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Construção do cuidado em saúde mental a partir das vivências de um estudante de enfermagem

RESUMO

Objetivo:

relatar a vivência de um estudante de enfermagem com o cuidado em saúde mental durante um estágio clínico.

Método:

relato de experiência realizado com base nos dados de um Projeto Terapêutico Singular desenvolvido por um estudante de enfermagem durante 16 dias de prática em um Hospital Dia como parte de uma disciplina de graduação. Os achados foram analisados com base na teoria do relacionamento interpessoal e na reabilitação psicossocial.

Resultados:

o processo de cuidar se organizou entre as semanas e as fases do relacionamento em: 1) do desconhecido à relação de confiança; 2) reflexões e ressignificações como proposta de cuidado; 3) da limitação ao protagonismo; 4) da resolução do cuidado às mútuas transformações.

Considerações finais:

concluiu-se que, apesar das limitações do contexto de prática, o estudante foi capaz de conduzir intervenções psicossociais em saúde mental alinhadas aos objetivos esperados e produzir significados, em ambos os envolvidos.

Descritores:
Enfermagem; Saúde Mental; Estágio Clínico; Reabilitação Psiquiátrica; Relações Interpessoais

ABSTRACT

Objective:

to report the experience of a nursing student with mental health care during a clinical internship.

Method:

an experience report based on data from a Singular Therapeutic Project developed by a nursing student during 16 days of practice in a Day Hospital as part of an undergraduate course. The findings were analyzed based on the theory of interpersonal relationships and psychosocial rehabilitation.

Results:

the care process was organized between the weeks and phases of the relationship in: 1) from the unknown to relationship of trust; 2) reflections and reframing as a care proposal; 3) from limitation to leading role; 4) from care resolution to mutual transformations.

Final considerations:

it was concluded that despite the limitations of the practice context, the student was able to conduct psychosocial interventions in mental health in line with the expected goals and produce meanings in both involved.

Descriptors:
Nursing; Mental Health; Clinical Clerkship; Psychiatric Rehabilitation; Interpersonal Relations

RESUMEN

Objetivo:

informar la experiencia de un estudiante de enfermería con atención de salud mental durante una pasantía clínica.

Método:

un informe de experiencia basado en datos de un proyecto terapéutico único desarrollado por un estudiante de enfermería durante 16 días de práctica en un Hospital Día como parte de un curso de pregrado. Los hallazgos fueron analizados en base a la teoría de las relaciones interpersonales y la rehabilitación psicosocial.

Resultados:

el proceso de cuidado se organizó entre las semanas y fases de la relación en: 1) de lo desconocido a la relación de confianza; 2) reflexiones y reencuadres como propuesta de cuidado; 3) de la limitación al protagonismo; 4) de la resolución del cuidado a las mutuas transformaciones.

Consideraciones finales:

se concluyó que, a pesar de las limitaciones del contexto de práctica, el alumno fue capaz de realizar intervenciones psicosociales en salud mental en línea con las metas esperadas y producir significados en ambos involucrados.

Descriptores:
Enfermería; Salud Mental; Prácticas Clínicas; Rehabilitación Psiquiátrica; Relaciones Interpersonales

INTRODUÇÃO

Com a mudança do modelo de cuidado em saúde mental do biomédico para a atenção psicossocial, o enfermeiro precisou reinventar suas práticas. As ações, até então focadas no aspecto biológico, não respondiam às reais necessidades do sujeito em sofrimento psíquico, pois o olhar para a subjetividade e para o contexto de vida das pessoas se fez essencial. Com isso, as tecnologias leves passam a ser indispensáveis para a atuação do enfermeiro(a), e esse, com seus recursos imateriais, torna-se o seu principal instrumento de trabalho para atuar com a equipe multiprofissional no cuidado integral em saúde mental(11 Weber CAT, Juruena MF. Paradigms of care and stigma of the mental disorder in Brazilian Psychiatric Reform. Psicol, Saúde Doença. 2017;18(3):640-56. https://doi.org/10.15309/17psd180302
https://doi.org/10.15309/17psd180302...
-22 Pereira MO, Reinaldo AMS, Villa EA, Gonçalves AM. Overcoming the challenges to offer quality training in psychiatric nursing. Rev Bras Enferm. 2020;73(1):e20180208. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2018-0208
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).

