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Memórias de uma mulher impossível, com Philip Evanson

RESENHA

Memórias de uma mulher impossível, com Philip Evanson

Memories of a polyvalent woman, com Philip Evanson

Memorias de una mujer imposible, com Philip Evanson

Maria Bettina Camargo Bub

Enfermeira. Doutora em Filosofia da Enfermagem pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e Bolsa CAPES para Doutorado Sanduíche na Linkoping University, Tema Institute: Health and Society - Suécia. Professor Adjunto da UFSC

MURARO, R. M. MEMÓRIAS DE UMA MULHER IMPOSSÍVEL, COM PHILIP EVANSON. RIO DE JANEIRO: ROSA DOS TEMPOS, 1999. 404 p.

Rose Marie Muraro (1932) é, como bem afirma Philip Evanson, uma intelectual polivalente. Fluente em vários idiomas, estudou matemática e física; escreveu poemas, livros2 e artigos, além de tornar-se uma das mais importantes pessoas do movimento editorial brasileiro. Foi editora da Vozes (1969-1985), da Espaço &Tempo (1986-1988), da Rosa dos Tempos (1989-1998) e. atualmente, da Editora Record, Desde a década de 70, atua na liderança do movimento feminista brasileiro do qual foi uma das fundadoras. Na década de 80 dedicou-se também à politica candidatando-se a deputada federal pelo PDT e. depois pelo PT. Como vemos, o titulo desta obra é facilmente compreensível. Ela é mesmo uma mulher impossível.

Em 1997, estava na Universidade de Temple, Filadélfia, ensinando creative writing quando foi estimulada pelos alunos a escrever sobre sua vida. O professor Philip Evanson prontificou-se a fazer a entrevista e, um ano depois, o cooião do livro estava pronto. Porém, Betty Mindlin a quem ela tinha dado o manuscrito para ler, reclamou mais subjetividade na obra. argumentando que a própria Rose considerava a subjetividade como categoria epistémica maior. Rose sente-se "pega" e afirma "Eu só contara o que havia feito, e não o que havia vivido. Agira como um homem. Falar de mim me dava um medo horrível. "Superado o medo, Rose finaliza este instigante livro constituído de cinco partes e 33 capítulos.

Rose introduz contando a forma pela qual uma deficiência visual importante, que possui desde a infância, se transforma num desafio para a criatividade que passaria a permear toda a sua existência, desafiando-a para "o impossível". Pois. para ela "Só o impossível abre o novo... Só o impossível cria". E foi assim, em pleno uso de toda a sua criatividade, que ela desenhou a estrutura do livro, articulando a linha do tempo, a partir dos anos 30, aos acontecimentos que marcaram o Brasil e o Mundo e a forma como eles foram forjando sua própria existência.

Rose caracteriza os anos 30 como "A gestação do futuro". Futuro do Brasil, futuro de Rose, pois em 11 de novembro de 1930 nascia Rose Marie Muraro. mesmo dia em que Getúlio Vargas invade o Rio de Janeiro e depõe Washington Luis, iniciando uma politica de industrialização. Rose, por outro lado, leve uma infância rica e solitária. Filha de industriais libaneses, teve uma educação privilegiada e superprotegida. A sociedade desta época tinha uma visão do mundo como essencialmente bom, a relação entre homens e mulheres era tão idealizada que o bem sempre vencia o mal (alguma coincidência com os dias atuais?) Esta visão, oposta à realidade foi causa da decepção de muitas mulheres, pois a vida não era romântica (alguma semelhança com o cinema do circuito comercial?) Nos anos 40, "O mundo queima". A Segunda Guerra Mundial se alastra pelo mundo. A família empobrece. Rose perde o seu pai, a quem tinha uma profunda admiração e fortes laços afetivos"[...] um homem poderoso e terno. [...] O que me atraía nele era a ternura, porque eu via violência nas mulheres". Foi também nesta década que Rose se vincula à religião e, inicia o curso de fisica que, após algum tempo, decide abandonar.

No decorrer de sua narrativa, Rose articula os fatos históricos à sua história pessoal. É assim quando se refere ao período pré, trans e pós-revolução, ao feminismo, subjetividade e a sexualidade da mulher brasileira, à teologia da liberteçâo, a personalidades como frei Ludovico e Don Hélder, á separação e divórcio, a desconstrução do corpo, à sua separação da editora Vozes a qual tinha dedicado anos de sua existência, publicando grandes bestsellers internacionais por esta editora. No entanto, o que mais me chamou a atenção foi a narrativa das suas impressões sobre os Estados Unidos, a partir de suas visitas ao país nas décadas de 80 e 90. Nesta época, viu a revolução das mentalidades morrer. Os hippies não estavam mais em moda e, sim, os yuppies (young upward bound mobile professional), ganhando em torno de 500 mil dólares por ano. Segundo ela, a tacada fina! contra os progressistas foi dada pela onda do politically correct (politicamente correto), [...] o patrulhamento mais terrível que eu já vira. Além de comentar sobre o terrível sexismo que constatou nas universidades americanas, um dos aspectos mais chocantes está no texto "A Economia Ilegal Descoberta". Neste texto ela comenta a informação dada por Bill Clínton, que os Estados Unidos têm 5% da população mundial, mas consome 507o da droga do mundo. Segundo ela, baseada em informações do Foreign Investiment Report (1994), publicado pelo Banco Mundial, a economia ilegal manda na economia formal. O dinheiro ilegal é esquentado nos paraísos fiscais, entra na bolsa de Nova Iorque e. aí, entra na economia formal. Isto explica porque as blue ships índice Médio Industrial Down Jones são imbatíveis, pois levou 82 dias para subir de 6 para 7 mil pontos, enquanto antigamente, levava-se 10 anos para subir mil pontos.

Uma outra informação muito interessante comentada por Rose, foi sobre os chamados think thanks americanos - centros de pesquisa coordenados por intelectuais, dedicados a pensar o futuro do mundo (cada país tinha um desses centros ligados aos think thanks americanos, no Brasil antes de 64 foi o IBAD). De acordo com Rose, foram eles que pensaram a guerra fria, dividiram os paises em blocos e, planejaram e incentivaram a ditadura na América Latina. Todo problema no fim dos anos 70 era acabar com a Revolução das Mentalidades. E foram os think thanks que descobriram a importante associação entre liberdade sexual e liberação da opressão econômica; importante obstáculo ao desenvolvimento do capitalismo.

Esse pequeno resumo, por si só já nos fornece elementos suficientes para motivar o leitor ou leitora a uma instigante, estimulante e elucidativa leitura. Um belo presente de uma mulher impossível!

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jun 2014
  • Data do Fascículo
    Ago 2002
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