi.org/10.18471/rbe.v32.25025
https://doi.org/10.18471/rbe.v32.25025...
).

Ainda que algumas puérperas tenham se amparado em determinado campo de saber e em experiências pessoais e/ou de familiares para optar pelo parto vaginal, entende-se que uma hierarquia marcou as relações de poder entre elas e os/as obstetras que, não raro, fez com que a decisão final fosse dos/as médicos/as. Portanto, na atualidade, ainda que a gestante manifeste o desejo pelo parto vaginal, em muitas situações sua vontade não é considerada, pois o discurso da cesariana se mostra hegemônico na obstetrícia. Desta forma, a gestante que opta pelo parto vaginal necessita lançar mão de leituras do suporte de amigos, familiares e outros profissionais da saúde, bem como buscar maior conhecimento sobre seu corpo, para sustentar sua decisão nas relações com os/as obstetras.

Concomitante aos resultados deste estudo, produção científica realizada em sete maternidades da região Centro-Oeste de Minas Gerais com 36 mulheres, 10 enfermeiras obstetras e 14 médicos obstetras, aponta que foi possível associar a decisão de realizar cesárea aos profissionais de saúde. Os autores indicam que as mulheres atribuíram a decisão pela cesariana à preocupação dos profissionais com o bem-estar materno-infantil e à ideia de que intervenção tecnológica era necessária para o nascimento de um bebê saudável. Ainda que as mulheres desejassem o parto vaginal, consideraram que os obstetras não fariam cesárea, caso não fosse necessário(1818 Oliveira VJ, Penna CMM. Every birth is a story: process of choosing the route of delivery. Rev Bras Enferm. 2018;71(Suppl 3):1228-36. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2016-0497
https://doi.org/10.1590/0034-7167-2016-0...
).

Infere-se que os cuidados e os vínculos estabelecidos entre obstetras e gestantes possibilitam relações de confiança, que importam para que as mulheres tenham o mínimo de segurança no processo de gestação e parturição. Porém, é preciso ponderar que, nessas relações, também estão presentes discursos e enunciados de campos de poder e saberes específicos, nesse caso, os conhecimentos biomédicos que situam os sujeitos e estabelecem posições de quem pode enunciar verdades acerca da gestação e da parturição.

O discurso do risco é um bom exemplo uma vez que, aliado à intensa vigilância, gera a necessidade de exames, prescrição de polivitamínicos, alimentação saudável, atividades físicas, cuidados com as mamas e períneo, técnicas de relaxamento e respiração, entre outros cuidados prescritivos. Assim, tal discurso produz um adestramento do corpo grávido na busca da prevenção de complicações obstétricas. Nessa perspectiva, essas interferências reforçam a ideia de que existem imperfeições ou falhas de funcionamento do corpo grávido, próprio do campo biomédico hegemônico(1919 Ayres LFA, Henriques BD, Amorim WM. The cultural representation of “natural childbirth”: the outlook on the pregnant body in the mid-twentieth century. Ciênc Saúde Colet. 2018;23(11):3525-34. https://doi.org/10.1590/1413-812320182311.27812016
https://doi.org/10.1590/1413-81232018231...
).

Outrossim, as orientações e intervenções fornecidas no pré-natal ou durante o processo de parturição são formas de transmissão de um saber que age diretamente sobre o corpo feminino, indicando as formas adequadas de conduzir a parturição e, assim, delimitar contornos de quem está autorizado a conduzir as condutas no pré-natal, parto e puerpério. Um dos efeitos dessas relações hierárquicas de saber-poder foi reconhecido no pouco acolhimento dos/as obstetras quanto à via de nascimento escolhida pelas puérperas entrevistadas. Mesmo com a presença de alterações fisiológicas, algumas puérperas disseram que rejeitaram a possibilidade de realizar a cesariana até o final do terceiro trimestre da gestação, demonstrando que, nas relações estabelecidas com os/as obstetras, exerciam certa liberdade e resistência.

Nesse sentido, Foucault(2020 Foucault M. The hermeneutics of the subject. São Paulo: WMF Martins Fontes Ltda; 2011. 674 p.), ao discutir as relações de poder-saber, argumenta que nelas se exerce certo grau de liberdade. Não fosse assim, deveriam ser denominadas de relações de violência. A hierarquia que conforma o diagrama de poder em que estão situadas as puérperas e obstetras indica que o discurso biomédico conduz a conduta das mulheres, sem resistências. O poder-saber biomédico, como pode ser aqui reconhecido, conduz a gestante a ponderar sua opção.