Para isso, o profissional de enfermagem deve articular duas teorias que são base para a atenção psicossocial: a teoria do Relacionamento Interpessoal Terapêutico (RIT), que sistematiza e organiza a assistência nas fases de orientação, identificação, exploração e resolução a partir do desenvolvimento da relação entre enfermeiro(a)-sujeito(33 Peplau HE. Interpersonal Relations in Nursing. New York. 1952. 356 p.) e a Reabilitação Psicossocial, que objetiva reabilitar a pessoa em sofrimento psíquico como cidadão por meio da autonomia nos aspectos essenciais da vida (habitar, trocas (trabalho e renda) e rede de apoio)(44 Pitta AMF. Reabilitação psicossocial no Brasil. São Paulo. 1996. 204 p.-55 Lussi IAO, Pereira MAO, Pereira Jr A. The proposal of Saraceno's psychosocial rehabilitation: is it a model of self-organization? Rev Latino-am Enfermagem. 2006; 14(3): 448-56. https://doi.org/10.1590/S0104-11692006000300021
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). Essa articulação teórica é necessária, pois a teoria do RIT foi desenvolvida com foco no cuidado de enfermagem na dinâmica hospitalar e, por isso, deve compor com os objetivos multidisciplinares e comunitários da Reabilitação Psicossocial, que é também a base das políticas públicas atuais. Além disso, recursos básicos como as atitudes terapêuticas (empatia, aceitação, apoio, disponibilidade, etc.) e as técnicas de comunicação terapêutica devem acompanhar todo o processo de cuidado(33 Peplau HE. Interpersonal Relations in Nursing. New York. 1952. 356 p.).

De posse desse aparato teórico, é possível estruturar entre equipe e usuários dos serviços Projetos Terapêuticos Singulares (PTS) capazes de orientar intervenções terapêuticas exitosas(66 Baptista JA, Camatta MW, Filippon PG, Schneider JF. Singular therapeutic project in mental health: an integrative review. Rev Bras Enferm. 2020;73(2):e20180508. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2018-0508
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). Vale ressaltar que entendemos aqui por intervenções todas as ações realizadas pelo enfermeiro(a) pautadas em atitudes reabilitatórias, que envolve o restabelecimento de relações afetivas e sociais do sujeito e a reconquista de seus direitos e poder social na comunidade(44 Pitta AMF. Reabilitação psicossocial no Brasil. São Paulo. 1996. 204 p.).

O desafio do cuidar em enfermagem e saúde mental no modelo atual é também vivenciado pelos estudantes em seu processo de formação. Mesmo após a abordagem teórica, esses são comumente marcados por dificuldade de inserção na área, atravessados por estigma, insegurança e também por não entenderem as intervenções psicossociais como trabalho do enfermeiro(a), o que resulta em impasses na prática clínica no momento da identificação das necessidades e, principalmente, na consolidação do cuidado(11 Weber CAT, Juruena MF. Paradigms of care and stigma of the mental disorder in Brazilian Psychiatric Reform. Psicol, Saúde Doença. 2017;18(3):640-56. https://doi.org/10.15309/17psd180302
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,77 Santos EO, Eslabão AD, Kantorski LP, Pinho LB. Nursing practices in a Psychological Care Center. Rev Bras Enferm. 2020;73(1):e20180175. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2018-0175
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8 Mersin S, Demiralp M, Öksüz E. Addressing the psychosocial needs of patients: Challenges for nursing students. Perspect Psychiatr Care. 2019;1-8. https://doi.org/10.1111/ppc.12365
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-99 Freitas BMC, Kebbe LM. Mental Health by the perception of trainees: a literature review. Psicol Argumento. 2013;31(74):519-528. https://doi.org/10.7213/psicolargum.v31i74.20607
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).

O caráter prescritivo da enfermagem com a supervalorização do cuidado físico, vivenciado na maior parte do tempo pelos estudantes como resultado em saúde, pode dificultar o uso de tecnologias leves no contexto da saúde mental, pois essas ações, muitas vezes, não se apresentam objetivas, palpáveis e conclusivas. Considera-se, então, importante explorar as experiências dos estudantes com a clínica psicossocial, no sentido de contribuir com as possibilidades de intervenções de enfermagem em saúde mental.

OBJETIVO

Relatar a vivência de um estudante de enfermagem com o cuidado em saúde mental durante um estágio clínico da graduação.

MÉTODOS

Aspectos éticos

Considerando que o estudo se baseia em um relato de experiência dos autores, há dispensação de apreciação ética de um Comitê de Ética e Pesquisa.

Referencial teórico-metodológico

A análise dos dados ocorrerá, com base na teoria do RIT de Peplau(33 Peplau HE. Interpersonal Relations in Nursing. New York. 1952. 356 p.), pelas fases de orientação, identificação, exploração e resolução, e nos eixos habitar, rede de apoio e trabalho e renda (trocas), e princípios de autonomia, contratualidade e cidadania da Reabilitação Psicossocial, proposta por Benedetto Saraceno(44 Pitta AMF. Reabilitação psicossocial no Brasil. São Paulo. 1996. 204 p.-55 Lussi IAO, Pereira MAO, Pereira Jr A. The proposal of Saraceno's psychosocial rehabilitation: is it a model of self-organization? Rev Latino-am Enfermagem. 2006; 14(3): 448-56. https://doi.org/10.1590/S0104-11692006000300021
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).

Tipo de estudo

Trata-se de um estudo qualitativo, descritivo, do tipo relato de experiência, referente às experiências de intervenções em saúde mental, realizadas por um estudante de enfermagem em sua atuação no campo prático.

Procedimentos metodológicos

O estágio clínico compõe a “Enfermagem em Saúde Mental e Psiquiátrica”, disciplina de um curso de graduação em enfermagem de uma universidade pública da cidade de São Paulo. Dentre os objetivos desta prática, o principal é a construção de um PTS entre aluno e usuário, orientado pelas fases da teoria do RIT e pelos princípios da reabilitação psicossocial, recurso que foi utilizado como objeto de análise para este relato.

Cenário do estudo

O estágio clínico aconteceu em um Centro de Reabilitação Psicossocial e Hospital Dia (CRHD) de um Hospital Psiquiátrico no município de São Paulo, no período de agosto a setembro de 2019, das 8 horas da manhã até às 12 horas da tarde, de segunda-feira a quinta-feira, totalizando 16 dias com 64 horas de atividade prática. O CRHD tem funcionamento diário, aberto e voluntário, e presta atendimento para indivíduos com transtornos mentais e seus familiares. Tem por objetivo primordial contribuir com a reabilitação psicossocial dos sujeitos em sofrimento psíquico, e, para isso, conta com diversas atividades programadas por equipe multiprofissional desde lazer, estímulo à cidadania, psicoterapias, ludoterapia, práticas complementares integrativas, entre outras.

Coleta e organização dos dados

Os dados foram coletados de um PTS desenvolvido pelo aluno durante 16 dias de práticas em saúde mental e entregue ao final do campo prático, considerando todo o processo de cuidado realizado. Dentro desse, foi compilado todas as informações relacionadas ao contexto de vida da usuária em questão, as necessidades identificadas e as intervenções desenvolvidas pelo estudante no período. Os dados foram organizados nas 4 semanas de estágio, nomeadas a partir das vivências prevalentes em cada momento como: semana 1 - Do desconhecido a relação de confiança; semana 2- Reflexões e ressignificações do sofrimento psíquico como propostas de cuidado; semana 3 – Da limitação ao protagonismo; semana 4- Da resolução do cuidado as mútuas transformações.