O discurso biomédico acontece desde o pré-natal ou até de forma anterior a esse período, devido à confiança e ao prestígio depositado no profissional médico pela sociedade, considerando o status social do saber do qual é detentor. Esse saber o autoriza como detentor de um conhecimento técnico-científico responsável pelo cuidado da mãe e de seu filho, passando, assim, a ordenar e decidir as questões referentes ao corpo das gestantes. Outro aspecto relevante é a presença do hospital enquanto instituição que estabelece posições diferenciadas daqueles que cuidam e daqueles que são cuidados, colaborando para a fabricação de corpos submissos e docilizados ao longo do pré-natal e do parto(66 Veleda AA, Gerhardt TE. From home to the third-dimension ultrasound: the paths in assistance of women assisted in the supplementary health sector of Porto Alegre - RS. Saúde Soc. 2018;27(3):929-43. https://doi.org/10.1590/s0104-12902018170427
https://doi.org/10.1590/s0104-1290201817...
).

A condução da/o obstetra na escolha pela cesariana também pode ser vislumbrada em pesquisa desenvolvida com mulheres sobre a cogestão na escolha do parto. O estudo revelou que, quando as mulheres fizeram a escolha pela via de nascimento individualmente, a maioria optou pelo parto vaginal. Porém, quando a escolha acerca da via de nascimento foi do obstetra, a maioria indicou a cesariana. Nos casos em que foi possível fazer a gestão compartilhada da decisão, observou-se que preponderou a escolha pela cesariana, entretanto, em percentual menor do que quando a decisão foi exclusiva do médico(44 Fernandes JA, Campos GWDS, Francisco PMSB. Profile of high-risk pregnant women and co-management of the decision on the route of birth delivery between doctor and pregnant woman. Saúde Debate. 2019;43(121):406-16. https://doi.org/10.1590/0103-1104201912109
https://doi.org/10.1590/0103-11042019121...
).

No estudo em tela, uma das puérperas também relatou que o/a obstetra questionou se, de fato, ela queria o parto vaginal, referindo o tamanho do feto e o mioma como possíveis fatores de risco. Cabe ressaltar que algumas puérperas, além de terem buscado o conhecimento, eram profissionais da saúde e, ainda assim, houve a prevalência da vontade da/o obstetra, desvelando as relações assimétricas de poder entre os profissionais de saúde e as gestantes.

Ademais, é preciso destacar que, quando questionadas sobre a escolha da cesariana, as entrevistadas atribuíram a decisão aos argumentos da/o obstetra, evidenciando uma relação de poder-saber que os/as autoriza para isso. Por meio dos enxertos, é possível observar que as puérperas atribuem à/ao obstetra o domínio do campo do saber da gestação e do parto. Ainda, é possível perceber que o saber científico da/o obstetra se vincula e colabora para o exercício de uma relação hierárquica de poder, que incide sobre o corpo das gestantes/parturientes.

Autores propõem a reflexão de que a hegemonia obstétrica incide sobre o parto pautada na alienação da mulher acerca de seu próprio corpo e na crença dos benefícios da tecnologia. Nesse sentido, ambos apresentam-se como requisitos para se esquivarem do parto como um evento que comporta o descontrole e a imprevisibilidade. Nessa perspectiva, o discurso biomédico também não considera a vontade e o conhecimento das gestantes(1818 Oliveira VJ, Penna CMM. Every birth is a story: process of choosing the route of delivery. Rev Bras Enferm. 2018;71(Suppl 3):1228-36. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2016-0497
https://doi.org/10.1590/0034-7167-2016-0...
,2121 Arik RM, Parada CMGL, Tonete VLP, Sleutjes FCM. Perceptions and expectations of pregnant women about the type of birth. Rev Bras Enferm. 2019;72(Suppl 3):41-9. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2017-0731
https://doi.org/10.1590/0034-7167-2017-0...
).

Salienta-se também que o discurso do/a obstetra é marcado pela responsabilização da mulher sobre a possibilidade de um desfecho negativo no parto vaginal. Tal ponderação colabora para que o desejo do parto vaginal fosse deixado de lado pela mulher e a cesariana fosse pensada como a melhor decisão a ser tomada para o bem-estar do seu bebê.