Análise dos dados

Os resultados serão analisados em ordem cronológica semanal e apresentados de forma descritiva, com auxílio de quadros e figuras.

RESULTADOS

Semana 1 - Do desconhecido a relação de confiança

A partir do reconhecimento do campo de estágio, o estudante iniciou sua aproximação com os usuários do serviço. A primeira semana foi marcada, principalmente, pela formulação de vínculo e construção de confiança, dando início ao desenvolvimento do RIT com a fase de orientação. Nos primeiros dias, o estudante escolheu se aproximar de uma usuária após identificar que outros usuários do serviço e profissionais utilizavam falas com teor estigmatizante frente à sua experiência prévia, à ampla divulgação midiática do caso e sua relação com a justiça e à aproximação com a área de estudo de interesse, sofrimento materno. Os pontos citados despertaram interesse e empatia por parte do discente, e, assim, fez o primeiro contato com a usuária, notando aceitação por parte da mesma. Essa se encontrava internada em uma enfermaria do hospital. Durante o dia, frequentava as atividades e o espaço do CRHD e, por isso, foi possível o contato diário.

Ao concretizar a relação de confiança, o estudante organizou encontros individuais por meio do desenvolvimento da comunicação terapêutica, com técnicas de expressão, clarificação e validação (escuta, verbalizar e demonstrar aceitação e interesse, fazer perguntas abertas, manter o foco no assunto, esclarecer o que foi dito, estimular a expressão de sentimentos, etc.), que possibilitou fortalecer o vínculo, compreender melhor as experiências da usuária, seu histórico de vida e a condição atual. Esses encontros aconteceram diariamente, com duração média de 30 minutos. Quando possível, foram realizados em espaço totalmente privativo, o que era difícil devido à limitação de espaço, quantidade de usuários e a presença de escolta policial.

O estudante e a usuária identificaram, em conjunto, as necessidades primordiais de saúde mental, como incômodos e falta de esclarecimento referente à mudança de humor, o desgaste na relação familiar com fragilização da sua rede de apoio e grande insatisfação em não poder participar das atividades externas ao espaço do CRHD, devido às restrições judiciais. No entanto, neste momento, o estudante não se sentiu seguro para intervir nessa última questão. O levantamento conjunto dessas necessidades compreendeu a fase dois de identificação.

Semana 2- Reflexões e ressignificações como propostas de cuidado

Como resposta às demandas da usuária, as ações desenvolvidas pelo estudante na fase três de exploração foram pautadas em reflexões. Para que a usuária conseguisse nomear e reconhecer seus sentimentos e mediante quais situações eles se manifestavam, o estudante propôs uma intervenção que nomeou de “Diário de Sentimentos”. Foi orientado que a mesma diariamente escrevesse reflexões em um caderno disponibilizado pelo estudante referentes aos acontecimentos do seu dia e os sentimentos gerados, para que, em conjunto, identificassem essas alterações de humor e a sua relação com o contexto. Este foi organizado com a data e a seguinte frase: “Escreva aqui todos acontecimentos relevantes ao longo do seu dia e todos os sentimentos gerados diante deles.”

Diariamente, o estudante retomava o que a usuária escrevia e facilitava reflexões. Com isso, foi possível ressignificar a alteração de humor como algo comum ao cotidiano do ser humano diante de situações frustrantes com intenso sofrimento e não como sintoma de “doença mental”, que a classificava como alguém incapaz. Essa intervenção teve um bom retorno da usuária, que escreveu seus sentimentos diários por 10 dias durante o estágio.

Com relação à demanda do desgaste da relação familiar e rede de apoio fragilizada, para melhor compreender a configuração dessas e também sua interação com o meio social, o estudante utilizou o Modelo Calgary de Avaliação de Famílias. Durante os encontros, construiu em conjunto com a usuária um genograma e ecomapa, como ilustra a Figura 1 abaixo.

Figura 1
Genograma e ecomapa como formas de intervenção, São Paulo, São Paulo, Brasil, 2019

Essa intervenção possibilitou que a usuária falasse sobre cada membro da família e abordasse a relação anterior à internação psiquiátrica e também durante essa. As reflexões foram muito potentes, e percebeu-se que a família era um fator de desgaste em alguns momentos, assim como as relações da mesma com o meio social, suas crenças, costumes e ideologias. Evidenciou-se, também, a necessidade de a família receber cuidado pelo serviço de saúde mental, fato que passou a refletir em formas diferentes de apoio entre eles.

Ainda nessa semana, o estudante percebeu certa dificuldade de deambulação da usuária devido a fraturas nos membros inferiores, decorrentes do momento de crise. Durante um dos encontros, identificaram, em conjunto, uma necessidade física, com o relato de dor e dificuldade de locomoção, acompanhada por uma necessidade psicológica, por afirmar que utilizava sapatos fechados para proteger as marcas das lesões deixadas pela fratura, as quais lhe remetiam a lembrança das alterações psíquicas.

O estudante fez uma integração com a profissional fisioterapeuta, que indicou abordagens de exercícios que poderiam amenizar as sensações, orientando frente às consequências o uso de sapatos fechados por tempo prolongado após lesões. Percebeu-se a inserção dos exercícios na rotina da usuária, que começou a utilizar sapatos abertos, expondo as marcas e ressignificando-as.

Semana 3- Da limitação ao protagonismo

Constatou-se que o diagnóstico psiquiátrico era um limitador na vida da usuária, pois a mesma utilizava-o para justificar e reforçar suas ações, pensamentos, personalidade e relações. Nessa semana, ainda nas fases de identificação e exploração, buscou-se repensar este problema junto à usuária, com o auxílio de um instrumento ilustrado no Quadro 1 a seguir.

Quadro 1
Sistematização da reflexão: pensando no passado, presente e futuro, São Paulo, São Paulo, Brasil, 2019

Utilizaram-se as respostas do Quadro 1 para refletir, junto à usuária, que hábitos, desejos e expectativas passam por mudanças ao longo do tempo e que não necessariamente estão associadas à perda de sua personalidade e potencialidades. Para compor com essa reflexão, o estudante buscou sempre contextualizar o histórico e o momento de vida da usuária, deslocando o lugar do diagnóstico como protagonista da sua vida. A partir daí, a usuária conseguiu localizar marcos passados da sua vida que nunca havia pensado a respeito, mas que, naquele momento, apareceram e permitiram repensar o presente e o futuro. Ela elencou o autocuidado, a família e o trabalho como aspectos importantes para serem trabalhados em seguida.

Semana 4- Da resolução do cuidado às mútuas transformações

Na última semana, nas fases de exploração e resolução, o estudante utilizou uma intervenção baseada no conceito ampliado de saúde, com uma tabela referente aos potenciais de fortalecimento e desgaste na vida da usuária para repensar sobre os determinantes do processo saúde-doença. O estudante teve como objetivo promover uma reflexão inicial com a identificação de pontos positivos e negativos envolvendo todo o seu contexto-histórico. Observou-se que os pontos positivos se sobressaíam aos negativos, sendo possível focar na manutenção dos potenciais de fortalecimento e lidar com os de desgaste.

Retomou-se, também, o “Diário de Sentimentos”, e como forma de melhor visualizá-lo, o estudante propôs que fizessem juntos um “Gráfico de Sentimentos” (Figura 2) para acompanhar o seu estado de humor e os sentimentos ao longo dos 10 dias. A mesma identificou que, geralmente, nos fins de semana, quando não frequentava o CRHD e passava a maior tempo na enfermaria, apresentava piora de estado de humor nomeado como tristeza e melancolia.