Nesse sentido, a literatura coaduna-se com o resultado do presente estudo ao sinalizar que o discurso do parto hospitalar, na atualidade, remete ao obstetra a figura de resolutividade. Com isso, o processo de parturição passa a ser considerado o como patologia ou problemática que precisa ser resolvida com a realização de intervenção cirúrgica. Assim, a participação e a espontaneidade da mulher são colocadas em segundo plano, em detrimento do saber e da eficácia das prescrições realizadas pelos/as obstetras(22 Caughey AB, Cahill AG, Guise JM, Rouse DJ. Safe prevention of the primary cesarean delivery. Am J Obstet Gynecol. 2014;210(3):179-93. https://doi.org/10.1016/j.ajog.2014.01.026
https://doi.org/10.1016/j.ajog.2014.01.0...
,2222 Kennedy DK, Kapodtsi E, Milipaak j, Kennedy DK, Mensima AR. Reasons for Women's Choice of Elective Caesarian Section in Duayaw Nkwanta Hospital. J Pregnancy. 2019.232743. https://doi.org/10.1155/2019/2320743
https://doi.org/10.1155/2019/2320743...
).

Desse modo, nas decisões sobre as escolhas e os direitos sobre o corpo, a mulher é responsável por si apenas em partes, pois ainda que priorize o cuidado, busque informações e orientações, ela permanece na dependência do poder e saber da autoridade do médico, que irá direcionar as melhores opções terapêuticas, prescrevendo as condutas a serem realizadas(2323 Cordeiro FR, Kruse MHL.The right to die and power over life: knowledge to govern the bodies. Texto Contexto Enferm. 2016;25(2):e3980014. https://doi.org/10.1590/0104-07072016003980014
https://doi.org/10.1590/0104-07072016003...
). De acordo com Foucault(2424 Foucault M. Ordem do Discurso. São Paulo. Ed. Loyola; 2010. 79 p.), existem vozes autorizadas e legitimadas, as quais produzem efeitos de verdades na sociedade, portanto, não importa quem profere o discurso, mas a posição que o sujeito ocupa na relação de poder-saber.

Sendo assim, pondera-se que a/o obstetra, detentor de um saber científico legitimado, ocupa posição privilegiada nas relações de poder-saber presentes no âmbito da escolha pela cesariana. Esse é um lugar diferenciado da mulher, pois, mesmo que ela tenha se instrumentalizado e buscado informação acerca do parto vaginal, está submetida a/ao obstetra que conduz sua escolha quanto à via de nascimento.

Limitações do estudo

Uma das limitações envolve o fato de o estudo ter sido realizado apenas com puérperas de um único hospital, o que não permite generalizações quanto ao tema abordado. Outra limitação a ser considerada consiste na ausência de devolutiva das transcrições às participantes do estudo, o que poderia gerar outras nuances quanto às razões e motivos que mobilizaram a escolha pela cesariana.

Contribuições para a área da enfermagem e saúde

As contribuições para a área da saúde e da enfermagem estão na possibilidade de olhar para as questões da escolha da cesariana a partir de outra perspectiva, entendendo que essa decisão é atravessada por tramas, jogos de verdades e relações de poder, capazes de produzir sujeitos, formas de viver, ser e agir. Ademais, o estudo buscou promover a problematização sobre os profissionais de saúde e as relações de poder e saber estabelecidas com as mulheres, permitindo ponderar a posição que cada sujeito ocupa nos regimes de verdades sobre as formas de parir e de que forma isso pode influenciar para manter uma postura de submissão da mulher ao discurso biomédico.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo possibilitou reconhecer que a escolha das mulheres pelo parto vaginal é pautada nas informações e conhecimentos adquiridos no pré-natal, nas experiências prévias de parturição, nas influências da família, amigas, dos meios de comunicação e, até mesmo, na pactuação com o/a obstetra. Para além disso, constatou-se que essa decisão é fortemente determinada por um campo de saber e relações de poder característicos do campo biomédico hegemônico. Desse modo, quanto às relações de saber e poder na escolha pela cesariana, foi possível inferir que o discurso da/o obstetra colabora para que haja uma (re)condução das condutas das gestantes e de seus corpos.

No que se refere à realização da cesariana, reconhece-se que existe um direcionamento dos/das obstetras, durante o pré-natal, para a modificação da via de nascimento. Essa escolha está veiculada à circulação de “verdades” em relação à cesariana, estabelecendo-se nessa opção não somente obstetras, mas também as gestantes que alteram a forma de parir.

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Editado por

EDITOR CHEFE: Antonio José de Almeida Filho
EDITOR ASSOCIADO: Fátima Helena Espírito Santo

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Out 2021
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    25 Fev 2021
  • Aceito
    11 Maio 2021
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