Figura 2
Gráfico de Sentimentos, São Paulo, São Paulo, Brasil, 2019

Já no processo de encerramento e com mais segurança e vínculo com a equipe multiprofissional do Hospital Dia, o estudante propôs uma discussão do caso em conjunto com a enfermeira do setor e a própria usuária. A usuária pontua o desejo de dar continuidade ao “Diário de Sentimentos” e a enfermeira inclui essa proposta como parte do PTS do CRHD. Essa possibilidade foi importante para o estudante reconhecer que o cuidado em saúde mental é contínuo e demanda disponibilidade e integração entre os profissionais.

Por fim, o estudante pôde observar mudanças pessoais e profissionais geradas pelo processo do RIT. Percebeu a dificuldade inicial em reconhecer que, desde a primeira semana, estava cuidando e construindo a relação terapêutica, mas, com o passar dos dias, identificou que a escuta, a comunicação e as atitudes terapêuticas estavam presentes em todos os encontros, sendo possível se ver como instrumento de trabalho em saúde mental. O Quadro 2 reúne as intervenções realizadas pelo estudante de enfermagem, traduzindo, brevemente, a construção conjunta do PTS.

Quadro 2
Construção do cuidado em saúde mental pelo estudante de enfermagem, São Paulo, São Paulo, Brasil, 2019

DISCUSSÃO

A partir da experiência vivida pelo estudante de enfermagem no cuidado em saúde mental, fica evidente que as intervenções desenvolvidas só foram possíveis por meio da relação de confiança construída entre os envolvidos e da valorização da usuária como participante ativa no seu cuidado e projetos de vida. O estudante escolheu e foi escolhido pela usuária em questão e juntos elaboraram intervenções possíveis de serem conduzidas pelo RIT durante o estágio, articuladas com os objetivos da Reabilitação Psicossocial.

Peplau, em sua teoria, enfatiza a importância do período inicial de aproximação entre enfermeiro(a)-usuário nas fases de orientação e identificação, pois é onde se concretiza o vínculo que dá início ao RIT. É previsto, também, pela teoria, a sobreposição das fases do relacionamento(33 Peplau HE. Interpersonal Relations in Nursing. New York. 1952. 356 p.), como foi observado neste estudo, em que a fase de identificação esteve presente em três semanas consecutivas. Em todo o processo relacional, a comunicação terapêutica é considerada uma das tecnologias leves mais importantes, pois possibilita o acolhimento, a formação de vínculos, a identificação de necessidades e intervenções e, por isso, deve acompanhar o profissional em todos os momentos(22 Pereira MO, Reinaldo AMS, Villa EA, Gonçalves AM. Overcoming the challenges to offer quality training in psychiatric nursing. Rev Bras Enferm. 2020;73(1):e20180208. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2018-0208
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,66 Baptista JA, Camatta MW, Filippon PG, Schneider JF. Singular therapeutic project in mental health: an integrative review. Rev Bras Enferm. 2020;73(2):e20180508. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2018-0508
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). Os estudantes de enfermagem, apesar de apresentarem dificuldades iniciais com a aplicação das técnicas de comunicação, são capazes de empregá-las com qualidade ao longo da prática clínica(88 Mersin S, Demiralp M, Öksüz E. Addressing the psychosocial needs of patients: Challenges for nursing students. Perspect Psychiatr Care. 2019;1-8. https://doi.org/10.1111/ppc.12365
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), assim como foi realizado pelo estudante neste relato.

Pensar e desenvolver o cuidado em saúde mental não é uma tarefa simples, porque as necessidades subjetivas e psicossociais não são facilmente acessadas, e, algumas vezes, se deparam com restrições que vão além das competências da equipe(44 Pitta AMF. Reabilitação psicossocial no Brasil. São Paulo. 1996. 204 p.-55 Lussi IAO, Pereira MAO, Pereira Jr A. The proposal of Saraceno's psychosocial rehabilitation: is it a model of self-organization? Rev Latino-am Enfermagem. 2006; 14(3): 448-56. https://doi.org/10.1590/S0104-11692006000300021
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,88 Mersin S, Demiralp M, Öksüz E. Addressing the psychosocial needs of patients: Challenges for nursing students. Perspect Psychiatr Care. 2019;1-8. https://doi.org/10.1111/ppc.12365
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-99 Freitas BMC, Kebbe LM. Mental Health by the perception of trainees: a literature review. Psicol Argumento. 2013;31(74):519-528. https://doi.org/10.7213/psicolargum.v31i74.20607
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) e, principalmente, dos estudantes. Por outro lado, a ausência de padrões de propostas na saúde mental permite que as possibilidades de cuidados sejam ampliadas e que as propostas sejam relevantes e tenham reais significados(55 Lussi IAO, Pereira MAO, Pereira Jr A. The proposal of Saraceno's psychosocial rehabilitation: is it a model of self-organization? Rev Latino-am Enfermagem. 2006; 14(3): 448-56. https://doi.org/10.1590/S0104-11692006000300021
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).

Nesta experiência, o estudante pôde intervir, durante a fase de exploração, na autoestigmatização da usuária, promovendo reflexões sobre diferentes significados do que geralmente nomeamos como sinais, sintomas ou impotências relacionadas aos transtornos mentais. Pelo histórico de violação de direitos humanos, frequentemente, os indivíduos com diagnósticos psiquiátricos sofrem pela estigmatização e internalizam estereótipos negativos frente ao sofrimento(11 Weber CAT, Juruena MF. Paradigms of care and stigma of the mental disorder in Brazilian Psychiatric Reform. Psicol, Saúde Doença. 2017;18(3):640-56. https://doi.org/10.15309/17psd180302
https://doi.org/10.15309/17psd180302...
). Quando o sujeito acredita que é impotente frente à dinâmica da sua vida, há o surgimento do estado de inércia e diminuição da sua condição para o enfrentamento das dificuldades, sendo esse um problema que deve sempre ser abordado pelos profissionais(44 Pitta AMF. Reabilitação psicossocial no Brasil. São Paulo. 1996. 204 p.-55 Lussi IAO, Pereira MAO, Pereira Jr A. The proposal of Saraceno's psychosocial rehabilitation: is it a model of self-organization? Rev Latino-am Enfermagem. 2006; 14(3): 448-56. https://doi.org/10.1590/S0104-11692006000300021
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).

Quando trabalhamos com a Reabilitação Psicossocial, há dois princípios fundamentais que orientam a prática do profissional: a autonomia e a cidadania. Além disso, também visa promover a plena contratualidade do usuário nos cenários: habitat, com a sua inserção em domicílio e relações plenas dentro dele; meio social; trabalho como valor social(44 Pitta AMF. Reabilitação psicossocial no Brasil. São Paulo. 1996. 204 p.-55 Lussi IAO, Pereira MAO, Pereira Jr A. The proposal of Saraceno's psychosocial rehabilitation: is it a model of self-organization? Rev Latino-am Enfermagem. 2006; 14(3): 448-56. https://doi.org/10.1590/S0104-11692006000300021
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). Assim, é importante reconhecer que a complexidade de alguns aspectos, identificados no RIT, não são passíveis de intervenções ou ações reabilitatórias breves, como, por exemplo, neste caso, as relações afetivas e a restrição judicial, e, portanto, não chegarão na fase de resolução. Por isso, trabalhar em equipe multiprofissional e garantir a continuidade do cuidado no próprio serviço de referência é essencial.

O profissional de enfermagem atuando em saúde mental mantém o seu exercício autônomo, mas integra seu cuidado com outros membros da equipe como forma de possibilitar um cuidado ampliado(77 Santos EO, Eslabão AD, Kantorski LP, Pinho LB. Nursing practices in a Psychological Care Center. Rev Bras Enferm. 2020;73(1):e20180175. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2018-0175
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). Essa experiência do trabalho multiprofissional foi diariamente vivenciada e aplicada na prática clínica pelo estudante na construção de um PTS articulado com a profissional de fisioterapia e com a própria equipe de enfermagem do setor do CRHD.

Além disso, ao longo da vivência, o estudante compreendeu que poderia integrar seu conhecimento prévio de outras áreas da enfermagem com a saúde mental, e, a partir daí, utilizar diferentes estratégias interligando-as com os objetivos do PTS. O Modelo Calgary de Avaliação de Famílias, o genograma e o ecomapa, e os potenciais de fortalecimento e desgaste são exemplos. As interações do indivíduo com a família e a comunidade são fatores que impactam diretamente a saúde mental do indivíduo. Ao reconhecer essas estruturas, o profissional pode encorajar que a família ou a rede de apoio deixem de ser cúmplices ou vítimas da psiquiatria, passando a ser parte corresponsável e integrante do cuidado e da reabilitação(55 Lussi IAO, Pereira MAO, Pereira Jr A. The proposal of Saraceno's psychosocial rehabilitation: is it a model of self-organization? Rev Latino-am Enfermagem. 2006; 14(3): 448-56. https://doi.org/10.1590/S0104-11692006000300021
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).

Essas diferentes ações conduzidas pelo estudante por meio do RIT fortaleceram as respostas de reabilitação psicossocial; portanto, são consideradas intervenções potentes, uma vez que, para promover a saúde mental, deve-se pensar em aspectos da vida que vão muito além da saúde física. É fato que o cenário de prática sendo um Hospital Dia, dentro das instalações de um hospital psiquiátrico, com a usuária em internação sob escolta policial, não é potencial para ações reabilitadoras, mas não impede o desenvolvimento da relação. Faz-se necessário ampliar as possibilidades de acolhimento, cidadania e inclusão social de usuários e familiares por meio do trabalho na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) que garantam um suporte a longo prazo para além dos limites dos serviços(1010 Barbosa VFZ, Martinhago F, Hoepfner AMS, Daré PK, Caponi SNC. The mental health care in Brazil: a reading from the biopower and biopolitics devices. Saúde Debate. 2016;40(108):178-89. https://doi.org/10.1590/0103-1104-20161080015
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).

Limitações do estudo

As limitações estão associadas à complexidade do caso, em conjunto com a dificuldade de integrar aspectos da reabilitação psicossocial, devido ao cenário de prática hospitalar, como também à escassez de produções científicas com exemplos práticos para enriquecimento da discussão.

Contribuições para a enfermagem em saúde mental

Este estudo contribui para amenizar angústias relacionadas à experiência de estudantes de enfermagem frente a assistência em saúde mental, ilustrando as oportunidades de aplicações da teoria na prática clínica, com o uso de tecnologias leves de cuidado. Além disso, pode orientar discussões sobre a temática no espaço de formação acadêmica e preencher a lacuna de pesquisa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As quatro semanas de prática colocaram o estudante em contato com a complexidade do processo de um cuidado integral em saúde mental, o qual produziu significados reais na vida de todos os envolvidos nesta construção. Apesar das limitações do contexto de prática, o estudante desenvolveu, a curto prazo, em conjunto com a usuária, um PTS alinhado ao processo do RIT e a Reabilitação Psicossocial, com marcas no resgate do protagonismo da mesma diante da condição atual. As intervenções de enfermagem propostas responderam às necessidades de saúde do sujeito em sofrimento psíquico, levando a superação de limitações pessoais do estudante frente à atenção psicossocial.

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Editado por

EDITOR CHEFE: Dulce Barbosa
EDITOR ASSOCIADO: Hugo Fernandes

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Maio 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    30 Jun 2020
  • Aceito
    03 Out 2020
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